3d2c8 Biotica, Biodireito
e Direitos Humanos
Vicente de Paulo
Barretto
Sumrio
1.
Para alm do direito
natural
2. A face oculta do direito cosmopolita
3. Velhos temas , novas perplexidades
4. Origens e evoluo temtica da biotica
5. Os princpios da biotica
6. A agenda temtica da biotica
7. Duas respostas aos temas da biotica
8. Da biotica aos direitos humanos
1. Para alm do direito
natural
A idia de um direito com valor universal constituiu uma das
caractersticas comuns do pensamento filosfico, poltico e jurdico
da modernidade, tendo sido formulada por pensadores que se
diferenciavam em suas posies doutrinrias, mas que
compartilharam a mesma inteno de procurar estabelecer como
fundamento da ordem jurdica positiva um direito encontrado na
natureza do homem e da sociedade. A escola jusnaturalista moderna
terminou por ser um referencial obrigatrio no pensamento filosfico
e jurdico dos ltimos trs sculos, ainda que no se possa
estabelecer um mesmo eixo temtico entre os seus representantes,
que alm de sustentarem a existncia de um direito natural,
pouco se assemelharam na abordagem dos problemas filosficos, polticos
e jurdicos. As diferentes concepes do direito e do Estado,
desenvolvidas nas obras de autores como Hobbes, Puffendorf,
Thomasius, Locke, Rousseau e outros, tm, no entanto, um mesmo
princpio bsico, qual seja a da existncia de uma lei natural
e de um direito natural, fundamentos da sociedade, do Estado e do
direito. No final do sculo XVIII, foi essa idia comum que
serviu como argumento ideolgico para as declaraes de
direitos da Revoluo Norte-Americana de 1776 e da Revoluo
sa de 1789, fontes primrias das modernas garantias da
pessoa humana nos textos constitucionais do estado liberal. Esse
direito natural exerceu o papel de fonte legitimadora das
primeiras constituies escritas, que vieram assegurar do ponto
de vista constitucional a agem do absolutismo para o estado de
direito
Entre os filsofos que
investigaram a possibilidade de uma ordem jurdica fundada em
valores universais, diferencia-se, entretanto, Immanuel Kant, que
ao refletir sobre o tema abandona a tradio jusnaturalista
moderna e procura estabelecer, em torno da idia do direito
cosmopolita, uma resposta diferenciada para a mesma investigao
intelectual comum aos pensadores jusnaturalistas. Em dois textos
clssicos, Kant trata do tema o que permite a constatao de
que, preliminarmente, o direito cosmopolita kantiano diferencia-se
da hiptese do direito natural dos jusnaturalistas, e, tambm, e
principalmente, serve como pista terica, na modernidade, para
que se possa situar criticamente a questo da fundamentao tica
do direito e do Estado. Escolhemos para examinar a possibilidade
da fundamentao tica da ordem jurdica, as relaes
estabelecidas entre os valores morais e a pesquisa e tecnologia
biolgicas, que se formalizam juridicamente na nova rea do
direito, o biodireito. Procuramos determinar at que ponto os
valores ticos podem constituir-se em categorias racionalizadoras
e legitimadoras dessa nova ordem jurdica. Para isto,
privilegiamos o exame dos princpios da biotica, que, como
veremos a seguir, surgiram para estabelecer parmetros ticos
para as pesquisas e tecnologias, e que terminaram por receber sua
formalizao, mais universal, sob a forma de direitos humanos ( Declarao
Universal sobre o Genoma e os Direitos Humanos, UNESCO, 1997).
O processo de transio das
categorias ticas para a norma jurdica, corre o risco, no
entanto, de transformar-se em dogmatismo moral, sendo necessrio,
para que isto no ocorra, o emprego de uma idia que fornea as
estruturas racionais necessrias para explicar e fundamentar o
biodireito. Essa idia a do direito cosmopolita.
2. A face oculta do direito cosmopolita
O conceito de direito cosmopolita, proposto por Kant, refere-se,
principalmente, ao entendimento de que a evoluo histrica, e
com ela as luzes da razo, iriam encontrar ou formular normas com
fundamentao tica, que poderiam ser consideradas como uma
forma de direito. De um direito moral, certamente, pois no se
identificaria com normas positivadas, mas que se imporia pela fora
da sua prpria racionalidade. A racionalidade como categoria
universal, comum a todos os seres humanos, serviria na concepo
kantiana, de instrumento para a determinao de valores
livremente aceitos por todos os homens, independentemente de
cultura, etnia ou religio. Essa caracterstica do direito
cosmopolita permite que se tenha uma leitura propriamente moral
dos direitos humanos, podendo-se mesmo entender essa categoria de
direitos como uma manifestao de valores ticos no sistema jurdico.
Os direitos humanos tornam-se, assim, e principalmente, uma forma
de moralidade, que tem a ver com uma determinada concepo tica
da pessoa humana, da sociedade e do Estado. Parece-nos que a hiptese
dos direitos humanos, como categoria tica, torna-se bastante
plausvel, quando analisamos os argumentos kantianos, sobre o
direito cosmopolita e a melhor forma de governo, argumentos esses
que podero fornecer uma fundamentao racional aos direitos
com pretenso de validade universal.
Na Idia de uma histria
universal de um ponto de vista cosmopolita (1986), Kant
identifica na histria da humanidade "a realizao de um
plano oculto da natureza para estabelecer uma constituio poltica
perfeita internamente - e para este propsito tambm
externamente - como sendo o nico estado no qual todas as
capacidades naturais da humanidade podem ser plenamente
desenvolvidas" ( Proposio 8). O cerne da questo
encontra-se na referncia a uma "constituio
politicamente perfeita", onde torna-se claro que estamos
tratando com critrios que se encontram fora do prprio texto
constitucional. A idia de uma ordem normativa referida, ainda
que implicitamente, a valores a serem aplicados tambm
externamente, ultraando, assim, as limitaes do direito
nacional e situando as suas normas numa dimenso universal. Kant,
entretanto, no texto citado, no desenvolve em toda a sua extenso
a idia do direito cosmopolita, restringindo-se a constatar que
esse tipo de direito condio para o pleno desenvolvimento da
humanidade. Por outro lado, a idia de que a evoluo da
humanidade tem como referencial o aperfeioamento moral,
encontra-se subtendida na proposio de que existir um estado
social e poltico onde essas virtualidades humanas encontraro
campo propcio para que se realizem e, por essa razo, a ordem
social e poltica ser "politicamente perfeita". No
pensamento de Kant, essa ordem social e poltica identifica-se
com o governo republicano, em oposio ao despotismo.
No Projeto para uma paz perptua
( 1970), Kant afirma que "os povos da terra participam em
graus diferentes de uma comunidade universal, que se desenvolveu a
ponto de que a violao de um direito numa parte do
mundo, repercute em todos os lugares" ( 2a. seco, 3
art. definitivo). O direito cosmopolita consiste, portanto, no
tipo de norma que ultraa as comunidades nacionais e
identifica-se como sendo a norma de uma comunidade planetria.
Por essa razo, continua Kant, em todos os lugares da terra
reage-se de forma idntica violao do direito cosmopolita,
sendo este direito "um complemento necessrio do cdigo no
escrito, tanto do direito civil, como do direito das gentes, em
vista do direito pblico dos homens em geral" ( ib.). Para
Kant, a paz perptua smente poder ser atingida na medida em
que entre os povos esse direito cosmopolita seja respeitado. O
conceito de direito cosmopolita, no pensamento kantiano, ser
a explicitao da "idia racional de uma comunidade geral,
pacfica, quase mesmo amigvel, de todos os povos da
terra" (Kant, 1971). O direito entendido, portanto, como o
instrumento de uma forma de organizao entre os povos baseada
na racionalidade e, em funo dela, justificando-se e
legitimando-se. Na medida em que se organiza como fruto dessa
racionalidade, a ordem jurdica ir refletir valores nascidos
dessa prpria racionalidade, necessariamente universal, e
reguladora da autonomia individual.
Temos, assim, as condies de plausibilidade racional que
permitem justificar direitos universais e que, em conseqncia,
podem assegurar direitos subjetivos consagrados no direito
positivo nacional. Os fundamentos dos direitos humanos, como
manifestao de universalidade jurdica, supem que se
encontrem justificativas, que sejam universais para a aceitao
desses direitos. Essa universalidade no ser dada pela simples
afirmao discursiva de direitos considerados, por si mesmos,
como identificados com a natureza humana, como pretendiam os tericos
do jusnaturalismo moderno. Isto porque essa natureza humana
apresenta-se de forma mltipla e variada, organizando-se em funo
de diferentes valores morais e normas jurdicas positivas.
