3d2c8
O
tamagochi e o cuidado
536o1t
SABER CUIDAR 5dv
LEONARDO
BOFF
(Importante
obra de Leonardo Boff, filsofo, telogo e cientista, editada
pela Editora Vozes, sob o ttulo SABER CUIDAR - tica do humano
- compaixo pela terra)
Abertura 3j3ys
A
sociedade contempornea, chamada sociedade do conhecimento e da
comunicao, est criando, contraditoriamente, cada vez mais
incomunicao e solido entre as pessoas. A Internet pode
conectar-nos com milhes de pessoas sem precisarmos encontrar
algum. Pode-se comprar, pagar as contas, trabalhar, pedir
comida, assistir a um filme sem falar com ningum. Para viajar,
conhecer pases, visitar pinacotecas no precisamos sair de
casa. Tudo vem nossa casa via on
line.
A
relao com a realidade concreta, com seus cheiros, cores,
frios, calores, pesos, resistncias e contradies mediada
pela imagem virtual que somente imagem. O p no sente mais o
macio da grama verde. A mo no pega mais um punhado de terra
escura, O mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano,
caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do
toque, do tato e do contato humano.
Essa
anti-realidade afeta a vida humana naquilo que ela possui de mais
fundamental: o cuidado e a compaixo. Mitos antigos e pensadores
contemporneos dos mais profundos nos ensinam que a essncia
humana no se encontra tanto na inteligncia, na liberdade ou na
criatividade, mas basicamente no cuidado. O cuidado , na
verdade, o e real da criatividade, da liberdade e da inteligncia.
No cuidado se encontra o ethos* fundamental do humano. Quer dizer,
no cuidado identificamos os princpios, os valores e as atitudes
que fazem da vida um bem-viver e das aes um reto agir.
O
tipo de sociedade do conhecimento e da comunicao que temos
desenvolvido nas ltimas dcadas ameaa a essncia humana.
Porventura, no descartou as pessoas concretas com as feies
de seus rostos, com o desenho de suas mos, com a irradiao de
sua presena, com suas biografias marcadas por buscas, lutas,
perplexidades, fracassos e conquistas? No colocou sob suspeita e
at difamou como obstculo ao conhecimento objetivo, o cuidado,
a sensibilidade e o enternecimento, realidades to necessrias
sem as quais ningum vive e sobrevive com sentido? Na medida em
que avana tecnologicamente na produo e servio de bens
materiais, ser que no produz mais empobrecidos e excludos,
quase dois teros da humanidade, condenados a morrer antes do
tempo?
Nossa
meditao procura denunciar semelhante desvio. Ousamos
apresentar caminhos de cura e de resgate da essncia humana, que
am todos pelo cuidado.
Alimentamos
a profunda convico de que o cuidado, pelo fato de ser
essencial, no pode ser suprimido nem descartado. Ele se vinga e
irrompe sempre em algumas brechas da vida. Se assim no fosse,
repetimos, no seria essencial. Onde o cuidado aparece em nossa
sociedade? Em algo muito vulgar, quase ridculo, mas extremamente
indicativo: no tamagochi.
O
que o tamagochi?
uma inveno japonesa dos incios de 1997. Um chaveirinho
eletrnico, com trs botes abaixo da telinha de cristal, que
alberga dentro de si um bichinho de estimao virtual.
O
bichinho tem fome, come, dorme, cresce, brinca, chora, fica doente
e pode morrer. Tudo depende do cuidado que recebe ou no de seu
dono ou dona.
O
tamagochi d muito trabalho. Como uma criana, a todo momento
deve ser cuidado; caso contrrio, reclama com seu bip; se no
for atendido, corre risco. E quem to sem corao a ponto de
deixar um bichinho de estimao morrer?
O
brinquedo transformou-se numa mania e tem mudado a rotina de
muitas crianas,jovens e adultos que se empenham em cuidar do
tamagochi, dar-lhe de comer, deix-lo descansar e faz-lo
dormir. O cuidado faz at o milagre de ressuscit-lo, caso tenha
morrido por falta de ateno e de cuidado.
Bem
disse um perspicaz cronista carioca: solido, seu codinome
tamagochi. O cuidado pelo bichinho de estimao virtual
denuncia a solido em que vive o homem/a mulher da sociedade da
comunicao nascente. Mas anuncia tambm que, apesar da
desumanizao de grande parte de nossa cultura, a essncia
humana no se perdeu. Ela est a na forma do cuidado,
transferido para um aparelhinho
eletrnico, ao invs de ser investido nas pessoas concretas
nossa volta: na vov doente, num colega de escola deficiente fsico,
num menino ou menina de rua, no velhinho que vende o po matinal,
nos pobres e marginalizados de nossas cidades ou at mesmo num
bichinho vivo de estimao qual seja um hamster, um papagaio, um
gato ou um cachorro.
