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SABER
CUIDAR: TICA
DO HUMANO
Introduo
1.
Cuidado com o nosso nico planeta
2.
Cuidado com o prprio nicho ecolgico
3.
Cuidado com a sociedade sustentvel
4.
Cuidado com o outro,
animus e anima
5.
Cuidado com os pobres, oprimidos e excludos
6.
Cuidado com nosso corpo na sade e na doena
7.
Cuidado com a cura integra do ser humano
8.
Cuidado com a nossa alma, anjos e os demnios interiores
9.
Cuidado com o nosso esprito, os grandes sonhos e Deus
10.
Cuidado com a grande travessia, a morte
Introduo
Retomamos
a reflexo sobre a natureza do cuidado essencial. A porta de
entrada no pode ser a razo calculatria, analtica e
objetivista. Ela nos levaria ao trabalho-interveno-produo
e a nos aprisionaria. As mquinas e os computadores so mais
eficazes do que ns na utilizao deste tipo de razo-trabalho.
H
algo nos seres humanos que no se encontra surgido h milhes
de anos no processo evolutivo quando emergiram os mamferos,
dentro de cuja espcie nos inscrevemos: o sentimento, a
capacidade de emocionar-se, de envolver-se, de afetar e de
sentir-se afetado.
Um
computador e um rob no tm condies meio de cuidar do
ambiente, de chorar sobre as desgraas dos outros e de
rejubilar-se com a alegria do amigo. Um computador no tem corao.
S
ns humanos podemos sentar-nos mesa com o amigo frustrado,
colocar-lhe a mo no ombro, tomar com ele um copo de cerveja e
trazer-lhe consolao e esperana. Construiu o mundo a partir
de laos afetivos. Esses laos tornam as pessoas e as situaes
preciosas, portadoras de valor. Preocupamo-nos com elas. Tomamos
tempo para dedicar-nos a elas. Sentimos responsabilidade pelo lao
que cresceu entre ns e os outros. A categoria cuidado recolhe
todo esse modo de ser. Mostra como funcionamos enquanto seres
humanos humanos.
Da
se evidencia que o dado originrio no o logos, a razo e as
estruturas de compreenso, mas o pathos,
o sentimento, a capacidade de simpatia e empatia, a dedicao,
o cuidado e a comunho com o diferente. Tudo comea com o
sentimento. o sentimento que nos faz sensveis ao que est
nossa volta, que nos faz desgostar. o sentimento que nos une s
coisas e nos envolve com as pessoas. o sentimento que produz
encantamento face grandeza dos cus, suscita venerao
diante da complexidade da Me-Terra e alimenta enternecimento
face fragilidade de um recm-nascido.
Recordemos
a frase do Pequeno Prncipe de Antoine de Saint Exupry, que fez
fortuna na conscincia coletiva dos milhes de leitores: E
com o corao (sentimento) que se v corretamente; o essencial
invisvel aos olhos. E o sentimento que torna pessoas,
coisas e situaes importantes para ns. Esse sentimento
profundo, repetimos, se chama cuidado. Somente aquilo que ou
por uma emoo, que evocou um sentimento profundo e provocou
cuidado ns, deixa marcas indelveis e permanece
definitivamente.
A
reflexo contempornea resgatou a centralidade dos sentimento, a
importncia da ternura, da compaixo e do cuidado, especialmente
a partir da psicologia profunda de Freud, Jung, Adler, Rogers e
Hillman, e hodiernamente a partir da biologia gentica e das
implicaes antropolgicas da fsica quntica la Niels Bohr
(1885-1962) la Werner Heisenberg (1901-1976).
Mais
do que o cartesiano cogito ergo sumi*: penso, logo existo, vale o
sentio ergo sum: sinto, logo existo. O livro de Daniel Goleman,
Inteligncia Emocional, transformou-se num best-seller mundial
porque, base de investigaes empricas sobre o crebro e a
neurologia, mostrou aquilo que j Plato (427-347 aC), Santo
Agostinho (354-430), a escola franciscana medieval com S.
Boaventura e Duns Scotus no sculo XIII, Pascal (1623-1662),
Schleiermacher (1768-1834 e Heidegger (1889-1976) ensinaram h
muito tempo: a dinmica humano o pathos, o sentimento, o
cuidado, a lgica do corao. A mente racional -
conclui Golemnan - leva um ou dois momentos mais para registrar
e reagir do que a mente emocional, o primeiro impulso... do
corao, no da cabea.
Agora
estamos em melhores condies para entender, em profundidade, a
fbula-mito de Higino sobre o cuidado. to essencial que
anterior ao esprito infundido por Jpiter e ao corpo fornecido
pela Terra. Portanto, a concepo de como composto de esprito-corpo
no originria. A fbula diz: O cuidado foi quem primeiro
moldou o ser humano. O cuidado se encontra antes, um a prior
ontolgico, est na origem da existncia do ser humano. E essa
origem no apenas um comeo temporal. A origem tem um sentido
filosfico de fonte donde brota permanentemente o ser. Portanto,
significa que o cuidado constitui, na existncia humana, uma
energia que jorra ininterruptamente em cada momento e circunstncia.
Cuidado aquela fora originante que continuamente faz surgir o
ser humano. Sem ela, ele continuaria apenas uma poro de argila
como qualquer outra margem do rio, ou um esprito angelical
desencarnado e fora do tempo histrico.
Foi
com cuidado que Cuidado moldou o ser humano. empenhou a
dedicao, ternura, devoo, sentimento e corao. E com
isso criou responsabilidades e fez surgir a preocupao com o
ser que ele plasmou. Essas dimenses, verdadeiros princpios
constituintes, entraram na composio do ser humano. Viraram
carne e sangue. Sem tais dimenses, o ser humano jamais seria
humano. Por isso, a fbula-mito de Higino termina enfatizando que
cuidado acompanhar o ser humano ao largo de toda a sua vida, ao
longo de todo o temporal no mundo.
