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PLISS
FRACTAL OU COMO AS MQUINAS DE GUATTARI
PODEM NOS AJUDAR A PENSAR O TRANSCENDENTAL HOJE
Pierre Lvy
O pensamento deve lanar-se acima
dos fatos para interrogar-se, no apenas sobre suas causas
mecnicas, mas tambm sobre o que os faz serem o que so, sobre
os agenciamentos de enunciao de que eles so os enunciados,
sobre os mundos de vida e de significao do magma dos quais
eles surgem. Remontar at s fontes, tal o sentido do
problema do transcendental.
Atravs de que h um mundo? A histria da filosofia e,
parcialmente, a da cincia, podem ser consideradas como o
conjunto de proposies que foram articuladas para responder
esta questo. Evidentemente no possvel retomar aqui toda a
histria da filosofia e nem mesmo resum-la. Contentar-nos-emos
com algumas sondagens inspiradas por alguns trabalhos recentes,
depois mostraremos como as mquinas de Guattari (que podem ser
tudo, exceto mecnicas) nos ajudam hoje a re-colocar este
problema.
No lugar sem lugar da origem sempre presente, ser preciso
eleger, depois de Kant, um sujeito transcendental do conhecimento?
Ou ento, como os cognitivistas contemporneos, uma arquitetura
do sistema cognitivo humano? Isto nos remete imediatamente a uma
nova instncia, pois o fundamento biolgico do sujeito cognitivo
est no crebro, como pensam hoje os conexionistas e os adeptos
do homem neuronal. Ora, mesmo correndo o risco de situar a ltima
fonte no estrato biolgico, no seria prefervel considerar o
organismo inteiro, suas operaes recursivas e sua autopoise,
como o sujeito cognitivo ltimo, aquele que calcula seu mundo?
Nisto seguiramos toda a corrente da segunda ciberntica,
especialmente ilustrada por von Foerster, Maturana e Varela. Teramos
ento atingido o termo? No, pois o organismo tal como ele ,
remete duas vezes s contingncias da Histria: o fora
intervm uma primeira vez atravs da construo ontogentica
e da experincia de vida; ele se aloja uma segunda vez no corao
do organismo especfico ao acaso da filognese. A evoluo
biolgica, por sua vez, no pode se separar da histria
infinitamente bifurcante e diferenciada da biosfera, e at mesmo
alm, ela se conecta rizomaticamente com a terra, com suas
redobras e seus climas, com os fluxos csmicos, com todas as
complexidades da physis e de seu devir.
Ao invs de conduzir,
gradativamente, do cognitivo ao biolgico e do biolgico ao fsico,
a meditao do sujeito transcendental do conhecimento pode
remeter a seu outro: o inconsciente dos afetos, das pulses e dos
fantasmas. Mas, ainda aqui, impossvel deter-se no
inconsciente freudiano como um termo ltimo. Guattari e Deleuze
mostraram que o dito inconsciente no se limita a um reservatrio
de desejos incestuosos ou agressivos recalcados, mas que est
aberto sobre a Histria, a sociedade e o cosmo. O inconsciente
total, que no mais concebido como uma entidade intrapsquica,
so os agenciamentos coletivos de enunciao, os rizomas
heterogneos ao longo dos quais circulam nossos desejos e pelos
quais se lanam e se relanam nossas existncias. Ora, no se
pode estabelecer uma lista a priori de tudo o que entra na composio
dos agenciamentos de enunciaes e das mquinas desejantes:
lugares, momentos, imagens, linguagens, instituies, tcnicas,
fluxos diversos, etc. E finalmente, de novo, descobrimos que o
termo ltimo, ou melhor, o horizonte sem fim do transcendental,
aqui nomeado inconsciente, bem poderia ser o prprio mundo.
Voltemos encruzilhada de
onde partimos, o sujeito do conhecimento, para seguir uma terceira
via, aquela da empiria. A experincia no originria? E
antes mesmo da experincia, os sentidos que a tornam possvel?
Em Os cinco sentidos, Michel Serres conseguiu a proeza de
construir, a partir de cada uma das modalidades sensoriais, uma
metafsica, uma fsica, uma gnosiologia, uma esttica, uma poltica
e uma tica. A sensao seria, por conseguinte, fundadora. Mas
o prprio do tato, da audio, do olfato, do paladar e da vista
no seria o de se remeter ao mundo? Se a percepo faz existir
para ns o fora, por outro lado, tambm sobre o devir e o
terrvel esplendor do mundo que repousa a vida dos sentidos. Ser,
ser percebido, dizia Berkeley. A percepo e o mundo sensvel
so duas faces, as duas bordas da mesma dobra. Por uma reverso
talvez previsvel, o livro seguinte de Michel Serres, Statues,
punha a coisa, a massa, a exterioridade a mais densa no fundamento
dos coletivos humanos, das subjetividades e do conhecimento. O
empirismo situa o mundo no corao do conhecimento. o que
Kant, que havia pretendido colocar o sujeito no centro, demonstrou
muito bem em sua metfora da revoluo copernicana em
filosofia. Mas por mais que se queira expulsar o mundo pela grande
porta do transcendental, ele volta pelas janelas do corpo, sob o
aspecto de imagens impalpveis que habitam e fazem viver o
sujeito, e pela fora do tempo, que tudo transforma.
Explorando outras vias,
podemos remontar o sujeito individual s significaes sociais
que o habitam, ao imaginrio instituinte que o atravessa (Castoriadis),
remisso historial que o destina (Heidegger), aos pistmai
que estruturam seu discurso (Foucault) etc. Recordemos que a
principal aporia, quando se considera um transcendental histrico
existe, mas sob o efeito de que causas, de que devires inominados,
ele se metamorfoseia permanentemente? Se concebssemos causas e
efeitos na regio transcendental, o que ento a diferenciaria do
campo emprico? Todo o fatual e o contigente da Histria
(geografia, quedas de imprios, propagaes de religies,
invenes tcnicas, epidemias etc.) no retroage sobre a regio
historial? No resultam as idas e vindas do transcendental histrico,
de efeitos ecolgicos, de processos cosmopolitas? Mais uma vez,
para compreender aquilo atravs de que h um mundo, ns
somos conduzidos complexidade e aos redemoinhos do prprio
mundo.
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