Trata-se, portanto, de discutir a possibilidade racional de se
encontrar uma fonte comum e universalizadora de direitos. Uma
primeira, e mais simples resposta, poderia ser aquela dada por
alguns filsofos e juristas contemporneos, que sustentam serem
os direitos humanos aqueles proclamados e reconhecidos nas declaraes
relativas aos direitos humanos das Naes Unidas e incorporados
aos direitos nacionais pelas respectivas constituies. A Declarao
Universal dos Direitos do Homem representaria , no dizer
desses autores, " a manifestao nica atravs da qual um
sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e,
portanto, reconhecido: e essa prova o consenso geral acerca de
sua validade" ( Bobbio, 1992: 26 ). O filsofo italiano
restringe os direitos humanos aos que so reconhecidos pela
vontade soberana dos estados nacionais e com isto supe que a
universalidade desses direitos ser, necessariamente, mitigada e
relativa, pois depender das circunstancias e da vontade poltica
mutvel de diferentes estados. No entanto, faz referncia, tambm,
a um "consenso universal" como condio para a sua
validade, que nos remete para um conceito - o de "consenso
universal"- que acaba no sendo definido. Torna-se, ento,
tema prioritrio de uma investigao, que pretenda concluir
pela plausibilidade universal, porque antes racional, dos direitos
humanos, encontrar evidencias empricas que forneam dados que
possam constituir objeto de uma teoria. Essa teoria, entretanto,
estar preocupada em retirar dos fenmenos sociais, os elementos
necessrios para que se possa compreender em que medida as razes
dos direitos humanos encontram-se mais no campo da racionalidade e
da moralidade do que no espao da vontade do estado soberano.
Desde a Declarao Universal
dos Direitos do Homem, em 1948, pelas Naes Unidas, houve
uma tendncia a definir-se, progressivamente, os direitos humanos
em funo das realidades sociais, econmicas e polticas. Os
dois importantes documentos que complementam a declarao de
1948 - o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e
Culturais (!966) e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos
( 1966) - consagraram o entendimento de que os direitos humanos
referem-se no somente liberdade dos indivduos, mas a uma
gama de fatores que so determinantes na realizao do indivduo
como pessoa humana. Coincidindo com a democratizao do estado
liberal clssico, principalmente, no correr do sculo XX, o
conceito de direitos humanos alargou-se, incorporando outros
direitos, alm do direito liberdade e suas formas, que tm a
ver com a necessria correo das desigualdades sociais, econmicas
e culturais encontradas na sociedade. De qualquer forma, esses
direitos aram a constituir condio mesma para que os
direitos humanos clssicos fossem respeitados em toda a sua
plenitude. Em alguns estados, no entanto, esses direitos, chamados
de segunda gerao foram privilegiados em relao aos de
primeira gerao, havendo mesmo o sacrifcio de algumas
liberdades em nome do respeito aos direitos sociais. A interpretao
no-universal da natureza desses direitos evidenciou dvidas e
questionamentos em diferentes estados ( como, por exemplo, a China
e os pases islmicos)* sobre a universalidade dos direitos
humanos e o processo comum a ser adotado para a sua garantia.
Essas conceituaes e interpretaes conflitantes demonstraram
como faltam argumentos universais, que estabeleam os fundamentos
ticos, universais e legitimadores dessa categoria de direitos e,
como tal, garantam a sua eficcia.
A falta dessas justificativas
racionais, entretanto, no significou que o tema da tica
estivesse para sempre sepultado na cultura e no pensamento social.
Permaneceu subjacente na cultura cvica ocidental, como um
conjunto de valores que se encontravam esquecidos, face ao avano
do positivismo e do cientificismo, nos ltimos duzentos anos, mas
que serviram como referncia obrigatria na luta contra
despotismos e tiranias. A experincia totalitria, em suas duas
verses, durante o sculo XX, as duas guerras mundiais, as
atrocidades cometidas no campo de batalha e os brbaros
experimentos genticos, levados a efeito pelos mdicos nazistas
em campos de concentrao, fizeram com que se acordasse para uma
empiria que situava a questo moral de maneira contundente e em
estado puro. A histria mostrava, assim, como o direito e suas
pretenses normativas no atendera s necessidades mnimas de
proteo da pessoa humana, o que obrigou a que se recorresse s
fontes legitimadoras do direito. A recuperao do tema clssico
das relaes da moral com o direito, renasceu, ento, como meio
de explicar e superar o ime moral em que se encontrava
mergulhada a conscincia do homem ocidental. Nesse contexto de
crise tica e da necessria restaurao de parmetros
metalegais, as indagaes suscitadas pelo ado recente e pelo
avano das pesquisas biolgicas e suas aplicaes tecnolgicas
do presente fizeram com que se procurasse estabelecer no campo da
biologia, princpios destinados a garantir a humanizao do
progresso cientfico. Num primeiro momento, fixaram-se princpios
de carter moral abstrato, para logo em seguida, mesmo quando a
questo tica no estava amadurecida, serem formuladas normas
jurdicas, relativas s pesquisas e tecnologias biolgicas.
Restou, entretanto, um espao vazio entre a formulao tica e
a normatizao jurdica, o que obrigou retomada do debate clssico
sobre a possibilidade da construo de normas jurdicas, que
pudessem refletir valores ticos. Essa linha de investigao
permite que se utilize a idia do direito cosmopolita como
estrutura racional dentro da qual possam racionalmente
justificar-se os valores, discutidos em funo dos avanos das
cincias biolgicas, e em que medida podero constituir-se nos
fundamentos da ordem normativa do biodireito. Isto por que, na
idia do direito cosmopolita que poderemos encontrar os
fundamentos racionais, e, portanto, ticos, de normas que se
pretendem universais, vlidas e legtimas em todos os quadrantes
do planeta. A Declarao Universal sobre o Genoma e os
Direitos Humanos procura preencher esse vazio, sendo mais uma
etapa no processo de insero de valores morais na construo
de uma ordem jurdica, pois estabelece princpios bioticos e
normas de biodireito, s quais aderiram os estados, e que serviro
como patamar tico-jurdico da pesquisa e da tecnologia da
biologia contempornea.
3. Velhos temas , novas perplexidades
A biotica um ramo da tica filosfica, fruto de um tempo,
de uma cultura e de uma civilizao. Quando falamos em biotica
estamos tratando de uma rea de conhecimento, nascida h smente
cerca de meio sculo, ainda que alguns de seus temas centrais - a
sade, a vida e a morte - tenham a ver com as origens da reflexo
filosfica e da medicina na cultura do Ocidente. O juramento
hipocrtico, na Grcia Antiga, foi a primeira formulao de um
sistema normativo, no qual se reconhecia a relao necessria
entre a prtica da medicina, e a conseqente busca da cura das
doenas, com o respeito aos valores da pessoa humana. Desde o sculo
V a. C., a prtica mdica teve um referencial tico, que se
constituiu na base dos modernos cdigos de tica profissional, o
corpus da deontologia mdica. A medicina, portanto, mesmo
quando, ainda no tempo de Hipcrates, lutava para ver reconhecida
o seu status cientfico, ao rejeitar as explicaes
"sobrenaturais" para as doenas, tinha presente a
dimenso moral do ser humano. O termo "deontologia" ou
"cincia do dever", entretanto, somente veio a ser
cunhado pelo filsofo ingls Jeremy Bentham, em 1834, quando
tornou sinnimas a tica, ou o conhecimento cientfico sobre a
moralidade, e a cincia do que necessrio ser feito; Deontology
or the Science of Morality, como intitula-se o livro do filsofo
ingls, pretendia, precisamente, criar uma nova rea da
filosofia, que deveria tratar da cincia ou teoria (logos)
do que necessrio ser feito (do grego deon). O termo
deixou de ter suas caractersticas filosficas ao ser aplicado,
extensivamente, durante o sculo XIX, para significar os cdigos
de tica profissionais, que no so produtos de uma reflexo
tico-filosfica.
O paradigma tico-profissional da medicina, estabelecido na Grcia
Antiga, daria sinais de esgotamento normativo durante a segunda
metade do sculo XX, no quadro do chamado "vazio tico",
em que mergulhou a civilizao tecnocientfica da modernidade.
A diversidade dos problemas morais, que atingiu o seu paroxismo na
prpria negao da existncia de qualquer valor tico
universal entre os homens, surgiu em todos os aspectos da civilizao
tecnocientfica, mas encontrou nas indagaes suscitadas pela
biotica campo frtil, onde a empria exigia de forma urgente,
e mais do que em outras reas do conhecimento, a reflexo tica.
Para que se possam entender os problemas e as perspectivas da biotica
contempornea, torna-se necessrio, preliminarmente,
estabelecer-se as relaes entre a crise cultural dessa forma
civilizatria e a conscientizao moral crescente da sociedade,
que encontra na biotica uma de suas principais manifestaes.
Nesse sentido que se pode afirmar ser a biotica o mais no
novo ramo da filosofia moral, por ter surgido da necessidade de se
estabelecer princpios racionais que explicassem e fundamentassem
o comportamento do homem face a novos conhecimentos e tecnologias.
E somente poderia ter ganho corpo cientfico no quadro de uma
especfica cultura e civilizao, pois a biotica extravasou
da anlise medico-paciente e atingiu todo o contexto que envolve
os problemas da vida, da sade, da morte e das tecnologias a elas
relativas.
O fenmeno cultural e de civilizao, denominado de tecnocincia,
ocorreu de modo progressivo a partir do sculo XVII, quando se
processou uma radical mudana no paradigma do conhecimento
humano, provocada pelo advento da cincia galileiana da natureza.
O novo tipo de conhecimento consagrou os modelos operativos, tanto
tericos, quanto tcnicos, fazendo com que houvesse "uma
perfeita homologia na ordem do conhecer e do fazer, entre o ser
humano e o mundo por le transformado" (Lima Vaz, 1998: 32).