Um
psicanalista atento ao drama da civilizao moderna como o
norte-americano RolIo May podia comentar: Nossa situao a
seguinte: na atual confuso de episdios racionalistas e tcnicos
perdemos de vista e nos despreocupamos do ser humano; precisamos
agora voltar humildemente ao simples cuidado... o mito do
cuidado e creio, muitas vezes, somente ele que nos permite
resistir ao cinismo e apatia que so as doenas psicolgicas
do nosso tempo.
O
que nossa civilizao precisa superar a ditadura do
modo-de-ser-trabalho-produo-dominao. Ela nos mantm refns
de uma lgica que hoje se mostra destrutiva da Terra e de seus
recursos, das relaes entre os povos, das interaes entre
capital e trabalho, de espiritualidade e de nosso sentido de
pertena a um destino comum. Libertados dos trabalhos estafantes
e desumanizadores, agora feito pelas mquinas automticas,
recuperaramos o trabalho no seu sentido antropolgico originrio,
como plasmao da natureza e com atividade criativa, trabalho
capaz de realizar o ser humano e de construir sentidos cada vez
mais integradores com a dinmica da natureza
Importa
colocar cuidado em toda Para isso urge dimenso desenvolver a
dimenso que est em ns. Isso significa: conceder a cidadania
nossa capacidade de sentir o outro, de ter compaixo com todos
os seres que sofrem, humanos e no humanos, de obedecer mais lgica
do corao, da cordialidade e da gentileza do que lgica da
conquista e do uso utilitrio das coisas.
Dar
centralidade ao cuidado no significa deixar de trabalhar e de
intervir no mundo. Significa renunciar vontade de poder que
reduz tudo a objetos, desconectados da subjetividade humana.
significa recusar-se a todo despotismo e a toda dominao.
Significa impor limites obsesso pela eficcia a qualquer
custo. Significa ditadura da racionalidade fria e abstrata para
dar lugar ao cuidado. Significa organizar o trabalho em sintonia
com a natureza e suas indicaes. Significa respeitar a comunho
que todas as coisas entretm entre si e conosco. Significa
colocar o interesse coletivo da sociedade, da comunidade bitica
e terrenal acima exclusivamente humanos. Significa colocar-se
junto e ao p de cada coisa que queremos transformar para que ela
no sofra, no seja desenraizada de seu habitat e possa manter
as desenvolver-se e co-evoluir junto com seus ecossistemas e com a
prpria Terra. Significa captar a presena do Esprito para alm
dos nossos limites humanos, no universo, nas plantas, nos
organismos vivos, nos grandes smios gorilas, chimpanzs e
orangotangos,
Estes
so os antdotos ao sentimento de abandono que os pobres e os
idosos sentem. Estas so as medicinas contra o descuido que os
excludos, os desempregados, os aposentados, os idosos e os
denunciam na maioria das instituies pblicas. Elas se
preocupam cada vez menos com o ser humano e se ocupam cada vez
mais com a economia, com as bolsas, com os juros, com o
crescimento ilimitados de bens e servios materiais, apropriados
pelas classes privilegiadas custa da dignidade e da compaixo
necessrias face s carncias das grandes maiorias. Este o
remdio que poder impedir a devastao da biosfera e o
comprometimento do frgil equilbrio de Gaia. Este o
modo-de-ser que resgata a nossa humanidade mais essencial.
1.
Cuidado com o nosso nico planeta
Cuidado
todo especial merece nosso planeta Terra. T unicamente ele para
viver e morar. E um sistema de sistemas e superorganismo de
complexo equilbrio, urdido ao longo de m e milhes de anos. Por
causa do assalto predador do processo industrialista dos ltimos
sculos esse equilbrio est prestes a romper-se em cadeia.
Desde o comeo da industrializao, no sculo XVIII a populao
mundial cresceu 8 vezes, consumindo mais e recursos naturais;
somente a produo, baseada na explorao da natureza, cresceu
mais de cem vezes. O agravamento deste quadro com a mundializao
do acelerado processo produtivo faz aumentar a ameaa e,
consequentemente, a necessidade de um cuidado es com o futuro da
Terra.
Parca
a conscincia que pesa sobre o nosso belo planeta. Os que
poderiam conscientizar a humanidade desfrutam gaiamente a viagem
em seu Titanic de iluses. Mal sabem que podemos ir ao encontro
de um iceberg ecolgico que nos far afundar celeremente.
Trgico
o fato de que faltam instncias de gerenciamento global dos
problemas da Terra. A ONU possui cerca de 40 projetos que tratam
de problemas globais, como os climas, o desflorestamento, a
contaminao do ar, dos solos e das guas, a fome, as
epidemias, os problemas dos jovens, dos idosos, as migraes,
entre outros. Ela regida pelo velho paradigma das naes
imperialistas que vem os estados-blocos de poder mas no
descobriram ainda a Terra como objeto de cuidado, de uma poltica
coletiva de salvao terrenal.
Para
cuidar do planeta precisamos todos a alfabetizao ecolgica
e rever nossos hbitos de consumo. Importa desenvolver uma tica
do cuidado.
O
Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o Fundo
Nacional para a Natureza (WWF) e a Unio Internacional para a
Conservao da Natureza (UICN) elaboraram uma estratgia
minuciosa para o futuro da vida sob o ttulo: Cuidando do
Planeta Terra (Caring for the Earth 1991). A estabelecem nove
princpios de sustentabilidade da Terra. Projetam uma estratgia
global fundada no cuidado:
1.
Construir
uma sociedade sustentvel.
2.
Respeitar e cuidar da comunidade dos seres vivos.
3.
Melhorar
a qualidade da vida humana.
4.
Conservar a vitalidade e a diversidade do planeta.
5.
Permanecer
nos limites da capacidade de e Terra.
6.
Modificar atitudes e prticas pessoais.
7.
Permitir
que as comunidades cuidem de seu prprio meio-ambiente.
8.
Gerar
uma estrutura nacional para integrar desenvolvimento e conservao.
9.
Constituir
uma aliana global.
