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A cooperao atravs do intercmbio de pessoas como instrumento para a emergncia de um novo paradigma civilizatrio

Leonardo Boff

Exposio feita no Encontro do Programa de Unit no Brasil de 1998

Camamu, 6 a 12 de outubro de 1998

Eu acho que um dos elementos importantes o que deve acontecer antes da chegada dos cooperadores no Brasil. A primeira atidude do cooperador, do voluntrio tem que ser de uma profunda auto-crtica. Porque todos os europeus que vm de l de fora, foram nossos colonizadores. E eu falo com uma certa liberdade porque meus avs foram italianos. Ns temos uma carga negativa que devemos assumir sem m conscincia, mas com auto-crtica e anlise. No a na nossa cabea de ir para a Sua, criar grupos e conscientizar os suos. Como que se d essa relao. Inicialmente, uma relao desigual. bom a gente se conscientizar disso.

Segundo ponto, a renncia a toda arrogncia. Antigamente, vinham os colonizadores junto com o aparato militar e estatal na convico que eles tinham a religio verdadeira e tinham a civilizao verdadeira. E aqui ramos selvagens etc. Assim, importante renunciar a toda arrogncia de vir aqui com um saber que ns no temos. Tambm renunciar a todo esprito de apropriao privada. o caso de muitos que consultam, que vm fazer teses na Amrica Latina e no Brasil, sobre as CEBs, os movimentos sociais, etc. Eles vm aqui, at aprendem a lngua, se apropriam e vo embora, fazem seus currculos, fazem suas teses e nunca mais voltam, no devolvem nada. Somos material de uso para eles. importante estar atento a este tipo de apropriao privada. Fazer uma apropriao fundamental, mas tem que ser no sentido de socializar, de serem agentes de mudana l, quando voltam. Isto , outro tipo de troca de saberes, troca de culturas em benefcio de uma viso mais holista e globalizadora da experincia de vida.

Outro ponto: Ter uma disposio muito clara de incorporao. Se vocs vm para c, no para fundar um movimento mas para incorporar alguma coisa que j est em curso. O povo est andando, resistindo h quinhentos anos, est sobrevivendo de seu jeito e se organizando. Ento, no , digamos, a ideologia do pai e da me fundadora que vm e fundam o movimento. No! Temos que incorporar aquilo que j est em curso, que o pessoal est lutando e fazendo h muito tempo. Eu me recordo de uma famosa histria que devemos manter sempre viva em nossa cabea. Um pedagogo ingls foi para a Austrlia para ajudar os aborgenes e disse: "Vim aqui para ajudar vocs". E o cacique respondeu: "Meu irmo, ns te agradecemos, mas pode voltar; volte para a Inglaterra. Porque a tua ajuda ns no precisamos. Agora, se voc vier e disser: eu vim aqui e a causa de vocs tambm a minha causa, eu me sinto envolvido e sou desafiado por vocs. Se voc pensar assim, ento venha e seja bem-vindo e voc vai caminhar conosco". Essa a atitude de paz. Se viemos para ajudar, melhor no vir. O que vamos ajudar bem ou mal, sempre ser de nosso jeito. Agora se viermos nos incorporar, reforar as lutas, sermos aliados, trazermos conhecimentos, experincias que completam e ajudam a ns, ento sejam bem-vindos. Essa disposio de vir como quem vai aprender fundamental.

