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A
Constituio Brasileira de 1988e os tratados internacionais
de proteo dos Direitos Humanos
FLVIA
g PIOVESAN
6bo4u
Professora
Doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Faculdade de
Direito da PUC/SP, Procuradora do Estado, Coordenadora do Grupo de
Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral
do
Estado de So Paulo e Visiting
fellow do Programa de Direitos Humanos
da
Harvard Law School (1995 e 2000).
A
proposta deste ensaio enfocar os tratados internacionais
de proteo dos direitos humanos, luz da Constituio
Brasileira de 1988.
Neste
sentido, primeiramente sero apresentadas as especificidades desses
tratados, bem como de sua fonte o chamado Direito Internacional
dos Direitos Humanos. Em um segundo momento, o destaque ser dado
posio do Brasil, em face dos instrumentos internacionais de
proteo dos direitos humanos. Em sequncia, ser desenvolvida a
avaliao do modo pelo qual a Constituio Brasileira de 1988
tece a incorporao desses tratados, e, por fim, qual o impacto
jurdico que apresentam momento no qual sero examinados
alguns casos concretos em que esses tratados foram aplicados.
1.
Tratados Internacionais de Proteo dos Direitos Humanos: O que so?
Qual a sua origem? Quais os seus Objetivos?
Os
tratados intemacionais de direitos humanos tm como fonte um campo
do Direito extremamente recente, denominado Direito Internacional
dos Direitos Humanos, que o Direito do ps-guerra, nascido
como resposta s atrocidades e aos horrores cometidos pelo nazismo.
Em
face do regime do terror, no qual imperava a lgica da destruio
e no qual as pessoas eram consideradas descartaveis, ou seja, em
face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, emerce a necessidade de
reconstruo do valor dos direitos humanos, como paradigma e
referencial tico a orientar a ordem internacional.
O
Direito Internacional dos Direitos Humanos surge, assim, em
meados do sculo XX, em decorrncia da Segunda Guerra Mundial e
seu desenvolvimento pode ser atribudo s monstruosas violaes
de direitos humanos da era Hitler e crena de que parte dessas
violaes poderiam ser prevenidas, se um efetivo sistema de proteo
internacional de direitos humanos exstsse.
Ao
tratar do Direito Internacional dos Direitos Humanos, afirma Richard
B. Bilder: O movimento do direito internacional dos direitos
humanos e baseado na concepo de que toda nao tem a obrigao
de respeitar os direitos humanos de seus cidados e de que todas as
naes e a comunidade internacional tm o direito e a
responsabilidade de protestar, se um Estado no cumprir suas obrigaes.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos congsiste em um sistema
de normas internacionais, procedimentos e instituies
desenvolvidas para implementar esta concepo e promover o
respeito dos direitos humanos em todos os pases, no mbito
mundial. (...) Embora a idia de cue os seres humanos tm
direitos e liberdades fundamentais que lhe so inerentes tenha h
muito tempo surgido no pensamento humano, a concepo de que os
direitos humanos so objetos prprios de uma regulao internacional,
por sua vez, bastante recente. (...) Muitos dos direitos que hoje
constam do Direito Internacional dos Direitos Humanos surgiram
apenas em 1945, quando, com as implicaes do holocausto e de
outras violaes de direitos humanos cometidas pelo nazismo, as naes
do mundo decidiram que a promoo de direitos humanos e liberdades
fundamentais deve ser um dos principais propsitos da Organizao
das Naes Unidas.
Neste
cenrio, fortalece-se a idia de que a proteo dos direitos
humanos no deve se reduzir ao domnio reservado do Estado, isto
, no deve se restringir competncia nacional exclusiva ou
jurisdio domstica exclusiva, porque revela tema de legtimo
interesse internacional. Por sua vez, esta concepo inovadora
aponta para duas importantes conseqlncias:
1.
a reviso da noo tradicional de soberania absoluta do Estado,
que a a sofrer um processo de relativizao, na medida em que
g so itidas intervenes no piano nacional, em prol da proteo
dos direitos humanos; isto , permitem-se formas de monitoramento e
responsabilizao internacional, quando os direitos humanos forem
violados ;
2.
a cristalizao da idia de que o indivduo deve ter direitos
protegidos na esfera internacional, na condio de sujeito de
direito.
Prenuncia-se,
deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava
seus nacionais era concebida como um problema de jurisdio domstica,
decorrncia de sua soberania.
Inspirada
por estas concepes, surge, a partir do ps-guerra, em 1945, a
Organizao das Naes tinidas. Em 1948 adotada a Declarao
Universal dos l)ireitos Humanos, pela aprovao unnime de 48
Estados, com 8 ahstcnesi A inexistncia de qualquer
questionamento ou reserva feita pelos Estados aos princpios da
Declarao e a inexistncia de qualquer voto contrario s suas
disposies. conferem Declarao Universal o significado dc
um cdigo e plataforma comum de ao. A Declarao consolida a
alirnao de urna tica universal,1 ao consagrar um
consenso sobre valores de cunho universal, a serem seguidos pelos
Estados.
A
Declarao de 1948 introduz a concepo contempornea de
direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade
desses direitos. Ao consagrar direitos civis e polticos e direitos
econmicos, sociais e culturais, a l)cclarao ineditamente
combina o discurso liberal e o discurso social da cidadania,
conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade. Nas palavras
de Louis B. Sohn e Thomas Buergenthal: A Declarao Universal
de Direitos Humanos se distingue das tradicionais Cartas de direitos
humanos que constam de diversas ngormas fundamentais e
constitucionais dos sculos XVIII e XIX e comeo do sculo XX, na
medida em que ela consagra no apenas direitos civis e polticos,
mas tambm direitos economicos. sociais e culturais, como o direito
ao trabalho e educao.
