2kk3f 
Direitos
Humanos Internacionais e Jurisdio Supra-Nacional: A
exigncia da Federalizao
Flvia Piovesan
- Procuradora do Estado de So Paulo
Professora de Direitos Humanos
e de Direito Constitucional da PUC/SP
Ao consagrar a
impunidade e a afronta ordem jurdica nacional, o
julgamento de Eldorado dos Carajs reacendeu o intenso debate
a respeito da proposta da "federalizao dos crimes de
direitos humanos".
Prevista
inicialmente como meta do Programa Nacional de Direitos
Humanos e pendente de apreciao na Cmara dos Deputados, a
proposta objetiva atribuir Justia Federal a competncia
para processar e julgar os crimes de direitos humanos.
Defendemos que esta competncia h de ser estabelecida a
partir de duas diretrizes: a) a definio de um rol de
crimes previstos em tratados internacionais ratificados pelo
Brasil (destacando-se o crime de tortura, genocdio, explorao
de trabalho escravo, dentre outros) e b) a hiptese de
"deslocamento" de competncia para a Justia
Federal, em casos de grave violao de direitos humanos,
observada a lei processual.
No que se
refere primeira possibilidade, em conformidade com sugesto
apresentada por Comisso formada por Procuradores do Estado e
Procuradores da Repblica, seria a Justia Federal
competente para processar e julgar os seguintes crimes:
a) tortura;
b) homicdio
doloso qualificado praticado por agente funcional de quaisquer
dos entes federados;
c) praticados
contra as comunidades indgenas ou seus integrantes;
d) homicdio
doloso, quando motivado por preconceito de origem, raa,
sexo, opo sexual, cor, religio, opinio poltica ou
idade ou quando decorrente de conflitos fundirios de
natureza coletiva; e) uso, intermediao e explorao de
trabalho escravo ou de criana e adolescente em quaisquer das
formas previstas em tratados internacionais.
A justificativa
simples: considerando que estas hipteses esto tuteladas
em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a Unio
que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violao.
Vale dizer, sob a pessoa da Unio que recair a
responsabilidade internacional decorrente da violao de
dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a
cumprir. Todavia, paradoxalmente, em face da sistemtica
vigente, a Unio, ao mesmo tempo em que detm a
responsabilidade internacional, no detm a responsabilidade
nacional, j que no dispe da competncia de investigar,
processar e punir a violao, pela qual internacionalmente
estar convocada a responder.
Adicione-se que
o Brasil, a partir da democratizao, ou a ratificar os
principais tratados de direitos humanos. Recentemente,
mediante decreto legislativo de dezembro de 1998, o Estado
Brasileiro aceitou a competncia da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, que tem jurisdio internacional para
julgar violaes de direitos humanos, decorrentes de afronta
normatividade internacional. Tambm em 1998 o Brasil
aderiu ao Estatuto do Tribunal Internacional Criminal
Permanente, competente para julgar crimes contra a humanidade,
genocdio, crimes contra a paz e crimes de agresso. Em um
momento em que se vive a "humanizao do Direito
Internacional" e "internacionalizao dos direitos
humanos", com a consolidao de garantias
internacionais de proteo, amplia-se enormemente a
responsabilidade internacional do Estado (no caso brasileiro,
da Unio). A ttulo de exemplo, cabe mencionar que
atualmente esto pendentes na Comisso Interamericana de
Direitos Humanos mais de quarenta casos internacionais contra
o Brasil, que podero (se houver fatos novos) ser submetidos
jurisdio da Corte Interamericana. Uma vez mais, a
Unio que ser convidada a responder internacionalmente pela
violao.
Quanto hiptese
de "deslocamento" de competncia para a Justia
Federal, proposta pela Associao Juzes para a Democracia
e includa no relatrio a respeito da reforma do Poder
Judicirio, tambm constitui uma segunda vertente relevante
para a "federalizao". luz da proposta, nas
hipteses de grave violao de direitos humanos, o Ministrio
Pblico poder suscitar, perante o Superior Tribunal de
Justia, incidente de deslocamento de competncia para a
Justia Federal, na forma prevista na lei processual (por
exemplo, quando da demora injustificada na investigao,
processo ou julgamento do feito ou quando haja fundado receio
de comprometimento da apurao dos fatos ou da atuao da
Justia local). Tal proposta est em absoluta consonncia
com a sistemtica processual vigente (vide o instituto do
"desaforamento"), como tambm com a sistemtica
internacional de proteo dos direitos humanos (que ite
seja um caso submetido apreciao de organismos
internacionais quando o Estado mostra-se falho ou omisso no
dever de proteger os direitos humanos). Ademais, se a prpria
ordem constitucional de 1988 permite a drstica hiptese de
interveno federal quando da afronta de direitos humanos
(art.34, VII, "b"), em prol do bem jurdico a ser
tutelado, no h porque obstar a possibilidade de
deslocamento. Enfatize-se ainda que o Superior Tribunal de
Justia seria o rgo competente para julgar o
"incidente de deslocamento de competncia",
justamente porque ele o rgo jurisdicional competente
para dirimir conflitos entre entes da federao.
A federalizao dos crimes
contra os direitos humanos medida imperativa diante da
crescente internacionalizao dos direitos humanos, que, por
consequncia, aumenta extraordinariamente a responsabilidade
da Unio nesta matria. Se qualquer Estado Democrtico
pressupe o respeito dos direitos humanos e requer a
eficiente resposta estatal quando de sua violao, a
proposta de federalizao reflete sobretudo a esperana de
que a justia seja feita e os direitos humanos respeitados.
|