O
cuidado serve de crtica nossa civilizao agonizante e tambm
de princpio inspirador de um novo paradigma de convivialidade.
o que vamos propor no presente livro.
Sonhamos
com um mundo ainda por vir, onde no vamos mais precisar de
aparelhos eletrnicos com seres virtuais para superar nossa solido
e realizar nossa essncia humana de cuidado e de gentileza.
Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casa comum, a
Terra, onde os valores estruturantes se construiro ao redor do
cuidado com as pessoas, sobretudo com os diferentes culturalmente,
com os penalizados pela natureza ou
pela histria, cuidado com os espoliados e excludos, as
crianas, os velhos, os moribundos, cuidado com as plantas, os
animais, as paisagens queridas e especialmente cuidado com a
nossa grande e generosa Me, a Terra. Sonhamos com o cuidado
assumido como o ethos* fundamental do humano e como compaixo
imprescindvel para com todos os seres da criao.
*
As palavras com asterisco (*) usadas no texto so
explicadas no Glossrio para
facilitar a compreenso das idias expostas no livro.
Glossrio
Animus/anima:
expresso
difundida pelo psicanalista C.G. Jung (18751961) para designar
a dimenso masculina (animus)
e feminina (anima) presentes
em cada pessoa e que se reflete nos padres culturais de
comportamento.
Androcentristno:
palavra
de origem grega que designa a centralizao do poder na figura
do homem (andr), dominando,
por isso, a mulher.
Antrpco,
princpio: conjunto
de idias, baseadas na seguinte constatao: o fato de estarmos
aqui e dizermos tudo o que dizemos, s possvel porque o
universo se constituiu com tal simetria e caminhou com tal propsito
que culminou no ser humano; se assim no fosse no estaramos
aqui.
Antropide:
grupo de
primatas superiores que inclui os orangotangos, gorilas e chimpanzs.
Arqutipo:
padres
de comportamento existentes no inconsciente coletivo da
humanidade, representando as experincias bsicas feitas no af
de orientar sua vida. Eles emergem na conscincia sob a forma de
grandes smbolos, sonhos, utopias e figuras exemplares.
Auto-organizao:
organizao
espontnea da matria e das energias originrias que d origem
aos seres vivos, chamada tambm de autopoiese*.
Autopoiese:
autocriao
e auto-organizao dos seres vivos.
Biosfera:
tudo
o que vive no ar, no solo, no subsolo e no mar forma a biosfera.
Caos:
Comportamento
imprevisvel de certos sistemas, especialmente, vivos e que
possibilitam ordens novas ou diferentes; por isso diz-se que o
caos no catico mas generativo.
Cibionte:
macroorganismo
resultante da simbiose* e da articulao do biolgico com o mecnico
e o eletrnico. As sociedades atuais constituem o cibionte, pois
coexistem e co-evoluem juntos os seres humanos, as sociedades, as
mquinas e as redes de informao formando um todo que prolonga
o processo evolutivo, agora co-pilotado pelo ser humano.
Complementaridade,
princpio: enunciado
pelo fsico quntico dinamarqus Niel Bohr, segundo o qual matria
e a radiao podem ser, simultaneamente, onda e partcula. As
duas descries se complementam. Esse princpio se aplica tambm
em outros campos onde se verificam oposies, entendidas como
complementares dentro do sistema global.
Corporeidade:
conceito
que exprime a totalidade do ser humano enquanto um ser vivo,
parte da criao e da natureza. No se deve confundir com corporalidade,
termo da antropologia dualista que interpreta o ser humano
como a unio de duas panes distintas, o corpo e a alma.
Cosmolgico,
princpio: hiptese
segundo a qual o universo se rege pelas quatro foras* originrias
da natureza, a gravitacional, a eletromagntica, a nuclear fraca
e forte e mostra semelhanas em todos os lugares (, pois, homogneo)
e em todas as direes (, pois, isotrpico). Isso foi
espetacularmente comprovado pela radiao de fundo, ltimo eco
do big bang que vem,
por igual, de todas as partes do universo.
Co-evoluo:
evoluo
conjunta dos ecossistemas com seus respectivos representantes,
incluindo os sistemas sociais e tcnicos.
Cosmologia:
cincia
que estuda o cosmos, sua origem, sua evoluo e seu propsito.
Imagem de mundo que uma sociedade produz para orientar-se nos
conhecimentos e para situar o lugar do ser humano no conjunto dos
seres.