Estes
princpios do corpo ao cuidado essencial com a Terra. O cuidado
essencial a tica de um planeta sustentvel. Bem enfatizava o
citado documento Cuidando do Planeta Terra: a tica de cuidado
se aplica tanto a nvel internacional como a nveis nacional e
individual; nenhuma nao auto-suficiente; todos lucraro
com a sustentabilidade mundial e todos estaro ameaados se no
conseguir-mos atingi-la. S essa tica do cuidado essencial
poder salvar-nos do pior. S ela nos rasgar um horizonte de
futuro esperana.
2.
Cuidado com o prprio nicho ecolgico
O
cuidado com a Terra representa o global. O cuidado com o prprio
nicho ecolgico representa o local. O ser humano tem os ps no
cho (local) e a cabea aberta para o infinito (global). O corao
une cho e infinito, abismo e estrelas, local e global. A lgica
do corao capacidade de encontrar a justa medida e construir o
equilbrio dinmico.
Para
isso cada pessoa precisa descobrir-se como parte do ecossistema
local e da comunidade bitica, seja em seu aspecto natureza, seja
em sua dimenso de cultura. Precisa conhecer os irmos e irms
que compartem da mesma atmosfera, da mesma paisagem, do mesmo
solo, dos mesmos mananciais, das mesmas fontes de nutrientes;
precisa conhecer o tipo de plantas, animais e microorganismos que
convivem naquele nicho ecolgico comum; precisa conhecer a histria
daquela paisagem, frequentar aquelas cascatas e cavernas; precisa
conhecer a histria das populaes que a viveram sua saga e
construram seu habitat, como trabalharam a natureza, como a
conservaram ou a depredaram, quem so seus poetas e sbios, heris
e heronas, santos e santas, os pais/mes fundadores de civilizao
local.
Tudo
isso significa cuidar do prprio meio ecolgico, vivenci-lo
com o corao, como o seu prprio corpo estendido e prolongado;
descobrir as razes para conserv-lo e faz-lo desenvolver,
obedecendo dinmica do ecossistema nativo.
O
que vale para o indivduo vale tambm para a comunidade local.
Ela deve fazer o mesmo percurso de insero no ecossistema local
e cuidar do meio-ambiente; utilizar seus recursos de forma frugal,
minimizar desgastes, reciclar materiais, conservar a
biodiversidade. Deve conhecer a sua histria, seus personagens
principais. Deve cuidar de sua cidade, de suas praas e lugares pblicos,
de suas casas e escolas, de seus hospitais e igrejas, de seus
teatros, cinemas e estdios de esporte, de seus monumentos e da
memria povo. Assim, como exemplo, escolher as espcies vegetais
do ecossistema local para plantar nos parques e vias pblicas, e
nos restaurantes valorizar a cozinha local e regional.
Esse
cuidado com o nicho ecolgico s ser efetivo se houver um
processo coletivo de educao, em que a maioria participe, tenha
o a informaes e faa troca de saberes. O saber
popular contido nas tradies dos velhos, nas lendas e nas estrias
dos ndios, caboclos, negros, mestios, imigrantes, dos
primeiros que a viveram confrontado e complementado com o saber
critico cientfico. Esses saberes revelam dimenses da realidade
local e so portadores de verdade e de sentido profundo a ser
decifrado e a ser incorporado por todos. O que da resulta uma
profunda harmonia ecossistema onde os seres vivos e inertes, as
instituies culturais e sociais, enfim todos encontram seu
lugar, interagem, se acolhem se complementam e se sentem em casa.
3.
Cuidado com a sociedade sustentvel
Atualmente
quase todas as sociedades estio enfermas. Produzem m qualidade
de vida para todos, seres humanos e demais seres da natureza. E no
poderia ser diferente, pois estio assentadas sob modo de ser do
trabalho entendido como dominao e explorao da natureza e
da fora do trabalhador. A exceo de sociedades originrias
como aquelas dos indgenas e de outras minorias no sudeste da sia,
da Oceania e do rtico, todas so refns de um tipo de
desenvolvimento que apenas atende as necessidades de uma parte da
humanidade (os pases industrializados), deixando os demais na
carncia, quando no diretamente na fome e na misria. Somos
espcie que se mostrou capaz de oprimir e massacrar seus pr4 irmos
e irms da forma mais cruel e sem piedade. S neste sculo
morreram em guerras, em massacres e em campos de concentrao
cerca de 200 milhes de pessoas. E ainda degenera e destri sua
base de recursos naturais no renovveis.
No
se trata somente de impor Limites ao Crescimento (ttulo da
primeira soluo apresentada em 1972 pelo Clube de Roma) mas de
mudar o tipo de desenvolvimento. Diz-se que o novo desenvolvimento
deve ser sustentvel. Ora, no existe desenvolvimento em si, mas
uma sociedade que opta pelo desenvolvimento que quer e que
precisa. Dever-se-ia falar de sociedade sustentvel ou de um
planeta sustentvel como pr-condies indispensveis para um
desenvolvimento verdadeiramente integral.
Sustentvel
a sociedade ou o planeta que produz o suficiente para si e para
os seres dos ecossistemas onde ela se situa; que toma da natureza
somente o que ela pode repor; que mostra um sentido de
solidariedade generacional, ao preservar para as sociedades
futuras os recursos naturais de que elas precisaro. Na prtica
a sociedade deve mostrar-se capaz de assumir novos hbitos e de
projetar tipo de desenvolvimento que cultive o cuidado com os
equilbrios ecolgicos e funcione dentro dos limites impostos
pela natureza. No significa voltar ao ado, mas oferecer um
novo enfoque para o futuro comum. No se trata simplesmente de no
consumir, mas de consumir responsavelmente.
O
mvel deste tipo de desenvolvimento no est na mercadoria nem
no mercado, nem no estado, nem no setor privado, nem na produo
de riqueza. Mas na pessoa humana, na comunidade e demais seres
vivos que partilham com ela a aventura terrenal.
O
desenvolvimento aqui vem concebido dentro de outro paradigma, j
assimilado por certos setores da ONU. Numa conhecida declarao
sobre o Direito dos Povos ao Desenvolvimento outubro de 1993,
declarou a Comisso dos Direitos da ONU: O desenvolvimento
um processo econmico, social, cultural e poltico abrangente,
que visa o constante melhoramento do bem-estar de toda a populao
e de cada pessoa, na base de sua participao ativa, livre e
significativa e na justa distribuio dos benefcios
resultantes dele. Ns acrescentaramos ainda, no sentido da
integralidade, a dimenso psicolgica e espiritual do ser
humano.
