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Dalmo de Abreu
Dallari
Professor da Faculdade de
Direito da Universidade
de So Paulo
Bem, eu quero, antes
de tudo, agradecer o convite que me foi feito para estar aqui,
tratando de tema que eu considero da mxima relevncia e estando
ao lado de colegas eminentes que eu respeito muito e que
autenticamente falam e escrevem sobre direitos humanos. Queria
cumprimentar, inclusive, a doutora Ana Lcia pela realizao
deste evento. Ns estamos muito necessitados disso, que se fale a
respeito de direitos humanos e se faam reflexes sobre isso e,
entre outras coisas, que se procure conhecer o que realmente est
acontecendo, para no fique a idia de que uma questo
elegante, bonita, retrica, mas sem importncia prtica.
Uma observao que
quero fazer, desde logo, que ns - eu posso dizer pela minha
prpria experincia - ns comeamos a falar de direitos
humanos aqui no Brasil na dcada de setenta. Foi o perodo dos
governos militares, da tortura, dos desaparecimentos de pessoas e
um pequeno grupo comeou a falar de direitos humanos. Eu fao
parte desse grupo e ns soframos muita restrio porque,
naquele momento, falar em justia, justia social, era
considerado um tema comunista. Ento, diziam que falar em
direitos humanos era pregar comunismo. Naturalmente, isso tambm
era tomado como pretexto para pessoas muito bem instaladas em seus
privilgios, pessoas que no queriam que se dissesse que no
havia injustia. Depois de superado esse conflito crtico, ns
comeamos a sofrer outro tipo de acusao, que direitos humanos
s servem para proteger criminosos. E aqui, mais uma vez, so
pessoas que, ou por no terem qualquer respeito pela pessoa
humana, pela dignidade e pelos valores humanos, ou tambm pessoas
que tm medo e acreditam que a represso o caminho para que
fiquem protegidas, ento ficavam indignadas quando se falava em
direitos humanos. Ainda existe alguma coisa parecida com isso mas
eu acho que est havendo um avano, e muito importante, ento,
ns que acreditamos no assunto, consignarmos os avanos tambm.
Eu tambm tenho um certo medo das pessoas que s aceitam os
aspectos negativos, ento d a impresso de que intil
falar qualquer coisa, que no houve progresso. Ento, ou nos
suicidamos ou ento aderimos ao sistema injusto de dizer as
coisas e, felizmente, no assim.
Eu acho que, para que
a gente perceba o que realmente vem acontecendo, e perceba quanta
coisa importante est acontecendo e j aconteceu em termos de
direitos humanos, necessria uma viso mais ampla, no uma
viso imediatista, curtinha, daquilo que acontece hoje e aqui.
preciso ter uma viso histrica, inclusive da questo,
evidentemente. Eu, em vinte minutos, no vou contar toda a histria,
mas eu vou procurar ressaltar alguma coisa que me parece de maior
importncia e comearia dizendo que, na minha convico, ns
estamos vivendo - ns, a humanidade - estamos vivendo hoje um
momento de opo. Estamos numa daquelas encruzilhadas da histria
e a encruzilhada hoje ou escolher pelo humanismo ou escolher
pelo materialismo. Essencialmente isso. O humanismo, considero
que esteja refletido na luta pelos direitos humanos. E o
materialismo o capitalismo na sua forma extremada e hoje tem
nome de globalizao, tem nome de mercado, tem nome de
neoliberalismo, mas, essencialmente, materialismo. Se a pessoa
humana no importante, ela dependente totalmente de
objetivos econmico-financeiros. isto que importa e eu vejo
isto, por exemplo, no Brasil, quando se diz: "no, as coisas
esto timas, ns temos s oito, nove por cento de
desempregados..." e considera-se isso normal. S que o
desempregado um trabalhador, um pai de famlia que foi
reduzido condio de mendigo. Sofre a mxima agresso na
sua dignidade de ser humano. E as pessoas que dirigem a economia,
que dirigem as finanas, no tm a mnima sensibilidade por
isso: "no, no tem importncia, olha que coisa tima, ns
vamos criar oito por cento de desempregados". Na verdade,
isto anti-tico, antijurdico, absolutamente inaceitvel.
No entanto, a situao que se est colocando neste momento.
Para que a gente
entenda, pelo menos em linhas mais gerais como se coloca a questo
dos direitos humanos, vou chamar a ateno para um pormenor da
histria que considero fundamental. Esse pormenor, na realidade,
um "pormaior". um momento em que se define uma idia
de direito que vem nos governando h duzentos anos. Eu tenho dito
e escrito que ns estamos vivendo um momento revolucionrio. Mas
lembrando isto: que para o jurista a revoluo a substituio
de uma idia de direito por outra idia de direito. E isto, ns
vivemos, at agora, com uma idia de direito, e esta comea a
ser substituda. Que esta idia de direito? Se nos colocarmos
no sculo XVII, sculo XVIII, vamos ver que se falou muito nos
direitos fundamentais da pessoa e se falava em direito natural.