Depois, a disposio de enriquecer-se com a diferena. Isso foi acentuado muito aqui. Dizer e entender a diferena no como uma desigualdade que a tentao permanente: porque ele negro, menor, desigual. No, o diferente a riqueza da unidade humana. A riqueza da natureza humana que tem mil formas de expresso. E toda nossa cultura ocidental tem uma dificuladade terrvel de conviver com a diferena. Essa dificuldade est escrita na nossa cabea, no nosso cdigo gentico intelectual. O ocidente fez assim com a diferena: ou a incorpora, ou a marginaliza ou a destri. Ento, diante da violncia dos europeus na destruio das diferenas, o que Hitler fez fichinha. Em setenta anos, mataram cem milhes de pessoas: o maior genocdio da histria. A tal ponto que um grande historiador chega a dizer: "A igreja catlica at o juizo final perdeu a moralidade e tambm o direito de defender direitos humanos. Porque ela com a cruz e a espada ajudou a matar cerca de cem milhes de ndios, seja pela violncia do trabalho forado, seja pelas doenas que foram transmitidas, seja militarmente matando crianas, mulheres, velhos, homens, gente, cachorro, gato, gado etc." Ento, a nossa dificuldade ocidental conviver com a diferena, alegrar-se com a diferena, aprender com a diferena. No tolerar a diferena porque no d para acabar com ela. No, ver riqueza: a diferena nos enriquece, nos complementa. Da temos que ser anti-cultural. Temos que superar uma filosofia e uma ideologia da identidade e chegar a uma compreenso mais complexa da sociedade humana, dos seres humanos, das suas diferenas como a natureza faz: a natureza complexa e diversa e todos convivem consorciados uns com os outros. Os seres humanos, na cultura ocidental, se desviaram deste paradigma. Por isso, uma cultura marcada pela violncia. J Nietzsche dizia isso da alma da cultura ocidental. a vontade do poder, poder como dominao da natureza, da classe, dos pobres. Isso est escrito dentro de ns de forma inconsciente. Se a na escola, na famlia, no cotidiano cultural que respiramos. Por isso, a nica cultura conquistadora do mundo. Onde ela vai quer conquistar, se espalha. Hoje, de forma mais refinada e sutil que pela ocidentalizao do mundo. A china que muito mais velha, nunca foi pelo mundo conquistar os outros. A china construiu as grandes muralhas para ficar dentro. A china tem uma costa quase to extensa como a brasileira e nunca foi potncia martima para conquistar o mundo. outra compreenso do mundo. Ns, no: temos fogo no rabo e queremos sair pelo mundo conquistando e dominando os demais.

Devemos ser absolutamente crticos contra ns, porque temos isso dentro de ns, de forma consciente ou inconsciente. Ento, de sada, botar sob suspeita ns mesmos e estar aberto o mais possvel diferena e deixar-se marcar: di, difcil, a comear pela lngua. Falar a lngua sinal de ter mergulhado na cultura, ter entrado na alma do povo. A lngua a alma do povo, importante a apropriao da lngua porque acatado o modo de sentir, de pronunciar o mundo, de entender a realidade.

Por favor, no se neguem de ser suos, sejam suos at o fim da vida. Essa a vossa identidade. Se vocs tentarem esconder isso, mascarao. E essa diferena importante para ns. Que vocs transmitam a riqueza de vocs. ei agora uns quatro meses dando aula por l, e fiquei irado pelo senso democrtico daquele povo. O cidado conta, o cidado vale, tem centralidade, discutido, quer dizer, uma democracia que mais que a nossa que delegatcia, representativa. L mais direta, o cidado fala, vota, decide. Ns precisamos saber como funciona aquela sociedade. o nico lugar no mundo onde h uma democracia direta e plebiscitria. Em nenhum lugar do mundo existe isso. Essa diferena fundamental para a gente contar. Porque l na base, a nossa luta superar essa democracia reduzida, a democracia s do voto. Queremos uma democracia participativa que funcione no dia-a-dia, discutindo, decidindo juntos. E l, tem uma experincia ocular sobre isso. Comunicar essa experincia anima o pessoal. Em um lugar do mundo isso funciona, meu deus do cu. Eu sei que l tambm tem problemas, manipulao, o sistema do capital etc. Mas a centralidade do cidado visvel. Quer dizer que h uma cidadania que conquistada depois de tantos sculos. A diferena de vocs importante para ns. No mascarem essa diferena. A incorporao e o enriquecimento na troca das diferenas faz com que a nossa humanidade seja mais enriquecida, que a nossa experincia dos seres humanos fique mais rica, porque vemos formas de a gente sermos humanos, de integrar as relaes, de viver, de dar sentido vida, no humor, no trabalho, na festa etc. de uma forma diferente.