Dissipativa,
estrutura: mecanismos
presentes nos processos de autoorganizao dos seres vivos
mediante os quais se dissipa a tendncia natural para a desordem
(entropia) e se mantm a organizao deles no decorrer do
tempo, graas ao fluxo de energia e de informao que os
atravessa.
Ecossistema:
conjunto
de todos os sistemas, sejam naturais sejam tcnicos, projetados
pelo ser humano.
Elementos
primordiais: elementos
qumicos fabricados por ocasio do big
bang, durante os trs primeiros minutos do universo. Trata-se
principalmente do hidrognio que compe 3/4 de toda a massa do
universo e do hlio que constitui o outro 1/4 da massa, mais
alguns indcios de deutrio e de ltio.
Empoderamento:
traduo
de empowerment em ingls
que significa a criao de poder nos sem-poder ou a socializao
do poder entre todos os cidados e reforo da cidadania ativa
junto aos movimentos sociais.
Entropia:
desgaste
natural e irreversvel da energia de um sistema fechado, tendendo
a zero; equivale morte trmica.
Ethos:
em grego
significa a toca do animal ou a casa humana; conjunto de princpios
que regem, transculturalmente, o comportamento humano para que
seja realmente humano no sentido de ser consciente, livre e
responsvel; o ethos constri pessoal e socialmente o habitat
humano; veja moral.
Feng-shui:
filosofia
ecolgica chinesa que procura construir, o mais adequadamente
possvel, um ambiente de moradia ou de trabalho humano
considerando o equilbrio de todas as energias que atuam naquele
espao.
Flutuao:
oscilao
que ocorre em determinada ordem, dada a natureza de seu equilbrio
que sempre frgil e sempre por refazer ou criar; os sistemas
vivos e sociais se encontram sempre em flutuao.
Fora
gravitacional: fora
atrativa que atua sobre as massas; a mais universal das foras,
embora a mais fraca.
Fora
eletromagntica: fora
que atua somente sobre as partculas que tm carga; se oposta,
as partculas se atraem; se semelhante, elas se repelem.
Fora
nuclear fraca: responsvel
pela desintegrao dos tomos e da radioatividade. S age a nvel
atmico (10-15 cm).
Fora
nuclear forte: fora
que liga os quarks (as mais elementares das partculas) para
formar os prtons e os neutrons e que liga os prtons e neutrons
para formar o ncleo atmico. Ela no age sobre os ftons e os
elctrons. a mais poderosa das foras da natureza.
Gaia:
um dos nomes da Terra na mitologia grega. O cientista James
Lovelock chamou a Terra de Gaia porque ela mostra reaes e
formas de equilbrio, prpria dos seres vivos. Ele seria um
superorganismo vivo.
Higino:
escravo
egpcio de Csar Augusto, depois diretor da Biblioteca Palatina
em Roma e autor da fbula-mito do Cuidado essencial, analisada em
nosso livro. Morreu no ano 10 de nossa era.
Hindusmo:
religio,
com muitas ramificaes da maioria dos povos indianos,
resultante de uma evoluo secular do vedismo e do bramanismo,
que se transformaram pela especulao filosfica e pela integrao
de cultos locais.
Holismo:
provm
de holos em grego que
significa totalidade. a compreenso da realidade que
articula o todo nas partes e as partes no todo, pois v tudo como
um processo dinmico, diverso e uno.
Homindeos:
grupo da
espcie dos primatas que inclui o ser humano atual (homo
sapiens sapiens) e seus ancestrais diretos (homo
sapiens).
Logos:
esprito,
razo, estrutura de sentido (lgica).
Massa
invisvel: matria
de natureza desconhecida que no emite nenhuma luz. A existncia
dessa massa invisvel deriva dos estudos dos movimentos das
estrelas e do gs nas galxias. Calcula-se que de 90-98% da
massa total do universo seja massa invisvel.
Matriarcado:
veja
matrifocal.
Matrifocal:
diz-se de
uma cultura que tem nas mulheres (mes) o eixo e o foco de
organizao social. Chama-se tambm de matriarcal como oposto a
patriarcal.
Mecnica
quntira: teoria
fsica desenvolvida nos comeos do sculo XX que descreve as
propriedades da matria e das energias escala subatmica.
Segundo essa teoria, a matria e a luz podem ser consideradas
simultaneamente como partcula e como onda. S podem ser
descritas em termos de probabilidades. A partcula de luz
chamada de quantm de energia, donde vem o nome da teoria.
