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Biotica e Direitos
Humanos
Dalmo de Abreu Dallari
A vida humana como valor tico
Qualquer ao humana que tenha algum reflexo sobre as pessoas e
seu ambiente deve implicar o reconhecimento de valores e uma
avaliao de como estes podero ser afetados. O primeiro desses
valores a prpria pessoa, com as peculiaridades que so
inerentes sua natureza, inclusive suas necessidades materiais,
psquicas e espirituais. Ignorar essa valorao ao praticar
atos que produzam algum efeito sobre a pessoa humana, seja
diretamente sobre ela ou atravs de modificaes do meio em que
a pessoa existe, reduzir a pessoa condio de coisa,
retirando dela sua dignidade. Isto vale tanto para as aes de
governo, para as atividades que afetem a natureza, para
empreendimentos econmicos, para aes individuais ou
coletivas, como tambm para a criao e aplicao de
tecnologia ou para qualquer atividade no campo da cincia.
Entre os valores inerentes
condio humana est a vida. Embora a sua origem permanea um
mistrio, tendo-se conseguido, no mximo, associar elementos que
a produzem ou saber que em certas condies ela se produz, o que
se tem como certo que sem ela a pessoa humana no existe como
tal, razo pela qual de primordial importncia para a
humanidade o respeito origem, conservao e extino
da vida.
O que hoje pode ser afirmado com
argumentos sofisticados, aps milnios de reflexes e
discusses filosficas, foi pensado ou intudo pela humanidade
h milhes de anos e continua presente no modo de ser de todos
os grupos humanos, tanto naqueles que se consideram mais
avanados como nos que vivem em condies julgadas mais
rudimentares, como os grupos indgenas que ainda vivem isolados
nas selvas. Como foi assinalado por Aristteles e por muitos
outros pensadores, e as modernas cincias que se ocupam do ser
humano e de seu comportamento o confirmam, o ser humano
associativo por natureza. Por necessidade material, psquica
(aqui includas as necessidades intelectuais e afetivas),
espiritual, todo ser humano depende de outros para viver, para
desenvolver sua vida e para sobreviver. A percepo desse fato
que faz da vida um valor, tanto nas sociedades que se
consideram mais evoludas e complexas quanto naquelas julgadas
mais simples e rudimentares.
Desse modo, reconhecida a vida como
um valor, foi que se chegou ao costume de respeit-la,
incorporando-a ao ethos de todos os povos, embora com algumas
variaes decorrentes de peculiaridades culturais. Assim,
independentemente de crenas religiosas ou de convices
filosficas ou polticas, a vida um valor tico. Na
convivncia necessria com outros seres humanos cada pessoa
condicionada por esse valor e pelo dever de respeit-lo, tenha ou
no conscincia do mesmo. A par disso, oportuno lembrar que
tanto a Declarao Universal dos Direitos Humanos, editada pela
ONU em 1948, quanto os Pactos de Direitos Humanos que ela aprovou
em 1966 proclamam a existncia de uma dignidade essencial e
intrnseca, inerente condio humana. Portanto, a vida
humana mais do que a simples sobrevivncia fsica, a vida
com dignidade, sendo esse o alcance da exigncia tica de
respeito vida, que, como observa Cranston, por corresponder,
entre outras coisas, ao desejo humano de sobrevivncia, est
presente na tica de todas as sociedades humanas (1).
A tica de um povo ou de um grupo
social um conjunto de costumes consagrados, informados por
valores. A partir desses costumes que se estabelece um sistema
de normas de comportamento cuja obedincia geralmente
reconhecida como necessria ou conveniente para todos os
integrantes do corpo social. Se algum, por convenincia ou
convico pessoal, procura contrariar ou efetivamente contraria
uma dessas normas tem comportamento antitico, presumivelmente
prejudicial a outras pessoas ou a todo o grupo, quando no a
todos os seres humanos. Assim, fica sujeito s sanes ticas
previstas para a desobedincia, podendo, pura e simplesmente, ser
impedido de prosseguir na prtica antitica ou, conforme as
circunstncias, ser punido pelos danos que tenha causado ou ser
obrigado a repar-los. Todos estes fatorem tm aplicao
proteo da vida no plano da tica, sem prejuzo da proteo
resultante de seu reconhecimento como valor jurdico.
