Eu acho que um dos
elementos importantes o que deve acontecer antes da chegada dos
cooperadores no Brasil. A primeira atidude do cooperador, do
voluntrio tem que ser de uma profunda auto-crtica. Porque
todos os europeus que vm de l de fora, foram nossos
colonizadores. E eu falo com uma certa liberdade porque meus avs
foram italianos. Ns temos uma carga negativa que devemos assumir
sem m conscincia, mas com auto-crtica e anlise. No a
na nossa cabea de ir para a Sua, criar grupos e
conscientizar os suos. Como que se d essa relao.
Inicialmente, uma relao desigual. bom a gente se
conscientizar disso.
Segundo ponto, a renncia
a toda arrogncia. Antigamente, vinham os colonizadores junto com
o aparato militar e estatal na convico que eles tinham a
religio verdadeira e tinham a civilizao verdadeira. E aqui
ramos selvagens etc. Assim, importante renunciar a toda arrogncia
de vir aqui com um saber que ns no temos. Tambm renunciar a
todo esprito de apropriao privada. o caso de muitos que
consultam, que vm fazer teses na Amrica Latina e no Brasil,
sobre as CEBs, os movimentos sociais, etc. Eles vm aqui, at
aprendem a lngua, se apropriam e vo embora, fazem seus currculos,
fazem suas teses e nunca mais voltam, no devolvem nada. Somos
material de uso para eles. importante estar atento a este tipo
de apropriao privada. Fazer uma apropriao fundamental,
mas tem que ser no sentido de socializar, de serem agentes de
mudana l, quando voltam. Isto , outro tipo de troca de
saberes, troca de culturas em benefcio de uma viso mais
holista e globalizadora da experincia de vida.
Outro ponto: Ter uma disposio
muito clara de incorporao. Se vocs vm para c, no
para fundar um movimento mas para incorporar alguma coisa que j
est em curso. O povo est andando, resistindo h quinhentos
anos, est sobrevivendo de seu jeito e se organizando. Ento, no
, digamos, a ideologia do pai e da me fundadora que vm e
fundam o movimento. No! Temos que incorporar aquilo que j est
em curso, que o pessoal est lutando e fazendo h muito tempo.
Eu me recordo de uma famosa histria que devemos manter sempre
viva em nossa cabea. Um pedagogo ingls foi para a Austrlia
para ajudar os aborgenes e disse: "Vim aqui para ajudar vocs".
E o cacique respondeu: "Meu irmo, ns te agradecemos, mas
pode voltar; volte para a Inglaterra. Porque a tua ajuda ns no
precisamos. Agora, se voc vier e disser: eu vim aqui e a causa
de vocs tambm a minha causa, eu me sinto envolvido e sou
desafiado por vocs. Se voc pensar assim, ento venha e seja
bem-vindo e voc vai caminhar conosco". Essa a atitude de
paz. Se viemos para ajudar, melhor no vir. O que vamos ajudar
bem ou mal, sempre ser de nosso jeito. Agora se viermos nos
incorporar, reforar as lutas, sermos aliados, trazermos
conhecimentos, experincias que completam e ajudam a ns, ento
sejam bem-vindos. Essa disposio de vir como quem vai aprender
fundamental.
Depois, a disposio de
enriquecer-se com a diferena. Isso foi acentuado muito aqui.
Dizer e entender a diferena no como uma desigualdade que a
tentao permanente: porque ele negro, menor, desigual.
No, o diferente a riqueza da unidade humana. A riqueza da
natureza humana que tem mil formas de expresso. E toda nossa
cultura ocidental tem uma dificuladade terrvel de conviver com a
diferena. Essa dificuldade est escrita na nossa cabea, no
nosso cdigo gentico intelectual. O ocidente fez assim com a
diferena: ou a incorpora, ou a marginaliza ou a destri. Ento,
diante da violncia dos europeus na destruio das diferenas,
o que Hitler fez fichinha. Em setenta anos, mataram cem milhes
de pessoas: o maior genocdio da histria. A tal ponto que um
grande historiador chega a dizer: "A igreja catlica at o
juizo final perdeu a moralidade e tambm o direito de defender
direitos humanos. Porque ela com a cruz e a espada ajudou a matar
cerca de cem milhes de ndios, seja pela violncia do trabalho
forado, seja pelas doenas que foram transmitidas, seja
militarmente matando crianas, mulheres, velhos, homens, gente,
cachorro, gato, gado etc." Ento, a nossa dificuldade
ocidental conviver com a diferena, alegrar-se com a diferena,
aprender com a diferena. No tolerar a diferena porque no
d para acabar com ela. No, ver riqueza: a diferena nos
enriquece, nos complementa. Da temos que ser anti-cultural.
