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Independncia da Magistratura e Direitos Humanos Dalmo de Abreu Dallari ** 6h1gp

Antes de tudo, quero agradecer pelo convite que me foi feito para estar aqui hoje e dizer da minha alegria por estar entre amigos e colegas, que tm interesse por temas que para mim so fundamentais, que o interesse pela pessoa humana, pela justia, pelos direitos humanos. Considerei tambm um privilgio estar aqui ao lado do professor Koemer, porque muito importante ouvirmos as opinies de pessoas com uma experincia de vida diferente, algum que no est vivendo o dia-a-dia da advocacia e do Judicirio, mas que, como ele demonstrou muito bem, est muito atento a essas questes. E muito interessante que ele venha falar a pessoas que tm formao jurdica e traga elementos que so adies quilo que normalmente ns temos falado, ouvido e lido.

Ele ressaltou aspectos importantes da histria brasileira, aspectos da histria que se relacionam com o Judicirio, e isto eu considero fundamental. importante ns percebermos que o mundo no comea conosco, que coisas j aconteceram, que tentativas j foram feitas, e ento somar esses elementos todos, tirar concluses e ver em que p ns estamos agora, o que fazer daqui por diante.

Eu vou fazer algumas consideraes a respeito de pontos que me parecem bsicos, ressaltando que a questo da independncia do Judicirio, que hoje geralmente reconhecida como essencial e h uma ligao estreita entre as idias de independncia do Judicirio e sistema democrtico, liberdade da pessoa humana e direitos humanos . isto tudo, hoje, est na linha de frente das teorias e das discusses. Entretanto isto recente, , na verdade, recentssimo o que se pode dizer.

O que eu quero procurar demonstrar que houve uma caminhada para que se chegasse ao ponto em que ns estamos, e que quando se chega a este ponto de ligar independncia da magistratura e direitos humanos h um avano, um avano extremamente importante. Mas avano em que sentido? Quem foi que ganhou? Ser que os juizes ganharam com isso? Ganharam uma tremenda responsabilidade, sem dvida alguma. E isto bom para o juiz? E para o povo de maneira geral, para os titulares dos direitos humanos, o q~ que isso significa?

Quero relembrar tambm algumas coisas pontuais a respeito do que se tem feito para ressaltar esse aspecto do vnculo entre independncia da magistratura e direitos humanos, como tambm, fazer uma rpida reflexo a respeito dos obstculos. Se tanta gente escreve a favor muitos agem contra, mas ningum tem a coragem de escrever contra a independncia da magistratura , por que h tanta dificuldade, por que h tantos obstculos? Aparentemente todos esto de acordo, que coisa formidvel, ento vamos comear a aplicar essas idias. Mas que acontece, por que elas no so aplicadas, onde esto os obstculos?

Eu comeo voltando no tempo, exatamente para ressaltar alguns momentos, algumas circunstncias que mostram como originariamente, e dizendo originariamente eu no vou para a antigidade, mas pego o final da Idade Mdia, o perodo do Iluminismo, o Racionalismo, para ns verificarmos como o juiz era situado pelos governantes na organizao poltica, mas para verificarmos tambm como os juizes se comportavam. Isto tambm um ponto importante, porque j adiantando alguma coisa daquilo que eu acho que poderia ser uma concluso a atitude dos juizes fundamental para que haja uma magistratura independente. Se os juizes no quiserem ser independentes no haver magistratura independente. E ser que estranho dizer: h juizes que no querem ser independentes?

Ento, voltando no tempo estou me colocando nessa fase que eu mencionei , eu vou verificar na Inglaterra, que importante, nas discusses sobre a magistratura. uma srie de disputas entre o Parlamento e o rei para saber quem que deveria controlar os juizes. quem deveria dominar os juizes, e os juizes aparecem numa situao de submisso. H um ensaio de Francs Bacon, Sobre o Magistratura, que me parece muito interessante e expressivo e oportuno que seja lembrado agora. Nele Bacon escreve isto: Os juizes devem se lembrar de Salomo, que tinha lees ao p do seu trono. Os juizes devem ser lees, mas lees aos ps do trono. Isso define uma mentalidade, uma concepo do que que se esperava dos juizes.

Quando ns nos colocamos no panorama francs que influiu muito mais sobre a formao da magistratura brasileira , ns verificamos que instalada a aristocracia, instalados os privilgios da nobreza, aparece a magistratura, mas a magistratura como um instrumento de garantia desses privilgios. E h mesmo um momento muito curioso, interessante, no chamado arnica rgime, em que a magistratura privatizada e se torna propriedade de determinadas pessoas. Assim, por exemplo, Montesquieu foi juiz. Como que Montesquieu foi juiz? Porque herdou o ttulo de juiz de um tio. Naquela oportunidade segundo os historiadores da magistratura sa , os juizes usavam e abusavam dos seus poderes.

Os juizes que primeiramente eram todos ligados nobreza decidiam conflitos, mas nem os nobres ficavam satisfeitos porque os juizes vendiam muito caro) as suas decises, os juizes decidiam um conflito e ficavam sempre com a maior parte. isto foi muito importante para que se criasse uma mentalidade de resistncia aos juizes. Alguns historiadores ses dizem que se criou, mesmo, dio aos juizes, as pessoas tinham medo dos juizes. O raciocnio era este: Eu vou submeter o meu caso ao juiz e o juiz quem vai sair ganhando. Eu certamente vou sair perdendo. Prosseguindo, quando se chega no final do perodo das revolues burguesas a ltima grande revoluo burguesa foi a Revoluo sa , h uma srie de transformaes extremamente importantes. Essa fase histrica oferece matria muito rica, mas eu vou fazer um esforo para resistir s tentaes e ficar naquilo que nos interessa imediatamente.

