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SOCIEDADE
CIVIL E ESPAO GLOBAL
1 - O Renascimento do Conceito de Sociedade Civil
O
ressurgimento contemporneo do conceito de sociedade civil tem
sido interpretado como a expresso terica da luta dos
movimentos sociais contra o autoritarismo dos regimes comunistas e
das ditaduras militares em vrias partes do mundo, especialmente
na Europa Oriental e na Amrica Latina.
Nas democracias liberais do ocidente, esse conceito tem sido
considerado como desprovido de potencial crtico para examinar as
disfunes e injustias da sociedade, ou como pertencente s
formas modernas iniciais da filosofia poltica que se tornaram
irrelevantes para as sociedades complexas de hoje. Entretanto, o
conceito de sociedade civil vem sendo cada vez mais usado para
indicar o territrio social ameaado pelos mecanismos
politico-istrativos e econmicos, bem como para apontar o
lugar fundamental para a expanso potencial da democracia nos
regimes democrtico-liberais do ocidente.
Com efeito, a histria da modernidade ocidental mostrou como as
foras espontneas da economia de mercado capitalista, tanto
quanto o poder istrativo do Estado moderno, ameaaram a
solidariedade social, a justia social e a autonomia dos cidados.
Segundo Cohen e Arato, somente um conceito de sociedade civil
devidamente diferenciado da economia - e portanto da
"sociedade burguesa"- pode tornar-se o centro de uma
teoria social e poltica crtica nas sociedades onde a economia
de mercado j desenvolveu ou est em processo de desenvolver sua
prpria lgica autnoma. Assim, apenas uma reconstruo com
base num modelo tripartite, distinguindo sociedade civil tanto do
Estado quanto da economia, tem possibilidade de servir ao papel de
oposio democrtica desempenhado por este conceito nos regimes
autoritrios bem como de renovar o seu potencial crtico nas
democracias liberais (Cohen e Arato, 1992).
A sociedade civil, segundo essa concepo, concebida como a
esfera da interao social entre a economia e o estado, composta
principalmente pela esfera ntima (famlia), pela esfera
associativa (especialmente associaes voluntrias), movimentos
sociais e formas de comunicao pblica. A sociedade civil
moderna, criada por intermdio de formas de auto-constituio e
auto-mobilizao, se institucionaliza atravs de leis e
direitos subjetivos que estabilizam a diferenciao social. As
dimenses de autonomia e institucionalizao podem existir
separadamente, mas ambas seriam necessrias a longo prazo para a
reproduo da sociedade civil.
A
sociedade civil no engloba toda a vida social fora do estado e
da economia. necessrio distinguir a sociedade civil tanto de
uma sociedade poltica de partidos, organizaes polticas,
parlamentos, quanto de uma sociedade econmica composta de
organizaes de produo e distribuio, em geral empresas,
cooperativas, firmas etc. As sociedades poltica e econmica
surgem da sociedade civil, partilham com ela algumas formas de
organizao e comunicao, e se institucionalizam atravs de
direitos (especialmente direitos polticos e de propriedade)
conjuntamente com o tecido de direitos que asseguram a sociedade
civil moderna.
Mas
os atores da sociedade poltica e econmica esto diretamente
envolvidos com o poder do estado e com a produo econmica
visando a lucro, que eles buscam controlar e gerir. No podem
permitir-se subordinar seus critrios estratgico-instrumentais
aos padres de integrao normativa e comunicao aberta
caractersticos da sociedade civil. O papel poltico da
sociedade civil no est diretamente relacionado conquista e
controle do poder, mas gerao de influncia na esfera pblica
cultural. O papel mediador da sociedade poltica entre a
sociedade civil e o estado indispensvel, assim como o
enraizamento da sociedade poltica na sociedade civil.
O
mesmo pode ser dito quanto relao entre sociedade civil e
sociedade econmica, embora, historicamente, sob regime
capitalista, a sociedade econmica tenha sido mais hermtica
influncia da sociedade civil que a sociedade poltica. Apesar
disso, a legalizao dos sindicatos e o papel das negociaes
coletivas testemunham a influncia da sociedade civil sobre a
econmica que desempenha, assim, um papel mediador entre a
sociedade civil e o sistema de mercado.
A
sociedade civil representa apenas uma dimenso do mundo sociolgico
de normas, prticas, papis, relaes, competncias ou um ngulo
particular de olhar este mundo do ponto de vista da construo
de associaes conscientes, vida associativa, auto-organizao
e comunicao organizada. A sociedade civil tem, assim, um mbito
limitado, parte da categoria mais ampla do "social"
ou do "mundo da vida". Ela se refere s estruturas de
socializao, associao e formas organizadas de comunicao
do mundo da vida na medida em que elas esto sendo
institucionalizadas.
Nas
democracias liberais, a sociedade civil no est, por definio,
em oposio economia e ao estado. As concepes de
sociedade econmica e poltica expostas acima referem-se a
esferas de mediao mediante as quais a sociedade civil poder
exercer influncia sobre os processos politico-istrativos e
econmicos. Uma relao antagonista da sociedade civil, ou de
seus atores, com a economia ou o estado surge apenas quando
fracassam essas mediaes, ou quando as instituies da
sociedade econmica e poltica servem para isolar a tomada de
decises da influncia de iniciativas e organizaes sociais,
participao e formas diversas de discusso pblica (Cohen e
Arato, 1992).
A categoria de sociedade civil foi resgatada da tradio da
teoria poltica clssica e reelaborada mediante uma concepo
que apresenta os valores e interesses da autonomia social
contrapostos tanto ao estado moderno quanto economia
capitalista. Alm das antinomias de estado e mercado, pblico e
privado, gesellschaft e gemeinschaft, reforma e revoluo, a noo
de defesa e democratizao da sociedade civil parece ser o
melhor caminho para caracterizar as novas formas contemporneas
de auto-organizao e auto-constituio.