Dito
em termos simples, o desenvolvimento social visa melhorar a
qualidade da vida humana enquanto humana. Isso implica em valores
universais como vida saudvel e longa, educao, participao
poltica, democracia social e participativa e no apenas
representativa, garantia de respeito aos direitos humanos e de
proteo contra a violncia, condies para uma adequada
expresso simblica e espiritual. Tais valores somente se alcanam
se h um cuidado na construo coletiva do social, se h
convivialidade entre as diferenas, cordialidade nas relaes
sociais, compaixo com todos aqueles que sofrem ou se sentem
margem, criando estratgias de compensao e de integrao.
Cuidado especial merecem os doentes, os idosos, os portadores de
algum estigma social, os marginalizados e excludos. Por eles se
o quanto de sustentabilidade e de cuidado essencial realizou e uma
sociedade. Alm disso, importante cultivar compreenso, pacincia
histrica, capacidade de dilogo e sentido de integrao
criativa com referncia ao lado diablico e demente da histria
humana. Tais valores se incluem no cuidado essencial.
4.
Cuidado com o outro,
animus e anima
No
h s a rede de relaes sociais. Existem as pessoas
concretas, homens e mulheres. Como humanos, as pessoas so seres
falantes; pela fala constrem o mundo com suas relaes. Por
isso, o ser humano , na essncia, algum de relaes
ilimitadas. O eu somente se constitui mediante a dialogao com
o tu, como o viram psiclogos modernos e, anteriormente, filsofos
personalistas. O tu possui uma anterioridade sobre o eu. O tu o
parteiro do eu.
Mas
o tu no qualquer coisa indefinida. concretamente um rosto
com olhar e fisionomia. O rosto do outro torna impossvel a
indiferena. O rosto do outro me obriga a tomar posio porque
fala, pro-voca, e-voca e com-voca. Especialmente o rosto do
empobrecido, marginalizado e excludo.
O
rosto possui um olhar e uma irradiao da qual ningum pode
subtrair-se. O rosto e o olhar lanam sempre uma pro-posta em
busca de uma res-posta. Nasce assim a res-ponsabilidade, a
obrigatoriedade de dar res-postas. Aqui encontramos o lugar do
nascimento da tica que reside nesta relao de
responsabilidade diante do rosto do outro e particularmente do
mais outro que o oprimido. na acolhida ou na rejeio, na
aliana ou na hostilidade para com o rosto do outro que se
estabelecem as relaes mais primrias do ser humano e se
decidem as tendncias de dominao ou de cooperao.
Cuidar
do outro zelar para que esta dialogao, esta ao de dilogo
eu-tu, seja libertadora, sinergtica e construtora de aliana
perene de paz e de amorizao.
O
outro se d sempre sob a forma de homem e de mulher, so
diferentes mas se encontram no mesmo cho comum da humanidade.
Ambos realizam, em seu modo singular, a essncia humana, abissal
e misteriosa. A diferena entre eles no algo fechado e
definitivo, mas algo sempre aberto e plasmvel, pois se encontram
em permanente inter-ao e reciprocidade.
Na
linguagem cunhada por C.G. Jung cada um possui dentro de si o
animus (a dimenso do masculino) e a anima (a dimenso do
feminino). O homem desperta na mulher sua dimenso expressa
culturalmente pelo modo-de-ser-trabalho; a mulher evoca no homem
sua dimenso feminina, concretizada historicamente pelo
modo-de-ser-cuidado.
Cuidar
do outro animus-anima implica um esforo ingente de superar a
dominao dos sexos, desmontar o patriarcalismo e o machismo,
por um lado, e o matriarcalismo e o feminismo por outro. Exige
inventar relaes que propiciem a manifestao das diferenas
no mais entendidas como desigualdades, mas como riqueza da nica
e complexa substncia humana. Essa convergncia na diversidade
cria espao para uma experincia mais global e integrada de
nossa prpria humanidade, uma maneira mais cuidada de ser.
5.
Cuidado com os pobres, oprimidos e excludos
Um
dos maiores desafios lanados poltica orientada pela tica
e ao modo-de-se-cuidado indubitavelmente o dos milhes e milhes
de pobres, oprimidos e excludos de nossa sociedade. Esse antifenmeno
resulta de formas altamente injustas da organizao social hoje
mundialmente integrada. Com efeito, graas aos avanos tecnolgicos,
nas ltimas dcadas verificou-se um crescimento fantstico na
produo de servios e bens materiais, entretanto,
desumanamente distribudos, fazendo com que 2/3 da humanidade
viva cm grande pobreza. Nada agride mais o modo-de-ser-cuidado do
que a crueldade para com os prprios semelhantes.
Como
tratar esses condenados e ofendidos da Terra? A resposta a esta
pergunta divide, de cima a baixo, as polticas pblicas, as
tradies humansticas, as religies e as igrejas crists.
Cresce mais e na convico) de que as estratgias meramente
assistencialistas e paternalistas no) resolvem como nunca
resolveram os problemas pobres e dos excludos. Antes,
perpetua-os, pois os mantm na condio de dependentes e de
esmoleres, humilhando-os pelo reconhecimento de sua fora de
transformao da sociedade.
A
libertao dos oprimidos dever provir deles mesmos, na medida
em que se conscientizam da injustia de sua situao, se
organizam entre si e comeam com prticas que visam transformar
estruturalmente as relaes sociais inquas. A opo pelos
pobres contra a sua pobreza e em favor de sua vida e liberdade
constituiu e ainda constitui a m registrada dos grupos sociais e
das igrejas que se pam escuta do grito dos empobrecidos que
podem ser tanto os trabalhadores explorados, os indgenas e
negros discriminados, quanto as mulheres oprimidas e as minorias
marginalizadas, como os portadores do vrus da Aids ou de
qualquer outra deficincia. No so poucos aqueles no sendo
oprimidos se fizeram aliados dos oprimidos, para junto com eles e
na perspectiva deles empenhar-se por transforma sociais profundas.