Ns que vamos para l eu estudei na Alemanha -, a gente fica meio represado. O povo srio demais. Eles tem a ideologia do trabalho, com uma disciplina terrvel. O meu bonde ava s 5:42. Seu eu chegasse s 5:43, eu perdia o bonde. Pode cair neve, chuva at no mais poder, mas o bonde ava s 5:42. Alguns acham timo. Eu acho horrvel. Eu acho que tem que ter mais flexibilidade, quer dizer: tem que ter o tempo humano e no o tempo do relgio. O tempo humano assim: eu o por al, encontro um amigo, e vamos tomar um cafzinho, atraso no tem importncia. Quer dizer, a vida tem que ter uma outra lgica que aquela de produo. Na produo, tempo dinheiro. uma cultura que se fez em cima disso. Ns temos que aprender um pouco desta seriedade. Mas, em termos de convivncia humana, temos uma riqueza fantstica. E vocs tem que aprender um pouco desta flexibilidade brasileira.

Um outro ponto importante que deve estar na cabea j l na Sua, que o quadro do mundo est mudado. No mais como antigamente quando contavam mais os estados-naes. Vamos tomar como marco o ano de 89 quando caiu o muro de Berlim e o prprio imprio sovitico. Surgiu ao nvel do mundo uma nova condio da humanidade e das relaes polticas da humanidade que vem sobre o signo da globalizao. De repente, o mundo ficou homgeneizado pela ordem do capital. No h mais fronteiras ideolgicas, acabou-se a guerra fria, e as fronteiras entre os estados-naes ficam cada vez mais adas. Inclusive, o discurso Norte-Sul que a gente suscitou aqui, um discurso ainda do velho paradigma que ainda trabalha com os blocos. Na verdade, mais e mais est se criando a fase nova do processo de constituio, de fazimento da terra. A gente pode dizer que a histria da terra e do universo uma espcie de um grande teatro que tem cinco atos. O primeiro ato o ato csmico, quando deu aquela exploso e o universo surgiu. O segundo ato o ato qumico quando de uma das grandes estrelas vermelhas se formaram os tijolinhos que compem todo o universo. O terceiro ato quando surge a vida como fenmeno novo enquanto elaborao da prpria matria que se sofistica. O quarto ato quando surge o ser humano que um subcaptulo da histria da vida. Veio a conscincia, a liberdade e a capacidade de voc olhar tudo isso e pensar: o que que ns estamos fazendo aqui? O que ns estamos fazendo, um cavalo no pode fazer, uma guia no pode fazer, um peixe no pode fazer: se reunir, falar, discutir, planejar. Eles no fazem isso. Eles so desatualizados no processo evolucionrio. O quinto ato que ns estamos vivendo, uma etapa nova. a etapa da planetizao: os povos que viviam isolados nos seus estados e naes, nas suas regies culturais com suas lendas, de repente esto voltando para a casa comum que a terra. Se encontram em um nico lugar, todos juntos. E este lugar um lugar coletivo. o planeta terra. Ento, um elemento novo da histria do planeta terra. Se ns pensarmos em termo da "Teoria Gaia", no em termos compartimentados de culturas e vises de mundo, de repente, a humanidade tem uma idia coletiva.