Temos que superar uma filosofia e uma ideologia da identidade e
chegar a uma compreenso mais complexa da sociedade humana, dos
seres humanos, das suas diferenas como a natureza faz: a
natureza complexa e diversa e todos convivem consorciados uns
com os outros. Os seres humanos, na cultura ocidental, se
desviaram deste paradigma. Por isso, uma cultura marcada pela
violncia. J Nietzsche dizia isso da alma da cultura ocidental.
a vontade do poder, poder como dominao da natureza, da
classe, dos pobres. Isso est escrito dentro de ns de forma
inconsciente. Se a na escola, na famlia, no cotidiano
cultural que respiramos. Por isso, a nica cultura
conquistadora do mundo. Onde ela vai quer conquistar, se espalha.
Hoje, de forma mais refinada e sutil que pela ocidentalizao
do mundo. A china que muito mais velha, nunca foi pelo mundo
conquistar os outros. A china construiu as grandes muralhas para
ficar dentro. A china tem uma costa quase to extensa como a
brasileira e nunca foi potncia martima para conquistar o
mundo. outra compreenso do mundo. Ns, no: temos fogo no
rabo e queremos sair pelo mundo conquistando e dominando os
demais.
Devemos ser absolutamente crticos
contra ns, porque temos isso dentro de ns, de forma consciente
ou inconsciente. Ento, de sada, botar sob suspeita ns mesmos
e estar aberto o mais possvel diferena e deixar-se marcar:
di, difcil, a comear pela lngua. Falar a lngua
sinal de ter mergulhado na cultura, ter entrado na alma do povo. A
lngua a alma do povo, importante a apropriao da lngua
porque acatado o modo de sentir, de pronunciar o mundo, de
entender a realidade.
Por favor, no se neguem de
ser suos, sejam suos at o fim da vida. Essa a vossa
identidade. Se vocs tentarem esconder isso, mascarao. E
essa diferena importante para ns. Que vocs transmitam a
riqueza de vocs. ei agora uns quatro meses dando aula por l,
e fiquei irado pelo senso democrtico daquele povo. O cidado
conta, o cidado vale, tem centralidade, discutido, quer
dizer, uma democracia que mais que a nossa que delegatcia,
representativa. L mais direta, o cidado fala, vota, decide.
Ns precisamos saber como funciona aquela sociedade. o nico
lugar no mundo onde h uma democracia direta e plebiscitria. Em
nenhum lugar do mundo existe isso. Essa diferena fundamental
para a gente contar. Porque l na base, a nossa luta superar
essa democracia reduzida, a democracia s do voto. Queremos uma
democracia participativa que funcione no dia-a-dia, discutindo,
decidindo juntos. E l, tem uma experincia ocular sobre isso.
Comunicar essa experincia anima o pessoal. Em um lugar do mundo
isso funciona, meu deus do cu. Eu sei que l tambm tem
problemas, manipulao, o sistema do capital etc. Mas a
centralidade do cidado visvel. Quer dizer que h uma
cidadania que conquistada depois de tantos sculos. A diferena
de vocs importante para ns. No mascarem essa diferena.
A incorporao e o enriquecimento na troca das diferenas faz
com que a nossa humanidade seja mais enriquecida, que a nossa
experincia dos seres humanos fique mais rica, porque vemos
formas de a gente sermos humanos, de integrar as relaes, de
viver, de dar sentido vida, no humor, no trabalho, na festa
etc. de uma forma diferente.