Cincia, tecnologia e Biotica
Recentes avanos tecnolgicos,
como tambm alguns progressos cientficos, criaram
possibilidades novas de interferncia na vida humana, que podem
representar uma vantagem ou, contrariamente, um risco ou mesmo um
grave prejuzo. Pelo fato de que a vida geralmente reconhecida
como um valor humano ou social, muitos sentiram a necessidade de
refletir sobre essas inovaes e seus efeitos, de prever ou,
pelo menos, tentar prever, suas conseqncias provveis,
benficas ou malficas e, finalmente, de avaliar tais
possibilidades luz de consideraes de ordem tica. A
primeira advertncia formal sobre os riscos inerentes ao
progresso cientfico e tecnolgico foi feita pela ONU, em 10 de
novembro de 1975, quando proclamou a Declarao sobre a
Utilizao do Progresso Cientfico e Tecnolgico no Interesse
da Paz e em Benefcio da Humanidade. Entre as consideraes
preliminares, esse documento contm o reconhecimento de que o
progresso cientfico e tecnolgico, ao mesmo tempo em que cria
possibilidades cada vez maiores de melhorar as condies de vida
dos povos e das naes, pode, em certos casos, dar lugar a
problemas sociais, bem como ameaar os direitos humanos e as
liberdades fundamentais do indivduo. O artigo 6 dessa
Declarao bem expressivo como advertncia, tendo a seguinte
redao: "Todos os Estados adotaro medidas tendentes a
estender a todos os estratos da populao os benefcios da
cincia e da tecnologia e a proteg-los, tanto nos aspectos
sociais quanto materiais, das possveis conseqncias negativas
do uso indevido do progresso cientfico e tecnolgico, inclusive
sua utilizao indevida para infringir os direitos do indivduo
ou do grupo, em particular relativamente ao respeito vida
privada e proteo da pessoa humana e de sua integridade
fsica e intelectual".
Nessa mesma linha de preocupaes
tem-se desenvolvido nos ltimos anos a Biotica, expresso de
novas preocupaes relacionadas com a vida e seu significado
tico. No ano de 1993, ao ser implantado o Comit Internacional
de Biotica, por iniciativa da UNESCO, foi assinalado que ele
tinha sido criado em decorrncia das preocupaes ticas
suscitadas pelos progressos cientficos e tecnolgicos
relacionados com a vida, sobretudo no mbito da gentica.
Entretanto, a considerao da vida humana em si mesma e das
relaes dos seres humanos com outros seres vivos e com a
natureza circundante tem ampliado rapidamente a extenso e a
diversidade da abrangncia da Biotica, medida que cada
reflexo ou discusso revela a necessidade de considerao de
novos aspectos, como tambm, segundo a feliz expresso de Miguel
Reale, a necessidade de "repensar o pensado". Vem a
propsito lembrar a identificao da Biotica feita por Clotet:
"Com o termo Biotica tenta-se focalizar a reflexo tica
no fenmeno da vida. Constata-se que existem formas diversas de
vida e modos diferentes de considerao dos aspectos ticos com
elas relacionados. Multiplicaram-se as reas diferenciadas da
Biotica e os modos de serem abordadas. A tica ambiental, os
deveres para com os animais, a tica do desenvolvimento e a
tica da vida humana relacionada com o uso adequado e o abuso das
diversas biotecnologias aplicadas medicina so exemplos dessa
diversificao" (2). Essa enorme amplitude reveladora da
conscincia de que a procura de avanos cientficos e
tecnolgicos, bem como os seus efeitos, esperados ou no,
colocam problemas ticos e exigem reflexo para a defesa do ser
humano, de sua vida e de sua dignidade.