Esse direito natural teve uma primeira manifestao com So Toms
de Aquino, na Idade Mdia, e era confundido com a vontade de
Deus, tinha uma fundamentao teolgica; depois houve um avano,
vem o Racionalismo, muda a fundamentao, a fundamentao
racional, no mais teolgica, mas se continua afirmando que o
ser humano tem direitos que so inerentes a sua condio
humana, direitos que nascem com os seres humanos e, por esse
caminho, chegou-se, ento, afirmao da liberdade e
igualdade como os direitos fundamentais da pessoa humana. Da o
lema da Revoluo sa: "liberdade, igualdade,
fraternidade". Nesse momento, acontecem coisas fundamentais.
H uma espcie de aliana entre a burguesia, que era uma fora
que vinha desde a Idade Mdia, uma fora social, que j era uma
fora econmica mas no era uma fora poltica. A burguesia no
participava das decises polticas e era vtima de discriminaes,
vtima de marginalizao. E por isso, a burguesia tinha
interesse em que se falasse na igualdade para que acabassem os
privilgios da nobreza e da aristocracia, e tinha interesse em
que se falasse em liberdade, porque era a liberdade da pessoa, a
liberdade do patrimnio, do uso do patrimnio e da liberdade
contratual. E havia grande interesse em que isso fosse reconhecido
e assegurado e, ao mesmo tempo, os segmentos sociais
marginalizados tambm tinham interesse na afirmao desses
direitos. Dois segmentos, sobretudo, acho importante ressaltar. Um
deles, as mulheres. As mulheres estavam completamente alijadas dos
cargos de governo, da vida pblica, inclusive de participao
em grande nmero de atividades. E os trabalhadores tambm
estavam completamente marginalizados. Ento, um momento em que
se conjugam vrios interesses (burguesia, mulheres,
trabalhadores) e esses interesses vo coincidir com o
aparecimento de uma srie de obras tericas daqueles que foram
chamados, depois, de "os grandes liberais, os primeiros
liberais" (Locke, Montesquieu), e um dado importante a
lembrar, para este efeito, que, no momento final da Revoluo
sa, se usou muito a palavra cidadania. As pessoas se
tratavam como cidado e cidad. Um dado que tambm
importante ressaltar que a participao das mulheres foi
extremamente forte na Revoluo sa, foi participao de
liderana. Pois bem, derrubada a monarquia, instala-se um governo
antimonrquico (1789); da a pouco (1791), instala-se a Assemblia
sa. Vai ser feita a primeira Constituio da Frana.
O que que ns
podemos ver nessa Constituio?
Primeiro, a afirmao
de que ningum obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa seno com base na lei ( o princpio da legalidade) e,
retomando uma idia de Aristteles que aparece, tambm, bem
desenvolvida, a idia de que o governo das leis melhor que o
governo de homens. Ento, a lei que resume o direito, mas com
a afirmao implcita de que no existe direito fora da lei, s
direito o que estiver na lei. Todo o direito est contido na
lei. A mesma Constituio diz que quem faz a lei so os
delegados dos cidados. E aqui j vem a grande distoro.
Quando se falava no predomnio da lei - Montesquieu escreve isso
- a lei natural, a lei que est na vida social, a lei que
est na conscincia das pessoas, a lei que eu identifico pela
razo nos comportamentos sociais, mas quando eu digo isso - quem
faz a lei o delegado do cidado - , eu j estou introduzindo
uma outra idia de lei. Isso vai piorar ainda mais, porque eu
quero saber, ento, quem so esses delegados e quem que
escolhe os delegados, e vou encontrar na Constituio sa
uma diferenciao, que foi retomada do antigo direito romano, a
diferenciao entre cidadania comum e cidadania ativa. E se diz
que quem escolhe os delegados do cidado so os cidados ativos
e s pode ser delegado quem for cidado ativo. Quem cidado
ativo? A Constituio tambm responde: para ser cidado ativo,
preciso ser francs, do sexo masculino, ter patrimnio mnimo
imobilirio e ter renda mnima. Isso significa que as mulheres
foram excludas, elas que lutaram, que eram seres humanos, que
eram essencialmente iguais, foram totalmente marginalizadas. E no
preciso tecer pormenores para que se lembre que essa
marginalizao dura at agora. Em parte ela foi superada, est
sendo superada custa de muita luta. Mas vejam, por exemplo, na
Frana, mulher s pde ser magistrada em 1946 - de agora. No
Brasil, a mulher pde votar em 1933, tambm de agora. Um dado
muito importante a se perceber que essa discriminao, essa
marginalizao, era legal, legalizada. Ento, o direito era
isso, um instrumento de discriminao, era a legalizao de
injustias. A mesma coisa em relao ao trabalhador, ele no
tinha patrimnio imobilirio, ele no tinha aquela renda mnima
necessria, ento, era marginalizado. E criou-se a identificao
"direito e lei" e a lei ou a ser um instrumento de
injustia, de marginalizao, de justificao para discriminaes
sociais.