A tecno-civilizao modificou, portanto, no smente a forma
do conhecimento humano, mas tambm o prprio estatuto natural da
situao do homem no mundo ou, como dizem os filsofos, do
nosso ser-no-mundo. O homem deixa de ser um agente,
exclusivamente, voltado para dominar e controlar o mundo que o
cerca, ando a receber desse domnio uma influncia reflexa,
que ir alterar o prprio estatuto da sua humanidade. Por essa
razo, alguns filsofos contemporneos (Jonas, 1995 e 1998;
Hottois, 1993: 11 e segs.) procuram demonstrar que a tica
contempornea exige uma fundamentao, que no se esvai na prtica
de tal ou qual virtude ou na observao de tal regra. No
contexto dessa civilizao tecnocientfica que se afirma ser
a biotica o campo prprio para repensar a tica, pois o
material de reflexo do novo ramo da filosofia moral trata com o
nascimento de uma nova humanidade e de uma nova natureza. A
interferncia do homem no mundo que o cerca modifica no somente
o mundo, mas o prprio homem, que se v diante de possibilidades
at ento desconhecidas, como so as advindas dos novos
conhecimentos proporcionados pelas cincias biolgicas; so
conhecimentos que no se restringem explicao do mundo
natural, mas que apontam para mudanas no prprio ser humano.
O desenvolvimento das cincias e
das tcnicas, nos dois ltimos sculos, trouxe consigo
desafios, que tm a ver com o surgimento de novos tipos de relaes
sociais no quadro cultural da tecno-civilizao. O renascimento
do debate tico em todos os domnios da atividade humana talvez
encontre a sua explicao final na necessidade da conscincia
do homem contemporneo em situar-se face ao fato de que, o
paradigma cientfico domina cada vez mais as foras da natureza
e, ao mesmo tempo, interfere de forma crescente no mundo natural,
suscitando problemas que no encontram respostas no quadro da prpria
cultura tecnocientfica, onde surgiram e desenvolveram-se. A
principal dessas intervenes a que ocorre no corpo das cincias
biolgicas, onde o homem, ao ampliar o seu domnio sobre a
natureza, intervm na sua prpria condio natural de pessoa e
possibilita a implantao de tecnologias sem previso quanto s
suas conseqncias. Por lidar com esse novo tipo de
conhecimento, o homem contemporneo interroga-se de forma
crescente sobre as dimenses, as repercusses e as perspectivas
das novas descobertas cientficas e de suas aplicaes tecnolgicas.
A biotica nasce, assim, como uma
resposta a desafios encontrados no corpo de uma cultura, de um
paradigma do conhecimento humano e de uma civilizao. Antes de
tudo, a expresso terica da conscincia moral de um novo
tipo de homem no seio de uma nova cultura e civilizao.
Distingue-se, portanto, de uma tica estritamente profissional,
pois trata da anlise terica das condies de possibilidade
dos valores, normas e princpios, que procuram ordenar o avano
cientfico e tecnolgico. O progresso cientfico, por outro
lado, em virtude de suas aplicaes tecnolgicas, no se
processa de forma neutra, mas, no campo da engenharia gentica,
envolve uma rede imensa de interesses econmicos que acabam por
questionar os prprios fundamentos da tradio tica
ocidental. Mdicos e pacientes, empresas de seguro de sade,
grandes indstrias farmacuticas, disputas na comunidade
cientifica por recursos cada vez mais vultosos para a pesquisa,
investimentos pblicos e privados na aplicao dos produtos
resultantes das pesquisas, tudo contribui para que os princpios
reguladores da medicina tradicional tornem-se insuficientes para
regular as relaes sociais, econmicas e polticas nascidas
na civilizao tecnocientfica. A chamada crise tica
refere-se, precisamente, ao conflito entre aquela tradio e os
valores da cultura da tecno-civilizao, que servem como
alicerces para a construo de novas, imprevisveis e
descontroladas relaes sociais e econmicas.
4. Origens e evoluo temtica da biotica
No contexto da tecnocincia, o conflito referido assumiu peculiar
intensidade no mbito da biologia contempornea, principalmente
nas suas mais avanadas realizaes, que se encontram no campo
da engenharia gentica. O progresso cientfico e suas aplicaes
tecnolgicas provocaram o surgimento de um complexo e intricado
conjunto de relaes sociais e jurdicas, que envolve valores
religiosos, culturais e polticos diferenciados e, tambm, a
construo de poderosos interesses econmicos que se refletem
na formulao de polticas pblicas. As questes ticas
suscitadas pela cincia biolgica contempornea tratam, assim,
das interrogaes feitas pela conscincia do indivduo diante
dos novos conhecimentos, e, tambm, como esses conhecimentos
materializados em tecnologias esto repercutindo na sociedade.
Vemos, ento, como a complexidade das relaes estabelecidas em
virtude da nova cincia e tecnologias no campo da engenharia gentica,
fazem com que a biotica e o biodireito, no possam ficar
prisioneiros da teorizao abstrata ou do voluntarismo
legislativo, pois ambos so chamados a responder indagaes
prticas e imediatas, que nascem de relaes sociais, econmicas,
polticas e culturais caractersticas da civilizao atual.
Esse conjunto de relaes pode
ser analisado, do ponto de vista tico, sob aspectos distintos:
em primeiro lugar, considerando que o mais novo ramo da filosofia
moral - a biotica - constitu uma fonte e parmetro de referncia,
tanto para o cientista, como para o cidado comum. Em segundo
lugar, procurando-se estabelecer quais os princpios racionais,
que fundamentam a biotica e como podem servir de parmetros ticos
na formulao de polticas pblicas, que encontraro nas
normas jurdicas a sua formalizao final. E, finalmente, como
o biodireito, conjunto de normas jurdicas destinadas a
disciplinar essas relaes, dever encontrar justificativas
racionais que o legitimem. Encontramo-nos, assim, diante do
problema nuclear do pensamento social, qual seja, o da convivncia
de duas ordens normativas - a moral e o direito - diferenciadas
entre si, mas que mantm um carter de complementaridade, que
impea, parafraseando Kant, o vazio da biotica sem o biodireito
e a cegueira do biodireito sem a biotica.*
O termo biotica foi proposto, pela primeira vez, no incio da dcada
dos setenta, pelo cancerologista Potter Van Rensselaer. O
precursor do uso do termo empregou-o em sentido bastante
diferenciado daquele que encontramos na atualidade. Potter
considerava que o objetivo da disciplina deveria ser o de ajudar a
humanidade a racionalizar o processo da evoluo biolgico-cultural;
tinha, portanto, um objetivo moral-pedaggico . Andre Hellegers,
fisiologista holands e fundador do The Joseph and Rose
Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and
Bioethics, ou a empregar a palavra em sentido mais amplo,
relacionando-a com a tica da medicina e das cincias biolgicas.
Ambos os precursores no emprego da palavra, procuraram solues
normativas para problemas que, desde o incio da dcada dos cinqenta,
inquietava os meios cientficos. Tratava-se de avaliar as conseqncias
dos rpidos avanos nas cincias biolgicas e controlar, ou
humanizar, os seus efeitos. Tentavam os iniciadores da biotica
fazer com que a prpria comunidade cientfica definisse princpios
ticos, inibidores da sndrome de Frankstein, que rondava a cincia
biolgica desde os experimentos dos mdicos nazistas.
O nascimento da biotica ocorreu,
assim, em contexto histrico e social especfico (Parizeau,
1996), correspondendo ao momento de crise da tica mdica
tradicional, restrita normatizao do exerccio profissional
da medicina, que no conseguia responder aos desafios morais
encontrados no contexto da cincia biolgica contempornea. A
primeira contestao aos padres tradicionalmente utilizados
pela corporao mdica nas suas relaes com os pacientes, e
que revelou a insuficincia dos cnones da deontologia mdica
clssica, surgiu, entretanto, no bojo de um movimento social mais
abrangente, onde a autoridade mdica foi questionada, como as
demais autoridades constitudas, como sendo representante do status
quo do Estado liberal e da maquinria burocrtica, montada
para atender s polticas do bem-estar social dessa forma de
organizao estatal. Essas reivindicaes, que caracterizaram
o movimento social nos anos de 1960, foram expressas por algumas
bandeiras: questionou-se a legitimidade das instituies, do
Estado e da religio, o que provocou mutaes profundas na vida
privada dos indivduos e na vida pblica; no campo das cincias
humanas e da vida ocorreram profundas mudanas em virtude de
novos conhecimentos, novas tecnologias genticas e da consagrao
de novos valores: fecundao in vitro, transplantes de
orgos, aperfeioamento das tcnicas de enxertos, descriminalizao
do suicdio, do aborto, do homossexualismo, a legalizao do
divrcio, a questo do transexualismo, o emprego generalizado de
mtodos anticoncepcionais, a desinstitucionalizao das
instituies psiquitricas, todos so temas que se
incorporaram cultura contempornea atravs de acirrados
debates cientficos e morais, envolvendo universidades,
pesquisadores, igrejas, partidos polticos, imprensa, organizaes
sociais e profissionais.
