Fundamentalismo
4f322o Leonardo Boff
Hoje se fala muito de
fundamentalismo. Fundamentalismo do mercado e do projeto neoliberal,
fundamentalismo cristo, fundamentalismo islmico, principal responsvel
pelos atentados de 11 de setembro, fundamentalismo das posturas polticas
e blicas do Presidente Bush. Tentemos esclarecer o leitor o que seja
fundamentalismo e o risco que representa para a pacfica convivncia
humana e para o futuro da humanidade.
O nicho do fundamentalismo
se encontra no protestantismo americano, surgido nos meados do sculo
19 e formalizado, posteriormente, numa pequena coleo de livros que
vinha sob o ttulo Fundamentals: a testimony of the Truth (1909-1915).
Trata-se de uma tendncia de fiis, pregadores e telogos que tomavam
as palavras da Bblia ao p da letra (o fundamento de tudo para a f
protestante a Bblia). Se Deus consignou sua revelao no Livro
Sagrado, ento tudo, cada palavra e cada sentena, devem ser
verdadeiras e imutveis. Em nome do literalismo, esses fiis
opunham-se s interpretaes da assim chamada teologia liberal. Esta
usava e usa os mtodos histrico-crticos e hermenuticos para
interpretar textos escritos h 2-3 mil anos. Supe-se que a histria
e as palavras no ficaram congeladas. Precisam ser interpretadas para
resgatar-lhes o sentido original. Esse procedimento para os
fundamentalistas ofensivo a Deus. Por razes semelhantes, eles se opem
aos conhecimentos contemporneos da histria, das cincias, da
geografia e especialmente da biologia que possam questionar a verdade bblica.
Para o fundamentalista, a
criao se realizou mesmo em sete dias. O cristianismo detm o monoplio
da verdade revelada. Jesus o nico caminho para a salvao. Fora
dele h somente perdio. Da o carter militante e missionrio de
todo fundamentalista. Face aos demais caminhos espirituais ele
intolerante, pois eles significam simplesmente errncia. Na moral
especialmente rigoroso, particularmente no que concerne sexualidade e
famlia. contra os homossexuais, o movimento feminista e os
movimentos libertrios em geral. Na economia conservador e na poltica
sempre exalta a ordem e a segurana a qualquer custo.
O fundamentalismo
protestante ganhou relevncia social a partir dos anos 50 com as
Eletronic Church. Pregadores nacionalmente famosos usam o rdio e a
televiso em cadeia para suas pregaes e campanhas conservadoras.
Sob Ronald Reagan, significaram um fator poltico determinante.
Combatem abertamente o Conselho Mundial de Igrejas em Genebra (que rene
mais de duas centenas de denominaes crists) e todo tipo de
ecumenismo, tidos como coisa do diabo.
O catolicismo possui tambm
seu tipo de fundamentalismo. Ele vem sob o nome de Restaurao e
Integrismo. Procura-se restaurar a antiga ordem, fundada no casamento
(incestuoso) do poder poltico com o poder clerical. Visa-se uma
integrao de todos os elementos da sociedade e da histria sob a
hegemonia do espiritual representado, interpretado e proposto pela
Igreja Catlica (seu corpo hierrquico encabeado pelo Papa). O
inimigo a combater a modernidade, com suas liberdades e seu processo
de secularizao. Expresses do Integrismo modernamente o Cardeal
Josef Ratzinger, presidente da antiga Inquisio, que sustenta ainda a
tese de que a Igreja Catlica a nica Igreja de Cristo, tambm a
nica religio verdadeira, fora da qual no todos correm risco de
perdio. Ou o arcebispo Marcel Lefebvre, que fundou sua Igreja
paralela, considerada a fiel detentora da Tradio e da f
verdadeiras. Caractersticas fundamentalistas se encontram tambm em
setores importantes do pentecostismo, tambm catlico e nas igrejas
evangelicais populares.
Intolerncia -No uma
doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. a atitude
daquele que confere carter absoluto ao seu ponto de vista. Sendo
assim, imediatamente surge um problema de graves conseqncias: quem
se sente portador de uma verdade absoluta no pode tolerar outra
verdade e seu destino a intolerncia. E a intolerncia gera o
desprezo do outro e o desprezo, a agressividade e a agressividade, a
guerra contra o erro a ser combatido e exterminado. Irrompem guerras
religiosas, violentssimas, com incontveis vtimas.
No h nenhuma religio
mais guerreira que a tradio dos filhos de Abrao: judeus, cristos
e muulmanos. Cada qual vive da convico tribalista de ser povo
escolhido e portador exclusivo da revelao do Deus nico e
verdadeiro. Essa f deve ser difundida em todo o mundo, em geral numa
articulao com o poder colonialista e imperial, como historicamente
ocorreu na Amrica Latina, frica e sia.