Um aspecto inovador especialmente importante a afirmao da supremacia da lei. Isto tambm j se tinha proposto na Inglaterra: a supremacia da lei. A lei que deve governar as pessoas, os povos, porque o governo de homens arbitrrio, o governo de homens e injusto. Isto est, inclusive, tambm, em Montesquieu. s que com um pormenor que, na verdade, um aspecto) fundamental. Quando Montesquieu diz: O governo dos povos, das sociedades, deve ser governo de leis e no governo de homens, ele explica o que era a lei na sua concepo: era a lei natural. Mas a lei natural no na concepo de So Toms de Aquino. com fundamento teolgico, era a lei na concepo racionalista. A lei a relao necessria que deriva da natureza das coisas.

Era na natureza das coisas, que se devia procurar a lei, relao necessria. Os seres humanos vivem necessariamente em conjunto, no vivem isolados, se relacionam e, nesse relacionamento, h uma srie de elementos naturais que esto presentes. Entre tais elementos naturais esto as caractersticas da pessoa humana, inclusive, com os seus valores e com aquilo que j muitos tinham afirmado serem direitos naturais.

Traduzindo isso para a linguagem do nosso tempo, diramos isto: a lei nasce da realidade social. Por outras palavras, a lei no uma criao arbitrria de ningum, ela produto das relaes sociais. Eu encontro a lei pela razo, observando as relaes sociais. A idia era essa, e isto vai ser, aparentemente, colocado na primeira Constituio da Frana, em 1791, quando se diz que ningum pode ser obrigado a fazer e ningum pode ser proibido de fazer alguma coisa, a no ser com base na lei.

A h um aspecto que extremamente importante e que, da a bem pouco, vai influir sobre a situao e o comportamento dos juizes: a afirmao de quem no existe direito fora da lei. Lei e Direito so sinnimos, e da dar-se ao juiz o papel de boca da lei. A lei j est feita, o juiz no tem outro papel a no ser dizer o que a lei, o que que est escrito, e pronto, nada mais do que isso.

A mesma Constituio estabelece uma diferenciao que no tinha sido cogitada antes, nem na Revoluo sa, bem ao contrrio disto: a Constituio estabelece uma dupla cidadania, fala, pela primeira vez, em cidados ativos. Uns so cidados ativos e outros so cidados comuns. A mesma Constituio diz quem poderia ser cidado ativo. Primeiro, eram os homens ses, e homem, a e logo se verificou que era isto mesmo , no era gnero humano, a pessoa humana, era homem mesmo, era sexo masculino, ou, para usar de uma expresso mais da moda hoje era o gnero masculino. Isso quer dizer que houve a excluso das mulheres da cidadania ativa.

Mas ao mesmo tempo a Constituio excluiu tambm os trabalhadores, quem fosse empregado de algum no poderia ser cidado ativo, alm disso exigia-se a condio de proprietrio. De acordo com alguns teorizadores do liberalismo do sculo dezoito, o proprietrio tem mais interesse na ordem social, o proprietrio tem mais experincia porque ele istra os seus negcios, ele tem mais responsabilidade por ser proprietrio e ento ele que deve governar. E assim se estabeleceu uma sociedade formalmente discriminatria, mas com um aspecto novo, extremamente importante: a discriminao feita na lei, pela lei discriminao legalizada.

E qual o papel que se vai dar ao direito ou ao ensino do direito, qual o papel que se vai dar ao juiz? Muitos dos historiadores do ensino jurdico francs assinalam que os juizes eram preparados para conhecer e aplicar a lei, sem interpretao ou critica. Eu ressalto que a partir da o ensino do direito ou a ser o ensino da lei, ensina-se a lei dizendo que se est ensinando direito. E aqui eu abro um parnteses para dizer que infelizmente isso ainda ocorre. Quando um professor entra na sala de aula e h muitos que fazem isto com o cdigo na mo e vai lendo artigo por artigo e diz para os alunos que est ensinando direito, ele no est ensinando direito coisa nenhuma, est ensinando a lei e, fingindo que faz a crtica, ele usa alguns sinnimos para dizer por outras palavras o que est escrito no cdigo. Eu tenho dito aos estudantes que deveriam ficar ofendidos, porque esses professores deveriam saber que vocs no so analfabetos, vocs podem ler em casa, no precisavam vir escola para ler.

Mas a par disso houve outras coisas importantes que foram marcantes e vo chegar magistratura. Assim, por exemplo, at hoje Filosofia do Direito no faz parte dos currculos jurdicos na Frana. E surpreendente para muitos de nos quando se toma conhecimento disto. Ainda no ano ado, na Universidade de Paris, conversando com alguns colegas eu falava a respeito disso e eles diziam: isto mesmo, eu quis ler uma obra de Duguit e precisei comprar uma traduo italiana, porque h muitos anos no se reedita Lon Duguit na Frana. Por qu? Porque no interessa. No interessa a justia, no interessa a pessoa humana, no interessam as relaes humanas: interessa apenas a lei. Ento estudante, estude a lei. E o juiz tem que ser treinado esta a expresso para a aplicao da lei. isto.