Ns que vamos para l
eu estudei na Alemanha -, a gente fica meio represado. O povo srio
demais. Eles tem a ideologia do trabalho, com uma disciplina terrvel.
O meu bonde ava s 5:42. Seu eu chegasse s 5:43, eu perdia
o bonde. Pode cair neve, chuva at no mais poder, mas o bonde
ava s 5:42. Alguns acham timo. Eu acho horrvel. Eu acho
que tem que ter mais flexibilidade, quer dizer: tem que ter o
tempo humano e no o tempo do relgio. O tempo humano assim:
eu o por al, encontro um amigo, e vamos tomar um cafzinho,
atraso no tem importncia. Quer dizer, a vida tem que ter uma
outra lgica que aquela de produo. Na produo, tempo
dinheiro. uma cultura que se fez em cima disso. Ns temos que
aprender um pouco desta seriedade. Mas, em termos de convivncia
humana, temos uma riqueza fantstica. E vocs tem que aprender
um pouco desta flexibilidade brasileira.
Um outro ponto importante
que deve estar na cabea j l na Sua, que o quadro do
mundo est mudado. No mais como antigamente quando contavam
mais os estados-naes. Vamos tomar como marco o ano de 89
quando caiu o muro de Berlim e o prprio imprio sovitico.
Surgiu ao nvel do mundo uma nova condio da humanidade e das
relaes polticas da humanidade que vem sobre o signo da
globalizao. De repente, o mundo ficou homgeneizado pela ordem
do capital. No h mais fronteiras ideolgicas, acabou-se a
guerra fria, e as fronteiras entre os estados-naes ficam cada
vez mais adas. Inclusive, o discurso Norte-Sul que a gente
suscitou aqui, um discurso ainda do velho paradigma que ainda
trabalha com os blocos. Na verdade, mais e mais est se criando a
fase nova do processo de constituio, de fazimento da terra. A
gente pode dizer que a histria da terra e do universo uma espcie
de um grande teatro que tem cinco atos. O primeiro ato o ato csmico,
quando deu aquela exploso e o universo surgiu. O segundo ato
o ato qumico quando de uma das grandes estrelas vermelhas se
formaram os tijolinhos que compem todo o universo. O terceiro
ato quando surge a vida como fenmeno novo enquanto elaborao
da prpria matria que se sofistica. O quarto ato quando
surge o ser humano que um subcaptulo da histria da vida.
Veio a conscincia, a liberdade e a capacidade de voc olhar
tudo isso e pensar: o que que ns estamos fazendo aqui? O que
ns estamos fazendo, um cavalo no pode fazer, uma guia no
pode fazer, um peixe no pode fazer: se reunir, falar, discutir,
planejar. Eles no fazem isso. Eles so desatualizados no
processo evolucionrio. O quinto ato que ns estamos vivendo,
uma etapa nova. a etapa da planetizao: os povos que viviam
isolados nos seus estados e naes, nas suas regies culturais
com suas lendas, de repente esto voltando para a casa comum que
a terra. Se encontram em um nico lugar, todos juntos. E este
lugar um lugar coletivo. o planeta terra. Ento, um
elemento novo da histria do planeta terra. Se ns pensarmos em
termo da "Teoria Gaia", no em termos compartimentados
de culturas e vises de mundo, de repente, a humanidade tem uma
idia coletiva.
E essa idia ocorre em
primeiro lugar pela forma mais perversa que ela tem: o caminho
econmico, a homogenizao dos espaos econmicos, dos
mercados regionais, a continentalizao das economias e a
mundializao do mercado. Agora, vejam, tem uma trampa atrs
disso. 80% dos negcios mundiais so feitos entre o prprio
Norte, entre os pases ricos. 20% entre os demais pases do
mundo. A Amrica Latina entra apenas com 3% neste processo de
mundializao. Ns no contamos. No devemos cair no engodo
deste discurso. o jogo entre eles, entre os grandes poderosos,
as multinacionais e suas filiais. Dos investimentos maiores, quase
90% ocorrem nos pases ricos. l que eles investem. Apenas
10% so investidos nos pases perifricos. Ento, que
mundializao essa? Grande parte da munidalizao no
mundializao, mas a ocidentalizao do mundo, imposio do
modo de viver, do modo de produzir do mundo ocidental. A
mundializao no mundializao: a homogeneizao dos
interesses do capital que vai onde d lucro. Ele a como em um
hotel, ele a por aqui. Fica uma semana, dez dias, para
aproveitar os altos juros e depois vai embora como est
acontecendo no Brasil. Em dois meses, o Brasil perdeu trinta bilhes.
