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A Violncia Policial e a Questo Social
Leonardo
Boff
notrio que a questo social foi durante muito tempo tratada
como questo policial. Em muitos lugares no Brasil se algum
portador de algum dos seguintes ps (pobre, preto e prostituta)
pela polcia preso e, no raro, antes que qualquer pergunta, vtima
de violncia fsica. A freqncia sistemtica de tais fatos tm
exigido dos centros de defesa dos direitos humanos, entendidos
especialmente como direitos dos pobres e oprimidos, vigilncia e
acusao de policiais. Mesmo punidos e, em casos mais graves,
expulsos da corporao, no tem diminudo significativamente a
violncia policial.
Para
se entender tal persistncia importa fazermos uma reflexo
cultural, pois, ao largo do tempo, se criou e se cultivou uma
cultura da violncia policial. Ela pressupe que os pobres e as
pessoas das classes populares no sejam cidados ou possuam uma
cidadania menor. A luta dos centros de direitos humanos no
somente pontual, denunciando os casos concretos de violao, mas
entende cultural, no sentido de visar a gestao de uma conscincia
de cidadania, de direitos inegociveis do cidado e de
estabelecimento de prticas policiais que se adeqem a essa
conscincia, a defendam e a consolidem.
O
fato cultural que importa conscientizar o seguinte: durante
quatro sculos temos convivido com a escravido. um
verdadeiro modo de produo, o escravagista. Ele implica a reduo
do outro a carvo a ser consumido no processo produtivo,
rebaixado a pea, a simples escravo, com o senhorio de vida e de
morte por parte dos senhores sobre seu destino. Esta
anti-realidade social criou nas elites uma subjetividade coletiva
altamente perversa. Elas criaram a mentalidade de que o negro, o
pobre e o povo em geral nada valem, de que devem ser tratados com
violncia, porque sempre foi assim, de que, na verdade, no
deveriam receber um salrio mnimo, pois historicamente sempre
estiveram a servio gratuito dos senhores. Estes entendem o salrio
mnimo pago a eles como um ato de generosidade e no de justia.
A violncia fsica contra os pobres e negros vem precedida pela
violncia mental que discrimina, nega o direito de cidadania e no
lhes reconhece direitos incondicionais.
Estudos
sobre a escravido urbana do conta das razes de alguns hbitos
culturais e policialescos hoje ainda existentes. O escravo urbano
era alugado por seus donos a terceiros a fim de fazerem servios
de rua. Eram vigiados pela polcia que fazia o lugar dos senhores
de escravo. Da se deriva o hbito da polcia comumente
desconfiar dos negros e aplicar-lhes violncia quando, por
qualquer motivo, os detm( cf. Leila Mezan Algranti, O feitor
ausente, Vozes, Petrpolis 1986). Jacob Gorender critica a
moderna produo histrico-social que pretende mostrar a
escravido em tons mais benevolentes, ao invs de rebelies,
resistncia e acomodao (A escravido reabilitada, tica, S.
Paulo 1990). No povo, no nas elites poderosas, prevaleceu o esprito
de conciliao que atenuava os antagonismos raciais e sociais.
Se a massa indgena e negra, mestia e cabocla - nos ensina o
grande historiador Jos Honrio Rodrigues (Conciliao e
Reforma, um desafio histrico-cultural, Civilizao Brasileira,
Rio l965, p.30) - era nas relaes humanas essencialmente
conciliadora, era, entretanto inconcilivel nas relaes polticas.
Mostraram um rude inconformismo que gerou grande derramamento de
sangue, a ponto de Capistrano de Abreu escrever que no fim do perodo
colonial, o povo foi capado e recapado, sangrado e ressangrado.
Portanto, o regime escravocrata no foi cordial, na linha do
patricialismo projetado por Gilberto Freyre em Casa Grande e
Senzala, mas foi cruel e sem piedade. Foi mrito de Gorender ter
destrudo este imaginrio mistificador e reincidente atravs de
dados e de interpretaes irrefutveis.
Temos apenas um sculo sem escravido, tempo curto ainda para
desfazer e desatar o n construdo ao longo de sculos, n que
continua a sustentar por parte da polcia e de estratos da classe
proprietria hbitos de violncia e de discriminao. Atravs
da educao para a cidadania a ser ministrada em todas as
escolas, grupos de base e movimentos sociais, mediante a denncia
sistemtica das violaes dos direitos dos pobres e negros
baseada nos preconceitos e mediante a cobrana de sua punio
lentamente pode-se esperar a instaurao de uma cultura do
respeito das diferenas e do cuidado pelos direitos de cada cidado.
Presidente de honra e
fundador do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrpolis,
RJ.
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