E chego ao inicio do sculo XIX com este tipo de direito, esta concepo de direito que ter um juiz adequado a esta concepo, assim como ter o ensino jurdico de acordo com a mesma concepo. Esta concepo do direito-lei, exclusivamente lei, e da discriminao legalizada, a discriminao que feita pelo legislador, pelo cidado ativo delegado dos cidados ativos. Estes, trocando em midos, so os dominadores, a classe social dominante. Queiramos ou no no vamos ter medo das expresses a burguesia governando atravs da lei. E a lei a servio dos interesses dos privilegiados econmicos e sociais.

Entre parnteses, s para chamar a ateno para um dos efeitos disso, a veio o Cdigo Civil e disse que o marido o chefe da sociedade conjugal. Ns tivemos isso at h pouco tempo no Brasil. Mas isso no contradiz o lema da Revoluo sa, Liberdade, igualdade e fraternidade? A afirmao de que todas as pessoas, todos os seres humanos nascem com direitos naturais e um deles a liberdade e outro a igualdade? Isso tudo foi posto de lado. E o que ns verificamos que a partir dai no se fala mais em igualdade. Os prprios ses usaram liberdades pblicas, uma expresso que se toma corrente.

As Constituies, que na verdade no tiveram, durante quase duzentos anos, a eficcia jurdica que ganharam hoje, so utilizadas mais como verdadeiros manifestos polticos, contm l no fim um captulo bem formal sobre os direitos individuais. Mas no h qualquer preocupao com a possibilidade de uso dos direitos. Declarou-se que os direitos existem e quem puder que use os direitos e quem no puder, problema seu. No h na verdade a preocupao em aplicar os preceitos constitucionais.

E onde que ficam os juizes nesse quadro? H um momento que muito importante, em relao a isso. Esse momento Napoleo Bonaparte, o comeo do sculo XIX. (!)s juizes eram muitas vezes odiados, temidos, estavam margem. Napoleo, de certo modo, recupera os juizes e d uma posio social muito importante magistratura. H documentos napolenicos em que se faz a afirmao de que 05 juizes eram os servidores civis mais importantes do Imprio. De um lado havia servidores militares, de outro os civis. E os juizes eram os servidores civis mais importante do Imprio. Os juizes ganham comendas, os juizes ganham honrarias e so at muito bem pagos. Mas so servidores do imperador, este um ponto fundamental. O juiz um servidor, e um servidor submisso, ele no vai controlar os atos do imperador, ele no vai interpretar, no vai ver se o ato do imperador juridicamente vlido ou no, ele um servidor, um servidor fiel, um servidor dcil.

Depois. na Frana, se estabeleceu uma praxe a Frana teve vrias revolues, teve muito mais Constituies do que o Brasil mas a praxe foi esta: cada vez que havia uma dessas revolues os juizes eram obrigados a lazer um juramento formal de fidelidade ao novo governo. E os juizes faziam, este um problema srio. Os juizes aceitaram essa situao. Ento se criou a magistratura dcil, servil, submissa, auxiliar do imperador.

Essa prtica. com as devidas adaptaes. tem seguidores at hoje, imperadores com outros nomes que gostam muito da idia de ter a magistratura servil. submissa, e que ficam muito irritados quando o juiz quer pensar, quer avaliar a legalidade e constitucionalidade dos atos do governo. Isso tem razes na histria, foi da que tiramos a nossa magistratura bem comportada. O professor Koerner chamou a ateno para alguns momentos excepcionais e alguns personagens fazendo tentativas de mudana, mas na verdade no se conseguiu a mudana, as coisas prosseguiram. Eu lembraria para no dar muitas voltas - um lema de que ficou famoso como smbolo da Primeira Repblica brasileira, do perodo que vai desde a proclamao da Repblica at 1930: Para os amigos tudo. Para os inimigos, a lei. E 05 juizes foram muito usados para implantao deste lema.

Esse um dado importante da histria, que explica, em grande parte, aquilo que hoje muitos vem como crise: a crise do Judicirio, quer dizer, a crise de desobedincia. E crise porque o Judicirio est mudando de atitude e, se est mudando, no quer dizer hoje, nesta semana ou h um ms. E porque ele iniciou na verdade uma luta, est se definindo um novo direito, mas est se definindo tambm um novo Judicirio.

Isso tem o seu incio vejam, as coisas no acontecem por acaso , isso tem incio logo depois da Segunda Guerra Mundial, no sculo XX Em 1948 publica-se a Declarao Universal de Direitos Humanos. Nesse mesmo perodo, logo em seguida, aparece na Itlia o movimento Magistratura Democrtica e no manifesto de lanamento do movimento, os juizes que se diziam de esquerda e muitos eram comunistas a Itlia no tinha o problema que ns tivemos no Brasil, de considerar o comunismo uma espcie de satanismo, a Itlia era mais livre do que isso e juizes puderam dizer: ns somos juizes e somos comunistas , incluram uma expresso muito importante, que afirmao de que ariam a fazer Justia de um modo novo. Este ariam a fazer Justia de um modo novo significa ns no queremos mais ser submissos ao Executivo, s classes sociais privilegiadas, ns no queremos ser aplicadores cegos da lei, ns queremos buscar a Justia efetivamente.

Mais adiante, no muito tempo depois, vai aparecer na Frana o Sindicato da Magistratura. A criao do Sindicato da Magistratura tambm foi um movimento de rebelio, de rebeldia dos juizes que j no avam mais, j no aceitavam mais a situao de servidores civis do imperador. Em seguida surgiu a Associao Juizes para a Democracia, na Espanha, que depois, para grande felicidade nossa, se refletiu no Brasil e hoje um movimento importante na magistratura brasileira. Eu chamo a ateno para isso tudo, para que se perceba que houve uma caminhada.