Em meio a inmeras ambiguidades de sentido relacionadas ao
emprego da expresso sociedade civil, a concepo que adotamos
assume uma defesa da sociedade civil moderna capaz de preservar
sua autonomia e formas de solidariedade em face do estado e da
economia. Esse "terceiro caminho" busca, em outras
palavras, garantir a autonomia da economia e do estado moderno ao
mesmo tempo em que protege a sociedade civil da penetrao
destrutiva realizada por aquelas duas esferas. No s protege,
como garante a diferenciao da sociedade civil do que Habermas
chamou de "sistema" - o estado e o mercado - bem como
sua influncia reflexiva sobre essas duas esferas atravs das
instituies da sociedade poltica e econmica. *
importante ressaltar que as normas da sociedade civil - direitos
individuais, privacidade, associaes voluntrias, legalidade
formal, pluralidade, publicidade, livre iniciativa - foram
institucionalizadas de forma heterognea e contraditria nas
sociedades ocidentais, entrando em conflito com a lgica econmica
do lucro e a lgica poltica do poder. Da a importncia dos
movimentos sociais que surgiram para defender os espaos de
liberdade ameaados pela lgica do "sistema" .
verdade que a poltica da sociedade civil no se resume
contestao realizada, entre outras coisas, pelos movimentos
sociais. Fazem tambm parte de sua poltica as formas
institucionais normais de participao - votar, militar em
partidos polticos, formar grupos de interesse ou lobbies.
Mas
a dimenso utpica de uma poltica radical parece preferir o nvel
da ao coletiva. A relao entre ao coletiva e sociedade
civil muito importante para a constituio desse novo
paradigma. Alm de todos os modelos funcionalistas e pluralistas,
a sociedade civil deixa de ser vista apenas de forma iva, como
um conjunto de instituies, para ser percebida tambm
ativamente, como o contexto e o produto de atores coletivos que se
auto-constituem.
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* O projeto implcito nesta concepo de sociedade civil
critica tanto o paternalismo estatal quanto esta outra forma de
colonizao da sociedade baseada na economia de mercado sem
regulao. Busca realizar o trabalho de uma poltica social
mediante programas autnomos e descentralizados baseados na
sociedade civil em vez dos programas tradicionais do "welfare
state", e o trabalho de uma poltica econmica de regulao
mediante formas no-burocrticas e menos intrusivas de legislao.
Trata-se de combinar a "continuao reflexiva do welfare
state" (Habermas) na democracia liberal com a "continuao
reflexiva da revoluo democrtica" (Arato) nos regimes
autoritrios.
2
- Razes Tericas
A noo de sociedade civil ressurgiu no cenrio terico e poltico
nos anos 80, graas sobretudo influncia de autores como
Keane (1988), Wolfe (1992) e Cohen e Arato (1992). Tal
renascimento deve-se principalmente a trs fatores: a) o
esgotamento das formas de organizao poltica baseadas na
tradio marxista, com a consequente reavaliao da proposta
marxista de fuso entre sociedade civil, Estado e mercado; b) o
fortalecimento no ocidente da crtica ao estado de bem estar
social pelo reconhecimento de que as formas estatais de implementao
de polticas de bem estar no so neutras, e o surgimento dos
chamados "novos movimentos sociais" que centram sua
estratgia no na demanda de ao estatal, mas na proposio
de que o Estado respeite a autonomia de determinados setores
sociais; c) os processos de democratizao da Amrica Latina e
Europa Oriental, onde os atores sociais e polticos identificaram
sua ao como parte da reao da sociedade civil ao Estado (Avritzer,
1993).
O conceito de sociedade civil se encontra no cerne dos processos
que levaram constituio da modernidade ocidental, que se
revelou incapaz de produzir formas de solidariedade a partir de
estruturas de coordenao impessoal de ao. Boa parte da
filosofia poltica e da sociologia no sculo XIX esteve voltada
para a questo de como produzir formas no particularistas de ao
em sociedades onde as formas comunitrias de solidariedade no
mais operam, e onde o mercado no soluo satisfatria para
a gerao de formas de igualdade e solidariedade. Da a ligao
entre a necessidade de se produzir formas modernas de
solidariedade e o conceito de sociedade civil, que aparece
associado a trs constataes:
1. A sociedade civil aparece associada a processos de diferenciao
entre Estado e mercado, direito privado e direito pblico. Ela
identifica a vida tica e a construo de estruturas de
solidariedade com a limitao da influncia do mercado e do
Estado sobre as formas interativas de organizao social.
Trata-se de limitao e regulamentao, e no de abolio.
2. O conceito aparece associado ao sistema legal moderno, que
cumpre o papel de relacionar indivduos sem a intermediao do
Estado, cujo poder a a ser controlado por regras de
publicidade operando como limites legais ao exerccio da
autoridade. Assim, o sistema legal estabelece, atravs dos
direitos positivos, a institucionalizao no s da sociedade
civil mas tambm de suas formas de controle sobre o aparelho
istrativo do Estado moderno.
3. O conceito de sociedade civil implica o reconhecimento de
instituies intermedirias entre o indivduo, por um lado, e
o mercado e o Estado, por outro. Essas instituies mediadoras
cumprem o papel de institucionalizar princpios ticos que no
podem ser produzidos nem pela ao estratgica do mercado nem
pelo exerccio do poder de Estado. Nesse sentido, a reconstruo
da solidariedade social na modernidade estaria associada idia
de autonomia social.(Avritzer, 1994).
Segundo Arato e Cohen, os movimentos sociais contemporneos tm
se apoiado em tipos eclticos de sntese, ligados histria
do conceito de sociedade civil. Eles pressupem, em diferentes
combinaes, a diviso gramsciana tripartite entre sociedade
civil, Estado e mercado, ao mesmo tempo em que preservam aspectos
chaves da crtica marxista sociedade burguesa. Eles
reivindicam ainda a defesa liberal dos direitos civis, a nfase
dada por Hegel, Tocqueville e outros pluralidade societria, a
importncia dada por Durkheim solidariedade social, e a defesa
da esfera pblica e da participao poltica acentuada por
Habermas e Hanna Arendt. Nessa perspectiva, o fim ltimo das
revolues no mais a reestruturao do Estado a partir de
um novo princpio, mas a redefinio das relaes entre
Estado e sociedade, sob o ponto de vista desta ltima (Arato e
Cohen, 1994).