Ao
conjugar o valor da liberdade com o valor da i2ualdade, a Declarao
demarca a concepo contempornea de direitos humanos, pela qual
os direitos humanos am a ser concebidos como uma unidade
interdependente, inter-relacionada e indivisvel. Assim,
partindo-se do critrio metodolgico, que classifica os direitos
humanos em geraes? adota-se o entendimento de que unia gerao
de direitos no substitui a outra, mas com ela interage. Isto ,
aLista-se a idia da sucesso geracional de direitos, na
medida em que se acolhe a idia da expanso, cumulao e
fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencilmente
complementares e em constante dinmica de interao. Logo,
apresentando os direitos humanos uma unidade indivisvel, revela-se
esvaziado o direito liberdade, quando no assegurado o direito
igualdade e, por sua vez, esvaziado revela-se o direito
igualdade, quando nao assegurada a libergdade.
Vale
dizer, sem a efetividade dos direitos econmicos, sociais e
culturais. os direitos civis e polticos se reduzem a meras
categorias formais, enquanto que, sem a realizao dos direitos
civis e polticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade
entendida em seti mais amplo sentido, os direitos econmicos e
sociais carecem de verdadeira significao. No h mais como
cogitar da liberdade divorciada da justia social, como tambm
infrutfero pensar na justia social divociada da liberdade.
Em suma, todos os direitos humanos constituem um complexo integral,
nico e indivisvel. em que os diferentes direitos esto
necessariamente inter-relacionados e interdependentes entre si.
Como
estabeleceu a Resoluo n. 32/130 da Assemblia Geral das Naes
Unidas: todos gos direitos humanos, qualquer que seja o tipo a que
pertencem, se inter-relacionam necessariamente entre si, e sao
indivisveis e interdependentes. Esta concepo foi reiterada
na Declarao de Viena de 1993, quando afirma, em seu 5, que
os direitos humanos sao universais, indivisveis, interdependentes
e inter-relacionados.
Seja
por fixar a idia de que os direitos humanos so universais,
inerentes condio de pessoa e no relativos s
peculiaridades sociais e culturais de determinada sociedade, seja
por incluir em seu elenco no s direitos civis e polticos, mas
tambm direitos sociais, econmicos e culturais, a Declarao de
1948 demarca a concepo contempornea dos direitos humanos.
Uma
das principais qualidades da Declarao constituir-se em parmetro
e cdigo de atuao para os Estados integrantes da comunidade
internacional. Ao consagrar o reconhecimento universal dos direitos
humanos pelos Estados, a Declarao consolida um parmetro
internacional para a proteLtgo) desses direitos. Neste sentido, a
Declarao um dos parmetros fundamentais pelos quais a
comunidade internacional deslegitima os Estados. Um Estado
que sistematicamente viola a Declarao no merecedor de
aprovao por parte da comunidade mundial.
A
partir da aprovao da Declarao Universal de 1948 e a partir
da concepo contempornea de direitos humanos por ela
introduzida, comea a se desenvolver o l)ireito Internacional dos
Direitos Humanos, mediante aadoode inumeros tratados
internacionais voltados proteo de direitos fundamentais.
Forma-se
o sistema normativo global de proteo dos direitos humanos, no mbito
das Naes Unidas. Este sistema normativo, por sua vez,
integrado por instrumentos de alcance geral (como os Pactos
Internacionais de Direitos Civis e Polticos e de Direitos Econmicos,
Sociais e Culturais de 1966) e por instrumentos de alcance especfico,
como as Convenes internacionais que buscam responder a
determinadas violaes de direitos humganos, como a tortura, a
discriminao racial, a discriminao contra as mulheres, a
violao dos dircitos das crianas, dentre outras formas de violao.
Firma-se
assim, no mbito do sistema global, a coexistncia dos sistemas
geral e especial de proteo dos direitos humanos, como sistemas
de proteo complementares. O sistema especial de proteo reala
o processo da especificao do sujeito de direito, no qual o
sujeito a a ser visto em sua especificidade e concreticidade
(ex.: protege-se a criana, os grupos tnicos minoritarios, os
grupos vulnerveis, as mulheres etc.). J o sistema geral de proteo
(ex.: os Pactos da ONU de 1966) tem por endereado toda e qualquer
pessoa, concebida em sua abstrao e generalidade.
Ao
lado do sistema normativo global, surge o sistema normgativo regional
de proteo, que busca internacionalizar os direitos humanos no
plano regional, particularmente na Europa, Amrica e frica.
Consolida-se, assim, a convivncia do sistema global integrado
pelos instrumentos das Naes Unidas, como a Declarao
Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Polticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos
Sociais e Culturais e as demais Convenes internacionais com
instrumentos do sistema regional, por sua vez integrado pelos
sistemas americano, europeu e africano de proteo aos direitos
humanos.
Os
sistemas global e regional no so dicotmicos,
mas complementares. Inspirados pelos valores e
princpios da Declarao Universal, compem o
universo instrumental de proteo dos direitos
humanos no plano internacional. Em face desse
complexo universo de instrumentos internacionais,
cabe ao indivduo que sofreu violao de direito
a escolha do aparato mais favorvel, tendo em
vista que, eventualmente, direitos idnticos so
tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance
global ou regional, ou ainda, de alcance geral
ou especial. Nesta tica, os diversos sistemas
de proteo de direitos humanos interagem em beneficio
dos indivduos protegidos.
Feitas
essas breves consideraes a respeito dos tratados internacionais
de direitos humanos, a-se anlise do modo pelo qual o Brasil
se relaciona com o aparato internacional de proteo dos direitos
humanos.
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