Outro sinal de alerta formal e
solene, que tambm pode ser considerado um o importante no
sentido da fixao de parmetros para a aplicao de novos
conhecimentos e novas possibilidades nas reas da biologia e da
medicina, a Conveno sobre Direitos Humanos e Biomedicina,
adotada em 19 de novembro de 1996 pelo Conselho de Ministros do
Conselho da Europa. Entre as consideraes constantes do
Prembulo, est a advertncia de que o mau uso da biologia e da
medicina pode conduzir prtica de atos que ponham em risco a
dignidade humana. Isso sem deixar de reconhecer, em outro
considerando, que o progresso na biologia e na medicina pode ser
usado para o benefcio da gerao presente e das futuras.
So particularmente expressivos,
para as questes aqui abordadas, os artigos 2 e 4 dessa
Conveno. De acordo com o artigo 2, "os interesses e o
bem estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse isolado
da sociedade ou da cincia". Segundo o artigo 4
"qualquer interveno no campo da sade, incluindo a
pesquisa, deve ser conduzida de acordo com obrigaes e padres
profissionais de maior relevncia". Como fica evidente, no
se pretende criar obstculos ou opor barreiras ao desenvolvimento
cientfico e tecnolgico nos campos da biologia e da medicina,
impedindo os avanos para que sejam preservados padres ticos
ideais. O que se exige que toda experincia ou aplicao de
novos conhecimentos cientficos e novas possibilidades
tecnolgicas ocorra com o mais absoluto respeito pessoa
humana, pois, alm de tudo, seria contraditrio agredir a
dignidade de seres humanos ou desrespeitar a vida humana sob o
pretexto de buscar novos benefcios para a humanidade. Um fato
que no se pode ignorar que, sobretudo em campos mais
sofisticados, como a biologia molecular e a engenharia gentica,
as inovaes freqentemente so apresentadas de modo
espetacular, com o anncio de resultados fantsticos, que muitas
vezes no se confirmam mas que, misturando fantasia e realidade,
do ensejo mistificao, aquisio de autoridade
cientfica injustificada e, tambm, explorao econmica.
A par disso, o fascnio de penetrar no desconhecido e de
desvendar mistrios que desafiam a humanidade h sculos ou
milnios pode eliminar escrpulos e produzir resultados
desastrosos, eticamente injustificveis.
Sinal evidente desse risco
demonstrado por Schramm quando, expondo o pensamento de G. Hottois,
registra a "emergncia de um paradigma biotico, um
paradigma moral constitudo pela coexistncia de princpios e
teorias em conflito e, muitas vezes, inconciliveis, embasados
numa pluralidade de cosmovises e de concepes do Bem e do
Mal" (3). Na realidade, essa aparente coexistncia de
princpios significa, inevitavelmente, que nenhum deles levado
em conta, pois sendo inconciliveis sero neutralizados uns
pelos outros. E o "paradigma biotico" acaba
resultando, em ltima anlise, na ausncia de paradigma tico.
Aqui entra a necessidade de
considerao jurdica dos mesmos valores de que se ocupa a
Biotica, pois so valores humanos fundamentais, que precisam
ser tutelados em benefcio de cada ser humano e de toda a
humanidade.
A vida humana como valor jurdico
Para a considerao da vida como
valor jurdico, um ponto de partida adequado a observao,
ainda que sucinta, do tratamento dispensado pessoa humana e
suas caractersticas essenciais ao longo dos tempos. O exame dos
documentos mais antigos, inclusive dos mais remotos textos
legislativos, mostra que se perde na origem dos tempos o
reconhecimento de que os seres humanos so criaturas especiais,
que nascem com certas peculiaridades. Com o avano dos
conhecimentos humanos foi havendo maior preciso, esclarecendo-se
que h certas necessidades bsicas, de natureza material,
psicolgica e espiritual, que so as mesmas para todas as
pessoas. Entre as peculiaridades da condio humana encontra-se
a possibilidade de se desenvolver interiormente, de transformar a
natureza e de estabelecer novas formas de convivncia.