Por outro lado, Michael Waltzer concebe a "idia de
sociedade civil"como moldura poltico-terica que incorpora
diversas propostas histricas de sociedade, tais como a marxista
associada cooperao dos produtores diretos, a "comunitarista"
fundada no ideal rousseauniano de virtude cvica, a capitalista
baseada nas possibilidades oferecidas pelo mercado, e a
nacionalista que enfatiza a herana comum e as tradies histricas
de uma nao.
Para Waltzer, a sociedade civil se apia em seres sociais que so
ao mesmo tempo cidados, produtores, consumidores e membros de
uma nao. Ele aponta ainda os perigos de uma concepo
despolitizada de sociedade civil que prescindiria do Estado, como
foi propagado por alguns dissidentes do regime socialista do Leste
Europeu. A sociedade um campo de tenses onde ambas as esferas
- Estado e sociedade civil - devem se controlar mutuamente (Waltzer,
1992).
J Charles Taylor distingue trs diferentes tipos de sociedade
civil. No sentido mnimo, ela existe quando houver associaes
livres fora da tutela do poder estatal. Num sentido mais forte,
quando a sociedade como um todo pode estruturar-se e coordenar
suas aes mediante associaes livres da tutela estatal. E,
como alternativa ao segundo sentido, existir sociedade civil
quando o conjunto das associaes pode determinar ou influenciar
de forma significativa o curso das polticas do Estado.
Haveria duas grandes correntes tericas na histria do conceito
de sociedade civil. A primeira, tributria da viso
anti-absolutista de Locke, foi seguida por Adam Ferguson e Adam
Smith, que enfatizam o carter econmico da sociedade civil e
sustentam que as pessoas podem se autoregular no mercado sem a
interveno do governo. A segunda se inscreve na tradio de
Montesquieu, Rousseau e Tocqueville, ressaltando as relaes
sociais estabelecidas por agentes autnomos (Taylor, 1990).
3 - Habermas e o Mundo da Vida
O
processo de modernizao, segundo Weber, havia se caracterizado
pela dominncia da razo instrumental da cincia e tecnologia
sobre as outras esferas sociais. A razo, sinnimo de liberdade
para os pensadores do Iluminismo, acabou colaborando com as
guerras mundiais, bombardeio nuclear de Hiroshima e Nagasaki,
campos de concentrao, misria e opresso das massas,
tornando-se , para os filsofos da Escola de Frankfurt, sinnimo
de dominao. Para buscar uma sada para este pessimismo,
Habermas constri um gigantesco e complexo sistema filosfico
baseado em sua teoria da ao comunicativa.
Alm da razo instrumental, haveria uma razo comunicativa,
fundada na linguagem, que se expressaria na busca do consenso
entre os indivduos, por intermdio do dilogo. Essa razo
comunicativa se encontra na esfera cotidiana do "mundo da
vida" constituda pelos elementos da cultura, sociedade e
personalidade. J a razo instrumental predominaria no
"sistema", isto , nas esferas da economia e da poltica
(Estado) que, no processo de modernizao capitalista, acabou
dominando e "colonizando" o mundo da vida. A disputa do
espao social, nos pontos de encontro entre sistema e mundo da
vida, constituiria a disputa poltica fundamental das sociedades
contemporneas.
A razo instrumental acabou invadindo as esferas da moral e da
esttica. Habermas tenta resgatar o potencial emancipatrio da
Razo ao afirmar que a Modernidade um projeto inacabado.
Recusa a reduo da idia de racionalidade racionalidade
instrumental-cognitiva da cincia que dominaria as esferas da
racionalidade prtico-moral (direito)e da racionalidade esttico-expressiva
(arte). Para ele, necessrio fazer cessar a "reificao"
e a "colonizao", exercida pelo "sistema"
sobre o "mundo da vida", mediante a lgica dialogal da
ao comunicativa ( Habermas, 1984).
Combinando de forma original a tradio hegeliano-marxista com o
pensamento no-kantiano da Razo e contribuies de diversas
cincias sociais, Habermas confere centralidade ao papel do
Direito, cuja pretenso de validade a agora a ancorar-se na
Moral e no mais na Cincia. Caberia ao Direito, elemento
essencial estruturao da vida democrtica, a elaborao e
regulao das normas que vo orientar a busca do consenso, pelo
dilogo, na ao comunicativa.
O discurso dos direitos j foi acusado de ser ideolgico e
opressor. Para Marx, os direitos formais no am de reflexos
ideolgicos da propriedade e relao de troca capitalistas. Mas
nem todos os direitos podem ser reduzidos ao direito de
propriedade. Outra objeo clssica a de Foucault para quem
os direitos constituem a produo de vontade do Estado soberano
articulada, pelo sistema legal positivo, para assegurar a vigilncia
em todas as dimenses societrias; o direito e o poder no so
aqui vistos como reflexos, mas como constitutivos da sociedade, ao
lado das relaes de produo. Mas o Estado no pode
constituir a fonte de sua prpria validade. Os direitos surgem
enquanto reivindicaes de grupos ou indivduos nos espaos pblicos
de uma sociedade civil emergente. Eles podem ser garantidos por
uma legalidade positiva, mas no se reduzem a ela.
Segundo Arato, os direitos possuem uma dupla natureza ou um carter
ambguo nas sociedades contemporneas. Enquanto meio de
controle, o direito funciona como veculo para a penetrao do
mundo da vida pelo poder e pelo dinheiro. Enquanto instituio,
o direito contribui para a modernizao da sociedade civil,
assegurando sua proteo contra a penetrao das agncias
sistmicas, tornando-se, assim, um componente social do prprio
mundo da vida. Neste ltimo sentido, o direito desempenha um
papel mais regulativo do que constitutivo, servindo para expandir
as esferas de ao reguladas comunicativamente. Esta dimenso
potencializadora entra em conflito com a dimenso autoritria da
interveno burocrtica implementada pela legislao.
Foucault enfatizou exclusivamente o papel da legislao e dos
direitos enquanto meio de controle. Mas o papel regulativo do
direito, no segundo sentido, pode assegurar uma sociedade civil
autnoma, auto-regulada e universalista. Os direitos universais
devem, assim, ser vistos "enquanto princpio organizativo de
uma sociedade civil moderna, cuja instituio dinmica a
esfera pblica" (Arato e Cohen, 1994).