Nesse quadro de profundas modificaes
culturais, as relaes mdico-paciente foram denunciadas como
sendo mais uma forma de paternalismo, entre as muitas encobertas
pela sociedade liberal, a ser substituda por uma relao
transparente e responsvel. Os imensos progressos das cincias
biolgicas provocaram, entretanto, uma atitude ambivalente em
relao ao modelo tecnocientfico vigente da medicina, responsvel,
alis, pelos progressos alcanados no combate s doenas e
endemias. A biotica surgiu como resposta ao conflito entre a tica
mdica deontolgica, restrita corporao mdica, e as
reivindicaes de transparncia e responsabilidade pblica,
levantadas pelo movimento social, que reconhecia, entretanto, as
conquistas fundamentais realizadas pelas cincias biolgicas.
Vemos ento, como nas suas origens, a biotica, e o biodireito,
logo em seguida, iriam ter que conviver com essas duas dimenses:
de um lado, a crtica s prticas ticas da medicina
tradicional, consideradas inaptas para lidar com o novo mundo da
biologia e tecnologias genticas; de outro lado, a necessidade de
apoio e incentivo s pesquisas que traziam avanos considerveis
na luta contra as doenas e epidemias.
A biotica trouxe do nascedouro
algumas caractersticas, tornando-se evidente que as pesquisas da
cincia biolgica ampliavam os seus horizontes, deixando o campo
da busca da cura e desdobrando-se em temas, como as novas
formas de procriao, a eutansia, a clonagem e as polticas pblicas
relacionadas com esses temas. O campo de conhecimento da biotica
exigiu, assim, a incorporao temtica original de outras reas
cientficas. Por essa razo, a biotica contempornea
tornou-se, necessariamente, um conhecimento interdisciplinar, pois
ela parte, mas, na realidade, ultraa a tica mdica,
restrita s relaes mdico-paciente. Isto por que trata de
investigaes que envolvem a vida humana na perspectiva teraputica
e tambm de pesquisas puras, que podem ou no levar aplicaes
prticas. Esse conhecimento, portanto, no se esgota na reflexo
sobre as novas terapias, mas desdobra-se acompanhando as mltiplas
aplicaes tecnolgicas, que iro envolver outras reas de
conhecimento sobre o homem e a sociedade. Por essas razes, a biotica
tem uma dupla face, pois ela um discurso e uma prtica,
materializando-se no na teoria acadmica, mas na prtica dos
hospitais, nos comits de biotica e na formulao de polticas
pblicas. Esse duplo aspecto da biotica que a torna um ramo
da filosofia moral, comprometida com um tipo de conhecimento
voltado para a prtica.
A anlise filosfica da biotica,
que ir possibilitar o estabelecimento dos parmetros racionais,
ticos e universais do biodireito, pode ser desenvolvida em duas
dimenses:
a) trata-se, no primeiro nvel, de
desenvolver os argumentos racionais, que possam fundamentar e
explicar os valores e princpios envolvidos. A biotica, sob
esse aspecto, situa-se num nvel meta-deontolgico e analtico.
Pretende-se, portanto, menos tomar posio, e em conseqncia
expressar uma verdade cannica, e mais descobrir os argumentos
contraditrios ou tautolgicos encontrados no discurso biotico;
b) no segundo nvel, a biotica
procura explicitar recomendaes objetivas, que contribuam para
solucionar problemas especficos e circunscritos. Encontram-se
nesse caso pareceres dos filsofos morais sobre problemas de poltica
pblica ou decises judiciais, como, por exemplo, os pareceres
do grupo de filsofos morais norte-americanos, que, como amicus
curiae, ajudaram Crte Suprema dos Estados Unidos a
decidir sobre a eutansia. *
A biotica, portanto, no pretende constituir-se no corpo de uma
moralidade cannica, estabelecida por uma autoridade religiosa ou
poltica, que impe a sua concepo moral prpria, pois a
sociedade pluralista em que vivemos no comporta uma mesma
resposta para os problemas morais, mas mltiplas interpretaes
de diferentes cdigos morais, pertencentes a diversas
comunidades. A biotica , assim, considerada como sendo
necessariamente plural, e pode ser caracterizada "como uma lgica
do pluralismo, como um instrumento para a negociao pacfica
das instituies morais" (Engelhardt, 1991:19 ). Para a
realizao da negociao pacfica, peculiar ao argumento tico,
supe-se que seja possvel determinar um princpio de
universalidade, como raiz da vida moral e jurdica.
O mais novo ramo da filosofia moral
poder definir, assim, no um cdigo de normas substantivas,
que sirva de guia para as polticas pblicas de sade e de
pesquisa biolgica, mas sim analisar as condies racionais
para a existncia de argumentos, fundadores de princpios, que
sero materializados atravs da ordem jurdica, e visem
resguardar a pessoa humana e os seus descendentes. Os problemas
bioticos referem-se em sua amplitude s condies de conservao
e melhoria da prpria condio humana, que se expressam no
estado da sade de cada pessoa, reflexo no smente de condies
fsicas ou psquicas do indivduo, mas, tambm, de polticas
pblicas e da prtica da medicina (Gadamer, 1996). Nesse
sentido, a biotica insere-se na tradio da tica prtica,
analisando do ponto de vista tico a prtica da medicina e, tambm,
os fundamentos e objetivos das polticas pblicas de sade.
Os propsitos da biotica so
necessariamente limitados, tendo em vista a situao social
contempornea, na qual ocorre uma descontinuidade entre a
racionalidade e a moralidade. A principal razo para essa ruptura
intelectual, advm do fato de que presenciamos uma anemia
crescente no debate pblico sobre a natureza e a funo da
moralidade. Construmos e convivemos com diferentes
justificativas morais, que no mais fazem referncia a um Deus
unificador, gnese do que certo e do que errado, do bom e
do mal, fonte durante sculos da moralidade. A necessidade da biotica
na contemporaneidade - como, alis, da filosofia moral de um modo
geral - prende-se ao fato de que o modelo de sociedade
individualista e socialmente atomizada dos tempos atuais,
encontra-se questionada em seus fundamentos pelo prprio
relativismo moral, que dela tomou conta. A fome pela tica no
nosso tempo, principalmente levando-se em considerao as
interrogaes morais provocadas pelas cincias biolgicas e
tecnologias mdicas, expressa o entendimento essencial do ser
humano de que, para alm das convices individuais,
encontra-se a necessidade de se estabelecer um balanceamento entre
os custos e os benefcios do mais ambicioso projeto da ps-modernidade:
adiar a morte ( Engelhardt: 1996: 14).
UERJ/UGF
http://www.fdir.uerj.br/publicacoes/publicacoes/vicente_barreto/vb_8.html
"Lo que hace un hombre es como si lo hicieran todos los
hombres. Por eso no es injusto que una desobediencia en un jardin
contamine al gnero humano..."Jorge Luis Borges, Ficciones.
Existe, portanto, uma tenso
permanente entre os valores morais e os cnones ticos
encontrados na sociedade pluralista da modernidade. A prpria
natureza humana concebida de forma diversa pelas diferentes
tradies culturais e religiosas. Dentro da tradio judico-crist,
por exemplo, encontramos posies divergentes diante de uma
mesma situao fatual, obrigando o mdico a agir de uma ou de
outra forma. Por outro lado, os regimes democrticos contemporneos
romperam as muralhas institucionais protetoras de segredos,
tornando-se cada vez mais reduzido o nmero de fatos protegidos
sob o manto dos arcana imperii, permitindo-se um contrle
mais efetivo pela sociedade civil dos rumos das pesquisas e experincias
cientficas. A mentalidade dos cientistas, certo, encontra
dificuldades em lidar com essa nova realidade poltico-institucional,
caracterizada por uma conscincia crescente da comunidade na
defesa de valores e direitos considerados essenciais para a pessoa
humana. O professor Robert Edwards, que, com Patrick Steptoe,
iniciou a tcnica da fertilizao in vitro, em discurso
pronunciado, em 1987, advertia para essa deficincia na formao
dos cientistas: "os cientistas so notoriamente desprovidos
de tica se comparados populao em geral. Muitos deles no
se interessam em participar desses debates sequer em seu prprio
campo de trabalho, a menos que as circunstncias sociais os
empurrem literalmente para a discusso tica. A maioria dos
cientistas nunca teve uma formao tica e enfrenta considerveis
dificuldades, quando obrigada a expressar seus prprios princpios
ticos em relao sua disciplina" (Wilkie, 1994: 19).
5. Os princpios da biotica
Desde os seus primrdios, imaginou-se a biotica como uma fonte
de normas, regras gerais e princpios, cujo objetivo principal
seria o de disciplinar eticamente o trabalho de investigao
cientfica e de aplicao dos seus resultados, protegendo a
biologia da ameaa de deshumanizao. A prpria comunidade
cientfica despertou para essa necessidade, fazendo com que os
princpios da biotica constitussem, nas suas primeiras
formulaes, uma espcie de cdigo de tica profissional para
cientistas e pesquisadores. A partir do incio da dcada dos
cinqenta, a rapidez e sofisticao das novas descobertas biolgicas,
suscitaram indagaes morais, que procuraram resposta na formulao
de princpios ticos, que em sua origem, pretendiam regular a
pesquisa e a engenharia genticas, consideradas, em muitos
aspectos, como uma ameaa inviolabilidade da pessoa humana.
Mas os princpios pretendiam, tambm, exercer o papel de fonte
de obrigaes e direitos morais, constituindo-se em principia
(Engelhardt, 1996: 103), que expressavam razes da vida
moral, sendo suas determinaes obrigatrias por si mesmas.