O
compromisso dos oprimidos e de seus aliados por um novo tipo de
sociedade, na qual se supera a explorao do ser humano e a
espoliao da Terra, revela a fora poltica da dimenso-cuidado.
Qual
o mvel ltimo subjacente aos movimentos dos sem-terra, dos
sem-teto, dos privados de direitos sociais, dos meninos e meninas
de rua, dos idosos, dos povos da floresta, entre outros, seno
com a vida humana? o cuidado e o enternecimento pela inalienvel
dignidade da vida que move as pessoas e os movimentos a protestar,
a resistir e a mobilizar-se para mudar a histria. Os profetas
antigos e modernos nos mostram a coexistncia destas duas
atitudes presentes no cuidado poltico: a dureza na denncia dos
opressores e o enternecimento no consolo das vtimas.
No
tem cuidado com os empobrecidos e excludos quem no os ama
concretamente e no se arrisca por sua causa. A consolidao de
uma sociedade mundial globalizada e o surgimento de paradigma
civilizacional a pelo cuidado com o marginalizados e excludos.
Se seus problemas no forem equacionados permaneceremos ainda na
pr-histria. Poderemos ter inaugurado o novo milnio, mas no
a nova civilizao e a era de paz eterna com e todos os humanos,
os seres da criao e o nosso esplndido planeta.
6.
Cuidado com nosso corpo na sade e na doena
Quando
falamos em corpo no devemos pensar no sentido usual da palavra,
que contrape corpo a alma, matria a esprito. Corpo seria uma
parte do ser humano e no sua totalidade. Nas cincias contemporneas
prefere-se falar de corporeidade para expressar o ser humano como
um todo vivo e orgnico. Fala-se de homem-corpo, homem-alma para
designar dimenses totais do humano.
Essa
compreenso deixa para trs o dualismo corpo-alma e inaugura uma
viso mais globalizante. Entre matria e esprito est a vida
que a interao da matria que se complexifica, se
interioriza e se auto-organiza. Corpo sempre animado. Cuidar
do corpo de algum, dizia um mestre do esprito,
prestar ateno ao sopro que o anima.
Resumindo,
podemos dizer que o corpo aquela poro do universo que ns
animamos, informamos, conscientizamos e personalizamos. formado
pelo p csmico, circulando no espao interestelar h bilhes
de anos, antes da formao das galxias, das estrelas e dos
planetas, p esse provavelmente mais velho que o sistema solar e
a prpria Terra. O ferro que corre pelas veias do corpo, o fsforo
e o clcio que fortalecem os ossos e os nervos, os 18% de carbono
e os 65% de oxignio mostram que somos verdadeiramente csmicos.
Corpo
um ecossistema vivo que se articula com outros sistemas mais
abrangentes. Pertencemos espcie homo que pertence ao sistema
Terra, que pertence ao sistema galctico e ao sistema csmico.
Nele funciona um sistema interno de regulao de frio e de
calor, de sono e de viglia, dos fenmenos da digesto, da
respirao, das batidas cardacas, entre outros.
Mais
ainda, O corpo vivo subjetividade. J se disse que o corpo
nossa memria mais arcaica, pois em seu todo e em cada uma
de suas partes guarda informaes do longo processo evolutiva
Junto com a vida do corpo se realizam os vrios nveis da conscincia
(a originria, a oral, a anal, a social, a autnoma e a
transcendental), onde estas memrias se expressam e se enriquecem
interagindo com o meio.
Atravs
do corpo se mostra a fragilidade humana. A vida corporal
mortal. Ela vai perdendo seu capital energtico, seus equilbrios,
adoece e finalmente morre. A morte no vem no fim da vida. comear
no seu primeiro momento. Vamos morrendo, lentamente, at acabar
de morrer. A aceitao da mortalidade da vida nos entender de
forma diferente a sade e a doena.
Quem
so pode ficar doente. A doena significa um dano
totalidade da existncia. No o joelho que di. Sou eu, em
minha totalidade existencial, que sofro. Portanto, no uma
parte que est doente, mas a vida que adoece em suas vrias
dimenses: em relao a si mesmo (experimenta os limites da
vida mortal), em relao com a sociedade (se isola, deixa de
trabalhar e tem que se tratar num centro de sade), em relao
com o sentido global da vida (crise na confiana fundamental da
vida que se pergunta por que exatamente eu fiquei doente?).
A
doena remete sade. Toda cura deve reintegrar as dimenses
da vida s, no nvel pessoal, social e no fundamental que diz
respeito ao sentido supremo da existncia e do universo. Por isso
o primeiro o consiste em reforar a dimenso-sade para que
cure a dimenso doena..
Para
reforar a dimenso-sade devemos enriquece nossa compreenso
de sade. No podemos entend-la como a ideologia dominante com
suas tcnicas sofisticadas e seus inmeros coquetis de
vitaminas. A sade concebida como sade total, como se
fosse um fim em si mesma, sem responder questo bsica: que
fao na vida com minha sade? Distanciamo-nos da conhecida
definio de sade da Organizao Mundial da Sade da ONU
que reza: Sade um estado de bem-estar total, corporal,
espiritual e social e no apenas inexistncia de doena e
fraqueza.
Essa
compreenso no realista, pois parte de uma suposio
falsa, de que possvel uma existncia sem dor e sem morte.
tambm inumana porque no recolhe a concretitude da vida que
mortal. No descobre dentro de si a morte e seus acompanhantes,
os achaques as fraquezas, as enfermidades, a agonia e a despedida
final. Acresce ainda que a sade no um estado, mas um
processo permanente de busca de equilbrio dinmico de todos os
fatores que compem a vida humana. Todos esses fatores esto a
servio da pessoa para que tenha fora de ser pessoa, autnoma,
livre, aberta e criativa vrias injunes que vier a enfrentar.
A
fora de ser pessoa significa a capacidade de acolher a vida
assim como ela , em suas virtudes e em seu entusiasmo intrnseco,
mas tambm em sua finitude e em sua mortalidade. A fora de ser
pessoa traduz a capacidade de conviver, de crescer e de
humanizar-se estas dimenses de vida, de doena e de morte.