E essa idia ocorre em primeiro lugar pela forma mais perversa que ela tem: o caminho econmico, a homogenizao dos espaos econmicos, dos mercados regionais, a continentalizao das economias e a mundializao do mercado. Agora, vejam, tem uma trampa atrs disso. 80% dos negcios mundiais so feitos entre o prprio Norte, entre os pases ricos. 20% entre os demais pases do mundo. A Amrica Latina entra apenas com 3% neste processo de mundializao. Ns no contamos. No devemos cair no engodo deste discurso. o jogo entre eles, entre os grandes poderosos, as multinacionais e suas filiais. Dos investimentos maiores, quase 90% ocorrem nos pases ricos. l que eles investem. Apenas 10% so investidos nos pases perifricos. Ento, que mundializao essa? Grande parte da munidalizao no mundializao, mas a ocidentalizao do mundo, imposio do modo de viver, do modo de produzir do mundo ocidental. A mundializao no mundializao: a homogeneizao dos interesses do capital que vai onde d lucro. Ele a como em um hotel, ele a por aqui. Fica uma semana, dez dias, para aproveitar os altos juros e depois vai embora como est acontecendo no Brasil. Em dois meses, o Brasil perdeu trinta bilhes. E a cada dia vem perdendo 500 milhes. Somente ontem foram embora 800 milhes. No interessa a eles ficarem aqui. Ns no somos interessantes para a produo. Somos interessantes apenas para a especulao. Porque os juros so muito altos, ganham-se fortunas, e vo embora. Vai eletronicamente pelo comando do computador e os ttulos vo pra l.

Ento, uma mundializao profundamente desigual, mas ela tem uma vantagem. Ela est criando as bases materiais para outro tipo de mundializao. Significa a criao de redes de comunicao que vo atravs dos meios de comunicao, da internet, do fax, do jogo eletrnico, criando base material e tecnolgica que cada vez mais se homogeneiza. Ento ela cria a base para que haja uma mundializao que a no s pela economia, mas pela poltica, pelos encontros trans-culturais etc. Todo mundo est se movimentando. As culturas esto se encontrando, os valores, as tradies espirituais, vises de mundo, imaginrios. Entre o ocidente, oriente, norte e sul, h uma amlgama enorme de valores que esto se encontrando e, politicamente, alguns dados fundamentais da conscincia poltica da humanidade esto se universalizando. Alguns nasceram do ocidente, mas no so do ocidente, so humanos. Por exemplo o valor absoluto da pessoa humana. A gente no pode usar a pessoa humana como um meio para testes da bio-teconologia. O ser humano um ato sagrado. Isto , est entrando na conscincia mundial que essa pessoa humana tem direitos inalienveis que no dependem do dinheiro que tem no bolso ou na conta do banco ou da cor da pele. Pelo fato de ser um ser humano tem os direitos fundamentais: direito vida e aos meios da vida: trabalho, alimentao, moradia, educao etc. Isto est entrando na conscincia coletiva da humanidade. Um outro valor que est entrando na conscincia coletiva que devemos preservar esse belo e radiante planeta que est ameaado. Temos que cuidar disso. Um outro valor que temos que garantir as condies para o ser humano poder subsistir e poder continuar a evoluir. Porque h regies no mundo onde o ser humano to marginalizado e sub-humanizado como a regio ao sul do Saara que vai at o Paquisto. As pessoas no am de quatro anos de idade mental. Nem andam mais, se arrastam como animais porque j so quarenta anos de fome e seca. As crianas j so filhos de pais famlicos, de avs empobrecidos. Os netos j so quase animalizados. Nem chegam a cinco anos de idade. No podemos permitir que a humanidade decaia a tais nveis.

H valores a nvel de concincia que vo ganhando patamares coletivos. um outro tipo de mundializao que a pela poltica e, tambm, mais e mais, uma mundializao que a pela espiritualidade. As grandes tradies sapienciais da humanidade, das grandes religies, culturas que vo se intercambiando com o dilogo ocidente-oriente, uma revisitao da sabedoria dos povos indgenas que tm uma alta sabedoria ecolgica, das hervas, de uma forma de integrao cultura-universo. Tudo isso est sendo revisitado e incorporado. E a humanidade est aprendendo o que significa ser humano: uno, porque de uma famlia, mas diverso de muitas formas de manifestao.