Essa idia de independncia da magistratura no muito antiga. H quem pense que isso acompanhou sempre a prpria idia de magistratura eu ouvi uma vez alguma coisa assim no Tribunal de Justia de So Paulo o que um grande equvoco. So fatos, fenmenos novos, situaes novas, que esto chegando h pouco e que provocam crise, provocam conflitos. Paralelamente a isso verifica-se, nesse ambiente de mudanas, o crescimento da idia de direitos humanos. H um aspecto da histria da magistratura que eu vou mencionar quase que entre parnteses, uma coisa que corre paralelamente histria europia, mas fica l num plano isolado, que o aparecimento de uma magistratura independente, de fato independente, nos Estados Unidos. oportuno lembrar a atitude poltica dos Estados Unidos durante todo sculo XIX, ficando numa posio de isolamento do resto do mundo, sem participar de guerras ou alianas. Tambm o seu direito tinha outro fundamento, pois era basicamente o direito costumeiro e por isso no se refletiu nos direitos de estilo e tradio romanstica, mas muito interessante esse aspecto da histria dos Estados Unidos.

Desde o comeo da vida norte-americana j se discutia a questo da independncia dos juizes. Quando os norte-americanos aplicaram na prtica, inserindo na Constituio, o sistema de separao de poderes, a coisa talvez mais importante que eles fizeram naquele momento foi ampliar as idias anteriores para valorizar o Judicirio, para dar ao Judicirio autonomia e atribuir-lhe a categoria de poder poltico. E comum a gente ler nos manuais que a separao de poderes foi inveno de Montesquieu, o que absolutamente equivocado. A defesa dessa idia j aparece em Aristteles e depois ressurge com um autor italiano do sculo XV, Giovanni Gravina e depois reaparece com Maquiavel.

Montesquieu trata sim, efetivamente, da separao de poderes, mas rigorosamente Montesquieu fala em dois poderes. Sua idia era que haveria um Poder Normativo e outro que, no por acaso, chamou de Executivo, o qual se bifurcava. E um dos ramos do Executivo seria o Judicirio. Isto teve tambm grande importncia e influiu para que se concebesse o Judicirio como uma esfera do Executivo.

Os norte-americanos avanaram muito em relao a isso. Tinham o temor do absolutismo, mas tambm tinham a lembrana, pela sua prpria origem de uma espcie de absolutismo do Parlamento, que tinha ocorrido na Inglaterra. E, por isso conceberam o sistema que foi chamado de freios e contrapesos, que o que est na Constituio americana, segundo o qual todo o Poder Legislativo cabe ao Congresso, o Congresso quem legisla. At hoje o presidente dos EUA no tem iniciativa de projetos de lei. A participao dele relativamente pequena em termos de legislao e o Executivo, ento, o executor das leis. A idia era essa: o Poder Legislativo fixa as normas e o Executivo obrigado a agir nos limites dessas normas, a fazer aquilo que a norma determina e a no fazer aquilo que a norma probe. Mas os constituintes norte-americanos acrescentaram um terceiro poder poltico, que foi o Judicirio. Segundo essa concepo, o Judicirio o elemento de equilbrio, ele o controlador do respeito Constituio. Desde o incio da vida norte-americana essa questo foi muito ressaltada e muito cedo se chamou a ateno para a importncia que o Judicirio assumia. E extremamente interessante e muito referida, s vezes com certa ligeireza, a famosa deciso do juiz Marshall no caso Marbury versus Madison, no ano de 1803. O que foi realmente que Marshall fez que foi to importante? Uma afirmao da competncia do Judicirio para controle de constitucionalidade dos atos dos outros dois poderes. Sim, isto tambm. Mas o que de fato aconteceu foi que durante o perodo de implantao do Estado norte-americano j apareceu a idia de que era fundamental que houvesse um Judicirio independente. E a aparece a idia do Judicirio constitucionalmente independente, do Judicirio que vai garantir os direitos fundamentais, inclusive contra os eventuais abusos do prprio Legislativo, do juiz que para isso precisa ser independente.

interessantssima a atitude de Thomas Jefferson, a meu ver um dos maiores nomes da histria norte-americana, em relao a esse aspecto, porque a questo aconteceu exatamente com Jefferson na presidncia dos Estados Unidos. Por que razo houve conflito? Porque os juizes eram designados. Cada presidente, segundo se havia estabelecido e era a maneira como se interpretava a Constituio, cada presidente tinha o direito de designar juizes. E que aconteceu? Uma lei de 1801 criou a inamovibilidade dos juizes, foi l que nasceu a inamovibilidade. Ento havia juizes nomeados antes de que Jefferson assumisse a presidncia e no empossados. Um deles era esse Marbury e foi assim que se estabeleceu esta discusso, pois o novo governo disse que iria ignorar todas aquelas nomeaes, porque era direito do presidente nomear. E alegou que a obrigao de dar posse a um juiz nomeado pelo presidente anterior no estava de acordo com a Constituio. Entretanto, com base na Constituio e para afirmar e garantir a independncia dos juizes, foi que se tinha estabelecido legalmente a inamovibilidade. Para que no houvesse o risco de nenhum presidente querer mudar um juiz, tir-lo de seu cargo porque ele no convm a seus interesses polticos. Ento desde a se consolida a independncia do Judicirio, ao mesmo tempo em que se afirma o seu carter de poder poltico.