Os avanos do conhecimento cientfico,
no contexto de desconhecimento objetivo sobre os resultados da
aplicao das tecnologias e, tambm, de uma certa parania
nascida, mais do culto da fico cientfica do que propriamente
da cincia, provocaram uma proliferao de regras bioticas ou
deontolgicas de carter geral, cuja fundamentao
encontram-se nos princpios da biotica.. Os antecedentes
normativos do biodireito, mais ticos do que jurdicos,
representaram smente a primeira resposta para que pudesse ser
preenchido o vazio normativo, ocasionado pela incapacidade da
ordem jurdica vigente de lidar com as novas descobertas e suas
aplicaes, consideradas como ameaas, quando no reais,
imaginadas, para a sobrevivncia da humanidade. O vazio normativo
tornou-se mais evidente com a insuficincia da deontologia mdica
clssica em lidar com as novas descobertas e as exigncias
sociais de transparncia e publicidade na pesquisa e na prtica
mdica, fazendo com que as questes morais suscitadas
procurassem socorrer-se de princpios, que, teoricamente,
deveriam pautar eticamente o desenvolvimento da investigao
cientfica e suas aplicaes prticas. Os princpios em sua
generalidade, no entanto, no corresponderam s expectativas de
regulao e, por essa razo, legislou-se sobre a pesquisa e as
tecnologias de forma impulsiva, procurando-se resolver situaes
pontuais e no estabelecer normas jurdicas gerais.
Os fantasmas que rondaram as descobertas da biologia contempornea
tinham, entretanto, uma certa materialidade, pois o progresso biolgico
trouxe consigo a lembrana dos experimentos nazistas, o que
justificou a proclamao das normas do Cdigo de Nuremberg, em
1947. Essa foi a primeira tentativa de distinguir entre pesquisas
clnicas e no clnicas, quando se recomendou a formao de
comits destinados a regular o processo de obteno do
consentimento e do tipo de informao dada aos doentes, que
fossem objeto das pesquisas. O movimento dos comits de tica
expandiu-se, principalmente, em hospitais universitrios, sendo
formado, originalmente, por mdicos; em pouco tempo, surgiram os
comits nacionais de biotica, que a partir dos anos sessenta
foram criados nos Estado Unidos, na Gr-Bretanha, na Sucia, na
Austrlia e em outros pases, com a funo de atuarem como
instncias nacionais para o contrle do desenvolvimento da
pesquisa e da tecnologia biolgicas. Normas internacionais
terminaram por consagrar a temtica da biotica como tema planetrio,
procurando envolver em suas determinaes inclusive aqueles pases
onde no se tinham ainda estabelecidos os comits nacionais de
biotica.
Os chamados princpios da biotica
foram formulados, pela primeira vez, em 1978, quando a
"Comisso norte-americana para a proteo da pessoa humana
na pesquisa biomdica e comportamental", apresentou no final
dos seus trabalhos o chamado Relatrio Belmont; este texto
respondia quelas exigncias, acima referidas, vindas da
comunidade cientfica e da sociedade no sentido de que se
fixassem princpios ticos a serem obedecidos no desenvolvimento
das pesquisas e que deveriam ser considerados quando da aplicao
de recursos pblicos nessas atividades cientficas. O Relatrio
Belmont estabeleceu os trs princpios fundamentais da biotica,
em torno dos quais toda a evoluo posterior dessa nova rea do
conhecimento filosfico iria desenvolver-se: o princpio da
beneficncia, o princpio da autonomia e o princpio da justia,
chamado por alguns autores de princpio da equidade (Lepargneur,
1996: 133). As normas biojurdicas, promulgadas, desde ento, em
pases pioneiros na legislao do biodireito, como a Gr-Bretanha,
Austrlia e Frana, tiveram como referencial ltimo esses princpios
estabelecidos pelo Relatrio Belmont. O exame desses princpios
permite que se tenha uma idia, no entanto, de suas limitaes
como princpios fundadores de uma tica e de um biodireito na
sociedade pluralista e democrtica.
O princpio da beneficncia deita
suas razes no reconhecimento do valor moral do outro,
considerando-se que maximizar o bem do outro, supe diminuir o
mal; o princpio da autonomia estabelece a ligao com o valor
mais abrangente da dignidade da pessoa humana, representando a
afirmao moral de que a liberdade de cada ser humano deve ser
resguardada; o princpio da justia ou da equidade estabelece,
por fim, que a norma reguladora deve procurar corrigir, tendo em
vista o corpo-objeto do agente moral, a determinao estrita do
texto legal. Verificamos que os trs princpios correspondem a
momentos e perspectivas subsequentes na evoluo da biotica, e
em conseqncia do biodireito: o momento e a perspectiva do mdico
em relao ao paciente; o momento e a perspectiva do paciente
que se autonomiza em relao vontade do mdico; e,
finalmente, o momento e a perspectiva da sade do indivduo na
sua dimenso poltica e social.
Alguns problemas de ordem racional
surgem, entretanto, na anlise da formulao e aplicao
desses princpios. O estabelecimento de princpios, expressando
razes da vida moral, como quer Engelhardt (1996: 103), significa
que iro formular uma determinao que, em ltima anlise,
torna-se cannica - pois quem ir definir em cada caso qual o
"verdadeiro" significado de cada um deles -, e com isto
terminam por negar o princpio racional bsico de que as leis
morais resultariam de uma ampla argumentao pblica entre
pessoas autnomas. A aplicao dos princpios, por sua vez,
leva situaes conflitantes, entre si, a partir da constatao
de que tomados, separadamente, cada um deles pode ser considerado
como superior ao outro. Logo, logicamente, a sua aplicao no
pode ser feita de maneira conjunta e no diferenciada, pois
implicaria num processo de paralisao mtua do processo decisrio.
A prpria origem de cada um dos
princpios da biotica mostra, em sua formulao restrita, que
no atendem s demandas da ordem normativa, moral e jurdica de
uma sociedade pluralista e democrtica. As condies mnimas
para a construo de qualquer sistema normativo - i.e., ordem e
unidade - supem a coexistncia de princpios, que sejam
complementares e no, como o caso dos princpios da biotica,
princpios que partem de pressupostos e cujos objetivos so
mutuamente excludentes. O princpio da beneficncia tem suas
origens na mais antiga tradio da medicina ocidental, na qual o
mdico deve visar antes de tudo o bem do paciente - definido
pelas luzes da cincia , sendo que o principal desses bens a
vida; logo, o compromisso maior do mdico o de envidar todos
os esforos e empregar todos os meios tcnicos tornados viveis
pela cincia e pela tecnologia para manter vivo o paciente, mesmo
contra a vontade deste ltimo. O princpio da autonomia, por sua
vez, surge dentro da tradio liberal do pensamento poltico e
jurdico, que por sua vez deita suas razes no pensamento
kantiano; o indivduo, dentro da concepo liberal, um
sujeito de direitos, que garantem o exerccio de sua autonomia,
sendo que como paciente deve, tambm, ter aqueles direitos, que o
situam como pessoa e membro de uma comunidade, advindo dessa
constatao, o direito do paciente decidir, como sujeito de
direito, na relao mdico-paciente. O princpio da justia
recebe a sua primeira formulao no bojo da crise do estado
liberal clssico, quando o processo de democratizao dessa
forma de organizao poltica a a considerar a sociedade e
o Estado como tendo a obrigao de garantir a todos os cidados
o direito sade; essa obrigao torna o Estado e a sociedade
agentes e responsveis na promoo da sade do indivduo,
achando-se estabelecida na Constituio brasileira de 1998, nos
seguintes termos: "a sade direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que
visem reduo do risco de doena e de outros agravos e ao
o universal igualitrio s aes e servios para sua
promoo, proteo e recuperao" ( art. 196).
Torna-se, assim, evidente que a aplicao literal dos trs
princpios da biotica de modo mecnico, sem que sejam
discutidos os seus fundamentos ticos, podem tornar-se
conflitivos, contraditrios e auto-excludentes.
Em cada princpio, privilegia-se um elemento diferente, sendo que
a prtica deformada de cada um desses princpios provoca situaes
sociais injustas. Assim, o princpio da beneficncia pode
facilmente transmutar-se em paternalismo mdico, tendo sido
contra esta caracterstica da prtica mdica dos ltimos cem
anos, que se manifestou o movimento social dos anos sessenta. O
princpio da autonomia, por sua vez, pode instaurar o reino da
anarquia nas relaes entre mdico e paciente, isto
acontecendo, quando a liberdade individual a a representar o
escudo atrs do qual o paciente impede que o mdico exera a
sua funo. O princpio da justia, por fim, corre o risco de
transformar-se na sua prpria caricatura nas mos da burocracia
estatal, sob a forma de paternalismo e clientelismo poltico. O
que se encontra por detrs da aplicao mecnica desses princpios,
como se fosse possvel a sua aplicao conjunta, a tentativa
de justificar-se a hegemonia de uma das trs dimenses da sade
na sociedade contempornea, o paciente, o mdico e a sociedade.