A partir desta conscincia o cooperador que vem aqui no vem s, no meu modo de entender, para ajudar a quem tem carncia na ordem da produo, do crescimento, quer dizer, um conceito quase econmico de agir. Ele vem no sentido de reforar outro tipo de mundializao que e pela solidariedade da famlia humana. A conscincia que ns emergimos como espcie ao lado de outras espcies. O ser humano sapiens e demens porque isso ns somos tambm existe ao lado de outras espcies de mamferos, de peixes, de insetos. Somos uns ao lado dos outros, e no somos a nica espcie e no temos privilgios por termos conscincia de dominar, submeter e exterminar os outros. A nossa vocao de conviver. Surge a coscincia que somos uma famlia humana e que existem membros desta famlia que esto ando fome e necessidades. Surge, da, um outro tipo de solidariedade com irmos e irms nossas. Reforamos essa outra globalizao que no a pela competio, pela concorrncia, pelo mercado dilacerante e excludente, mas que refora os laos de fraternidade, de colaborao, de sentir a pele do outro, de vir, de entrar em uma caminhada, sentir, sofrer junto, caminhar no espo junto, alegrando-se com suas conquistas, de estar em uma famlia.

Da a importncia que esse caminho seja de duas mos, no s que vocs vm para c nos ajudando aqui, mas tambm de gente daqui que vai pra l. Ns l em Petrpolis temos uma experincia interessante. Uma parceria no da cidade de Petrpolis mas da sociedade civil de Petrpolis com a sociedade civil de Bonn, na Alemanha. Em agosto, vm os alemes para c. Gente da escola, camponses, advogados, juzes, enfermeiros, mdicos vm para c e participam de nossos movimentos. Em dezembro e janeiro, quando so as frias nossas, ns que vamos para l. No representantes, no caso eu que falo alemo. Mas vai o favelado, o campons para contar as suas lutas, suas vitrias, suas experincias. So trocas da famlia humana onde a gente comea a entender as diferenas e caminhamos juntos constituindo uma cumplicidade na caminhada. E h condies financeiras hoje para propiciar este tipo de troca porque a, o caminho completo: ele vai e vem. Ento, como ns aprendemos a diferena de vocs, eles l podem questionar-se a partir de nossa diferena. Esse tipo de troca cria o nosso sonho, cria um outro tipo de mundializao. Essa vai rumo ao futuro. Ela leva a esperana da humanidade, que vai criando a famlia humana.

Ainda no entrou na nossa conscincia que somos uma famlia. Ainda trabalhamos no velho esquema. Voc argentino, voc suo, eu sou brasileiro, o outro americano. Digo no, ns somos cidados terrenais, somos cidados planetrios e convergimos na diversidade de nossas tradies onde experimentamos o que ser humano nas diversas culturas. Essas diferenas so ricas. Convergimos na diversidade para pontos comuns que todo mundo deve assumir: defender o planeta; defender a vida; defender a vida daqueles que mais sofrem, que so mais ameaados, que so os pobres do mundo; fazer uma economia mais participativa para que todos possam beneficiar-se dos avanos tecnolgicos. Convergimos em coisas comuns, mas cada cultura tem a sua forma de dar alimentos, sua organizao da produo. Convergimos em pontos bsicos. A forma de realiz-los diferente nas culturas e tradies. Ento, a gente tem que incorporar essa mudana que ocorreu, e vir aqui nesta perspectiva que uma perspecitva meio mstica.

A gente tem que ter grandes sonhos. Hoje a luta no por ideologia. Faz a luta quem tem o melhor sonho para a humanidade. Se uma sociedade no tem sonhos, ela afunda em seus interesses e se acaba no marasmo de quem disputa o poder. Uma sociedade tem que ter sonhos. Ns, hoje, temos que ter sonhos grandes. So os sonhos que orientam, o sonho da humanidade conciliada, sensvel, ecologicamente centrada, que se sente famlia humana, que se compadece com quem sofre. o sonho de Che Guevara, que o sonho de todo socialista: ser sensvel a cada grito de quem precisa de vida, mas no s o grito dos humanos, mas tambm o grito de outros seres. Todo mundo grita porque quer continuar a viver e est ameaado.