Tudo isso, entretanto, como eu disse, ficou margem, pois os norte-americanos ficaram, de certo modo, margem da histria. Eles no quiseram participar de todas as questes mundiais, at praticamente o final do sculo XJX. Ento o que realmente prevaleceu foi a linha sa. Em relao linha sa eu quero relembrar uma colocao muito interessante feita por um antigo magistrado e historiador da magistratura sa. Yves Lemoine, crtico da magistratura sa, diz considerando que at hoje as funes do Ministrio Pblico e de juiz integram, conjuntamente, a carreira da magistratura e h urna interferncia enorme, sempre possvel, do ministro da Justia que na Frana ns temos trs magistraturas: uma que a magistratura sentada, que a dos juizes porque os juizes trabalham sentados. A magistratura de p, que o Ministrio Pblico, que fala em p ao nvel do cho por isso se chamou parquet ele fica de p discursando, falando, apresentando suas razes. E temos uma terceira magistratura, que a magistratura deitada que aquela dos juizes que antes de decidir perguntam: Senhor ministro, como quer que eu decida este caso? Isso quer dizer que, na verdade, grande parte da magistratura magistratura deitada. Infelizmente entre ns temos tambm magistratura deitada.

Pois bem, a partir da publicao da Declarao Universal dos Direitos Humanos comea um trabalho no sentido de dar eficcia s normas de direitos humanos e a prpria ONU avanou muito quando, em 1966, aprovou os Pactos de Direitos Humanos que eram, ento, pactos, tinham a natureza de tratados multilaterais. obrigavam juridicamente coisa que no acontecia com a Declarao de Direitos.

Mas a partir da surge o problema da eficcia das normas de direitos humanos. Agora elas tm eficcia jurdica, mas como garantir na prtica esta eficcia? E a que se comea a ressaltar a extraordinria importncia dos juizes para o cumprimento deste papel. Em muitas obras j se fala nisso, em muitos tratados isto foi mencionado e os prprios pactos de direitos humanos mencionam a necessidade da independncia do juiz, ao mesmo tempo em que falam na garantia de julgamento independente e imparcial como um dos direitos humanos fundamentais. Note-se que aqui ns vamos ver o encontro de dois interesses fundamentais. E um direito do juiz ter independncia para julgar. ruas a h tambm um direito das pessoas a esse tipo de julgamento. Cada indivduo, cada pessoa humana, tem o direito de ter seu caso, de ter sua acusao examinados e julgados por um juiz que seja independente e imparcial. Alis, essas expresses sempre apareceram juntas, independncia e imparcialidade. Isso to importante que se incorpora ao conjunto dos direitos humanos fundamentais.

Prosseguindo, quando muita coisa j se tinha dito e havia j um forte reconhecimento da importncia da independncia da magistratura, a ONU, em 1994, aprovou uma importante resoluo, que a Resoluo nmero 41. Por esta resoluo, a Comisso de Direitos Humanos decidiu recomendar a criao do cargo de relator especial sobre a independncia do Poder Judicirio. Isso quer dizer que se considerava to importante que houvesse o Judicirio independente, reconhecia-se que isso era indispensvel para a garantia dos direitos, e por isso foi designado um Relator Especial permanente.

A Comisso de Direitos Humanos da ONU, que funciona em Genebra, fez esta recomendao ao ECOSOC o Conselho Econmico e Social e o Conselho aprovou a proposta. E desde ento existe este relator. Anualmente ele apresenta o seu relatrio, mas permanentemente faz o acompanhamento da situao da independncia da magistratura no mundo. E interessante verificar eu sintetizo aqui em trs itens os objetivos que foram atribudos a este Relator Especial: 1) investigar denuncias sobre restries independncia da magistratura e informar o Conselho Econmico e Social sobre suas concluses; 2) Identificar e registrar atentados independncia dos magistrados, advogados e pessoal auxiliar da Justia, identificar e registrar progressos realizados na proteo e fomento dessa independncia; 3) fazer recomendaes para aperfeioar a proteo do Judicirio e da garantia dos direitos pelo Judicirio.

Isso est implantado desde 1994 e, como uma seqncia procurando reforar esse trabalho e dar publicidade a ele, a Comisso Internacional de Turistas, uma ONG com sede em Genebra que assessora a ONU para Direitos Humanos, no ano de 1971 , criou um Centro para a Independncia de Juizes e Advogados. Alis, nesse caso juizes no a expresso mais adequada. Melhor seria magistrados, porque tanto na Itlia quanto na Frana, a magistratura incluiu tambm o Ministrio Pblico. Ento o Centro para a Independncia da Magistratura e dos Advogados.

Um dado importante que anualmente a Comisso Internacional de Juristas publica uni relatrio sobre a situao da independncia de magistrados e advogados 110 mundo. O ltimo publicado foi sobre o ano de 1999 e nele constam vrios casos de ofensas, agresses, restries a magistrados e advogados no Brasil. Esses relatrios so publicados, so relatrios para conhecimento pblico, eu tenho procurado fazer com que a biblioteca da Faculdade de Direito da USP tenha todos os relatrios porque acho isso extremamente importante.

Por a se pode ver que h uma preocupao enorme com a garantia de independncia da magistratura. E por que razo? Porque se chegou concluso de que embora os Pactos de Direitos Humanos e outros tratados, pactos e convenes estabeleam regras que, em princpio, so obrigatrias para os governos dos listados signatrios, na verdade haver dificuldades na implantao. haver resistncias e muito importante que as pessoas interessadas ou diretamente interessadas OU interessadas enquanto participantes de um povo tenham a possibilidade de recorrer ao Judicirio para garantia dos direitos fundamentais.