Moral:
formas
concretas pelas quais o ethos
se historiza; as morais so diferentes por causa das culturas
e dos tempos histricos diferentes. Mas todas as morais remetem
ao ethos do humano
fundamental que um s.
Morfogentico:
na
autopoiese* da vida no so importantes apenas os fatores fsico-qumicos,
mas tambm as formas singulares que os seres assumem, pelo que se
distinguem de outros dentro da mesma e comum tradio biolgica.
Noosfera:
termo
cunhado por Teilhard de Chardin para designar a nova fase da
humanidade depois da antroposfera e da biosfera, fase
caracterizada pela conscincia planetria e pela
responsabilidade pelo destino comum dos seres humanos e do planeta
Terra.
Nucleossntese:
formao
dos ncleos atmicos atravs de reaes nucleares, seja por
ocasio do big bang (nucleossntese
primordial, responsvel pelos elementos leves como o hidrognio
e o hlio), seja no corao das grandes estrelas vermelhas
(onde se fabricaram os elementos mais pesados que o hlio e menos
pesados que o ferro), seja nas supernovas (= morte explosiva de
uma estrela que consumiu seu carburante, onde se forjaram todos os
demais elementos, mais pesados que o ferro).
Ontolgico:
que tem a
ver com a essncia, com a identidade profunda, com a natureza de
um ser, como, por exemplo, o cuidado essencial com referncia ao
ser humano.
Panentesmo:
literalmente
significa tudo em Deus e Deus em tudo; doutrina que afirma a mtua
presena das criaturas em Deus e de Deus nas criaturas; o panentesmo
supe a diferena entre criatura e Criador, contrariamente ao
pantesmo que nega essa diferena e afirma ser tudo igualmente
Deus.
Paradigma:
conjunto
de princpios, idias e valores compartilhados por uma
comunidade servindo de referncia e de orientao; a mudana
de paradigma ocorre quando surgem novas vises da realidade, como
est se verificando hodiernamente.
Pathos:
capacidade
de sentir, sentimento profundo; donde vem simpatia, pattico,
paciente.
Simbiose:
associao
entre espcies vivas, beneficiando-se mutuamente; por extenso,
associao entre seres vivos, sistemas sociais e mquinas;
o que ocorre, concretamente, no funcionamento de nossas sociedades
atuais.
Sinergia:
interao
de todas as energias em presena, em vista da manuteno de
cada ecossistema e dos indivduos que a ele pertencem.
Sintropia:
coordenao
de energias que tm por efeito diminuir a entropia, quer dizer,
o desgaste de energia e maximalizar sua utilizao.
Sistema
complexo: o
conjunto de elementos interconectados entre si forma um sistema;
ele complexo quando os elementos so numerosos e diversos so
os tipos de relao que vigoram entre eles.
Sustentabilidade:
diz-se
que uma sociedade ou um processo de desenvolvimento possui
sustentabilidade quando por ele se consegue a satisfao das
necessidades, sem comprometer o capital natural e sem lesar o
direito das geraes futuras de verem atendidas tambm as suas
necessidades e de poderem herdar um planeta sadio com seus
ecossistemas preservados.
Tao:
conceito
central do taosmo e de difcil apreenso. Pode significar o
caminho do universo, das coisas e das pessoas; a energia
primordial que permite fazer caminho, que tudo pervade e orienta.
Quando interiorizado na pessoa significa transfigurao e unio
com o Todo e com tudo.
Taosmo:
religio
e filosofia originria da China (VI-V aC), baseada no Tao como se
explica sob o verbete Tao. Principais representantes: Lao-tse e
Chuang-tsu.
Termodinmica:
ramo da fsica
e da qumica que estuda o calor e suas transformaes. H duas
leis bsicas. A primeira afirma que o calor energia, sempre
constante no universo. A segunda afirma que o calor (energia)
sempre tem um desgaste no mais recupervel. Chama-se entropia.
Um sistema fechado tende a gastar toda a sua energia e
estabilizar-se na morte trmica. Um sistema aberto conhece a
sintropia, isto , a capacidade de reduzir a entropia e de criar
ordens menos energvoras.
Upanishad:
palavra snscrita
para designar os textos sagrados hindus, considerados revelao
divina; datam do fim do perodo vdico (700-300 aC);
interpretando os Veda, insistem na necessidade de libertar-se do
ciclo dos nascimentos pelo conhecimento da iluso da realidade.
Vcuo
quntico: espao
repleto de partculas e antipartculas virtuais que aparecem e
desaparecem em fraes de milionsimos de segundos. Tudo sai e
tudo volta ao vcuo quntico, pois a fonte originria de
tudo o que existe e possa existir na ordem de ser que conhecemos.