A anlise habermasiana visualisa a sociedade enquanto esfera
simultaneamente pblica e poltica, na qual a explicao da ao
social se articularia com o movimento poltico de defesa da
sociedade contra a penetrao dos subsistemas nas formas
comunicativas de ao. Na modernidade ocidental ocorreu, segundo
Habermas, um processo de diferenciao das estruturas de
racionalidade que dissociou as estruturas sistmicas das
estruturas comunicativas do mundo da vida. No se trata de teoria
dualista de diferenciao entre estado e sociedade, mas de uma
forma mltipla de diferenciao, pois as estruturas sistmicas
econmicas e istrativas no s se diferenciam do mundo da
vida, mas se diferenciam entre si.
importante assinalar que tanto o sistema quanto o mundo da vida
so atravessados pelas dimenses do pblico e do privado. No
sistema, o pblico o Estado, o privado a economia. No mundo
da vida, o pblico a participao poltica dos cidados, e
o privado a famlia. A figura abaixo ilustra essas relaes.
|
SISTEMA |
MUNDO
DA VIDA |
PBLICO |
Estado |
Participao
Opinio Pblica |
PRIVADO |
Economia |
Famlia |
O
modelo tripartite gera, assim, dois conjuntos de dicotomia entre pblico
e privado. Uma no nvel dos subsistemas (estado/economia) e outra
no nvel da sociedade civil (formao da opinio pblica/famlia).
Essas quatro dimenses se relacionam por uma srie de trocas
tornadas possveis pelos meios de controle dinheiro e poder.
Podemos assim distinguir entre as instituies da esfera privada
coordenada comunicativamente (famlia ou relaes de amizade) e
aquelas que so coordenadas pelos mecanismos sistmicos
(economia). O mesmo ocorre em relao s duas esferas pblicas
analiticamente distintas. Em decorrncia, pode-se imaginar
processos de desprivatizao que no envolvem estatizao,
bem como mostrar que a interveno do Estado na economia no
acarreta necessariamente a absoro ou supresso de uma
sociedade civil autnoma.
O conflito entre Estado e mercado, de um lado, e as estruturas
interativas do mundo da vida, de outro, leva este ltimo a se
organizar em movimentos sociais fundantes da democracia que, para
Habermas, a institucionalizao no sistema poltico das
sociedades modernas dos princpios normativos da racionalidade
comunicativa. A esfera pblica o local de disputa entre os
princpios divergentes de organizao da sociabilidade. Os
movimentos sociais constituem os atores que reagem reificao
e burocratizao, propondo a defesa das formas de solidariedade
ameaadas pela racionalizao sistmica. Eles disputam com o
Estado e com o mercado a preservao de um espao autnomo e
democrtico de organizao, reproduo da cultura e formao
de identidade e solidariedade.
Habermas no chega a oferecer uma teoria da sociedade civil. Mas
sua distino analtica entre lgica do sistema e lgica do
mundo da vida proporciona um marco analtico onde se pode situar
o conceito de sociedade civil. O conceito de integrao sistmica
constitui uma primeira aproximao dos mecanismos pelos quais a
economia capitalista e a istrao burocrtica moderna
coordenam a ao. Por outro lado, o conceito de integrao
social do mundo da vida, enquanto consenso normativamente
assegurado e comunicativamente reproduzido, aponta o espao no
qual o conceito hermenutico de sociedade civil pode
localizar-se.*
4. Movimentos Sociais e Grupos de Interesse
A partir dos anos 80, comeou a entrar em declnio a militncia
partidria em funo da perda de prestgio dos partidos polticos,
que deixaram de atrair o interesse poltico de muitos cidados
que aram a se envolver com outros grupos e atividades.
Aumentou o fosso entre o sistema institucional de representao
no plano do Estado e a chamada sociedade civil organizada.
As associaes da sociedade civil tm o papel de formadoras da
opinio pblica e de constituidoras da opinio coletiva nos
espaos situados fora do Estado e do mercado. Distinguem-se dos
"grupos de interesse", caracterizados pela lgica dos
interesses econmicos particularistas e pela defesa dos
interesses privados especficos, como, por exemplo, as organizaes
sindicais e empresariais.
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* Para uma anlise das mediaes entre o conceito de mundo da
vida e o conceito de sociedade civil consultar Civil Society and
Political Theory (Cohen&Arato, 1995). Para uma exposio
mais resumida, ver Cidadania e Globalizao (Vieira, 1997).
Os atores da sociedade civil organizados em movimentos sociais
cumprem funo pblica, absorvendo a ao comunicativa
existente no mundo da vida e levando-a ao nvel da esfera pblica.
Defendem o interesse pblico e se constituem como instncia de
crtica e controle do poder. Os grupos de interesse, por outro
lado, possuem uma viso corporativa, organizam-se em
"lobbies" e buscam se apropriar dos espaos pblicos
em funo dos seus interesses particularistas.
Os movimentos sociais levantam a bandeira da autonomia e da
democratizao da sociedade, mas seria um erro imaginar que eles
podem prescindir das instituies do Estado enquanto sociedade
politicamente organizada. Da a necessidade de uma estratgia
poltica dual (Cohen & Arato, 1992): os movimentos sociais
devem atuar no plano institucional e extra-institucional, apoiados
ao mesmo tempo nas organizaes da sociedade civil e em outros
atores como os partidos e sindicatos.
O prof. Sergio Costa, em aguda observao, mostrou que Habermas
fez uma reviso de sua classificao de movimentos sociais que,
na Teoria da Ao Comunicativa, eram considerados defensivos,
com a exceo do movimento feminista, que seria o nico
propriamente ofensivo. A partir da noo de "poltica
dual"desenvolvida por Cohen & Arato, Habermas, em seu
livro Facticidade e Validade, a a considerar os movimentos
sociais como atores "duais", com orientao poltica
dupla, simultaneamente defensiva e ofensiva (Costa, 1994).