Os trs princpios smente adquirem sentido lgico se forem
considerados como referentes a cada um dos agentes envolvidos: a
autonomia, referida ao indivduo, a beneficncia ao mdico e a
justia sociedade e ao Estado. A aplicao isolada de cada
um desses princpios, no entanto, terminar por consagrar as
situaes sociais injustas a que fizemos referncia. Torna-se,
ento, necessrio procurar um modelo que no permita a
hegemonia de um princpio sobre os dois outros, mas que assegure
a justificao, a integrao e a interpretao dos trs
princpios. Em outras palavras, como fazer com que a autonomia
seja preservada, a solidariedade garantida e a justia promovida.
6. A agenda temtica da biotica
A aplicao desses princpios tem sido realizada em contextos
especficos, o que possibilita a elaborao de uma agenda temtica
da biotica da qual poderemos remontar e procurar solucionar o
problema da contradio, considerando-se que quando nos
referimos a princpios, estamos fazendo referncia a parmetros,
que mesmo sendo auto-excludentes, referem-se a determinados temas.
Na biotica, esses princpios tm por objeto material o
processo de avaliao tica da pesquisa e das tecnologias da
biologia e da medicina contempornea. Os parmetros, no entanto,
exigem para a sua materializao, uma contextualizao temtica,
que delimite o universo prprio onde devero ser aplicados.
Parizeau (1996) sistematizou a temtica do discurso da biotica
nos seguintes itens:
a) a relao mdico-paciente, em
grande parte contemplada nos cdigos de tica mdica;
b) o problema da regulamentao das experincias e pesquisas
com os seres humanos;
c) a anlise do ponto de vista tico das tcnicas concernentes
procriao e morte tranqila ou eutansia;
d) a anlise tica das intervenes sobre o corpo humano
(transplantes de rgos e tecidos, medicina esportiva e
transexualismo);
e) a anlise tica das intervenes sobre o patrimnio gentico
da pessoa humana;
f) a anlise tica das repercusses do emprego das tcnicas de
manipulao da personalidade e interveno sobre o crebro (
psicocirurgia e contrle comportamental da psiquiatria);
g) a avaliao tica das tcnicas genticas e suas repercusses
no mundo animal.
Vemos como a temtica cobre uma
ampla gama de questes que se iniciam no mbito exclusivo do
indivduo e sua sade e termina nos debates sobre as repercusses
sociais de decises, tambm de carter individual ( como
aquelas que envolvem os transexuais). Ressente-se, entretanto,
essa agenda temtica daqueles problemas, a que faz referncia
Hans-Georg Gadamer, que so os problemas relativos sade como
bem do indivduo e bem da coletividade. Somente nos ltimos
anos, a biotica comeou a considerar, alm da anlise das
decises que envolvem a escolha do tipo de pesquisas a serem
financiadas com recursos pblicos, o problema relativo s polticas
pblicas de sade e previdncia, que testam o princpio de
justia e o princpio da autonomia. A anlise dos escolhas
morais, que se encontram subentendidas na definio de polticas
pblicas um tema, que por si mesmo, exige um tratamento terico
parte, pois encontram-se, tambm, nesse terreno, dados empricos
necessrios para a avaliao das possibilidades dos princpios
da biotica.
7. Duas respostas aos temas da biotica
As questes polticas referentes biotica foram respondidas
de forma diversas pelas duas grandes linhas do pensamento
contemporneo: liberais e conservadores. Para que se possa, de
uma forma geral, verificar onde se encontram as diferenas entre
os dois grandes grupos doutrinrios do cenrio poltico da
modernidade, torna-se necessrio situar as polticas advogadas,
por ambas as correntes do pensamento social, no quadro de trs
perguntas bsicas, cujas respostas servem para diferenciar os
pensadores liberais dos pensadores conservadores ( Fagot-Largeault,
1996: 33 e segs.). Essas perguntas representam o cerne da indagao
biotica contempornea e em funo delas encontramos, grosso
modo, respostas que tm a ver com a concepo do homem e da
sociedade, como foram formuladas pelo pensamento social.
As perguntas que constituem o cerne
da temtica poltica da biotica so as seguintes:
a) o que necessrio evitar?
b) o que necessrio promover e apoiar?
c) qual o estatuto do corpo humano?
As respostas s trs questes acima referidas traaram o
quadro terico dentro do qual desenvolveu-se o debate sobre a biotica
nos tempos atuais, quadro este que dever informar ou
complementar o trabalho do legislador e do julgador. primeira
pergunta, os conservadores responderam com a afirmao de que no
se encontra em discusso a liberdade dos indivduos, mas sim os
problemas individuais e sociais, provocados pelas novas
tecnologias, ainda no devidamente controladas e conhecidas em
suas conseqncias pelo homem. Sustentam os conservadores que,
no caso de dvida, deve-se paralisar as experincias e
transferir para especialistas bem intencionados a deciso e o
contrle final do processo cientfico e tecnolgico.
Os liberais, por sua vez, respondem
colocando em situao privilegiada o indivduo, acima de
consideraes de carter pblico ou social. Considerado como
agente moral, cuja a liberdade constitui a sua dimenso
principal, o indivduo o senhor absoluto dos seus destinos, no
devendo sujeitar-se s imposies dos detentores do
conhecimento ou do poder pblico; trata-se, portanto, para os
liberais, de evitar qualquer restrio ao exerccio pleno da
liberdade individual. Em torno da idia de pessoa e de liberdade,
a boa doutrina liberal ( Engelhardt, ob.cit.) sustenta que, por
tratar-se da pessoa humana, e em funo dela, que se devero
aplicar os princpios da biotica; e da pessoa humana que vive
numa sociedade democrtica e pluralista, significando, assim, que
os princpios da biotica supem a existncia de uma sociedade
liberal. Essa objetivao dos princpios da biotica, para
Engelhardt, smente pode ocorrer na sociedade plural, estruturada
atravs de uma ordem poltica liberal, sendo essa a razo pela
qual, em seu pensamento, o princpio da autonomia torna-se hegemnico
em relao aos dois outros princpios da biotica. A soluo
poltica liberal deixa, ento, para o indivduo, atravs de
seus representantes polticos, a tarefa de avaliar o progresso da
cincia e da tecnologia, cujo ritmo e objetivos devero estar
sujeitos ao contrle da sociedade civil.
A segunda questo de carter geral que se coloca para a biotica
- o que se deve fazer -, tambm, respondida de forma diversa
pelas duas correntes de pensamento. O pensamento liberal sustenta
que se deve promover a tolerncia e assegurar a resoluo pacfica
dos conflitos. Os conservadores consideram, por outro lado, que se
torna necessrio aprofundar os debates sobre as descobertas e
tecnologias da gentica, antes que a cincia humana aventure-se
por campos do conhecimento ainda pouco conhecidos; esses debates
devem obedecer a uma estratgia poltica de dissuaso, atravs
do medo, a chamada "heurstica do medo" ( Hottois,
1993:23). Assim, na concepo conservadora seria exorcizada a
compulso tecnicista da contemporaneidade, que, ao ver de
importantes crticos da modernidade, transformou o homem de
sujeito em objeto da tcnica.
Tanto liberais, como conservadores, entendem o estatuto do corpo
do indivduo de forma diferente, sendo que esse entendimento
resulta de uma concepo, tambm diversa, da natureza ontolgica
do ser humano. Para os conservadores, o homem estrutura-se em funo
de uma unidade orgnica, na qual a liberdade constitui a espinha
dorsal, essencial para o equilbrio e aperfeioamento da pessoa
humana. Por essa razo, a natureza biolgica do ser humano
facilmente atingida pelas temidas agresses tecnolgicas, cujas
conseqncias acabam atentando contra a prpria natureza
humana. Sustentam os conservadores ser necessrio suspender essas
experincias, que resultam em violaes desse espao primitivo
de liberdade natural, para que se possa recuperar a unidade
natural do indivduo. Os liberais respondem questo sobre o
estatuto do ser humano relacionando-o com uma das formas naturais
que garantem o exerccio da liberdade; na verdade, os liberais,
pelas prprias caratersticas do seu pensamento, no tm uma
concepo unificada do ser humano, a no ser a remisso
liberdade.
As diferentes respostas, dadas por liberais e conservadores,
permitem determinar qual o entendimento do homem e da sociedade,
que se encontra subjacente em cada uma das posies e quais as
conseqncias para o mundo da nova biologia. A posio
conservadora parte da suposio de que as aplicaes dos novos
conhecimentos, principalmente genticos, devem ser encarados com
cautela. No se encontrando no contexto das biotecnologias parmetros
seguros, que possam servir de referncia para pesquisas, ainda
embrionrias, deve-se procurar preservar a todo o custo a esfera
da pessoa, considerada como um todo orgnico. Propem os
conservadores, o estabelecimento de uma moratria nessas
pesquisas, impedindo-se, assim, que a natureza humana seja
desnaturada (Jonas, 1980:141 e segs.). Essa moratria serviria,
portanto, para resguardar a pessoa humana de tecnologias que podero
ou no modificar a prpria natureza humana, pois, sustentam os
conservadores, ningum conhece com preciso os resultados e as
repercusses, principalmente, da engenharia gentica. O temor de
um progresso cientfico e tecnolgico, que se desenvolvia em
ritmo acelerado, a partir de 1950, fez mesmo com que o argumento
contrrio ao prosseguimento das pesquisas fosse aceito pela
comunidade cientfica, durante a reunio de Asilomar, em 1974,
quando cientistas concordaram em estabelecer uma moratria nas
pesquisas sobre a recombinao artificial com vistas transferncia
de material gentico para uma clula receptora. Em 1975, ainda
em Asilomar, a moratria foi suspensa, retomando-se as pesquisas.
