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AS
INSTITUIES
A construo de uma democracia de mbito planetrio deve ser
erigida sobre os alicerces j existentes; ou seja, ela h de
fazer-se mediante a ampliao dos poderes de natureza
legislativa, executiva e judiciria das Naes Unidas. Uma
medida importante para o reforo do poder legislativo mundial das
Naes Unidas poderia ser adotada em matria de convenes
sobre direitos humanos, votadas pela Assemblia Geral. Como
sabido, a partir de 1966, os Estados Unidos vm se recusando,
sistematicamente, a ou ratificar convenes
internacionais sobre direitos humanos, sob o argumento de que elas
limitam a sua soberania. A grande potncia hegemnica da
atualidade pe-se assim, afrontosamente, fora do direito
internacional, e comporta-se, e, termos objetivos, como inimiga da
humanidade.
A aplicao s
convenes direitos humanos do sistema comum de ratificao
individual pelos Estados-Membros representa um anacronismo. Em sua
obra fundadora do direito internacional "De iure belli ac
pacis", (livro II, captulo XII, III e IV), Grcio
salientou que as convenes entre Estados, analogamente aos
contratos do direito privado, podem classificar-se em duas grandes
espcies: as bilaterais e as multilaterais. As primeiras, disse
ele, "dirimunt partes", isto , separam os interesses
prprios das partes contratantes, ao o que as segundas "communionem
adferunt", vale dizer, criam relaes de comunho. Ora,
esse objetivo comunitrio mais acentuado no caso de convenes
multilaterais votadas no seio de uma organizao internacional,
cujas decises, tal como no mbito das sociedades ou associaes
do direito privado, so normalmente tomadas por votao majoritria
e no por unanimidade. O argumento de que a de um
tratado internacional, ou a adeso a ele, ato do Estado e no
simplesmente do governo no colhe no caso, pois o ingresso do
Estado na organizao internacional j foi objeto de ratificao
pelo seu Parlamento, e esta implicou, obviamente, a aceitao de
suas regras constitutivas.
de inteira justia,
portanto, que a aprovao de convenes sobre direitos humanos
seja includa na categoria de assuntos a serem decididos por uma
maioria de dois teros, referidos no artigo 18, terceira alnea,
da Carta das Naes Unidas, dispensando-se no caso a ratificao
individual dos Estados-Membros para a sua entrada em vigor. Uma
grave carncia de capacidade governativa observada quanto ao
exerccio do que se poderia caracterizar como o Poder Executivo
nas Naes Unidas. As duas principais funes da ONU, por
determinao da Carta de 1945, so, de um lado, a manuteno
da paz e da segurana internacionais, e, de outro, a cooperao
de todos os povos em matria econmica e social.
Para o exerccio
da primeira funo, criou-se o Conselho de Segurana; para o
desempenho da segunda, o Conselho Econmico e Social. Entre esses
dois rgos, porm, o desequilbrio de poderes gritante.
Enquanto o Conselho de Segurana foi dotado de competncia decisria
para exercer uma "ao pronta e eficaz", como se diz
no artigo 24 da Carta, ao Conselho Econmico e Social somente
incumbe a atribuio de "fazer recomendaes Assemblia
Geral, aos membros das Naes Unidas e s entidades
especializadas interessadas"(art. 62).
Mesmo essa "ao
pronta e eficaz" do Conselho de Segurana tem sido, como se
sabe, freqentemente paralisada pelo poder de veto, atribudo
aos seus membros permanentes. Ademais, uma das principais atribuies
do Conselho de Segurana, qual seja, a de formular "os
planos a serem submetidos aos membros das Naes Unidas, para o
estabelecimento de um sistema de regulamentao dos
armamentos"(art. 26), jamais foi cumprida, pois ela se choca
com os interesses nacionais das grandes potncias que so
membros permanentes do rgo.
Como se no
bastasse, os Estados Unidos e seus aliados europeus, mesmo aps o
desaparecimento da Unio Sovitica, insistem em manter e ampliar
a Organizao do Tratado do Atlntico Norte, utilizando-a como
instrumento de interveno militar, fora do alcance do Conselho
de Segurana das Naes Unidas. O caminho para a instituio
de um governo mundial democrtico no seio das Naes Unidas
desenha-se com nitidez, a partir desse diagnstico. mister
abolir o carter oligrquico do Conselho de Segurana,
suprimindo-se os cargos permanentes com poder de veto.
indispensvel
dotar o Conselho Econmico e Social de competncia decisria,
atribuindo-se-lhe ademais um poder de superviso e direcionamento
das atividades das agncias especializadas das Naes Unidas em
matria econmica e social: a Organizao da Alimentao e
Agricultura (FAO), a Organizao Mundial da Sade (OMS), e a
Conferncia das Naes Unidas para o Comrcio e o
Desenvolvimento (UNCTAD).
Enfim, preciso
integrar nas Naes Unidas as organizaes econmico-financeiras
atualmente dominadas pelos Estados Unidos, singularmente ou em
conjunto com os pases da Unio Europia e o Japo, como o
Fundo Monetrio Internacional, o Banco Mundial e a Organizao
Mundial do Comrcio.
Mas um governo
democrtico no dispensa, como bvio, a instituio de um
Poder Judicirio forte e autnomo. Nesse sentido, parece
indispensvel abolir-se a clusula de reconhecimento facultativo
da jurisdio da Corte Internacional de Justia, tal como o fez
o Protocolo n 11 Conveno Europia de Direitos Humanos,
no tocante ao Tribunal de Estrasburgo. A nenhum membro das Naes
Unidas seria, ento, lcito subtrair-se jurisdio da
Corte, de modo a sobrepor o seu interesse prprio realizao
da justia no plano internacional.
Ainda quanto s
funes judicirias no seio das Naes Unidas, seria preciso
completar a obra iniciada com a Declarao Universal de Direitos
Humanos, em 1948, e com os dois Pactos Internacionais de 1966. Na
sesso de 16 de fevereiro de 1946 do Conselho Econmico e
Social, ficou assentado que esses documentos normativos
constituiriam etapas preparatrias montagem de um
aparelhamento institucional adequado, para assegurar o respeito
universal aos direitos humanos e tratar os casos de sua violao.
A implementao dessa terceira etapa tem sido postergada,
primeiro em razo da guerra fria e, em seguida, pela oposio
decisiva dos Estados Unidos. indispensvel reforar os
poderes investigatrios da Comisso de Direitos Humanos das Naes
Unidas, bem como criar-se, ao mesmo tempo, um tribunal
internacional com ampla competncia para conhecer e julgar os
casos de violao desses direitos pelos Estados-Membros, nos
moldes do Estatuto de Roma de 1998, que instituiu o Tribunal Penal
Internacional.
Chegamos agora, na agem do milnio, a um ponto crtico na
evoluo da humanidade. Trata-se de saber se a sua unidade ser
forjada pela fora da tecnologia, do dinheiro e das armas, com a
irrecupervel diviso entre ricos e pobres, entre fortes e
fracos; ou se, ao contrrio, saberemos enfim construir a civilizao
da cidadania mundial, em que todos os seres humanos, em qualquer
parte da Terra, possam nascer e viver sempre livres e iguais, em
dignidade e direitos.
Fbio Konder Comparato
Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, Doutor em Direito
da Universidade de Paris e professor titular da Faculdade de
Direito da Universidade de So Paulo
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