A distino entre movimentos socias e grupos de presso nem
sempre, na prtica, muito clara. Em princpio, os primeiros
exercem uma funo pblica, pois defendem interesses pblicos
de forma aberta e transparente, fortalecendo com sua ao a
esfera pblica. J os segundos, como vimos acima, se
caracterizam pela defesa de seus interesses particularistas.
Ocorre que, s vezes, organizaes da sociedade civil lutam por
seus interesses particulares realizando acordos de cpula, sem
discusso pblica. Foi o caso de certas associaes de
moradores que acertaram acordos com o Estado no mesmo estilo dos
grupos de interesse. Nesses casos, no mais possvel
distinguir, como observa Sergio Costa, as organizaes da
sociedade civil dos grupos de interesse que se utilizam do Estado
para a consecuo de seus objetivos particulares (Costa, 1994).
Esses casos, porm, de modo algum podem eliminar a distino
analtica entre, de um lado, movimentos sociais e organizaes
da sociedade civil, voltados para a defesa da cidadania e do
interesse pblico, e, de outro, as associaes de carter econmico
e poltico-istrativo. o que tenta fazer a idia de
"setores intermedirios" que cai na vala comum ao
colocar no mesmo plano todas as organizaes entre o Estado e a
sociedade civil, desde associaes filantrpicas a partidos e
sindicatos.
tambm o que tentam fazer aqueles que em vo procuram
desqualificar as organizaes da sociedade civil, equiparando-as
a grupos de interesse. Mas os inmeros exemplos de movimentos
sociais lutando por interesses pblicos, como bem ilustra, entre
outros, a Ao da Cidadania contra a Fome e a Misria, mostra
que as associaes civis desempenham cada vez mais um papel de
fortalecimento da esfera pblica.
5
- A Esfera Pblica No-Estatal
A partir da dcada de 70, a noo de sociedade civil sofreu uma
verdadeira ruptura conceitual. Expresses como autonomia,
autogesto, independncia, participao, "empowerment",
direitos humanos, cidadania, aram a ser associadas ao conceito
de sociedade civil.
No se trata mais de um sinnimo de sociedade, mas de uma
maneira de pens-la, de uma perspectiva ligada noo de
igualdade de direitos, autonomia, participao, enfim, os
direitos civis, polticos e sociais da cidadania. Em virtude
disso, a sociedade civil tem que ser "organizada". O que
era um estado natural nos filsofos contratualistas, ou uma condio
da poltica moderna em Hegel e Marx, torna-se agora um objetivo
para os ativistas sociais do 2 e 3 Mundos: a sociedade civil
tem que ser construda, reforada, consolidada. Trata-se de meio
e fim da democracia poltica (Fernandes, 1995).
Resgatada dos livros de Histria pelos ativistas sociais das ltimas
dcadas, a noo de sociedade civil se transforma e a a ser
compreendida em oposio no apenas ao Estado, mas tambm ao
mercado. Trata-se agora de uma terceira dimenso da vida pblica,
diferente do governo e do mercado. Em vez de sugerir a idia de
uma arena para a competio econmica e a luta pelo poder poltico,
a a significar exatamente o oposto: um campo onde prevalecem
os valores da solidariedade.
dentro desta perspectiva que trabalham alguns pensadores
contemporneos que forneceram importantes subsdios tericos
para a atuao das chamadas organizaes no governamentais,
tais como Alan Wolfe, por exemplo. O prprio Habermas, como
vimos, havia rompido com a correlao ideolgica unvoca entre
sociedade civil e esfera privada, entendida como economia, e o
Estado entendido como esfera pblica. H uma esfera privada no
"sistema" (economia) e uma esfera pblica no-estatal,
constituda pelos movimentos sociais, ONGs, associaes de
cidadania.
Assim, os conceito de pblico e privado no se aplicam mais
automaticamente ao Estado e sociedade civil, respectivamente.
possvel dizer hoje que existem tambm as esferas do
estatal-privado e do incipiente social-pblico.
Na esfera estatal-privada esto as empresas e corporaes
estatais que, embora formalmente pblicas, encontram sua lgica
na defesa de interesses particulares, econmicos ou setoriais,
comportando-se na prtica como organizaes de mercado. J na
esfera social-pblica, ainda emergente, encontram-se os
movimentos e instituies que, embora formalmente privados,
perseguem objetivos sociais, articulando na prtica a construo
de um espao pblico no-estatal. o caso das organizaes
no-governamentais que, como sugere Alan Wolfe, so tambm
organizaes de no-mercado (ONMs) e, ainda, organizaes no-corporativas
(Wolfe, 1992).
Dessa esfera pblica no-estatal estariam excludos os Partidos
Polticos que, embora formalmente possam ser considerados
instituies da sociedade civil, na prtica se comportam como
organizaes pr-estatais. Voltados luta pelo poder, os
partidos acabam assumindo as "razes de Estado", pois
seu centro estratgico no se situa no interior da sociedade
civil que buscam representar, mas no modelo de Estado que
pretendem conservar ou mudar (Franco, 1994).
Para Alberto Melucci, a existncia de espaos pblicos
independentes das instituies do governo, do sistema partidrio
e das estruturas do Estado condio necessria da democracia
contempornea. Como intermediaes entre o nvel do poder poltico
e as redes da vida cotidiana, esses espaos pblicos requerem
simultneamente os mecanismos da representao e da participao.
Ambos so fundamentais para a existncia da democracia nas
sociedades complexas. Os espaos pblicos so pontos de conexo
entre as instituies polticas e as demandas coletivas, entre
as funes de governo e a representao de conflitos (Melucci,
1988).
A construo dessa esfera social-pblica enquanto participao
social e poltica dos cidados a pela existncia de
entidades e movimentos no-governamentais, no-mercantis, no-corporativos
e no-partidrios. Tais entidades e movimentos so privados por
sua origem, mas pblicos por sua finalidade. Eles promovem a
articulao entre esfera pblica e mbito privado como nova
forma de representao, buscando alternativas de desenvolvimento
democrtico para a sociedade *.