O fundamentalismo, como
atitude e tendncia, se encontra em setores de todas as religies e
caminhos espirituais. Hoje em dia, o fundamentalismo judeu se centra na
construo do Estado de Israel segundo o tamanho que lhe atribui Bblia
hebraica. O fundamentalismo islmico quer fazer do Alcoro a nica
forma de vida, de moral, de poltica e de organizao do Estado entre
os islmicos e em todo o mundo. Todos os que se opem a essa viso de
mundo so obstculos instaurao ''da cidade de Deus'' e conseqentemente
so infiis e merecem ser perseguidos e eventualmente eliminados.
Verdade -O fundamentalismo no possui apenas um rosto religioso. Todos
os sistemas sejam culturais, cientficos, polticos, econmicos e artsticos
que se apresentam como portadores exclusivos de verdade e de soluo
nica para os problemas devem ser considerados fundamentalistas.
Vivemos atualmente sob o imprio feroz de vrios fundamentalismos.
O primeiro e mais visvel
de todos o fundamentalismo da ideologia poltica do neoliberalismo,
do modo de produo capitalista e de sua melhor expresso, o mercado
mundialmente integrado. Ele se apresenta como a soluo nica para
todos os pases e para todos as carncias da humanidade (todos
precisam de um necessrio choque de capitalismo, diz-se
fundamentalisticamente). A lgica interna deste sistema, entretanto,
ser acumulador de bens e servios, por isso, criador de grandes
desigualdades (injustias), explorador ou dispensador da fora de
trabalho e predador da natureza. Ele apenas competitivo e nada
cooperativo. Politicamente democrtico, economicamente
ditatorial. Por isso a economia capitalista destri continuamente a
democracia participativa. Onde se implanta, a cultura capitalista cria
uma cosmoviso materialista, individualista e sem qualquer freio tico.
H tericos que apresentam essa etapa como o fim da histria. Para
ela no haveria alternativa. Urge inserir-se nela. Caso contrrio
perde-se o ritmo da histria. A condenao a marginalidade ou a
excluso. Eis o pensamento nico e a ditadura da globalizao
especialmente econmico-financeira (considero esta etapa como a idade
de ferro da globalizao), hegemonizada pelas potncias ocidentais.
Outro tipo de
fundamentalismo comparece no paradigma cientfico moderno. Ele est
assentado sobre a violncia contra a natureza. Bem dizia Francis Bacon,
pai da moderna metodologia cientfica: h de se torturar a natureza
como o faz o inquisidor com seu inquirido, at que ela entregue todos
os seus segredos. Impe-se esse mtodo, fundado no corte e na
compartimentao da realidade una e diversa, como a nica forma aceitvel
de o ao real. Desmoralizam-se outras formas de conhecimento que vo
alm ou ficam aqum dos caminhos da razo instrumental-analtica.
Ocorre que o projeto da tecnocincia gestou o princpio da autodestruio
da vida. A mquina de morte j construda pode pr fim biosfera e
impossibilitar o projeto planetrio humano. Na guerra bacteriolgica,
basta meio quilo de toxina do botulismo para matar 1 bilho de pessoas.
Bin Laden - Nos dias atuais
assistimos, estarrecidos, a dois tipos de fundamentalismo poltico. Um
representado pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e outro
por Osama Bin Laden. O presidente americano urde seus discursos no
melhor cdigo fundamentalista: A luta do bem (Amrica) contra o mal
(terrorismo islmico). Ou se contra o terrorismo e pela Amrica ou
se a favor do terrorismo e contra a Amrica. No h matizes nem
alternativas. O ataque terrorista no foi contra os Estados Unidos mas
sim contra a humanidade, na suposio que eles so a prpria
humanidade. O projeto inicial de guerra se chamava Justia Infinita,
termo que usurpa a dimenso do Divino. Depois com menor arrogncia,
mas na linguagem da utopia, chamou-se de Liberdade Duradoura. Termina
suas intervenes com ''God saves America. H dezenas de anos que a
poltica exterior dos Estados Unidos maltrata as naes rabes
fazendo pacto com governantes despticos (alguns emirados rabes nem
constituio possuem) em razo da garantia do suprimento de petrleo.
A partir de 1991, por ocasio da guerra contra o Iraque, j morreram
naquele pais cerca de 1 milho de crianas por causa do embargo que
atinge os suprimentos medicinais e 5% da populao foi morta em sistemticos
bombardeios.
