A revolta dos povos dominados
-geral, permanente e implacvel- contra a globalizao
capitalista absolutamente necessria. Mas ela no
suficiente. preciso organiz-la sob a forma de uma fora
poltica, capaz de derrotar, no espao de uma gerao, o
dominador onipotente.
Para tanto e antes de tudo
devemos ter em mente as trs grandes indagaes preliminares
de toda luta poltica: Quem somos? O que queremos? Contra quem
lutamos?
Somos a maioria esmagadora e
crescente da humanidade, qual se nega, sistematicamente, o
direito de viver com a dignidade de seres humanos.
Ao contrrio do que proclama a
mentirosa propaganda capitalista, no somos isolacionistas retrgrados
nem anarquistas depredadores. Queremos libertar os povos da
condio degradante de massas consumveis e descartveis, a
servio da acumulao do capital, para delas fazermos povos
livres, iguais e solidrios, sempre mais fortes e ricos em sua
esplndida diversidade.
Vamos luta, sem trguas,
contra a globalizao devastadora, montada pelas foras
capitalistas internacionais, inimigas da humanidade.
O combate decisivo ser travado
no por meios militares nem mesmo, como vulgarmente se pensa,
no campo econmico, mas no terreno das idias, dos valores e
das justificaes ticas. Dominador nenhum, em nenhum momento
da histria, sobreviveu sem alimentar nos sditos o sentimento
da legitimidade do seu mando ou, pelo menos, da inutilidade da
revolta. "O forte", disse lucidamente Rousseau,
"no nunca bastante forte para estar sempre no poder se
no faz de sua fora um direito e, da obedincia, um
dever".
Vamos impedir que essa fraude
ideolgica se perpetue. Hoje, no podendo mais esconder as
devastaes que a globalizao capitalista vem provocando no
mundo inteiro, seus idelogos j no ousam louvar o sistema,
mas limitam-se a concentrar suas baterias intelectuais contra os
adversrios.
Toda a sua argumentao, que j
trai um recuo sintomtico em relao arrogncia
triunfalista inicial, orquestrada em torno de trs temas.
Primeiro tema: atacar a globalizao
capitalista prejudicar os pobres.
a tese lanada pela influente
revista britnica "The Economist" e repetida em unssono
pelos grandes atores polticos que exercem o poder mundial, a
comear pelo presidente dos EUA, George W. Bush, s vsperas
da conturbada reunio de Gnova. A refutao dessa falsidade
simples. Funda-se nos fatos. Segundo o Pnud (Programa das Naes
Unidas para o Desenvolvimento), de 1960 a 1997 a proporo da
diferena entre a renda mdia auferida pela quinta parte mais
rica e a auferida pela quinta parte mais pobre da humanidade
mais do que dobrou: era de 30 para 1 e ou a ser de 74 para
1.
Esse abismo entre ricos e pobres
aprofunda-se rapidamente desde o final dos anos 80, com o avano
da globalizao. De 1990 a 1998, 50 pases conheceram uma
reduo do seu PIB per capita.
Registre-se que essa agravao
da pobreza no se deu apenas na vasta rea subdesenvolvida do
planeta. Nas duas ltimas dcadas do sculo 20, o grau de
desigualdade socioeconmica aumentou em 16% nos EUA, na Sucia
e no Reino Unido. Neste, pela primeira vez, aps quase dois sculos
e graas eficincia neoliberal, o nmero absoluto de miserveis
aumentou.
Segundo tema: os contestadores da
globalizao capitalista no possuem legitimidade para falar
em nome dos povos. Eles no tm mandato eletivo.
O argumento cnico. Quem
elegeu os lderes do G-7 como donos do mundo, para decidir
sobre a vida e a morte dos povos? O povo brasileiro porventura
autorizou seus governantes, todos eleitos desde o regime
militar, a colocar em prtica uma poltica de deliberada
eliminao dos direitos econmicos e sociais, a comear pelo
direito ao trabalho e previdncia social?
Terceiro tema: no h
alternativa globalizao capitalista. A essa outra
falsidade da propaganda neoliberal, centros de estudos do mundo
inteiro comeam, hoje, a dar as competentes respostas. Entre ns,
um grupo de pesquisa que acaba de ser criado, no Instituto de
Estudos Avanados da USP, contribuir para esse esforo comum
com a apresentao de propostas concretas, nos planos nacional
e internacional, para que a humanidade possa, enfim, livrar-se
definitivamente do flagelo capitalista.
O capitalismo globalizante venceu
em quase todos os quadrantes do orbe terrestre porque tinha
poderio militar e econmico mais do que suficiente para tanto.
Venceu, mas no convenceu. E isso que o levar derrota
final, pois, para convencer, como lembrou Unamuno aos
franquistas logo no incio da Guerra Civil Espanhola,
preciso ter a justia e a razo do seu lado. O que o
capitalismo nunca teve e jamais ter. A grande tarefa que
incumbe agora a todos os educadores fazer com que os jovens
do mundo inteiro no sejam cooptados pelas foras da morte;
que escolham o bom lado do combate e se engajem, de corpo e
alma, na luta universal em favor da vida.
Fbio Konder Comparato, 64,
jurista, doutor "honoris causa" da Universidade de
Coimbra, professor titular da Faculdade de Direito da USP.
Artigo publicado no jornal Folha
de S.Paulo, em 17 de agosto de 2001, pgina A-3.