Essa evoluo levou concluso
de que o ser humano dotado de especial dignidade, bem como de
que imperativo que todos recebam proteo e apoio tanto para
a satisfao de suas necessidades bsicas como para o pleno uso
e desenvolvimento de suas possibilidades fsicas e intelectuais.
Em decorrncia de todos esses fatores, foi sendo definido um
conjunto de faculdades naturais necessitadas de apoio e estmulo
social, que hoje se externam como direitos fundamentais da pessoa
humana. Nos textos da antiguidade se confundem preceitos
religiosos, polticos e jurdicos, mas j se percebe a
existncia de regras de comportamento social impostas
obedincia de todos e com a possibilidade de punio para os
que desobedecerem. Em vrios casos a punio vai alm da
sano moral e uma autoridade pblica pode impor castigos ou
restries a direitos.
A est a origem humana e social
dos direitos, inclusive do direito vida, que atravs dos
sculos ser reconhecido e protegido como um valor jurdico.
Conforme observam muitos autores, durante sculos a proteo da
vida como direito se deu por via reflexa. No havia a
declarao formal do direito vida, mas era punido com
severidade quem atentasse contra ela. Isso chegou at os nossos
dias, sendo interessante assinalar que no Brasil o direito vida
s foi expresso na Constituio de 1988, embora desde 1830 a
legislao brasileira j previsse a punio do homicida.
Existem divergncias quanto ao
momento e local em que surgiram as primeiras normas que, luz
das concepes atuais, podem ser identificadas como de direitos
humanos. Mas em autores da Grcia antiga, assim como em
documentos de diferentes pocas e que hoje recebem a
qualificao de monumentos legisla-tivos da humanidade,
encontram-se afirmaes e dispositivos que corres-pondem ao que
atualmente denominamos normas de direitos humanos. A partir do
sculo V da era crist, no incio da Idade Mdia, a humanidade
ou por transformaes profundas, incluindo grandes
movimentos migratrios, aquisio de novos conhecimentos que
ariam a influenciar consideravelmente a vida e a convivncia
das pessoas, inveno de novas formas de organizao poltica
e muitas outras descobertas que mudariam substancialmente os rumos
da histria humana.
Nesse ambiente surgiram graves
confrontos de valores e de objetivos temporais imediatos ou
permanentes, favorecendo a formao de grupos sociais
privilegiados, fundados na acumulao dos poderes militar,
poltico e econmico. Como parte desse processo, foi-se
definindo tambm uma situao de submisso de indivduos e de
coletividades, fragilizados por no terem participao nos
instrumentos de poder. E como sempre acontece quando h grupos
sociais com o privilgio de uso do poder, os direitos
fundamentais daquelas pessoas e coletividades mais fracas foram
sendo anulados pela vontade e pelos interesses dos dominadores, a
tal ponto que nem mesmo a dignidade inerente sua condio
humana foi respeitada.
Assim nasceu a moderna
diferenciao entre nobres e plebeus, entre os ricos
proprietrios, sempre participantes diretos ou indiretos do poder
poltico, e os outros, incluindo pequenos proprietrios e
tambm muitas pessoas pobres ou miserveis que s tendo a
fora de seu corpo e de sua mente viviam, como vivem ainda hoje,
em situao de sujeio, sendo forados, mediante coao
expressa ou disfarada, a contribuir para a prosperidade dos
primeiros.
Durante essa fase histrica, que
ir durar alguns sculos, os chefes que dispunham de mais fora
assumiram poderes absolutos, exercendo, inclusive, o poder de
julgar e de impor penas escolhidas segundo seu arbtrio, o que
inclua a pena de morte, muitas vezes aplicada para eliminar um
inimigo ou competidor, como tambm para servir de exemplo e fator
de intimidao, prevenindo eventuais rebelies. Na segunda
metade da Idade Mdia, com o aumento do nmero de cidades e o
crescimento de suas populaes, vai-se definir e desenvolver a
figura do comerciante e emprestador de dinheiro o qual, muitas
vezes, ser tambm vitimado pelo poder absoluto dos governantes
_ que sob diversos pretextos eliminavam os credores e confiscavam
seu patrimnio.