Sade
e cura designam o processo de adaptao e de integrao das
mais diversas situaes, nas quais se d a sade, a doena, o
sofrimento, a recuperao, o envelhecimento e o caminhar
tranquilo para a grande agem da morte. Sade, portanto, no
um estado nem um ato existencial, mas uma atitude face s vrias
situaes que podem ser doentias ou ss. Ser pessoa no
simplesmente ter sade, mas saber enfrentar saudavelmente a
doena e a sade. Ser saudvel significa realizar um sentido de
vida que englobe a sade, a doena e a morte. Algum pode estar
mortalmente doente e ser saudvel porque com esta situao de
morte cresce, se humaniza e sabe dar sentido quilo que padece.
Como
disse um conhecido mdico alemo: Sade no a ausncia
de danos. Sade a fora de viver com esses danos. Sade
acolher e amar a vicia assim como se apresenta, alegre e
trabalhosa, saudvel e doentia, limitada e aberta ao ilimitado
que vir alm da morte.
Que
significa cuidar de nosso corpo, assim entendido? Imensa tarefa.
Implica cuidar da vida que o anima, cuidar do conjunto das relaes
com a realidade circundante, relaes essas que am pela
higiene, pela alimentao, pelo ar que respiramos, pela forma
como nos vestimos, pela maneira como organizamos nossa casa e nos
situamos dentro de um determinado espao ecolgico. Esse refora
nossa identidade como seres ns-de-relaes para todos os
lados. Cuidar do
corpo significa a busca de assimilao criativa de tudo que nos
possa ocorrer na vicia, compromissos e trabalhos, encontros
significativos e crises existenciais, sucessos e fracasso, sade
e sofrimento. Somente assim nos transformamos mais e mais em
pessoas amadurecidas, autnomas, sbias e plenamente livres.
7.
Cuidado com a cura integra do ser humano
A
cura integral do ser humano to importante que demanda um
prolongamento de nossa reflexo anterior. Nas grandes tradies
teraputicas da humanidade sempre houve a percepo de que a
cura um processo global, envolvendo a totalidade do ser apenas
e no a parte enferma. Reportemo-nos a nossa tradio ligada
figura de Asclpio (dos gregos) ou de Esculpio (dos latinos).
Dessa tradio vem o pai da medicina clssica e moderna, Hipcrates
(460-377 aC).
Asclpio
era, historicamente, um heri curador que possua seu centro em
Epidauro, no corao da Grcia. Por mais de mil anos acorriam
ao seu templo os enfermos de todas as partes do mundo antigo. A
eficcia de seus mtodos era de tal ordem que, aps a sua
morte, Asclpio acabou sendo divinizado. Simultaneamente homem e
deus sinalizava que a cura seria completa se resultasse da
interveno humana e divina, se fosse corporal e espiritual.
No
prtico de seu templo os enfermos podiam ler o lema bsico de
sua medicina:
"Puro
deve ser aquele que entra no templo perfumado. Pureza ter
pensamentos sadios.
Chamava-se
a isso de nooterapia, terapia da mente (noons em grego significa
mente) que implicava num processo de redeflnio de atitudes e
de valores. Os cristos at hoje chamam a isso de converso (metanoia).
Os pecados (harmatiai), isto , as atitudes desarmnicas consigo
mesmo, com os outros, com o cosmos e com a Fonte originria de
tudo, deslancham processos que afetam o equilbrio fsico-psquico-espirituais
do ser humano. Em outras palavras, produzem doenas.
A
cura acontece quando se cria um novo equilbrio humano. Ento o
pecado-doena d lugar graa-cura. Em Epidauro as curas eram
processadas de forma holstica, atravs de mtodos
diferenciados pela dana, msica, ginstica, poesia, ritos e
sono sagrado. Havia o Abaton, santurio onde os enfermos dormiam
para terem sonhos de comunho com a divindade que os tocava e
curava. Havia o local onde se podia ouvir msica tranquilizadora
e eram lidos poemas de enlevo. Havia o Ginsio, onde se faziam
exerccios fsicos integradores da mente/corpo. Havia o Estdio
para esportes de competio controlada para melhorar o tnus
corporal. Havia o Teatro para dramatizao de situaes
complexas da vida para desdramatiz-las e facilitar a cura. Havia
a Biblioteca, onde se podia consultar livros, irar obras de
arte e participar de discusses sobre os mais diversos assuntos.
Tudo isto, j naqueles tempos, era visto como forma de terapia
holstica. A moderna medicina alternativa no faz outra coisa
seno resgatar esta memria teraputica de nossa prpria ti
abafada pelo paradigma cientifista dominante, que tenta a cura
enfatizando o tratamento das partes doentes pela qumica dos remdios
sem a considerao do todo humano.
Foi
neste contexto integrador do cuidado total com o ser humano que o
poeta Dcio Jnior Juvenal (60-130 dC) escreveu o famoso verso
criticando os excessos na culinria dos romanos:
Deve-se
buscar uma mente s num corpo so. Orandum est mens sana
in corpore sano (Stiras X, 356).
Muitas
academias de ginstica atuais incorporam esse lema mens sana in
corpore sano - quase sempre esquecendo a dimenso espiritual da
mente (mens sana) e enfatizando apenas a exuberncia muscular do
corpo (corpore sano). A arte teraputica mais que mdica;
integral, portanto profundamente espiritual.
Concluindo,
cuidar de nossa sade significa manter nossa viso integral,
buscando um equilbrio sempre por construir entre o corpo,
a mente e o esprito e invocar o mdico (corpo), o
terapeuta (mente) e o sacerdote (o esprito) para trabalharem
juntos visando a totalidade do ser Inumano.
8.