A atuao no conflito
entre Israel e os palestinos a posies dos Estados Unidos
visivelmente unilateral, em favor dos ataques devastadores que a mquina
de guerra israelense move contra a populao palestina que usa pedras
(intifada). A Arbia Saudita ocupada por uma poderosa base militar
americana, territrio sagrado do islamismo onde se situam as duas
cidades santas Meca e Medina. Tal fato para a f islmica to
vergonhoso quanto um catlico tolerar a Mfia no governo do Vaticano.
Coisas assim acumulam amargura, ressentimento, revolta e vontade de
vindita. o fermento do terrorismo muulmano cujos efeitos nefastos
todos assistimos e condenamos.
No menos fundamentalista
a retrica dos talibs e de Osama Bin Laden. Este tambm coloca a
guerra entre o bem (islamismo) e o mal (a Amrica). Em seu famoso
discurso aps o atentado, divide o mundo entre dois campos: o campo dos
fiis e o campo dos infiis. ''O chefe dos infiis internacionais, o
smbolo mundial moderno do paganismo, a Amrica e seus aliados.'' O
atentado terrorista significa que ''a Amrica foi atacada por Deus em
um dos seus rgos vitais - Graa e gratido a Deus''. A cultura
ocidental como um todo vista como materialista, atia, secularista,
anti-tica e belicista. Da a recusa em dialogar com ela e a vontade
de estrangul-la em nome do prprio Al.
Em nome de que Deus ambos falam? No seguramente em nome do Deus da
vida, de Al, o Grande e Misericordioso, nem em nome do Pai de Nosso
Senhor Jesus Cristo, da ternura dos humildes e da opo pelos
oprimidos. Falam em nome de dolos que produzem mortes e vivem de
sangue.
prprio do
fundamentalismo responder terror com terror, pois se trata de conferir
vitria nica verdade e ao bem e destruir a falsa ''verdade'' e o
mal. Foi o que ambos, Bush e Bin Laden fizeram. Enquanto predominarem
tais fundamentalismos seremos condenados intolerncia, violncia
e guerra e, no termo, ameaa de dizimao da biosfera.
Cegos - No se h de
sorrir nem de chorar. Mas de procurar entender. Todos os
fundamentalismos, no obstante o variado matiz, possuem as mesmas
constantes. Trata-se sempre de um sistema fechado, feito de claro e de
escuro, inimigo de toda diferenciao e cego face lgica do arco-ris,
em que a pluralidade convive com a unidade. Cada verdade se encontra
indissoluvelmente concatenada outra. Questionada uma, desaba todo o
edifcio. Da a intolerncia e a lgica linear. Da sua fora de
atrao para espritos sedentos de orientaes claras e de
contornos precisos. Para o fundamentalista militante a morte doce,
pois transporta o mrtir diretamente ao seio materno de ''Deus'',
enquanto a vida vivida como oportunidade de cumprir a misso divina
de converter ou exterminar os infiis. O grupo o lar da identidade,
o porto da plena segurana e a confirmao de estar do lado certo.
Como enfrentar os fundamentalistas? Estes so praticamente inveis
argumentao racional. Nem por isso deve-se renunciar ao dilogo,
tolerncia e o uso da razo para mostrar as contradies
internas, subjacentes ao discurso e prtica fundamentalista. Por
detrs do fundamentalismo poltico vigora uma experincia dolorosa de
humilhao e de prolongado sofrimento. E procura-se infligir a mesma
coisa ao outro, o que manifestamente contraditrio. Trazer o
fundamentalista realidade concreta, cheia de contradies,
claro-escuros e nuances pode introduzir nele a dvida e a insegurana.
Estas possuem uma funo teraputica. Podem abrir uma brecha para a
luz no muro das convices cerradas e excludentes. Dialogar at a
exausto, negociar at o limite intransponvel da razoabilidade, pode
levar o fundamentalista a reconhecer o outro, seu direito de existir e a
contribuio que poder dar para uma convergncia mnima na
diversidade.
Estamos numa encruzilhada
da histria humana. Ou criar-se-o relaes multipolares de poder,
eqitativas e inclusivas com pesados investimentos na qualidade total
da vida para que todos possam comer, morar com mnima dignidade e
apropriar-se de cultura com a qual se possam comunicar com seus
semelhantes, preservando a integridade e beleza da natureza ou iremos ao
encontro do pior, quem sabe, ao mesmo destino dos dinossauros. Armas
para isso existem e sobra demncia. Faz-se urgente mais sabedoria que
poder e mais espiritualidade que acmulo de bens matrias. Ento os
povos podero se abraar como irmos na mesma Casa Comum, a Terra, e
irradiaremos como filhos da alegria e no como condenados ao vale de lgrimas.
Leonardo Boff, 1938, telogo e escritor,autor de A orao de So
Francisco: uma mensagem de paz para o mundo atual (Sextante)
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