O excesso de agresses vida,
integridade fsica e dignidade da pessoa humana, em
decorrncia do egosmo, da insacivel voracidade, da
insensibilidade moral dos dominadores, acabaria por despertar
reaes tanto no plano das idias quanto no mbito da ao
material. Desse modo, surgiram teorias e movimentos
revolucionrios que foram contribuindo para que um nmero cada
vez maior de seres humanos tomasse conscincia de sua dignidade
essencial e dos direitos a ela inerentes.
Os direitos humanos: defesa da
pessoa e da vida
No final da Idade Mdia, no
sculo XIII, aparece a grande figura de Santo Toms de Aquino,
que ter grande importncia para a recuperao do
reconhecimento da dignidade essencial da pessoa humana. Embora
sendo um pensador cristo, Santo Toms de Aquino retomou
Aristteles, sob muitos aspectos, e procurou fixar conceitos
universais. De seus estudos, pondo-se de parte alguns pontos de
suas idias que se apiam em dogmas de f, resultam noes
fundamentais que foram e podem ser acolhidas mesmo por quem no
aceite os princpios cristos. Tomando a vontade de Deus como
fundamento dos direitos humanos, Santo Toms condena as
violncias e discriminaes dizendo que o ser humano tem
Direitos Naturais que devem ser sempre respeitados, chegando a
afirmar o direito de rebelio dos que forem submetidos a
condies indignas. Nessa mesma poca nasce a burguesia, uma
nova fora social, composta por plebeus que foram acumulando
riqueza mas continuavam excludos do exerccio do poder
poltico e, por isso, eram tambm vtimas de violncias,
discriminaes e ofensas sua dignidade.
Durante alguns sculos foram ainda
mantidos os privilgios da nobreza, que, associada Igreja
Catlica, tornara-se uma considervel fora poltica e usava a
fundamentao teolgica dos direitos humanos para sustentar que
os direitos dos reis e dos nobres decorriam da vontade de Deus. E
assim estariam justificadas as discriminaes e injustias
sociais. Os sculos XVII e XVIII trouxeram elementos novos, que
acabaram pondo fim aos antigos privilgios. No campo das idias
surgem grandes filsofos polticos, que reafirmam a existncia
dos direitos fundamentais da pessoa humana, sobretudo os direitos
liberdade e igualdade, mas dando como fundamento desses
direitos a prpria natureza humana, descoberta e dirigida pela
razo.
Isso favoreceu a ecloso de
movimentos revolucionrios que, associ ando a burguesia e a
plebe, ambas interessadas na destruio dos seculares
privilgios, levaram derrocada do antigo regime e abriram
caminho para a ascenso poltica da burguesia. Os pontos
culminantes dessa fase revolucionria foram a independncia das
colnias inglesas da Amrica do Norte, em 1776, e a Revoluo
sa, que obteve a vitria em 1789. A nova situao criada
a partir da foi inteiramente favorvel burguesia, mas
adiantou muito pouco para os que no eram grandes proprietrios.
Em 1789 foi publicada a Declarao dos Direitos do Homem e do
Cidado, onde se afirmava, no artigo primeiro, que "todos os
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos", mas,
ao mesmo tempo, itia "distines sociais", as
quais, conforme a Declarao, deveriam ter fundamento na
"utilidade comum".
Logo foram achados os pretextos
para essas distines, instaurando-se, desse modo, um novo tipo
de sociedade discriminatria, com novas classes de privilegiados,
estabelecendo-se enorme distncia entre as camadas mais ricas da
populao, pouco numerosas, e a grande massa dos mais pobres.