E aqui me parece oportuno ressaltar um aspecto que muito importante. O Doutor Alberto Silva Franco mencionou o Tribunal Penal Internacional, nas mesmas publicaes mais recentes, como, por exemplo, para ficar entre os autores brasileiros que cuidam disso, as obras do professor Canado Trindade reconhecem que, embora seja desejvel a existncia dos tribunais internacionais, a efetiva proteo. por enquanto, depende dos tribunais nacionais. De fato ainda pequena a possibilidade de o aos tribunais internacionais. Mas surge da, ento, uma indagao: os tribunais nacionais, os juizes nacionais, tm condies para efetivamente darem proteo a esses direitos?

Surgem da algumas questes que eu vou mencionar por me parecerem importantes. A primeira questo: o que seria efetivamente a independncia do Judicirio, a independncia do juiz? De modo simplificado, sinttico, eu diria que, em primeiro lugar, a possibilidade de formar livremente sua convico, de executar sua tarefa livre de qualquer espcie de coao. Quando menciono "qualquer espcie de coao quero lembrar que a coao pode ser fsica e pode ser de outra espcie, pode ser a coao poltica, econmica e, inclusive, psicolgica. Ento, o juiz verdadeiramente independente tem que ter essa possibilidade da formao livre de sua convico.

Em segundo lugar, isso se completa com a possibilidade de decidir adotando a soluo que o juiz considera a mais justa entre as permitidas pela Constituio. Surge aqui um aspecto que me parece extremamente importante e que eu vou assinalar lembrando que o primeiro movimento inspirado na tentativa de afirmao de independncia dos juizes do Brasil foi, na verdade, o do Rio Grande do Sul, dos juizes gachos com a AJURIS Associao dos Juizes do Rio Grande do Sul. Foi na AJURIS que se implantou o mais importante ncleo do direito alternativo no Brasil. Por qu? Porque, maneira dos juizes italianos, os gachos j no aceitavam mais aquele papei de aplicadores dceis da lei, sem crtica. E ento proclamaram isto: Como as leis que ns somos obrigados a aplicar so Leis que discriminam, so leis que promovem injustias, a partir daqui no vamos mais aplicar a Lei, ns vamos fazer justia. A meu ver, com todo o respeito que merecem os juizes gachos, essa e uma posio equivocada, porque abre o caminho para a arbitrariedade. E no necessria nem conveniente a rejeio da lei. Com efeito, enquanto tudo isso acontece, enquanto a magistratura vai-se rebelando, vai-se tornando mais independente, uma nova idia de direito tambm vai-se implantando. um novo constitucionalismo j est se definindo. E nesse novo constitucionalismo o que se verifica que foi extremamente acentuada, reforada, a caracterstica jurdica da Constituio. Canotilho mesmo j chamou a ateno para isto quando disse que as normas constitucionais am a ser normasvnculo, no sentido de que so todas obrigatrias. Todas as normas constitucionais so obrigatrias, a partir daquelas ou, talvez devesse dizer, principalmente aquelas que fixam princpios. A este respeito h um trabalho interessante do professor Celso Antnio Bandeira de MeIlo, chamando a ateno para a importncia dos princpios e dizendo que, no seu entender e eu estou de acordo com ele , essa a parte mais importante da Constituio porque condicionante de tudo mais.

Fazendo aplicao disso, que a nossa Constituio, logo no captulo primeiro, afirma alguns princpios como fundamentos da Repblica: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho. Assim sendo, se um juiz for tomar uma deciso, for decidir de certa maneira, e verificar-se que aquela deciso vai agredir a dignidade de uma pessoa, tal deciso ser inconstitucional. O juiz no pode decidir assim e se algum for fazer uma lei, publicar um decreto, praticar um ato assim, ofendendo um princpio consagrado na Constituio, no poder porque afetar um princpio constitucional. preciso ter isto muito claro e assumir a responsabilidade de decidir tomando por base a Constituio. Na verdade, isto ser independente. Indo agora mais adiante, se ns quisermos indagar quais so os obstculos, quais so as razes para no se ter o Judicirio ou a magistratura independente, de modo geral eu diria que todos os sistemas totalitrios, todas as ditaduras detestam a idia do juiz independente, no o podem tolerar. E da natureza de um sistema totalitrio no itir o juiz independente. Mas ns temos este tempero, o sistema autoritrio. No h na teoria poltica uma definio clara que nos permita dizer: at aqui autoritrio e a partir da se torna totalitrio. Mas so sistemas que se afastam de padres democrticos, ou para favorecer o prprio governante ou, o que muito comum, e no Brasil isto acontece muitssimo, para o favorecimento de oligarquias usam-se mecanismos democrticos, formalmente democrticos, mas sob o rgido controle de oligarquias.

Eu vou contar, em breves palavras, uma experincia que eu tive no perodo da Constituinte. H muitos anos trabalho com ndios, defendendo comunidades indgenas. J fui muitas vezes ao Judicirio em defesa de ndios. E quando se fez a Constituio de 1988, ns advogados aqui de So Paulo, onde h um pequeno grupo que trabalha nisso, ns j tnhamos conseguido vrias decises favorveis aos ndios. O estatuto do ndio, que a lei fundamental dos ndios e das comunidades indgenas, normalmente era aplicado contra o ndio, e ns j estvamos revertendo isto, conseguindo vrias decises favorveis aos ndios por reinterpretao. E ento ns sustentamos que era melhor manter-se a competncia da Justia Estadual para os assuntos indgenas, porque j havia uma jurisprudncia em formao. Foi quando colegas de outros Estados, principalmente dos Estados onde h muito maior nmero de ndios Mato Grosso, Amazonas, Gois , disseram: Mas a sua viso est equivocada, porque o nico lugar do Brasil onde juizes estaduais decidem a favor de ndios So Paulo.