E a cada dia vem perdendo 500 milhes. Somente ontem foram embora
800 milhes. No interessa a eles ficarem aqui. Ns no somos
interessantes para a produo. Somos interessantes apenas para a
especulao. Porque os juros so muito altos, ganham-se
fortunas, e vo embora. Vai eletronicamente pelo comando do
computador e os ttulos vo pra l.
Ento, uma mundializao
profundamente desigual, mas ela tem uma vantagem. Ela est
criando as bases materiais para outro tipo de mundializao.
Significa a criao de redes de comunicao que vo atravs
dos meios de comunicao, da internet, do fax, do jogo eletrnico,
criando base material e tecnolgica que cada vez mais se
homogeneiza. Ento ela cria a base para que haja uma mundializao
que a no s pela economia, mas pela poltica, pelos
encontros trans-culturais etc. Todo mundo est se movimentando.
As culturas esto se encontrando, os valores, as tradies
espirituais, vises de mundo, imaginrios. Entre o ocidente,
oriente, norte e sul, h uma amlgama enorme de valores que esto
se encontrando e, politicamente, alguns dados fundamentais da
conscincia poltica da humanidade esto se universalizando.
Alguns nasceram do ocidente, mas no so do ocidente, so
humanos. Por exemplo o valor absoluto da pessoa humana. A gente no
pode usar a pessoa humana como um meio para testes da
bio-teconologia. O ser humano um ato sagrado. Isto , est
entrando na conscincia mundial que essa pessoa humana tem
direitos inalienveis que no dependem do dinheiro que tem no
bolso ou na conta do banco ou da cor da pele. Pelo fato de ser um
ser humano tem os direitos fundamentais: direito vida e aos
meios da vida: trabalho, alimentao, moradia, educao etc.
Isto est entrando na conscincia coletiva da humanidade. Um
outro valor que est entrando na conscincia coletiva que
devemos preservar esse belo e radiante planeta que est ameaado.
Temos que cuidar disso. Um outro valor que temos que garantir
as condies para o ser humano poder subsistir e poder continuar
a evoluir. Porque h regies no mundo onde o ser humano to
marginalizado e sub-humanizado como a regio ao sul do Saara que
vai at o Paquisto. As pessoas no am de quatro anos de
idade mental. Nem andam mais, se arrastam como animais porque j
so quarenta anos de fome e seca. As crianas j so filhos de
pais famlicos, de avs empobrecidos. Os netos j so quase
animalizados. Nem chegam a cinco anos de idade. No podemos
permitir que a humanidade decaia a tais nveis.
H valores a nvel de
concincia que vo ganhando patamares coletivos. um outro
tipo de mundializao que a pela poltica e, tambm, mais
e mais, uma mundializao que a pela espiritualidade. As
grandes tradies sapienciais da humanidade, das grandes religies,
culturas que vo se intercambiando com o dilogo
ocidente-oriente, uma revisitao da sabedoria dos povos indgenas
que tm uma alta sabedoria ecolgica, das hervas, de uma forma
de integrao cultura-universo. Tudo isso est sendo revisitado
e incorporado. E a humanidade est aprendendo o que significa ser
humano: uno, porque de uma famlia, mas diverso de muitas
formas de manifestao.
A partir desta conscincia
o cooperador que vem aqui no vem s, no meu modo de entender,
para ajudar a quem tem carncia na ordem da produo, do
crescimento, quer dizer, um conceito quase econmico de agir. Ele
vem no sentido de reforar outro tipo de mundializao que
e pela solidariedade da famlia humana. A conscincia que ns
emergimos como espcie ao lado de outras espcies. O ser humano
sapiens e demens porque isso ns somos tambm existe ao
lado de outras espcies de mamferos, de peixes, de insetos.