As ONGs que cumprem funes pblicas percebem sua prtica como
inovadora na articulao de uma nova esfera pblica social, e
se consideram precursoras de uma nova institucionalidade
emergente. O Estado, o mercado, as corporaes e os partidos no
seriam suficientes para a articulao e ampliao da esfera pblica
como um todo, nem seriam adequados para a construo de uma nova
institucionalidade social-pblica. Ao contrrio, a presso de
uma esfera social-pblica emergente que poderia reformar e
democratizar efetivamente o Estado , o mercado, as corporaes e
os partidos.
Em suma, essas entidades e movimentos da sociedade civil, de carter
no-governamental, no-mercantil, no-corporativo e no-partidrio,
podem assumir um papel estratgico quando se transformam em
sujeitos polticos autnomos e levantam a bandeira da tica, da
cidadania, da democracia e da busca de um novo padro de
desenvolvimento que no produza a excluso social e a degradao
ambiental.
-------------
* No se trata de apresentar uma viso idlica das ONGs ou de
negar o papel do Estado, mercado e partidos. Existem ONGs que
defendem interesses particularistas e ningum ignora a
necessidade de fortalecer, ampliar e aperfeioar as esferas
estatal-pblica e social-privada. Existem agentes privados para
fins privados (mercado), agentes pblicos para fins pblicos
(Estado), agentes privados para fins pblicos (terceiro setor) e
tambm agentes pblicos para fins privados (corrupo)
(Fernandes, 1995).
6.
Rumo Sociedade Civil Global
Expresso de uma crescente necessidade internacional de regulao,
que o sistema vigente no podia satisfazer, as organizaes
governamentais e no-governamentais proliferaram rapidamente. De
1939 a 1980, as organizaes governamentais aumentaram de 80 a
mais de 600, enquanto as ONGs cresceram de 730 a 6000. Dos anos 80
em diante, esse crescimento ainda mais impactante. Este um
dos fatores que, ao lado de alguns outros (degradao ambiental
global, eroso da hegemonia norteamericana, dificuldades de
integrao da Europa Oriental na "nova ordem mundial")
apontam para a reviso do sistema internacional.
Apesar das tendncias constituio de uma funo pblica
transnacional, o Estado nacional/territorial continua sendo a instncia
central de legitimao do poder e o destinatrio de demandas da
populao. Conseqentemente, ao mesmo tempo que a socializao
global origina problemas sociais, econmicos e ecolgicos - cuja
soluo os cidados exigem do Estado - ela reduz cada vez mais
a capacidade dos Estados nacionais para resolver problemas. A soluo
desses problemas parece exigir uma "nova ordem mundial",
formas adequadas de coordenao poltica inter e transnacional,
sem as quais so inevitveis catstrofes de dimenses globais
(catstrofes ecolgicas, novas formas de terrorismo etc).
A necessidade de regulao poltica global no significa perda
de significado do Estado nacional: no 3o. Mundo, cabe aos Estados
nacionais promover o desenvolvimento econmico e poltico; as
iniciativas de socializao global, alm de acarretarem maiores
exigncias ao Estado, tambm geram incertezas e inseguranas
que vm reforar a necessidade de identidade nacional, enquanto
no surgem novas identidades a outros nveis.
Mas o Estado no detm mais o monoplio do espao pblico. A
expanso das ONGs internacionais pode ser vista como um ponto de
partida para orientaes polticas globais (ou, ao menos, que
excedam o nacional), e portanto, tambm como ncleo para o
surgimento de uma sociedade civil mundial. Este fenmeno, porm,
ainda limitado.
Novos problemas acabam por exigir novas instncias de deciso:
enquanto o perigo de uma catstrofe global parecia provir apenas
de uma possvel guerra atmica, a coordenao poltica
internacional vigente pode ter sido suficiente, pois inclua
sobretudo as relaes militares leste-oeste. Hoje, porm,
surgem novos cenrios que parecem difceis de superar nos
limites institucionais vigentes como, por exemplo, as ameaas ao
ecossistema global e os perigos de uma desestabilizao poltico-social
de dimenso universal, devido s crescentes desigualdades
sociais. Neste contexto, uma transferncia pelo menos parcial da
soberania a instncias de deciso efetivas, democraticamente
legitimadas em nvel global, parece inevitvel a mdio ou longo
prazo (Hein, 1994).
A
esfera pblica transnacional
Ainda no surgiu nenhuma instituio com legitimidade
suficiente para desempenhar em escala mundial o papel regulador
que os Estados exercem nacionalmente. Aps a guerra fria, a ONU
vem assumindo posies mais ativas, com intervenes militares
ou conferncias para discusso de problemas globais. Aps a
Eco-92 no Rio, tivemos as Conferncias de Direitos Humanos em
Viena, de Populao no Cairo, de Desenvolvimento Social em
Copenhague, das Mulheres em Pequim, e da Habitao em Istambul.
Embora de eficcia questionvel, as Conferncias tm contribudo
para a criao de um espao pblico mundial para o
equacionamento de questes planetrias.
A constituio dessa esfera pblica global tem permitido a
emergncia de um ator imprescindvel ao processo de globalizao:
a sociedade civil. Estamos nos referindo aqui multiplicidade de
organizaes que, seja em nome dos direitos de determinados
grupos sociais, seja dada noo de bem-comum, no se submetem
nem s razes de Estado, nem aos mecanismo de mercado: sobretudo
as ONGs e os movimentos sociais, que vm se articulando
mundialmente. A articulao transnacional da sociedade civil
consiste hoje numa das poucas formas de resistncia aos desequilbrios
gerados pela globalizao, pois seus princpios ticos apontam
para a instituio de direitos a serem universalmente
reconhecidos. "Talvez isto seja a inveno de uma espcie
de cidadania planetria, que pode ser a base de uma democracia em
escala mundial" (Muouah, 1995).
O Estado e o mercado, sozinhos, parecem sem condies de
enfrentar a crise econmica, social e ambiental em que estamos
mergulhados e de resolver os desafios contemporneos. A sociedade
est sendo chamada cada vez mais para formular alternativas. A
mesma crise que enfraquece o Estado nacional tende a fortalecer as
organizaes da sociedade civil.
O que significa uma sociedade civil global? A globalizao
implica a importncia crescente do nvel supra territorial, ou
aterritorial, das instncias globais, e portanto, a possibilidade
e necessidade de desenvolvimento de uma sociedade civil global, o
que significa uma esfera que seja no capitalista/no Estado ou
anti-competitiva/anti-hierrquica para os esforos democrticos.