Sob o pretexto de garantir o direito liberdade, e esquecendo
completamente a igualdade, foram criadas novas formas polticas
que aram a caracterizar o Estado liberal-burgus: o mnimo
possvel de interferncia nas atividades econmicas e sociais;
supremacia dos objetivos do capitalismo, com plena liberdade
contratual, garantia da propriedade como direito absoluto, sem
responsabilidade social; e ocupao dos cargos e das funes
pblicas mais relevantes apenas por pessoas do sexo masculino e
com independncia econmica.
As injustias acumuladas, as
discriminaes formalmente legalizadas, o uso dos rgos do
Estado para sustentao dos privilgios dos mais ricos e de
seus serviais acarretaram sofrimentos, misria, violncias e
inevitveis revoltas, agravadas pelas disputas, sobretudo de
natureza econmica, entre os participantes dos grupos sociais
mais favorecidos, em mbito nacional e internacional. Essa
produo de injustias teve como conseqncia a perda da paz,
com duas guerras mundiais no sculo XX, chegando-se a extremos,
jamais imaginados, de violncia contra a vida e a dignidade da
pessoa humana.
Um aspecto paradoxal da histria
dos direitos humanos que, apesar de serem direitos de todos os
seres humanos, o que deveria levar concluso lgica de que
nenhuma pessoa contra os insumos, pois no razovel que
algum se posicione contra seus prprios direitos, no isso
o que se tem verificado. H pessoas que colocam suas ambies
pessoais, busca de poder, prestgio e riqueza acima dos valores
humanos, sem perceber que desse modo eliminam qualquer barreira
tica e semeiam a violncia, criando insegurana para si
prprias e para seu patrimnio. Isso explica as violncias da
Idade Mdia, com o estabelecimento dos privilgios da nobreza e
a servido dos trabalhadores. Essa , tambm, a raiz das
agresses sofridas pelos ndios da Amrica Latina com a chegada
dos europeus, estando a, igualmente, o nascedouro das
violncias contra a pessoa humana inspiradas nos valores do
capitalismo, que tenta renovar agora sua imagem desgastada,
propondo a farsa da globalizao. A esto pessoas que so
contra os direitos humanos.
Assinale-se tambm que existem
pessoas ingnuas, mal informadas ou excessivamente temerosas, que
no chegam a perceber o jogo malicioso dos dominadores, feito
especialmente atravs dos meios de comunicao de massa. A
defesa dos direitos humanos apresentada como um risco para a
sociedade, uma subverso dos direitos, especialmente dos direitos
patrimoniais, aterrorizando-se essas pessoas com a afirmao de
que a defesa dos mais pobres significa uma caminhada para a
pobreza generalizada, pois no h bens suficientes para serem
distribudos. Outros, igualmente ingnuos, mal informados ou
excessivamente temerosos, aceitam o argumento malicioso de que
protestar contra a tortura, exigir que a pessoa suspeita, acusada
ou condenada tenha respeitada a dignidade inerente sua
condio humana fazer a defesa do crime. A est outra
espcie de pessoas que pensa ser contra os direitos humanos, por
no perceberem que esses so os seus direitos fundamentais, que
deveriam defender ardorosamente.
So tambm contra os direitos
humanos os que, em nome do progresso cientfico e de um futuro e
incerto benefcio da humanidade, ou alegando atitude piedosa em
defesa da dignidade humana, pregam ou aceitam com facilidade a
inexistncia de limites ticos para as experincias
cientficas ou o uso dos conhecimentos mdicos para apressar a
morte de uma pessoa. E assim estes ltimos defendem a eutansia
e o suicdio assistido, que so formas de homicdio, atitudes
que levam antecipao da extino da vida, que nenhuma
norma de direitos humanos autoriza. H hipteses em que s
resta uma aparncia de vida e, neste caso, tomadas todas as
cautelas para a eliminao de dvidas quanto ao verdadeiro
estado do paciente e obtida a autorizao livre e consciente de
quem pode decidir pela pessoa _ que, na realidade, j deixou de
viver _ a sim possvel deixar de prolongar a vida aparente e
optar pela ortotansia, em nome da dignidade humana. Isso
compatvel com os direitos humanos.