Eles queriam dizer que em todos os outros lugares os juizes so, de algum modo, ligados s oligarquias, aos donos da terra. Ento nenhum juiz julga a favor do ndio, nunca, em hiptese alguma. Assim sendo, a possibilidade de ter um Judicirio independente, capaz de uma deciso a favor do ndio, dar competncia Justia Federal. E foi por a que se deu a competncia Justia Federal, porque ns, profissionais de diversas reas e instituies que trabalham com os ndios, fazamos parte de um dos Iobbies atuando junto Constituinte. E ento eu tambm estive de acordo, outros estiveram, e ns propusemos isso, que acabou ficando, mas exatamente por esta razo. Assim, na verdade, temos um sistema formalmente democrtico, mas dominado por oligarcas e por elites.

Existem tambm lugares em que h uma democracia formal e no h, efetivamente, bem caracterizada a oligarquia, mas o sistema coloca o Judicirio numa situao de submisso. Um exemplo disto exatamente a Frana. Realmente, na Frana, ainda hoje, a interferncia do ministro da Justia no Judicirio sempre possvel, e muitas vezes acontece. Vou contar outra experincia. No ano ado eu fui Indonsia, fui chefiando uma misso da Comisso Internacional de Juristas, composta de quatro advogados de diferentes nacionalidades. Ns fomos Suprema Corte, conversamos com muitos juizes e l nos verificamos que a submisso da magistratura ao Executivo e constitucional e o Executivo usa isto efetivamente. Existem mecanismos legais de submisso que retiram a independncia do Judicirio e os Juzes acham isso normal.

Sob uma outra perspectiva, eu quero mencionar ainda que h razes de varias espcies levando perda da independncia, ou reduo da independncia. Em primeiro lugar eu mencionaria razes polticas, mas razes polticas que esto muito ligadas origem do Estado moderno, especialmente ao sistema francs, e que esto muito ligadas existncia de oligarquias. Isso tudo tira a independncia da magistratura, devendo-se lembrar que h muitos juzes que fazem parte da oligarquia. S para ilustrar, o professor Calmon de os, eminente processualista, contou que quando Antnio Carlos Magalhes era governador da Bahia havia um presidente do Tribunal de Justia que o chamava de meu chefe. Vocs imaginem que independncia teria essa magistratura. E houve um dia em que Antnio Carlos Magalhes teve que prestar um depoimento, porque a oposio tinha iniciado uma ao, e ele disse: "No quero privilgios, eu volto l, vou ao Tribunal de Justia para prestar o meu depoimento. Quando se anunciou que o governador estava chegando todas as Cmaras pararam os seus trabalhos, todos os desembargadores, devidamente enfarpelados, foram porta da rua para receber o governador. E eles que controlavam o governador, a legalidade dos atos do governador. Evidentemente no controlavam coisa alguma. Na realidade, era a submisso mais absoluta. Eles, na verdade, fazem parte, ou faziam no sei at que ponto deixaram de fazer parte da oligarquia.

Mas ns temos tambm a submisso por razes econmico-sociais, as presses feitas sobre juizes. Assim, por exemplo, hoje ns estamos vendo isto, a presso por via dos oramentos, a reduo e o congelamento de recursos, alegando que h desperdcio. E uma forma de estrangular o Judicirio: negar meios, negar recursos financeiros. Mas ns vemos tambm a coao pelas elites econmicas e sociais, feita de muitas maneiras, como se faz por exemplo, utilizando a grande imprensa a grande imprensa que , antes de tudo, grande empresa. Por que razo se diz: Os sem-terra armados esto ameaando os fazendeiros, e a aparecem fotografias, todos eles com enxadas, com seus instrumentos de trabalho. E ao mesmo tempo a notcia de que os fazendeiros, coitadinhos, precisam defender-se. Ento eles esto se armando, organizando bandos armados, mas a com arma de fogo mesmo. Os sem-terra esto formando quadrilha e os ditos fazendeiros, que em grande nmero so, na verdade, grileiros de terras pblicas, esses so respeitveis cidados defendendo-se. E o pior, h juizes que acolhem essa argumentao, quer dizer, acolhem essa argumentao ou porque foram formados nessa mentalidade ou porque temem aquela presso feita pela grande imprensa.

Por ltimo quero mencionar aquilo que eu chamaria de submisso voluntria. Quer dizer, o juiz que no defende a sua independncia, o tribunal que aceita com docilidade as restries e interferncias e no defende a sua independncia, muitas e muitas vezes porque h interesses pessoais ou corporatvos. Quem vive a magistratura sabe disto. comum um juiz, um desembargador, um membro do STJ, estar sonhando com o Supremo Tribunal Federal e o presidente da Repblica quem faz as indicaes. Ento, quem sabe se eu for bonzinho ele vai lembrar, e alguns bonzinhos chegaram a elevadas posies desse modo. Isto a submisso voluntria, que muitas vezes reflexo do medo de represlias. E muitas vezes o que h, simplesmente a acomodao.

H registros, no caso da Alemanha nazista, de que os juizes, na quase totalidade, aceitaram o nazismo e aram a julgar segundo os interesses nazistas. Na Frana se registra isso no chamado regime de Vichy. A Frana submissa aos alemes e os juizes, tranqilamente, julgando segundo a vontade dos novos senhores. E, infelizmente, ns tivemos isso no Brasil eu vivi isso como advogado com os juizes que aceitaram os atos institucionais, os atos complementares e fizeram isso sem nenhum sofrimento. Houve alguns rarssimos casos de juzes que se opam. No se haveria de pretender que um juiz sasse de arma na mo contra os militares, mas que ele julgasse segundo o Direito. E muitos julgaram ostensivamente contra o Direito porque 1550 era mais conveniente.