Constatamos, assim, como para o pensamento conservador o
importante, tendo em vista a imprevisibilidade do novo mundo que
se vai abrindo para o conhecimento humano, evitar o risco
tecnolgico, ainda que custe novos avanos na cincia.
A posio liberal sustenta no ser possvel determinar uma
definio do bom e do mal de forma abstrata e com expresso
universal. Em conseqncia, o importante nas questes da biotica,
como em todos os demais problemas sociais, consistir na preservao
da liberdade de escolha e do debate pblico, permitindo-se que
cada indivduo e comunidade estabeleam seus prprios padres
de contrle (Charlesworth, 1993: 10 e segs.). Os liberais
consideram mesmo que esta no uma questo essencial, pois
cada sociedade, em princpio, deve determinar os seus prprios
parmetros normativos, seja do ponto de vista moral, seja sob o
aspecto jurdico.
8. Da biotica aos direitos humanos
A biotica, portanto, no se identifica com a "tica"
mdica, como esta foi entendida durante sculos, nem se
constitui em um corpus de princpios, interpretados de
forma uniforme, por diferentes correntes do pensamento social;
trata-se de uma rea de conhecimento, cujas razes encontram-se
nos dados fornecidos pelas cincias biolgicas, que fornecem o
material emprico necessrio para a reflexo propriamente filosfica.
Desde a definio de Potter, que pretendia construir um projeto
para garantir a humanizao das cincias biolgicas com vistas
melhoria da qualidade de vida, o conceito sofreu profundas
modificaes. A evoluo da biotica processou-se em funo
da necessidade de pensar-se o avano cientfico, levando-se em
conta como a interveno do homem na natureza exige a construo
de uma tica filosfica, que possa ter a pretenso de
universalidade, mas que responda s ameaas reais ou imaginadas
humanidade, conseqncia de novas descobertas e tecnologias;
essa evoluo caminhou, tambm, no sentido da construo de
um discurso tico, dentro do qual possam encaminhar-se, e achar
soluo, os conflitos que ocorrem em virtude das novas relaes
sociais e econmicas, nascidas dessas descobertas e at ento
desconhecidas pelo ser humano.
Na atualidade, o campo da biotica extrapola do mbito
das cincias da sade e apresenta uma dupla face. De um lado,
incorpora as novas formas da responsabilidade, principalmente a
responsabilidade com as geraes futuras, como foram vistas por
Hans Jonas; mas tambm aceita a idia kantiana do respeito
pessoa e do respeito ao conhecimento. A biotica surge, assim,
como o mais novo e complexo ramo da tica filosfica, pois trata
da responsabilidade em relao humanidade do futuro e, ao
mesmo tempo, considera a pessoa humana como detentora de direitos
inalienveis. Contribuem, assim, para estabelecer os seus
fundamentos duas linhas do pensamento contemporneo: a primeira,
peculiar tradio liberal, onde se proclamam e afirmam os
direitos da pessoa humana, como limites ao do Estado e dos
demais indivduos; a segunda, socorre-se de uma nova linha do
pensamento filosfico, originria da primeira, mas que a a
pensar a ao do indivduo, no somente no quadro de suas
conseqncias imediatas, mas principalmente em funo de suas
repercusses futuras. Trata-se, portanto, de construir uma tica
que ir materializar-se em novas responsabilidades.
Dentre os diferentes objetos da regulao jurdica, o problema
nodal do direito - a questo da responsabilidade -, por exemplo,
dever sofrer uma profunda reavaliao, quando lida sob essa
perspectiva tica, pois ir ultraar a concepo restrita e
ineficiente da responsabilidade civil e penal do direito liberal.
Nesse sentido, torna-se necessrio abandonar o conceito de uma
responsabilidade jurdica, comprometida em determinar uma
compensao ex post facto, e procurar construir uma nova
responsabilidade, a ser formalizada juridicamente, fundada no
conceito mais abrangente de responsabilidade moral. Nas palavras
de Hans Jonas, a civilizao tecnocientfica, que tem na
engenharia gentica uma de suas mais importantes realizaes,
encontra-se eticamente deriva, sendo que a sobrevivncia do
ser humano depende da construo de uma nova tica. Essa "tica
do futuro", escreve Jonas, "no designa a tica no
futuro - uma tica futura concebida na atualidade para os nossos
descendentes futuros -, mas sim uma tica da atualidade que se
preocupa com o futuro e pretende protege-lo, para os
nossos descendentes, das conseqncias de nossa ao
presente" ( Jonas, 1998: 69). Essa responsabilidade moral, ncleo
da tica do futuro, no , portanto, a responsabilidade civil
clssica, determinada pelo clculo do que foi feito, mas pela
"determinao daquilo que se ir fazer; um conceito em
virtude do qual eu me sinto responsvel, portanto, no em
primeiro lugar por meu comportamento e suas conseqncias, mas
da coisa que reivindica o meu agir" ( Jonas, 1995:
132). Essa a idia fundante das novas responsabilidades, que
se torna caracterstica quando referidas s coisas a que se
destinam o agir humano, seja o corpo humano, os animais ou o equilbrio
ecolgico.
Por ambas as razes, o tema da biotica extrapolou da rea
restrita dos hospitais e da prpria profisso mdica e
tornou-se tema a ser analisado na espao pblico democrtico.
Tratando de tema essencial para a sobrevivncia da humanidade, e
que envolve liberdades, direitos e deveres da pessoa, da sociedade
e do Estado, a biotica transformou-se na mais recente fonte de
direitos humanos. Esse trnsito da biotica para o
biodireito, a nvel internacional, materializou-se atravs da Declarao
Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, elaborada
pelo Comit de Especialistas Governamentais da UNESCO, tornada pblica
em 11 de novembro de 1997. O texto, assinado por 186 pases-membros
da UNESCO - portanto, fonte legitimadora do documento - estabelece
os limites ticos a serem obedecidos nas pesquisas genticas,
especificamente as pesquisas relativas interveno sobre o
patrimnio gentico do ser humano. A natureza tica e jurdica
do citado documento, como veremos adiante, remete-nos constatao
de que necessrio, para que ocorra a agem da ordem tica
para a ordem jurdica, a explicitao de uma norma, mas que
tenha caractersticas de universalidade, prprias do discurso tico.
No se trata, portanto, de uma simples formalizao jurdica
de princpios, estabelecidos por um grupo de sbios ou mesmo
proclamados por um legislador religiosos ou moral. O biodireito
pressupe a elaborao de uma categoria intermediria , que se
materializa nos direitos humanos, assegurando os seus fundamentos
racionais e legitimadores.
A formulao de uma nova categoria de direitos humanos - a dos
direitos do ser humano no campo da biologia e da gentica -
responde indagao central do pensamento social contemporneo:
a possibilidade da universalizao de direitos morais, fundados
numa concepo tica do Direito e do Estado, vale dizer, na
construo de uma ordem normativa construda atravs do dilogo
racional entre pessoas livres. Neste contexto, a possibilidade da
biotica depende, como sustentam os pensadores liberais, da existncia
de uma sociedade democrtica, pois se assim no for os valores e
princpios bioticos iro expressar a vontade dos cientistas,
ou do Estado, e no de indivduos livres e autnomos. Essa
sociedade, entretanto, necessita de mecanismos institucionais que
assegurem a manifestao de diferentes concepes religiosas,
polticas e sociais, sem as quais torna-se invivel o discurso
tico.
Como verificamos acima, os princpios provocam na sua aplicao
antinomias, que smente podem ser racionalmente resolvidas na
medida em que se puder integrar os trs princpios e no
privilegiar-se um deles. A formulao cannica, pela prpria
comunidade cientfica, desses princpios, e a sua aplicao
sem que haja uma intermediao entre o patamar tico e a prtica
social, termina por consagrar uma interpretao subjetiva e,
portanto, relativista do sentido e alcance dos principia. Esses
princpios, entretanto, serviram como inspirao na implementao
de uma nova categoria de direito humanos, que procura,
precisamente, suprir essa lacuna ou vazio existente entre a esfera
tica e as normas jurdicas constitutivas do biodireito. Em
outras palavras, o biodireito deixado merc do subjetivismo
procura amparar-se em princpios bioticos, que como tal
necessitam de uma objetivao com caractersticas de
universalidade. Estamos tratando de uma forma de direito que se
legitima racionalmente e pela expresso livre de autonomias numa
sociedade democrtica, o que pode ser identificado como um
direito construdo em funo do exerccio livre da razo,
portanto, o que Kant chamou de "direito cosmopolita". Os
princpios da biotica deixam, ento, de representar determinaes
cannicas e am a constituir uma forma de direito cosmopolita,
que sero objetivados, atravs dos direitos humanos. A formulao
encontrada na Declarao de 1997 permite comprovar a
viabilidade desse trnsito entre a tica e o direito. O
documento da UNESCO permite que se superem as dificuldades para a
implementao de princpios ticos e de direitos, que tm uma
natureza especfica, pois pretendem estabelecer limites
universais s legislaes nacionais e polticas pblicas de
estados soberanos. Mantendo a necessria vocao universalista,
a Declarao de 1997 estabelece, tambm, uma srie de
medidas, visando promoo dos princpios expressos e s
exigncias a que se submetem os estados signatrios, para a sua
implementao.