Eu tenho chamado a
ateno para esse aspecto; por exemplo, quando falo com juzes,
muito comum a gente ouvir o juiz dizer, afirmando a sua
neutralidade, seu esprito de justia: "eu sou neutro, eu
sou escravo da lei". E eu , ultimamente, tenho lembrado que -
pblico e notrio, os jornais noticiaram, a Folha de So
Paulo noticiou com pormenor - que o Ministro Srgio Motta, o
"Serjo", comprava parlamentares para fazerem
determinadas leis, inclusive emendas constitucionais. Diria ao
juiz que se disser "sou escravo da lei",
"escravo do Serjo", como outros que foram escravos do
PC Farias, porque so leis compradas. Eu no posso aceitar
ivamente que isso seja o direito. No, isso uma das
expresses do direito. Eu quero mais do que isso, quero que os
princpios constitucionais sejam respeitados, que o princpio
que diz que a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da
Repblica seja levado em conta. Quero que o princpio
fundamental que ressalta os direitos humanos seja lembrado na
aplicao da lei. Ento eu, juiz, advogado, seja quem for que
faa a aplicao da lei, complementa a lei no caso concreto,
completa com os princpios, com os princpios ticos,
inclusive, que fazem parte da nossa realidade social, do nosso
povo, da nossa sociedade. Ento, na verdade, o que eu quero
dizer quando digo que ns estamos vivendo um momento revolucionrio.
Est-se comeando a denunciar isso. Quer dizer, no isso o
direito, o direito muito mais e, verificando a utilizao que
se fez dessa concepo de direito, ns vamos ver que so
duzentos anos de discriminaes legalizadas. Quer dizer, tudo
parece legal, parece justo, ento ningum se ope. E a grande
reao a isso vem, justamente, pelos direitos humanos. Quer
dizer, quando a ONU publicou, em 1948, a Declarao Universal,
estava retomando concepes do sculo XVIII ou muito mais
antigas, que estavam em So Toms, que estavam em Aristteles,
concepes ligadas noo da pessoa humana como o primeiro
dos valores. E ento vem a Declarao Universal que, quando
preparada, teve a inteno de ser uma espcie de programa de
trabalho, de proposta de ao. Mas ela ainda era muito abstrata,
embora ela seja extremamente valiosa como roteiro. Entretanto, a
prpria ONU, verificando a necessidade de ir mais adiante,
aprovou outros documentos que so extremamente valiosos em termos
de direitos humanos. Assim, em 48, vem a Conveno contra o
genocdio, mas depois vem uma srie de outros documentos: por
exemplo, em 1966, os chamados Pacto de Direitos Humanos, Pacto de
Direitos Civis e Polticos, Pacto de Direitos Econmicos,
Sociais e Culturais, e esses pactos descem a pormenores a respeito
dos direitos, inclusive fixam responsabilidades; dizem quem que
deve ser responsvel pela aplicao do direito. Depois foi mais
adiante, criando protocolos adicionais que permitem, inclusive, a
fiscalizao, o controle do respeito por estes direitos
fundamentais. Mas, as coisas no pararam a. Vem depois uma srie
de outros tratados, pactos, acordos: por exemplo, tratando
especificamente dos direitos das mulheres, proibindo qualquer
forma de discriminao em favor da criana e do adolescente,
contra qualquer forma de racismo, em favor do deficiente fsico,
do deficiente mental, um conjunto normativo extremamente
significativo e que vem se ampliando. Quer dizer, na verdade,
uma nova concepo de direito que se vem afirmando.