Para concluir, acho que h necessidade de ns reconhecermos, primeiro, que fundamental a independncia da magistratura. E voltando minha questo: a independncia da magistratura importante para quem? Ser que no um privilgio do juiz querer ser independente? Peo licena para ler uma frase do meu livro O Poder dos Juizes, onde eu trato desta questo. Eu digo isto: longe de ser um privilgio para o juiz, a independncia da magistratura necessria para o povo, que precisa de juizes independentes e imparciais para harmonizao pacfica e justa dos conflitos de Direito.

A rigor pode-se afirmar que o juiz tem a obrigao de defender sua independncia, pois sem esta a atividade jurisdicional pode facilmente ser reduzida a uma farsa, a uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminaes e das injustias. Ento, por tudo isso, volto ao que eu disse no incio que se deveria refletir: ser que bom para o juiz ser independente? Ser que bom para os juizes uma magistratura independente? A minha resposta : para o juiz autenticamente juiz, o juiz que acredita no Direito, o juiz que tem compromisso com a justia, o juiz que se preocupa com a proteo da dignidade da pessoa humana, importantssima a independncia, tima a independncia da magistratura. Em sentido oposto, se o juiz se preocupar, antes de tudo, com seus interesses pessoais, se ele encarar sua carreira como uma oportunidade de ascenso social, de obter algum proveito pessoal, quem sabe prestgio, posio ou mesmo enriquecimento material, esse juiz no necessita da independncia. Por tudo o que foi dito, minha concluso final que eu tenho a firme convico de que no Brasil ns temos uma magistratura direcionada para a busca e a sustentao da independncia. E acredito que dentro de poucos anos isso ser um ideal comum da ampla maioria da magistratura brasileira.

Complementaria ainda, em resposta a indagao formulada, que o grande problema brasileiro est na cpula do Judicirio. Vou citar o milagre e o santo, no h porque no citar. O ministro Nelson Jobim um caso tpico, pois est sendo reconhecido como o lder do governo no Supremo Tribunal Federal, inclusive pelo hbito j se tornou um hbito de se pedir vistas de autos quando comea uma votao e o governo vai perder. Ento, o ministro Nelson Jobim tem autos em sua gaveta h dois anos, trs anos... No h corregedoria, ele faz isso e fica por isso mesmo, todo mundo sabe que se faz isso.

Ns temos tambm os juizes que esto se especializando em cassar liminares. E incrvel, juizes de diferentes partes do Brasil apreciam as circunstncias, examinam os dados e os argumentos e vem que h uma ilegalidade, uma inconstitucionalidade, e do uma liminar. curioso, mas s vezes uma hora depois esta liminar j est cassada. Fico deslumbrado em ver como a tecnologia avanou. Mesmo distncia e sem ter todos os dados aquele ministro j conseguiu saber tudo sobre o assunto e j cassou a liminar. A poucos dias tivemos isso, uma liminar contra o leilo do Banespa, por haver ilegalidade no ato do ministro que determinou o leilo. Na hora mesmo em que se anunciou a liminar, que foi concedida por um desembargador federal, pessoa iminente, professor da PUC, figura respeitvel o ministro interessado disse: no tem nenhuma importncia, vamos manter o leilo, porque ele no tinha qualquer dvida de que a liminar seria cassada, como efetivamente foi.

O problema das cpulas e acho que isto fundamental. Por exemplos como esse, que no so casos isolados, ns teramos que modificar profundamente a maneira de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Embora eu seja a favor do Tribunal Constitucional, enquanto houver Supremo Tribunal Federal, ou outro que faa as suas vezes, exera suas atribuies, acho que teria que ser mudada a maneira de escolha. Ns temos no sistema norte-americano um mtodo de escolha aparentemente semelhante ao nosso, s que com uma diferena: nenhum presidente norte-americano indica algum para a Suprema Corte antes de consultar a Bar Association (Ordem dos Advogados), antes de dar ampla publicidade sua inteno de nomear algum para o Supremo. Eu mesmo j tive a oportunidade de ter contato com um advogado que tinha sido sugerido como possvel ministro da Suprema Corte e acabou no sendo nem indicado, porque houve tanta reao das escolas de Direito e outras entidades que o presidente no o indicou. Em nosso caso o presidente da Repblica tira o nome do bolso do colete, indica e no tem dvidas que ser aceito.

Alm disso, a direo dos Tribunais de Justia tambm deve ser objeto de modificao. J expus antes minha posio, j escrevi sobre isso. Como tenho reafirmado sempre, acho normal que a direo do Tribunal seja dada a Desembargadores porque so juizes mais antigos, com mais experincia, mas no me parece que haveria prejuzo se todos os juizes votassem para escolher o presidente do Tribunal. Seria mais democrtico e aproximaria muito mais os juizes de primeira instncia e colocaria sempre em questo a necessidade de atualizao do Judicirio, o papel do Judicirio, o seu papel poltico, inclusive. Acho, sim, que esta democratizao absolutamente necessria.

** Membro da Ctedra Unesco/USP de Direitos Humanos, Professor Titular e ex-Diretor da Faculdade de Direito da USP, ex-presidente da Comisso de Justia e Paz de So Paulo.

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