Somos uns ao lado dos outros, e no somos a nica espcie e no
temos privilgios por termos conscincia de dominar,
submeter e exterminar os outros. A nossa vocao de conviver.
Surge a coscincia que somos uma famlia humana e que existem
membros desta famlia que esto ando fome e necessidades.
Surge, da, um outro tipo de solidariedade com irmos e irms
nossas. Reforamos essa outra globalizao que no a pela
competio, pela concorrncia, pelo mercado dilacerante e
excludente, mas que refora os laos de fraternidade, de
colaborao, de sentir a pele do outro, de vir, de entrar em uma
caminhada, sentir, sofrer junto, caminhar no espo junto,
alegrando-se com suas conquistas, de estar em uma famlia.
Da a importncia que esse
caminho seja de duas mos, no s que vocs vm para c nos
ajudando aqui, mas tambm de gente daqui que vai pra l. Ns l
em Petrpolis temos uma experincia interessante. Uma parceria no
da cidade de Petrpolis mas da sociedade civil de Petrpolis com
a sociedade civil de Bonn, na Alemanha. Em agosto, vm os alemes
para c. Gente da escola, camponses, advogados, juzes,
enfermeiros, mdicos vm para c e participam de nossos
movimentos. Em dezembro e janeiro, quando so as frias nossas,
ns que vamos para l. No representantes, no caso eu que falo
alemo. Mas vai o favelado, o campons para contar as suas
lutas, suas vitrias, suas experincias. So trocas da famlia
humana onde a gente comea a entender as diferenas e caminhamos
juntos constituindo uma cumplicidade na caminhada. E h condies
financeiras hoje para propiciar este tipo de troca porque a, o
caminho completo: ele vai e vem. Ento, como ns aprendemos a
diferena de vocs, eles l podem questionar-se a partir de
nossa diferena. Esse tipo de troca cria o nosso sonho, cria um
outro tipo de mundializao. Essa vai rumo ao futuro. Ela leva a
esperana da humanidade, que vai criando a famlia humana.
Ainda no entrou na nossa
conscincia que somos uma famlia. Ainda trabalhamos no velho
esquema. Voc argentino, voc suo, eu sou brasileiro,
o outro americano. Digo no, ns somos cidados terrenais,
somos cidados planetrios e convergimos na diversidade de
nossas tradies onde experimentamos o que ser humano nas
diversas culturas. Essas diferenas so ricas. Convergimos na
diversidade para pontos comuns que todo mundo deve assumir:
defender o planeta; defender a vida; defender a vida daqueles que
mais sofrem, que so mais ameaados, que so os pobres do
mundo; fazer uma economia mais participativa para que todos possam
beneficiar-se dos avanos tecnolgicos. Convergimos em coisas
comuns, mas cada cultura tem a sua forma de dar alimentos, sua
organizao da produo. Convergimos em pontos bsicos. A
forma de realiz-los diferente nas culturas e tradies. Ento,
a gente tem que incorporar essa mudana que ocorreu, e vir aqui
nesta perspectiva que uma perspecitva meio mstica.
A gente tem que ter grandes
sonhos. Hoje a luta no por ideologia. Faz a luta quem tem o
melhor sonho para a humanidade. Se uma sociedade no tem sonhos,
ela afunda em seus interesses e se acaba no marasmo de quem
disputa o poder. Uma sociedade tem que ter sonhos. Ns, hoje,
temos que ter sonhos grandes. So os sonhos que orientam, o sonho
da humanidade conciliada, sensvel, ecologicamente centrada, que
se sente famlia humana, que se compadece com quem sofre. o
sonho de Che Guevara, que o sonho de todo socialista: ser sensvel
a cada grito de quem precisa de vida, mas no s o grito dos
humanos, mas tambm o grito de outros seres. Todo mundo grita
porque quer continuar a viver e est ameaado.
Essa sensibilidade, essa
nova sintonia exige um novo estado de conscincia do cooperador e
do voluntrio. uma coisa que pode ser feita j antes de vir
para o Brasil. Quando a pessoa vem, ela j vem armada e
enriquecida com a troca, vem despojada. E quanto mais ela
despojada, quanto mais ela for flexvel, mais ela recebe marcas e
se enriquece. E marca tambm os outros nessas idas e vindas.