A Declarao da UNESCO divide-se em grandes eixos temticos.
O tema da dignidade humana constitui o fundamento tico de todas
as normas estabelecidas e do exerccio dos direitos delas
decorrentes ( arts. 1 - 4). A Declarao situa os
direitos das pessoas envolvidas como referencial obrigatrio para
as pesquisas e suas aplicaes tecnolgicas ( arts. 5 - 8).
O ser humano em funo dessa dignidade natural, compartilhada
por todos os seres humanos, independentemente de suas caractersticas
genticas, tem o direito de ser respeitado em sua singularidade e
diversidade (art.2, "a"). Outra conseqncia da
identificao e materializao da dignidade humana, no
respeito ao genoma, encontra-se na proibio de utiliz-lo para
ganhos financeiros ( art. 4 ).
A regulao da pesquisa cientfica tratada sob dois aspectos
correlatos: o documento estabelece, como decorrncia dos princpios
e direitos anteriormente definidos, que a pesquisa e aplicaes
tecnolgicas no podero desrespeitar os direitos humanos, as
liberdades fundamentais, a dignidade humana dos indivduos e de
grupos de pessoas. O documento no se restringe a determinar os
parmetros legais que visam proteger diretamente a pessoa humana
nas pesquisas relacionadas com o genoma humano, mas avana
procurando estabelecer as condies para o exerccio da
atividade cientfica ao prever responsabilidades, tanto dos
cientistas e pesquisadores envolvidos nessas pesquisas, como dos
Estados ( arts.10 - 16).
Os deveres de solidariedade e cooperao internacional, no
contexto da internacionalizao crescente do conhecimento cientfico,
torna-se tema necessrio na medida em que os princpios ticos
e direitos afirmados pela Declarao, tornar-se-o
vazios de contedo prtico caso no exista um compromisso dos
Estados em promover a solidariedade entre indivduos e grupos
populacionais. A cooperao internacional prevista na Declarao
sob quatro formas: atravs da avaliao dos riscos e benefcios
das pesquisas com o genoma humano, da promoo de pesquisas
sobre biologia e gentica humana, levando-se em conta os
problemas especficos dos diferentes pases, da utilizao
dessas pesquisas em favor do progresso econmico e social e
assegurando-se o livre intercmbio de conhecimentos e informaes
nas reas de biologia, gentica e medicina ( art. 19).
Os eixos temticos so desenvolvidos na Declarao
atravs, em primeiro lugar, da explicitao de princpios ticos,
e em segundo, prevendo instrumentos capazes da assegurar a observncia
desses princpios e dos direitos deles decorrentes pela
comunidade internacional, pelos estados e pela comunidade cientfica.
A originalidade do ponto de vista da teoria do direito encontrada
na Declarao do Genoma Humano reside, assim, na reunio, em um
s texto, de princpios bioticos e normas de regulao, que
obrigam o sistema jurdico internacional e nacional.
O objetivo principal da Declarao consiste em estabelecer princpios
e prever mecanismos que resguardem o genoma humano, considerado
como fundamento da "unidade fundamental de todos os membros
da famlia humana" ( art. 1). O genoma elevado,
portanto, a uma categoria universal, definidora da prpria
humanidade. Essa definio, entretanto, responde necessidade
de se estabelecer um padro que possa garantir a natureza comum
para homens de diferentes credos, etnias e convices,
tornando-os iguais e, portanto, sujeitos de um mesmo conjunto de
direitos. Encontra-se, assim, um referencial seguro para que se
possa elaborar uma normatizao com caractersticas universais
e capaz, portanto, de ser definida como um direito de toda a
humanidade.
Os direitos da pessoa so encarados pela Declarao como
repercutindo no biodireito a idia mais geral dos direitos
humanos. O texto da UNESCO prope uma srie de medidas que tm
por objetivo preservar a autonomia e a sade do indivduo.
Encontram-se nesses casos o princpio da dignidade do indivduo,
que se encontra no princpio biotico da autonomia, independente
de suas caractersticas genticas; e o princpio da
irredutibilidade do ser humano ao determinismo gentico, o que
desmente as falcias dos diferentes argumentos racistas. O
segundo princpio exemplificado no documento da UNESCO, como
instrumento de garantia da necessidade de permisso prvia para
pesquisas, tratamento ou diagnstico, e, tambm, da proteo
contra a discriminao fundada em caractersticas genticas. A
preservao do carter confidencial dos dados genticos de uma
pessoa representa uma outra face da aplicao do princpio biotico
da autonomia, pois atribui esfera dos direitos personalssimos,
informaes e dados que possam ser usados para a prtica da
discriminao social e poltica. O ponto nevrlgico do
documento da UNESCO reside, assim, na defesa do patrimnio gentico
dos indivduos como constitutivo de uma base emprica na qual se
pode construir uma tica e um direito cosmopolita, como previra
Kant.
A Declarao Universal da UNESCO, de 1997, estabeleceu,
assim, uma nova categoria de direitos humanos, o direito ao patrimnio
gentico e a todos os aspectos de sua manifestao. A concordncia
dos pases signatrios, atravs dos mecanismos prprios da
sociedade democrtica, legitima limites aos cidados, grupos
sociais e ao prprio Estado, que se obriga em funo de normas
da comunidade internacional. Esse documento internacional
representa, tambm, uma tentativa de criar uma ordem tico-jurdica
intermediria entre os princpios da biotica e a ordem jurdica
positiva, o que ir obrigar os pases signatrios, como no caso
o Brasil a incorporar as suas disposies no corpo do direito
nacional ( Constituio brasileira de 1988, art. 5 , 2).
A questo, portanto, da necessria complementaridade entre os
princpios ticos e as normas jurdicas torna-se explcita, no
caso da legislao sobre a gentica, em virtude da incorporao
ao direito nacional, por fora da norma constitucional, de normas
internacionais, que refletem valores ticos e que se destinam a
todos os povos. A caracterizao dos direitos relativos ao
genoma humano como direitos humanos torna, ainda mais evidente,
como o documento da UNESCO vem preencher um vcuo normativo no
contexto do direito nacional. Isto significa que a legislao
brasileira sobre engenharia gentica - Lei n 8 501, de 30 de
novembro de 1992; Lei n 8 974, de 05 de janeiro de 1995 e Lei n
9 434, de 04 de fevereiro de 1997, complementadas por decretos,
regulamentos e resolues do Conselho Nacional de Sade e do
Conselho Federal de Medicina, inclusive o Cdigo de tica Mdica
- depender para o seu aperfeioamento de uma anlise e um
amplo debate sobre os princpios e os direitos estabelecidos na Declarao
Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos. Far parte
integrante desse processo de aperfeioamento legislativo, o
entendimento, tanto pelo legislador, como pelo magistrado, de que
existe uma complementaridade entre a tica e o direito. A prtica
social acha-se, progressivamente, modificada pelas novas
tecnologias, ocupando lugar de destaque nesse processo o papel da
tica, que obriga a reviso de conceitos da doutrina jurdica
clssica e a conseqente revoluo paradigmtica na teoria do
direito.
As questes suscitadas pela cincia
biolgica tornaram evidentes s relaes necessrias, que
acontecem no seio de uma sociedade democrtica e pluralista,
entre os valores morais e o biodireito. O campo de conhecimento
aberto abrange uma vasta gama de possibilidades. Os problemas
suscitados no se referem smente questo da vida e suas
condies, mas tambm aqueles relativos ao fim da vida, que
encontra nas diversas legislaes relativas morte assistida e
eutansia motivo de srias e inquietantes indagaes
morais. Essas interrogaes tornam-se matria a ser julgada
pelos tribunais e debatida pela sociedade civil, sendo necessrio
a utilizao de critrios ticos comuns, vale dizer racionais,
para a busca de solues. Nesse quadro, a identificao dos
direitos do genoma humano, como sendo uma forma de direitos
humanos, constituiu um progresso, pois forneceu contedos jurdicos
a princpios ticos, e, por outro lado, assegurou, tambm, uma
fundamentao moral para a ordem jurdica do biodireito. Essa
relao de complementaridade, entretanto, somente poder
efetivar-se na medida em que se utilize uma idia como a do
direito cosmopolita, considerado, no como uma forma sofisticada
de direito das gentes, mas sim como um modelo jurdico, que
apresenta um contedo tico original, caracterstica que se
encontrava implcita na concepo do seu primeiro formulador.
Os direitos humanos, assim entendidos, constituem a formalizao
desse direito cosmopolita, primeira manifestao de uma leitura
tica do direito e do Estado. Verifica-se, ento, como a aplicao
da idia do direito cosmopolita, permite que se recupere o
sentido tico original da ordem jurdica no pensamento kantiano.
A idia do direito cosmopolita serve, portanto, de categoria
racional, para que se possa realizar um enxerto propriamente tico
nos direitos humanos. O desafio da tica no campo das cincias e
tecnologias biolgicas representou, em ltima anlise, um
momento privilegiado, onde a hiptese da complementaridade entre
a tica e o direito pde ser testada e provada, atravs da
explicitao dos princpios bioticos sob a forma de direitos
humanos.
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