Da, as discusses sobre a reforma da ONU e de instncias
interestatais; sobre novos padres, como o direito de
comunicar-se; sobre o funcionamento dos movimentos sociais
globais; sobre a inter-relao entre as organizaes
interestatais, as ONGs e os movimentos sociais globais, que vo
alm dos distritos eleitorais/territoriais.
A sociedade civil global no um paraso de liberdade
desterritorializada, solidariedade, preocupao ecolgica ou
tolerncia pluralista. Mas pode ser o espao para civilizar e
superar as estruturas/processos/ideologias capitalistas,
estatistas, tecnocrticas etc. antes um habitat que deve ser
construdo contnua e coletivamente, do que uma estrutura j
existente e representada, ainda imperfeitamente, pelos movimentos
sociais internacionais.
O desenvolvimento de uma sociedade civil global depende e, ao
mesmo tempo, estimula a democratizao, desconcentrao e
descentralizao das organizaes interestatais e instituies
capitalistas globais. Uma sociedade civil global requer a noo
de cidadania planetria, que j no pode ser simplesmente o
universalista religioso, o cosmopolita liberal ou o
internacionalista socialista.. A transio gradual do
capitalismo industrial ao de informao, as mltiplas crises de
crescimento e uma propagao da conscincia ecolgica impem
a necessidade de alternativas em busca de uma poltica eticamente
informada e consciente.
Last but not least, a construo de uma esfera pblica
transnacional estar balizada por dois princpios: o interesse pblico
internacional e o patrimnio comum da humanidade. Os direitos
humanos e o interesse pblico internacional erguem limites
afirmao das soberanias e, segundo Celso Lafer, se expressam
"atravs da instaurao do ponto de vista da humanidade,
como princpio englobante da comunidade mundial" (Monserrat
Filho, 1995).
A noo de patrimnio comum da humanidade tambm reconhece
interesses superiores da comunidade internacional face ao ime
entre interesses pblicos e privados internacionais. Os dois
princpios acarretam uma revoluo no Direito Internacional Pblico,
tradicionalmente baseado no conceito de soberania, ao transform-lo
em Direito Geral da Humanidade ou, retomando a expresso romana,
Direito das Gentes.
.
Os
movimentos sociais
Segundo Anthony Giddens, a etapa contempornea de modernidade
alta ou radical, caracterizada como o perodo do capitalismo de
informao, complexo, globalizado e de alto risco. A globalizao
provocou um descentramento do poder em nvel internacional: ele
reside cada vez menos em um cenrio territorial unificado, ou em
um sujeito privilegiado nico (como a burguesia internacional),
ou em um determinante primrio (por ex. militar/estratgico), ou
em um nvel primrio (por ex. o Estado nacional).
No se pode mais continuar entendendo a ordem mundial como
assunto de relaes entre Estados ou blocos hegemnicos.
necessrio uma viso que considere as complexidades das relaes
entre tempo e lugar e as ambiguidades do espao como lugar. A
teoria da globalizao requer uma teoria multidimensional do
espao, de um processo simultneo de mbito e intensidade espao-tempo
(Giddens, 1990 e Harvey, 1994).
As relaes sociais em cada localidade sofrem crescentemente,
mesmo que de modo diverso, o impacto de eventos e processos
distantes; e esta relao de entremeamento tambm notvel
entre classes, grupos tnicos e sexos. O reconhecimento do
crescente alcance e intensidade das relaes de espao e tempo,
de uma socializao global cada vez mais interdependente, tornam
arcaicas as noes tradicionais e simplistas do mundo social e
sua transformao. Os determinismos de classe, econmico e
tecnolgico; o insurrecionalismo poltico e o apocalipticismo
global parecem hoje superados pelos novos movimentos sociais que
comeam a apresentar respostas mais complexas s preocupaes
globais.
A globalizao provoca, por um lado, movimentos democrticos,
pluralistas e progressistas, que assinalam a possibilidade de
alternativas ps-modernas (ps-militaristas, ps-industriais, ps-capitalistas)
e a descoberta de expresso poltica coletiva. Por outro lado,
origina movimentos autoritrios, militaristas e apocalpticos,
religiosos e seculares, de direita e de esquerda (ex. Sendero
Luminoso no Peru e os movimentos fundamentalistas, fascistas,
racistas em muitos pases).
Um capitalismo de informao global parece oferecer terreno mais
favorvel aos movimentos sociais do que o capitalismo industrial
internacionalizado. O poder dos novos movimentos em nvel local,
nacional e internacional radica mais em suas novas idias,
valores e princpios organizacionais, que revelam um entendimento
implcito e uso das tecnologias de informao. Isto tem sido de
grande utilidade no combate aos efeitos perversos da globalizao
econmica, que analisamos em outro lugar. *
--------
* Analisamos as principais dimenses da globalizao - econmica,
social, poltica, cultural e ambiental - em nosso livro Cidadania
e Globalizao (Vieira, 1997).
7. As Organizaes No-Governamentais no Espao Global
As trs dimenses da atual discusso sobre a ordem mundial - a
internacionalizao da funo pblica, a reorganizao das
relaes internacionais aps o fim do conflito leste-oeste e
uma ordem econmica mundial para o desenvolvimento sustentvel -
representam aspectos de um processo de transformao, mundial e
a longo prazo, da funo pblica nacional em global. Este
processo de transformao corresponde tendncia globalizao
inerente ao capitalismo, e transcorre de modo assincrnico e
contraditrio.
Uma das principais caractersticas do mundo contemporneo a
globalizao econmica e o desenvolvimento de novas formas de
solidariedade entre os cidados, configurando uma tendncia para
a constituio de uma sociedade civil global como contraponto
tendncia de relativo enfraquecimento do Estado-nacional. Para
Roland Robertson, entre os elementos que caracterizam a fase atual
da globalizao - que ele denomina "fase da
incerteza", iniciada nos anos 60 - encontram-se a sociedade
civil mundial e a cidadania mundial (Robertson, 1994).