Essa sensibilidade, essa nova sintonia exige um novo estado de conscincia do cooperador e do voluntrio. uma coisa que pode ser feita j antes de vir para o Brasil. Quando a pessoa vem, ela j vem armada e enriquecida com a troca, vem despojada. E quanto mais ela despojada, quanto mais ela for flexvel, mais ela recebe marcas e se enriquece. E marca tambm os outros nessas idas e vindas.

Um outro ponto me parece importante. Quase sempre, os cooperadores vem numa perspectiva, eu sei que meio reducionista dizer isso, de ajudar os economicamente empobrecidos, seja no nvel da produo, seja no nvel da organizao das comunidades. Por isso, o conceito de pobre marginalizado e carente importante. Agora, h neste pas uma pobreza que no econmica, mas uma pobreza poltica. Essa pobreza poltica a causa secreta porque existe pobreza econmica. Eu acho que um desafio novo dos voluntrios ajudar a criar duas coisas que fazem uma falta terrvel neste pas: o enriquecimento poltico, primeiro, que ajudar a criar o povo brasileiro. Ns no temos um povo brasileiro. Temos uma massa de sobreviventes da grande tribulao que j tem quinhentos anos, que aqui veio no estado colonialista com seus funcionrios e uma imensa massa de explorados, escravos, produtores, mas nunca um povo. O povo brasileiro est nascendo ainda. Por isso, to fcil ganhar eleies e manipular as massas. Surge um povo quando dentro desta massa comeam a surgir comunidades e movimentos sociais. Se no houver grupos que se encontram, nunca nasce um povo. O povo a articulao de movimentos, grupos, sindicatos, comunidades que se relacionam entre si, elaborando uma conscincia, lanando um projeto, estabelecendo as estratgias e as tticas. A partir dos anos 60, em toda a Amrica Latina, com a efervescncia dos movimentos, surgiram lderes carismticos, uma rede imensa de movimentos. Foi-se criando uma base para que surgisse o povo brasileiro com a conscincia de um projeto nacional aberto para fora, enraizado aqui no local. A importncia de um projeto nacional com uma economia que tenha um mercado interno que atenda as nossas necessidades e, ao mesmo tempo, articulada com o planetrio. Ajudar a criar um povo brasileiro na medida em que a gente refora as comunidades, a gente entra por esses caminhos j andados por este povo. Que a gente seja um fator de aglutinao, de reforo desse esprito comunitrio, e no apenas de algum que vai prestar um servio mesmo qualificado tecnicamente, mas sem essa conscincia desse enriquecimento poltico de combater a pobreza poltica que existe nesse pas.

O segundo que me parece importante como ajuda a criar uma democracia integral que outra coisa que muito reduzida neste pas. Com se sabe, a democracia assenta em cima de quatro pernas como uma mesa. A primeira perna a participao. Pela participao as pessoas se sentem cidados, ajuda a falar, a pensar, a decidir. Quanto mais se participa, mais comea surgir o esprito democrtico. Sem participao, no h democracia ou uma democracia que s ocorre, de quatro em quatro anos, quando temos o direito de escolher o nosso ditador que o presidente e os nossos deputados. Depois eles vo l para o parlamento, esquecem o povo e fazem as suas polticas l em cima. Pela participao, no. Continuamente estamos questionando, discutindo. A participao exige informao para voc poder decidir. A informao tem que circular nas comunidades, na leitura de pequenos textos melhorando a conscincia das pessoas.

Quanto mais participao houver, mais igualdade haver. Essa a segunda perna. A igualdade nunca o ideal que voc atinge diretamente. A igualdade resulta do processo de participao. A igualdade consequncia da participao. Quanto mais as pessoas participam, mais igualitrias elas se fazem: na palavra, na deciso, na apropriao das formas de conhecimento. A igualdade se alcana pela acentuao da participao.

A terceira perna o respeito s diferenas. Porque h o risco de criar uma democratizao numrica que no faz diferena de etnia, de viso de mundo, de religio, de gnero: as mil diferenas que temos. preciso respeitar as diferenas, aprender com as diferenas, conviver com elas. A democracia exatamente a arte de articular as diferenas.