Um dado importante que, por meio
da experincia, da reflexo e, muitas vezes, do sofrimento,
muitas pessoas de boa f, que se julgavam contrrias aos
direitos humanos, adquiriram conscincia de sua contradio e
mudaram de atitude. necessrio e oportuno ressaltar que,
embora sem a rapidez que seria ideal, vem aumentando sempre o
nmero de pessoas conscientizadas, sendo necessrio um trabalho
constante de esclarecimento e estmulo para que se acelere a
ampliao do nmero de defensores dos direitos humanos.
Os direitos humanos no sculo XX:
avanos e resistncias
A segunda metade do sculo XX
ficar marcada na histria da humanidade como a abertura de um
novo perodo, caracterizado pelos avanos dos direitos humanos.
Terminada a II Guerra Mundial, estando ainda abertas as feridas da
grande tragdia causada pelo egosmo, pelo excesso de ambies
materiais, pela arrogncia dos poderosos e pela desordem social
resultante, iniciou-se um trabalho visando a criao de um novo
tipo de sociedade, informada por valores ticos e tendo a
proteo e promoo da pessoa humana como seus principais
objetivos. Foi instituda, ento, a ONU, com o objetivo de
trabalhar permanentemente pela paz. Demonstrando estarem
conscientes de que esse objetivo s poder ser atingido mediante
a eliminao das injustias e a promoo dos direitos
fundamentais da pessoa humana, os integrantes da Assemblia Geral
da ONU aprovaram, em 1948, a Declarao Universal dos Direitos
Humanos.
Embora no tenha a eficcia
jurdica de um tratado ou de uma Constituio, a Declarao
Universal um marco histrico, no s pela amplitude das
adeses obtidas mas, sobretudo, pelos princpios que proclamou,
recuperando a noo de direitos humanos e fundando uma nova
concepo de convivncia humana, vinculada pela solidariedade.
importante assinalar, tambm, que a partir da Declarao e
com base nos princpios que ela contm j foram assinados
muitos pactos, tratados e convenes tratando de problemas e
situaes particulares relacionados com os direitos humanos.
Estes documentos implicam obrigaes jurdicas e o
descumprimento dos compromissos neles registrados acarreta
sanes de vrias espcies, como o fechamento do o a
fontes internacionais de financiamento e aos servios de
organismos internacionais, alm de outras conse-qncias de
ordem moral e material.
Um exemplo muito significativo dos
avanos obtidos a partir da Declarao Universal a
generalizao da proibio de discriminaes contra a
mulher. A partir da proclamao da igualdade de todos os seres
humanos, em direitos e dignidade, como est expresso no artigo
primeiro da Declarao Universal, vrios pactos e tratados
dispam sobre situaes especficas em que a igualdade vinha
sendo negada, fixando regras e estabelecendo responsabilidades. E
essa mesma diretriz, tanto no caso dos direitos das mulheres como
em outros de igual magnitude, j penetrou nas Constituies, o
que significa um reforo, de ordem prtica, da eficcia das
normas, bem como facilidade maior para seu conhecimento e
aplicao.
Todos estes fatores que marcam a
existncia de uma nova mentalidade, caracterizada pela
valorizao da tica e pelo reconhecimento dos direitos
humanos, no foram feitos e no ocorrem sem resistncias. Os
que pem acima de tudo a consecuo de objetivos econmicos
tm aliados numa intelectualidade que usa argumentos
sofisticados, chamando de "idealistas utpicos" os
defensores dos direitos humanos. O deslumbramento com os avanos
no mundo da cincia e da tecnologia tambm cria resistentes,
estando entre estes os que se opem Biotica ou que tentam
manipul-la, propondo o estabelecimento de padres de
comportamento que, aparentando uma nova tica, so de tal modo
flexveis que equivalem negao da tica. E por esse
caminho negam tambm os direitos humanos.