Cuidado com a nossa alma, anjos e os demnios interiores
A
alma, a semelhana do corpo, representa a totalidade do ser
humano na medida em que ele um ser vivo com interioridade e
subjetividade (anima em latim significa ser vivo, donde deriva
animal). Desde o primeiro momento aps o big-bang, quando se
formaram os primeiros campos energticos e se forjaram as
primeiras unidades relacionais, a alma comeou a surgir e a
complexificar-se, at que, no nvel humano, aps o surgimento
do crebro e da base neurnica, se tornou reflexa e
autoconsciente. Possivelmente tal emergncia ocorreu a partir do
homo Ardipitecus Ramidos, h 4,5 milhes de anos, ando pelo
homon habilis, h cerca de 2 milhes de anos, pelo homo erectus,
h 1,6 milhes de anos, pelo homo sapiens arcaicus h 250 mil
anos te culminar no homo sapiens sapiens h 150 mil anos. Deste
ltimo, com conscincia plenamente reflexa, somos descendentes
diretos.
Conhecemos
hoje os nveis desse tipo de conscincia e sua capacidade de
guardar informaes do processo evolutivo. Isso significa que a
conscincia humana guarda marcas da grande exploso primordial,
do fragor das exploses das grandes estrelas vermelhas que
jogaram seus materiais pesados por todo o universo; conserva a memria
das circunvolues de nosso sistema galctico, solar e planetrio,
das dores de parto na formao de nossa casa comum, a Terra;
conserva o estremecer da primeira clula viva h 3,8 bilhes de
anos; guarda em si os sinais da violncia devastadora dos
dinossauros, da capacidade unificadora do primeiro crebro nos rpteis,
da ternura dos primeiros mamferos, das alegrias da sociabilidade
dos nossos ancestrais, antropides; lembra da luz do primeiro ato
de inteleco, da criatividade da fala ordenadora do mundo,
enfim dos grandes sonhos ridentes de simpatia e convivialidade,
bem como dos medos face s ameaas do meio e face luta pela
sobrevivncia. As experincias traumatizantes na relao com
os pais, com o homem e a mulher, com o nascimento, a dor e a
morte, com o Sol, a Lua e as estrelas, com a grandeza do cu
estrelado deixaram matrizes na alma humana cuja fora de atuao
se faz presente at os dias de hoje. a nossa memria
ancestral e atual.
De
certo modo, tudo, tudo est guardado dentro da conscincia
humana sob a forma da memria (subatmica, atmica, mineral,
vegetal, animal, humana), nos arqutipos, sonhos, vises, smbolos,
paixes e moes que habitam nossa interioridade. Somos
portadores de anjos e de demnio; de foras sim-blicas que nos
animam para a unidade e para a cooperao, e de foras dia-blicas
que desagregam e destroem nossa centralidade.
Mas
o ser humano portador de liberdade e de responsabilidade. A
liberdade lhe dada como capacidade de modelar essa matria
ancestral e o mundo ao seu redor. A liberdade lhe dada como
possibilidade para decidir se cultiva os anjos bons ou os demnios
interiores. A ele cabe criar uma medida justa de equilbrio,
tirando partido da energia dos anjos e dos demnios e colocando-a
a servio de um projeto que se afina com a sinergia e a cooperao
do universo. sua chance de felicidade ou de tragdia.
Eis
um desafio ingente: o de cuidar de nossa alma interior. Cuidar dos
sentimentos, dos sonhos, dos desejos, das paixes contraditrias,
do imaginrio; das vises e utopias que guardamos escondidas
dentro do corao. Como domesticar tais foras para que sejam
construtivas e no destrutivas? Em que sentido de vida ordenamos
todas estas dimenses? O cuidado o caminho e oferece uma direo
certa.
9.
Cuidado com o nosso esprito, os grandes sonhos e Deus
O
ser humano-corpo-alma tem uma singularidade: pode sentir-se parte
do universo e com ele conectado; pode entender-se como filho e
filha da Terra, um ser de interrogaes derradeiras, de
responsabilidade por seus atos e pelo futuro comum com a Terra.
Ele no pode furtar-se a perguntas que lhe surgem ineludivelmente:
Quem sou eu? Qual meu lugar dentro desta mirade de seres? O
que significa ser jogado nesse minsculo planeta Terra? Donde
provm o inteiro universo? Quem se esconde atrs do curso das
estrelas? O que podemos esperar alm da vida e da morte? Por que
choramos a morte dos nossos parentes e amigos e a sentimos como um
drama sem retorno?
Ora,
levantar semelhantes interrogaes prprio de um ser
portador de esprito. Esprito aquele momento do ser humano
corpo-alma em que ele escuta estas interrogaes e procura
dar-lhes um resposta. No importa qual seja: se atravs de estrias
mitolgicas, de desenhos nas paredes de cavernas como em
Cromagnon na Frana e nas grutas de S. Raimundo Nonato no Piau,
Brasil, ou se atravs de sofisticadas filosofias, ritos
religiosos e conhecimentos das cincias empricas. O ser humano
como um ser falante e interrogante um ser espiritual.
Outro
dado suscita a dimenso de esprito: a capacidade do ser humano
de continuamente criar sentidos e inventar smbolos. No se
contenta com fatos. Neles discerne valores e significaes.
Escuta as coisas que so sempre mais que coisas porque se
transformam em indicaes de mensagens a serem descodificadas.
Darei alguns exemplos.
Diante
do Rio Amazonas ficamos totalmente fascinados, fazemos a experincia
da majestade. Ao penetrar na floresta, contemplamos sua inigualvel
biodiversidade e ficamos aterrados diante da imensido de
arvores, de guas, de animais e de vozes de todos os timbres,
fazemos a experincia da grandeza. Diante dessa grandeza
sentimos-nos um bicho frgil e insignificante irrompendo em ns
o temor e o respeito silencioso, fazemos a experincia da limitao
e da ameaa.
Quando
vivenciamos o fascnio do amor, fazemos a experincia de um
absoluto valor, capaz de tudo transfigurar; fazemos da pessoa
amada uma divindade, transformamos o brilho do Sol num ouro em
cascata e transformamos a dureza do trabalho numa prazerosa
preocupao.
Ao
ver a mo suplicante da criana faminta, somos tomados de
compaixo e mostramos generosidade. Todas essas experincias so
expresses do esprito que somos ns.