Um dado tambm muito
importante que isso j vem produzindo efeitos prticos
extremamente importantes e significativos. Assim, a professora Flvia
Piovesan, num livro magnfico a respeito dos direitos humanos e o
direito constitucional internacional, chama a ateno para os
efeitos que j foram produzidos por esse conjunto normativo, por
essa nova situao criada. Um deles que, alm do acolhimento
dessas normas internacionais nas legislaes internas, muitos
desses preceitos esto nas constituies. Um dado muito curioso
at, que o Brasil assinou em 66 os pactos, mas engavetou. Pela
Constituio, era necessrio que o Congresso homologasse. E
nunca se mandou ao Congresso para homologao durante vinte
anos, eles ficaram engavetados. O curioso da histria que,
apesar desse engavetamento, os pactos de direitos humanos acabaram
penetrando na ordem jurdica brasileira atravs da Constituio.
Quer dizer, pela primeira vez na histria, com a Constituio
de 1988, ns tivemos uma Constituio que comea falando dos
direitos fundamentais e no da organizao do governo, como era
a nossa tradio constituicional. Ento, esses pactos, em
grande parte, esto contidos nos artigos 5, 6 e 7 da
Constituio. Mas, apesar disso, em 92, os pactos foram, afinal,
homologados e fazem parte, expressamente, da ordem jurdica
positiva brasileira. Assim, tambm, muitos outros documentos
extremamente importantes. Ento, esse um efeito prtico e que
j se faz sentir no Brasil e em muitos lugares.
Eu sei que ns temos,
ainda, dificuldades muito srias, que h muitas resistncias,
mas um instrumental novo que j comea a ser utilizado em
produzir efeitos prticos. Quer dizer, alm disso, tambm, um
outro aspecto importante, que ressaltado especialmente por
Cansado Trindade, uma ampliao da prpria noo de
direito internacional. Quer dizer, o direito internacional, que
aparece por volta do sculo XVII e se afirma como direito dos
Estados, direito entre os Estados, vai ganhar uma amplitude muito
maior e, para no alongar demais, amplia-se de tal maneira que so
sujeitos de direito internacional os Estados, mas so, tambm,
organismos no estatais. E mais ainda, indivduos j so
reconhecidos como sujeitos de direito internacional. Ento,
possvel, por exemplo, na Europa, em termos de Conveno Europia
de Direitos Humanos, que qualquer indivduo denuncie uma violncia
contra os direitos humanos, pea providncia e consiga, como tem
conseguido muitas vezes que os violadores, os Estados violadores
de direitos humanos sofram sanes, sofram conseqncias. s
vezes, essas sanes no atingem totalmente o seu objetivo,
criam certas frustraes, mas em grande parte o atingem. Assim,
por exemplo, o Brasil tem uma reivindicao antiga de
financiamento do Banco Mundial para a construo de quatorze
hidreltricas na regio amaznica, e no consegue esse
financiamento por que razo? Pelas violncias contra os ndios,
que tem sido denunciado, tem sido comprovado, e o Brasil sofre
esse tipo de restrio.
Um dado muito
importante que eu quero mencionar, para finalizar, que se vem
avanando no sentido de assegurar o respeito aos direitos
humanos, criando novos instrumentos. O ltimo deles, de que eu
tenho conhecimento - tenho, aqui, a cpia -, um documento
aprovado pela Unio Europia, pelo Conselho da Unio Europia,
em outubro do ano ado, a partir da idia de que impor sanes,
impor penalidades aos violadores dos direitos humanos, muitas
vezes, insuficiente, difcil. Ento se imaginou uma coisa
nova - criar mecanismos, criar incentivos ao respeito aos direitos
humanos. De que maneira? Estabelecendo que os pases que
respeitarem os direitos humanos podem exportar os seus produtos
com taxas menores. Ou seja, quem no comprovar que respeita os
direitos humanos pagar taxas maiores, o que cria, inclusive, um
estmulo econmico ao respeito pelos direitos humanos. E nessa
deciso est expresso que qualquer cidado parte para
denunciar a violncia e para pedir providncias. Ento, na
verdade, todo um conjunto normativo novo, ligado aos direitos
humanos, que se faz acompanhar de um instrumental que vem
permitindo avanos considerveis no sentido da prtica dos
direitos humanos. Naturalmente, h necessidade de que o maior nmero
de pessoas tome conscincia do que so os direitos humanos,
inclusive para eliminarmos essa contradio, esse paradoxo que
acontece no Brasil, seres humanos que so contra os direitos
humanos. Isso um absurdo lgico. E, no entanto, a gente tem
isso. Mas eu tenho a convico de que ns estamos avanando,
de que, atravs de eventos como este, atravs do nosso
comportamento, atravs do que ns levarmos, onde ns estivermos
- na nossa casa, no nosso ambiente de trabalho, nas nossas escolas
- atravs disso tudo, ns vamos ampliar esta conscincia dos
direitos humanos e, a partir dos direitos humanos, vamos eliminar
as injustias. Eliminando as injustias, ns vamos conquistar a
paz.
Muito obrigado.
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