Direitos humanos e Biotica:
conjugao necessria
Os direitos humanos e a Biotica
andam necessariamente juntos. Qualquer interveno sobre a
pessoa humana, suas caractersticas fundamentais, sua vida,
integridade fsica e sade mental deve subordinar-se a preceitos
ticos. As prticas e os avanos nas reas das cincias
biolgicas e da medicina, que podem proporcionar grandes
benefcios humanidade, tm riscos potenciais muito graves, o
que exige permanente vigilncia dos prprios agentes e de toda a
sociedade para que se mantenham dentro dos limites ticos
impostos pelo respeito pessoa humana, sua vida e sua
dignidade. Na prtica, a verificao desses limites
facilitada quando se levam em conta os direitos humanos, como tm
sido enunciados e clarificados em grande nmero de documentos
bsicos, incluindo a Declarao Universal dos Direitos Humanos
e os pactos, as convenes e todos os acordos internacionais, de
carter amplo ou visando a objetivos especficos, que compem o
acervo normativo dos direitos humanos.
O que se pode concluir disso tudo
que a Declarao Universal dos Direitos Humanos marca o
incio de um novo perodo na histria da humanidade. E a
Biotica est inserida no amplo movimento de recuperao dos
valores humanos que ela desencadeou. Os que procuram a
preservao ou a conquista de privilgios, os que buscam
vantagens materiais e posies de superioridade poltica e
social, sem qualquer considerao de ordem tica, os que
pretendem que seus interesses tenham prioridade sobre a dignidade
da pessoa humana, os que supervalorizam a capacidade da
inteligncia e se arrogam poderes divinos, pretendendo o controle
irresponsvel da vida e da morte, esses resistem implantao
das normas inspiradas nos princpios da Declarao Universal.
Apesar das injustias e da
violncia muito presentes no mundo contemporneo, o exame atento
da realidade, atravs das grandes linhas das aes humanas e
num perodo de tempo mais amplo, mostra um avano considervel
na conscientizao das pessoas e dos povos. Existem razes
objetivas para se acreditar que a histria da humanidade est
caminhando no sentido da criao de uma nova sociedade, na qual
cada pessoa, cada grupo social, cada povo, ter reconhecidos e
respeitados seus direitos humanos fundamentais. O que refora
essa crena a constatao de que vem aumentando
incessantemente o nmero dos que j tomaram conscincia de que,
para superar as resistncias, cada um dever ser um defensor
ativo de seus prprios direitos humanos. A par disso, verifica-se
que j no possvel ignorar as normas fundamentais de
direitos humanos ou sustentar sua importncia secundria sob o
pretexto de que isso necessrio para o progresso econmico e
social ou para o desenvolvimento das cincias.
O significado atual dos direitos
humanos e sua importncia prtica para toda a humanidade e, em
conjugao com esta, a imperativa obedincia aos seus
preceitos, foram sintetizados de modo magistral num documento da
UNESCO em que foram fixadas diretrizes para estudiosos de todas as
reas:
"Os direitos humanos no so
uma nova moral nem uma religio leiga, mas so muito mais do que
um idioma comum para toda a humanidade. So requisitos que o
pesquisador deve estudar e integrar em seus conhecimentos
utilizando as normas e os mtodos de sua cincia, seja esta a
filosofia, as humanidades, as cincias naturais, a sociologia, o
direito, a histria ou a geografia" (4).
A conscincia dos direitos humanos
uma conquista fundamental da humanidade. A Biotica est
inserida nessa conquista e, longe de ser opor a ela ou de existir
numa rea autnoma que no a considera, instrumento valioso
para dar efetividade aos seus preceitos numa esfera dos
conhecimentos e das aes humanas diretamente relacionada com a
vida, valor e direito fundamental da pessoa humana.
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biotecnocincia e biotica. Biotica (CFM) 1997;5:203-20.
4. UNESCO. Medium-term plan
1977-1982. Genebra: UNESCO, 1977: 7, pargrafo 1122. (Documento
19 C/4).
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