Mas
h uma experincia testemunhada desde os primrdios da hominizao,
a do Numinoso e do Divino no universo, na vida e na interioridade
humana. Como no reconhecer por trs das leis da natureza um
supremo Legislador? Como no itir na ha dos cus a ao
inteligente de uma infinita Sabedoria, e na existncia do
universo a exigncia de um Criador?
O
ser humano chama essa suprema Realidade com mil nomes ou
simplesmente d-lhe o nome de Deus. Sente que Ele arde em seu
interior na forma de uma presena que o acompanha e o ajuda a
discernir o bem e o mal. O el vital o leva a crescer, a
trabalhar, a enfrentar obstculos, a alcanar seus propsitos e
a viver com esperana. Esse cl est no ser humano, mas
maior que ele. No est em seu poder manipul-lo, cri-lo ou
destru-lo. Encontra-se a merc dele. No isso um indcio
da presena de Deus em seu interior?
O
ser humano pode cultivar o espao do Divino, abrir-se ao dilogo
com Deus, confiar a ele o destino da vida e encontrar nele o
sentido da morte. Surge ento a espiritualidade que d origem s
religies. Elas expressam o encontro com Deus nos cdigos das
diferentes culturas.
Os
sbios de todos os povos sempre pregaram: sem o cultivo desse
espao espiritual, o ser humano se sentir infeliz e doente e se
descobrir um errante sedento em busca de uma fonte que no
encontra em lugar nenhum; mas se acolher o esprito e Aquele que
o habita, se encher de luz, de serenidade e de uma imarcescvel
felicidade.
Cuidar
do esprito significa cuidar dos valores que do rumo nossa
vida e das significaes que geram esperana para alm de
nossa morte. Cuidar do esprito implica colocar os compromissos
ticos acima dos interesses pessoais ou coletivos. Cuidar do esprito
demanda alimentar a brasa interior da contemplao e da orao
para que nunca se apague. Significa especialmente cuidar da
espiritualidade experienciando Deus em tudo e permitindo seu
permanente nascer e renascer no corao. Ento poderemos
preparar-nos, com serenidade e jovialidade, para a derradeira
travessia e para o grande encontro.
10.
Cuidado com a grande travessia, a morte
A
entropia se manifesta em toda parte e tambm no tecido de nossa
vida at consumir todo o nosso capital energtico. ento
morremos. o termo do homem-corpo. E o que acontece com o
homem-alma-esprito? Qual seu destino? Ele tem outro percurso.
Ao imergir neste mundo comea a nascer, vai nascendo cada dia
mais, at acabar de nascer.
Uma
analtica existencial atenta revela a presena de duas curvas na
existncia humana: a curva do homem-corpo e a curva do
homem-alma-esprito.
A
curva do homem-corpo obedece a esse percurso: nasce, cresce,
madura, envelhece e morre. A morte no vem de fora mas se
processo dentro da vida como perda progressiva da fora vital.
A
outra curva do homem-alma-esprito segue um percurso inverso.
Nasce, comea como um pequeno sinal e desabrocha, realiza
virtualidades como falar, relacionar-se, amar... vai nascendo mais
e mais at acabar de nascer.
Mas
quando acaba de nascer? Quando as duas curvas existenciais se
cruzam. Nesse cruzamento ocorre a morte real.
O
que significa a morte? Para o homem-corpo representa o termo de
uma caminhada por esse mundo espcio-temporal. Para o
homem-alma-esprito, a possibilidade de uma plena realizao de
seus dinamismos latentes que no conseguiam irromper devido aos
condicionamentos do tempo e do espao. A morte do homem-corpo tem
a funo de fazer cair todas as barreiras. E assim o
homem-alma-esprito se liberta de todas as amarras e seu impulso
interior pode realizar-se segundo a lgica infinita. A inteligncia
que via no claro-escuro, agora v em plena luz; a vontade que se
sentir condicionada, agora irrompe para a comunho imediata com o
objeto do desejo; o cuidado essencial que se exercia em
ambiguidades, agora encontra sua plena autenticidade; o corpo que
nos permitia comunho e afastamento dos outros, sentido agora
como expresso plena de nossa unio com a totalidade do cosmos.
Na
morte se d, ento, o verdadeiro nascimento do ser humano. Ele
implode e explode para dentro de sua plena identidade. O
cristianismo chama a esse momento de absoluta realizao de
ressurreio. Ressurreio muito mais que reanimar um cadver
e voltar vida anterior. Ressurreio a plena concretizao
das virtualidades presentes no ser humano. Os apstolos
testemunharam que tal evento bem-aventurado se realizou em Jesus
de Nazar no momento de sua morte na cruz. Por isso
apresentado como o Ado novssimo (1 Cor 15,45), a nova
criatura que tocou o final dos tempos. Ele o smbolo real de
que o ser humano pode nascer definitivamente.
Nesta
perspectiva no vivemos para morrer. Morremos para ressuscitar,
para viver mais e melhor. A morte significa a metamorfose para
esse novo modo de ser em plenitude. Ao morrer, o ser humano deixa
para trs de si um cadver. como um casulo que continha a
crislida. Cai o casulo e irrompe radiante borboleta, a vida em
sua identidade inteira. E a ressurreio j na morte.
O
sentido que damos vida depende do sentido que damos a morte. Se
a morte fim-derradeiro, ento de pouco valem tantas lutas,
empenho e sacrifcio. Mas se a morte fim-meta-alcanada, ento
significa um peregrinar para a fonte. Ela pertence vida e
representa o modo sbio que a prpria vida encontrou para chegar
a uma plenitude negada neste universo demasiadamente pequeno para
seu impulso e demasiadamente estreito para sua nsia de infinito.
Somente o Infinito pode saciar uma sede infinita.
Cuidar
de nossa grande travessia internalizar uma compreenso esperanosa
da morte. E cultivar nosso desejo do Infinito, impedindo que ele
se identifique com objetos finitos. meditar, contemplar e amar
o Infinito como o nosso verdadeiro Objeto do desejo. acreditar
que ao morrer cairemos em seus braos para o abrao sem fim e
para a comunho infinita e eterna. Enfim realizar a experincia
dos msticos: a vida amada no Amado transformada.
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