Um outro ponto me parece
importante. Quase sempre, os cooperadores vem numa perspectiva, eu
sei que meio reducionista dizer isso, de ajudar os
economicamente empobrecidos, seja no nvel da produo, seja no
nvel da organizao das comunidades. Por isso, o conceito de
pobre marginalizado e carente importante. Agora, h neste pas
uma pobreza que no econmica, mas uma pobreza poltica.
Essa pobreza poltica a causa secreta porque existe pobreza
econmica. Eu acho que um desafio novo dos voluntrios ajudar
a criar duas coisas que fazem uma falta terrvel neste pas: o
enriquecimento poltico, primeiro, que ajudar a criar o povo
brasileiro. Ns no temos um povo brasileiro. Temos uma massa de
sobreviventes da grande tribulao que j tem quinhentos anos,
que aqui veio no estado colonialista com seus funcionrios e uma
imensa massa de explorados, escravos, produtores, mas nunca um
povo. O povo brasileiro est nascendo ainda. Por isso, to fcil
ganhar eleies e manipular as massas. Surge um povo quando
dentro desta massa comeam a surgir comunidades e movimentos
sociais. Se no houver grupos que se encontram, nunca nasce um
povo. O povo a articulao de movimentos, grupos, sindicatos,
comunidades que se relacionam entre si, elaborando uma conscincia,
lanando um projeto, estabelecendo as estratgias e as tticas.
A partir dos anos 60, em toda a Amrica Latina, com a efervescncia
dos movimentos, surgiram lderes carismticos, uma rede imensa
de movimentos. Foi-se criando uma base para que surgisse o povo
brasileiro com a conscincia de um projeto nacional aberto para
fora, enraizado aqui no local. A importncia de um projeto
nacional com uma economia que tenha um mercado interno que atenda
as nossas necessidades e, ao mesmo tempo, articulada com o planetrio.
Ajudar a criar um povo brasileiro na medida em que a gente refora
as comunidades, a gente entra por esses caminhos j andados por
este povo. Que a gente seja um fator de aglutinao, de reforo
desse esprito comunitrio, e no apenas de algum que vai
prestar um servio mesmo qualificado tecnicamente, mas sem essa
conscincia desse enriquecimento poltico de combater a pobreza
poltica que existe nesse pas.
O segundo que me parece
importante como ajuda a criar uma democracia integral que
outra coisa que muito reduzida neste pas. Com se sabe, a
democracia assenta em cima de quatro pernas como uma mesa. A
primeira perna a participao. Pela participao as pessoas
se sentem cidados, ajuda a falar, a pensar, a decidir. Quanto
mais se participa, mais comea surgir o esprito democrtico.
Sem participao, no h democracia ou uma democracia que s
ocorre, de quatro em quatro anos, quando temos o direito de
escolher o nosso ditador que o presidente e os nossos
deputados. Depois eles vo l para o parlamento, esquecem o povo
e fazem as suas polticas l em cima. Pela participao, no.
Continuamente estamos questionando, discutindo. A participao
exige informao para voc poder decidir. A informao tem
que circular nas comunidades, na leitura de pequenos textos
melhorando a conscincia das pessoas.
Quanto mais participao
houver, mais igualdade haver. Essa a segunda perna. A
igualdade nunca o ideal que voc atinge diretamente. A
igualdade resulta do processo de participao. A igualdade
consequncia da participao. Quanto mais as pessoas
participam, mais igualitrias elas se fazem: na palavra, na deciso,
na apropriao das formas de conhecimento. A igualdade se alcana
pela acentuao da participao.
A terceira perna o
respeito s diferenas. Porque h o risco de criar uma
democratizao numrica que no faz diferena de etnia, de
viso de mundo, de religio, de gnero: as mil diferenas que
temos. preciso respeitar as diferenas, aprender com as
diferenas, conviver com elas. A democracia exatamente a arte
de articular as diferenas.