Zen-budismo:
forma de
budismo que se difundiu no Japo a partir do sculo VI,
acentuando o valor da meditao (zen)
sem imagens, o amor natureza e prtica dos trabalhos
manuais que ajudam no autodomnio e no autoconhecimento.
Concluso
3v693w
O
cuidado e o futuro dos espoliados e da Terra
A
categoria cuidado se mostrou chave decifradora da essncia
humana.O ser humano possui transcendncia e por isso viola todos
os tabus, ultraa todas as barreiras e se contenta apenas com o
infinito. Ele possui algo de Jpiter dentro de si; no sem razo
recebeu dele o esprito.
O
ser humano possui imanncia e por isso se encontra situado
num planeta, enraizado num local e plasmado dentro das
possibilidades do espao-tempo. Ele tem algo da Tellus/Terra
dentro de si; feito de hmus, donde se deriva a palavra homem.
O
ser humano se encontra sob a regncia do tempo. Este no
significa um puro correr, vazio de contedos. O tempo histrico,
feito pela saga do universo, pela prtica humana, especialmente
pela luta dos oprimidos buscando sua vida e libertao. Ele se
constri o a o, por isso sempre concreto, concretssimo.
Mas simultaneamente o tempo implica um horizonte utpico,
promessa de uma plenitude futura para o ser humano, para os excludos
e para o cosmos. Somente buscando o impossvel, consegue-se
realizar o possvel. Em razo dessa dinmica, o ser humano
possui algo de Saturno, senhor do tempo e da utopia.
Mas
no basta dizer tais determinaes. Elas, na verdade, dilaceram
o ser humano. Colocam-no distendido e crucificado entre o cu e a
terra, entre o presente e o futuro, entre a injustia e a luta
pela liberdade.
Que
alquimia forjar o elo entre Jpiter, Tellus/Terra e Saturno?
Que energia articular a transcendncia e a imanncia, a histria
e a utopia, a luta pela justia e a paz para que construam o
humano plenamente?
A
fbula-mito de Higino nos transmite a sabedoria ancestral: o
cuidado que enlaa todas as coisas; o cuidado que traz o cu
para dentro da terra e coloca a terra para dentro do cu; o
cuidado que fornece o elo de agem da transcendncia para a
imanncia, da imanncia para a transcendncia e da histria
para a utopia. o cuidado que confere fora para buscar a paz
no meio dos conflitos de toda ordem. Sem o cuidado que resgata a
dignidade da humanidade condenada excluso, no se inaugurar
um novo paradigma de convivncia.
O
cuidado anterior ao esprito (Jpiter) e ao corpo (Tellus).
O esprito se humaniza e o corpo se vivifica quando so moldados
pelo cuidado. Caso contrrio, o esprito se perde nas abstraes
e o corpo se confunde com a matria informe. O cuidado faz com
que o esprito d forma a um corpo concreto, dentro do tempo,
aberto histria e dimensionado para a utopia (Saturno). o
cuidado que permite a revoluo da ternura ao priorizar o social
sobre o individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria
da qualidade de vida dos humanos e de outros organismos vivos. O
cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensvel, solidrio,
cordial, e conectado com tudo e com todos no universo.
O
cuidado imprimiu sua marca registrada em cada poro, em
cada dimenso e em cada dobra escondida do ser humano. Sem o
cuidado o humano se faria inumano.
Tudo
o que vive precisa ser alimentado. Assim o cuidado, a essncia da
vida humana, precisa tambm ser continuamente alimentado. As
ressonncias do cuidado so sua manifestao concreta nas vrias
vertebraes da existncia e, ao mesmo tempo, seu alimento
indispensvel. O cuidado vive do amor primal, da ternura, da carcia,
da compaixo, da convivialidade, da medida justa em todas as
coisas. Sem cuidado, o ser humano, como um tamagochi, definha e
morre.
Hoje,
na crise do projeto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado
em toda parte. Suas ressonncias negativas se mostram pela m
qualidade de vida, pela penalizao da maioria empobrecida da
humanidade, pela degradao ecolgica e pela exaltao
exacerbada da violncia.
No
busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O ethos est no
prprio ser humano, entendido em sua plenitude que inclui o
infinito. Ele precisa voltar-se sobre si mesmo e redescobrir sua
essncia que se encontra no cuidado.
Que
o cuidado aflore em todos os mbitos, que penetre na atmosfera
humana e que prevalea em todas as relaes! O cuidado salvar
a vida, far justia ao empobrecido e resgatar a Terra como ptria
e mtria de todos.
In:
"Saber cuidar" tica do humano - compaixo pela terra
- Editora Vozes
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