A quarta perna o elemento do novo paradigma. O ser humano no s tem corpo, no s tem psique. um ser tambm espiritual. o ser da comunicao. S podemos salvaguardar o planeta e criar uma democracia plena se ns introduzirmos espiritualidade. Isto , a capacidade de comunho do ser humano. Sair de si, estabelecer laos com o outro, conviver com a diferena, comungar com outros destinos, ser solidrio com quem sofre, empenhar-se, protestar contra esses mecanismos que acrescentam cruzes nas costas do povo. Essa dimenso espiritual que tipicamente humana, tem que ter espao na democracia para ela ser mais enriquecida, mais humana.

Ajudar a criar essa democracia como democracia integral. Ela surge de baixo, das comunidades, dos movimentos e vai incorporando as prticas e os valores do povo. Uma democracia de baixo, popular, integradora de todo mundo, para criar uma sociedade onde todo mundo possa caber. Na nossa sociedade h quarenta milhes de excludos, considerados zeros econmicos, que no contam para nada. Um desafio que eu cobraria dos cooperadores ajudar a criar essa riqueza poltica. No que vocs vo hegemonizar isso. Mas suscitar e reforar essas questes, ser aliados que colocam que temos que ter em mente essa dimenso poltica de ajudar a criar o povo brasileiro e que ele nasa democraticamente participativo. Isso no existe ainda e a grande demanda da sociedade mundial.

Um outro elemento que me parece importante o que chamamos aqui no Brasil de a educao da prxis. Quer dizer, todo trabalho com o povo implica em uma pedagogia popular. No adianta boa vontade. Tem que incorporar certos caminhos pedaggicos. Eu mesmo, quando mexia mais com as comunidades, com a Marcia, l em Petrpolis, muita gente da esquerda fugindo da represso poltica vinham e diziam: "Eu posso participar?" Muitos estudantes na universidade diziam: "Eu posso ir para a favela? Como eu me incorporo no grupo?" Eu respondia: "Voc no vai entrar l. Porque voc entra cheio de preconceitos como classe dominante, como burgus. Voc primeiro vai ler dois livros. Voc vai primeiro ler Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. Vai estudar isso. E vai ler Paulo Freire, A Educao como Prtica da Liberdade para voc se descobrir como opressor, para voc ir desarmado l e para voc se incorporar na caminhada do povo." Todo voluntrio que vem ao Brasil pode vir desde que trabalha Paulo Freire j l na Sua. Leiam, por favor, esses dois livros. Outro texto belssimo de Paulo Freire a Pedagogia da Esperana que fala do desafio de suscitar a esperana no povo. No a esperana das igrejas, a esperana escatolgica. Mas a esperana poltica, pedaggica, democrtica, esperanas concretas que vo surgindo na luta e que vocs tem mil razes para continuar a lutar. Qual a chave da pedagogia da prtica. A chave da educao da prxis ajudar o povo a pensar aquilo que ele est fazendo. No s incorporar novos conhecimentos. ele pensar aquilo que est fazendo, quer dizer, chegar quela unio de teoria e prtica.