A quarta perna o elemento
do novo paradigma. O ser humano no s tem corpo, no s tem
psique. um ser tambm espiritual. o ser da comunicao. S
podemos salvaguardar o planeta e criar uma democracia plena se ns
introduzirmos espiritualidade. Isto , a capacidade de comunho
do ser humano. Sair de si, estabelecer laos com o outro,
conviver com a diferena, comungar com outros destinos, ser solidrio
com quem sofre, empenhar-se, protestar contra esses mecanismos que
acrescentam cruzes nas costas do povo. Essa dimenso espiritual
que tipicamente humana, tem que ter espao na democracia para
ela ser mais enriquecida, mais humana.
Ajudar a criar essa
democracia como democracia integral. Ela surge de baixo, das
comunidades, dos movimentos e vai incorporando as prticas e os
valores do povo. Uma democracia de baixo, popular, integradora de
todo mundo, para criar uma sociedade onde todo mundo possa caber.
Na nossa sociedade h quarenta milhes de excludos,
considerados zeros econmicos, que no contam para nada. Um
desafio que eu cobraria dos cooperadores ajudar a criar essa
riqueza poltica. No que vocs vo hegemonizar isso. Mas
suscitar e reforar essas questes, ser aliados que colocam que
temos que ter em mente essa dimenso poltica de ajudar a criar
o povo brasileiro e que ele nasa democraticamente participativo.
Isso no existe ainda e a grande demanda da sociedade mundial.
Um outro elemento que me
parece importante o que chamamos aqui no Brasil de a educao
da prxis. Quer dizer, todo trabalho com o povo implica em uma
pedagogia popular. No adianta boa vontade. Tem que incorporar
certos caminhos pedaggicos. Eu mesmo, quando mexia mais com as
comunidades, com a Marcia, l em Petrpolis, muita gente da
esquerda fugindo da represso poltica vinham e diziam: "Eu
posso participar?" Muitos estudantes na universidade diziam:
"Eu posso ir para a favela? Como eu me incorporo no
grupo?" Eu respondia: "Voc no vai entrar l. Porque
voc entra cheio de preconceitos como classe dominante, como
burgus. Voc primeiro vai ler dois livros. Voc vai primeiro
ler Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. Vai estudar isso. E vai
ler Paulo Freire, A Educao como Prtica da Liberdade para voc
se descobrir como opressor, para voc ir desarmado l e para voc
se incorporar na caminhada do povo." Todo voluntrio que vem
ao Brasil pode vir desde que trabalha Paulo Freire j l na Sua.
Leiam, por favor, esses dois livros. Outro texto belssimo de
Paulo Freire a Pedagogia da Esperana que fala do desafio de
suscitar a esperana no povo. No a esperana das igrejas, a
esperana escatolgica. Mas a esperana poltica, pedaggica,
democrtica, esperanas concretas que vo surgindo na luta e
que vocs tem mil razes para continuar a lutar. Qual a chave
da pedagogia da prtica. A chave da educao da prxis
ajudar o povo a pensar aquilo que ele est fazendo. No s
incorporar novos conhecimentos. ele pensar aquilo que est
fazendo, quer dizer, chegar quela unio de teoria e prtica.
Primeiro, uma tarefa de
apropriar-se do saber que est al no caminho acumulado pela
sociedade. A vocs podem dar um importante contribuio. Vocs
tem um saber mais qualificado. E o povo precisa de um saber
profissional. Porque h uma carncia enorme deste saber
profissional. E vocs tem que socializar isso. importante
socializar. Mas, de outro lado, fundamental que vocs escutem
a sabedoria do povo, tentando melhor-la, reando aquilo que
vocs acumularam e trouxeram. E Paulo Freire, especialmente em
sua ltima fase, insitia muito em afirmar que tem que existir uma
dialogao, uma interlocuo entre professor e aluno. Mas o
professor nunca deve esquecer que ele o professor, que ele
carrega uma experincia pedaggica e ele tem que saber dosar,
introduzir seus alunos, estar sempre aberto a tudo que o aluno
traz, suas experincias de vida, estar aberto para captar,
sintetizar e aproveitar isso. Importa fazer uma troca de saberes.
Vocs trazem o saber mais qualificado, mais acadmico,
especializado, codificado. Esse saber muito importante. Ele
efetivo e transformou a paisagem humana. Mas nunca depreciar, ao
contrrio, valorizar o saber popular. O nosso saber mais
racional, feito da crtica, da acumulao feita pela sociedade,
dentro de bibliotecas, escolas, universidades. O saber popular
feito dentro da experincia, feito de sofrimento, de oralidade,
acumulado na tradio dos pais e avs. Ele um outro tipo de
saber, mas tambm um saber. Da a importncia da troca de
saberes. Porque ns podemos aprender muita coisa do povo. Por
isso, no podemos ter aquela falsa humildade de dizer: "No,
eu no sei nada. Eu s quero escutar. Eu no falo nada." H
momentos em que devemos falar, devemos dizer, mas de uma forma
pedaggica que nunca humilhe o outro. Quando o povo fala, eu
anoto tudo para incorporar cada frase, cada expresso. No s
para valorizar, mas tambm para devolver a ele a auto-estima. H
um dficit de auto-estima fantstico neste pas. Porque foi
colonizado, escravizado, sempre marginalizado, tratado sempre como
jeca-tat, como gente que no presta. Existe uma enorme idealizao
do Primeiro Mundo e h um enorme dficit de auto-estima. Por
isso, a importncia de envolver a auto-estima, valorizando tudo
que o povo produz e faz, sua sabedoria, suas frases. A o povo
diz, puxa eu tambm sei. E a pessoa se sente envolvida. Temos que
ter muito presente isso: envolver a dignidade do povo que foi
muito massacrado e continua sendo massacrado. A condio da
cidadania no somente a relao do indivduo com o Estado,
mas a articulao de movimentos, grupos unidos com outros
grupos, criando uma com-cidadania, no esperando do Estado nada,
mas cobrando do Estado tudo. Porque o Estado a delegao do
poder pblico. Ele tem que fazer as coisas. No entanto, a maioria
se considera pedinte diante do Estado como se ele fizesse um favor
de ajudar com projetos e destinar verbas. Este dinheiro nosso.
preciso cobrar do Estado para que ele cumpra sua funo
social. E isso s possvel, se o povo tem conscincia cidad,
tem auto-estima e coragem para discutir com o governo, combatendo
a cultura do silncio. O povo foi habituado a escutar. Foi
condenado a escutar sempre e no est acostumado a falar. Paulo
Freire chamou ateno do fato de o povo falar baixo. Porque quem
fala alto o patro. Todo aparato simblico para calar o
povo.
Por fim, este trabalho s
possvel, se a gente tem uma certa mstica. Porque o trabalho
com o povo muito pobre, palafitados, favelados cujas relaes
sociais so degradadas em uma grande desumanizao, muito
duro. Para levar avante um trabalho deste tem que ter mais que tcnica,
mais do que saber. Tem que ter um fogo interior, tem que ter uma
viso mstica: acreditar na pessoa humana, no ser humano, nos
valores humanos e acreditar que, no fundo, amo essa pessoa porque
vejo nascer dentro dela o Deus que est nascendo que aparece na
forma de entusiasmo, dignidade. Deus est cruzificado na maioria
da populao mundial, que morre antes do tempo, que so os
condenados da terra. Temos que resgatar a dignidade para fazer a
melhor liturgia que podemos fazer: resgatar a esperana que est
sendo negado pela sociedade humana.
So algumas dimenses que
esto presentes em nosso trabalho de idas e vindas. E quando vocs
voltarem, sejam representantes desta nova humanidade. L na Sua,
sejam os operadores de mudanas, de uma nova conscincia, de
novos temas, de uma nova mundializao. A, j no haver
mais Norte e Sul, haver cada vez mais uma humanidade que est
convergindo em uma conscincia mais globalizadora no destino
comum deste planeta que ns devemos preservar e, tambm, de uma
forma que produza mais alegria de vivermos a vida, no no vale de
lgrimas, sofrendo e tentando de diminuir o sofrimento, mas como
filhos e filhas da alegria de viver no planeta que vale a pena
pela sua beleza e por sua grandeza."