Primeiro, uma tarefa de apropriar-se do saber que est al no caminho acumulado pela sociedade. A vocs podem dar um importante contribuio. Vocs tem um saber mais qualificado. E o povo precisa de um saber profissional. Porque h uma carncia enorme deste saber profissional. E vocs tem que socializar isso. importante socializar. Mas, de outro lado, fundamental que vocs escutem a sabedoria do povo, tentando melhor-la, reando aquilo que vocs acumularam e trouxeram. E Paulo Freire, especialmente em sua ltima fase, insitia muito em afirmar que tem que existir uma dialogao, uma interlocuo entre professor e aluno. Mas o professor nunca deve esquecer que ele o professor, que ele carrega uma experincia pedaggica e ele tem que saber dosar, introduzir seus alunos, estar sempre aberto a tudo que o aluno traz, suas experincias de vida, estar aberto para captar, sintetizar e aproveitar isso. Importa fazer uma troca de saberes. Vocs trazem o saber mais qualificado, mais acadmico, especializado, codificado. Esse saber muito importante. Ele efetivo e transformou a paisagem humana. Mas nunca depreciar, ao contrrio, valorizar o saber popular. O nosso saber mais racional, feito da crtica, da acumulao feita pela sociedade, dentro de bibliotecas, escolas, universidades. O saber popular feito dentro da experincia, feito de sofrimento, de oralidade, acumulado na tradio dos pais e avs. Ele um outro tipo de saber, mas tambm um saber. Da a importncia da troca de saberes. Porque ns podemos aprender muita coisa do povo. Por isso, no podemos ter aquela falsa humildade de dizer: "No, eu no sei nada. Eu s quero escutar. Eu no falo nada." H momentos em que devemos falar, devemos dizer, mas de uma forma pedaggica que nunca humilhe o outro. Quando o povo fala, eu anoto tudo para incorporar cada frase, cada expresso. No s para valorizar, mas tambm para devolver a ele a auto-estima. H um dficit de auto-estima fantstico neste pas. Porque foi colonizado, escravizado, sempre marginalizado, tratado sempre como jeca-tat, como gente que no presta. Existe uma enorme idealizao do Primeiro Mundo e h um enorme dficit de auto-estima. Por isso, a importncia de envolver a auto-estima, valorizando tudo que o povo produz e faz, sua sabedoria, suas frases. A o povo diz, puxa eu tambm sei. E a pessoa se sente envolvida. Temos que ter muito presente isso: envolver a dignidade do povo que foi muito massacrado e continua sendo massacrado. A condio da cidadania no somente a relao do indivduo com o Estado, mas a articulao de movimentos, grupos unidos com outros grupos, criando uma com-cidadania, no esperando do Estado nada, mas cobrando do Estado tudo. Porque o Estado a delegao do poder pblico. Ele tem que fazer as coisas. No entanto, a maioria se considera pedinte diante do Estado como se ele fizesse um favor de ajudar com projetos e destinar verbas. Este dinheiro nosso. preciso cobrar do Estado para que ele cumpra sua funo social. E isso s possvel, se o povo tem conscincia cidad, tem auto-estima e coragem para discutir com o governo, combatendo a cultura do silncio. O povo foi habituado a escutar. Foi condenado a escutar sempre e no est acostumado a falar. Paulo Freire chamou ateno do fato de o povo falar baixo. Porque quem fala alto o patro. Todo aparato simblico para calar o povo.

Por fim, este trabalho s possvel, se a gente tem uma certa mstica. Porque o trabalho com o povo muito pobre, palafitados, favelados cujas relaes sociais so degradadas em uma grande desumanizao, muito duro. Para levar avante um trabalho deste tem que ter mais que tcnica, mais do que saber. Tem que ter um fogo interior, tem que ter uma viso mstica: acreditar na pessoa humana, no ser humano, nos valores humanos e acreditar que, no fundo, amo essa pessoa porque vejo nascer dentro dela o Deus que est nascendo que aparece na forma de entusiasmo, dignidade. Deus est cruzificado na maioria da populao mundial, que morre antes do tempo, que so os condenados da terra. Temos que resgatar a dignidade para fazer a melhor liturgia que podemos fazer: resgatar a esperana que est sendo negado pela sociedade humana.

So algumas dimenses que esto presentes em nosso trabalho de idas e vindas. E quando vocs voltarem, sejam representantes desta nova humanidade. L na Sua, sejam os operadores de mudanas, de uma nova conscincia, de novos temas, de uma nova mundializao. A, j no haver mais Norte e Sul, haver cada vez mais uma humanidade que est convergindo em uma conscincia mais globalizadora no destino comum deste planeta que ns devemos preservar e, tambm, de uma forma que produza mais alegria de vivermos a vida, no no vale de lgrimas, sofrendo e tentando de diminuir o sofrimento, mas como filhos e filhas da alegria de viver no planeta que vale a pena pela sua beleza e por sua grandeza."

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