Por outro lado, Boaventura de Sousa Santos assinala que, nos ltimos
vinte anos, novas formas de ao social transformadora emergiram
no mundo: movimentos populares ou novos movimentos sociais com
novas agendas polticas - ecologia, paz, antiracismo, antisexismo
- ao lado das agendas tradicionais de melhoria da qualidade de
vida - sobrevivncia econmica, habitao, terra, bem estar
social, educao (Santos, 1995).
Esses movimentos, centrados nos temas de democratizao,
cidadania, liberdades, identidade cultural, alm daqueles que
constituem a "herana comum da humanidade" (sustentabilidade
da vida humana na terra, meio ambiente global, desarmamento
nuclear), assumiram a forma de organizaes no governamentais
e, particularmente, de ONGs transnacionais. Os Tratados
Alternativos das ONGs aprovados no Forum Global durante a Conferncia
das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
realizada no Rio em 1992 constituem, segundo esse autor, "uma
eloquente demonstrao do dinamismo das ONGs
transnacionais".
Para o Prof. Richard Falk, da Universidade de Princeton, alm da
"globalizao por cima", conduzida pelos Estados dos
pases dominantes e pelas foras do mercado mundial, haveria uma
"globalizao por baixo", conduzida pelas foras
democrticas transnacionais, enquanto veculos do "direito
da humanidade", visando criao de uma sociedade civil
global, como alternativa economia global desenhada pelas foras
de mercado transnacionais. As esperanas da humanidade
dependeriam da capacidade de a "globalizao por
baixo" enfrentar com eficcia a dominao da
"globalizao por cima" numa srie de arenas chaves
que poderiam ser identificadas, em termos gerais, como a ONU (e
outras instituies internacionais), a mdia e a orientao
dos Estados (Falk, 1995).
Segundo diversos estudiosos da globalizao, o sistema poltico
mundial necessita da sociedade mundial. A sociedade civil condio
para o desenvolvimento de uma funo pblica internacional
democrtica: s sero criadas as bases para superar as contradies
entre a socializao global e a organizao poltica em
Estados nacionais quando as instituies globais comearem a
ser destinatrias das demandas de uma maioria pobre que se
auto-organiza nos atuais pases em desenvolvimento.
Isto pressupe que ao desenvolvimento da funo pblica a
partir de cima (instituies e regimes internacionais
controlados pelos pases industrializados dominantes) se oponha,
a partir de baixo, uma sociedade civil mundial cada vez mais forte
(entre outras coisas, mediante a maior expanso e coordenao
do trabalho das ONGs internacionais), a qual se converta na base
para o desenvolvimento da funo pblica democrtica em escala
mundial. Para Hein, "a tentativa de conjurar a ameaa ao
meio ambiente mediante uma poltica de desenvolvimento sustentvel
pode converter-se no veculo central de um espao pblico
global democrtico, pois essa tentativa, quando sria, implica
uma nova ordem econmica e social em nvel mundial" (Hein,
1994).
A crise global e a constatao de que somente o Estado e o
mercado no vo resolv-la tendem a fortalecer o papel das
ONGs, enquanto organizaes da sociedade civil, na construo
de alternativas e de mecanismos de cooperao internacional.
As ONGs esto vivendo um processo de construo de sua
identidade poltica como ator nesse processo de globalizao,
onde sua participao ainda irregular. Elas participam
fazendo lobby nas grandes organizaes internacionais, na ONU,
nas organizaes multilaterais; participam ajudando na formulao
de polticas ou de deciso quanto a projetos, mas no esto
ainda articuladas e coordenadas para dar uma eficcia poltica a
essa atuao no plano internacional. Por isso, pode-se dizer que
as ONGs ainda no so mas tendem a se constituir como atores no
processo de globalizao, principalmente no que diz respeito
construo de uma nova institucionalidade poltica global.
A exploso de atividades no-governamentais em geral, e das ONGs
em particular, reflete a intensificao da permeabilidade das
fronteiras nacionais, bem como os avanos nas comunicaes
modernas. ONGs dispersas geograficamente e organizaes comunitrias
de base local podem hoje desenvolver agendas e objetivos comuns no
plano internacional.
Papel
das ONGs
Segundo estimativa do PNUD (Programa das Naes Unidas para o
Desenvolvimento), a atuao das ONGs beneficia cerca de 250 milhes
de pessoas nos pases em desenvolvimento. As organizaes no
governamentais e voluntrias tornaram-se importantes peas de
apoio aos programas de desenvolvimento nas ltimas dcadas. Em
1992, a assistncia oficial para desenvolvimento dos pases
subdesenvolvidos alcanava 58,7 bilhes de dlares. Nesse ano,
as ONGs distriburam 5,5 bilhes em doaes, representando 10%
da assistncia governamental e constituindo o quinto maior grupo
doador (OCDE - Relatrio da Comisso de Assistncia ao
Desenvolvimento. Paris. 1994). *
Existem ONGs atuando no plano local, nacional, regional e
internacional. A vinculao local e a conexo internacional
possibilita que as aes locais possam se interligar
globalmente. comum a associao de ONGs em redes que aumentam
sua eficcia e campo de atuao.
Em muitos pases, as ONGs ajudam a formular as polticas pblicas.
Em outros, seu papel importante para fiscalizar projetos bem
como para denunciar arbitrariedades do Governo, desde violaes
de direitos humanos at omisso no cumprimento de compromissos pblicos,
nacionais ou internacionais. Em alguns pases, as ONGs so
criadas espontneamente como associaes civis de base. Em
outros, so criadas, de cima para baixo, pelo Estado ou empresas
do mercado. Neste caso, existe um vcio de origem que compromete
a autonomia da organizao, salvo se ela tiver capacidade de
absorver as reivindicaes da cidadania e de captar lideranas
locais que transmitiro os verdadeiros anseios das comunidades.
As ONGs, em muitos pases, tm desenvolvido uma poltica de
alianas de carter duplo. De um lado, aliam-se ao Estado para
exigir do Mercado o equacionamento dos custos sociais e ambientais
da produo exigido pelo desenvolvimento sustentvel; de outro,
aliam-se ao Mercado para exigir do Estado a realizao de
reformas democrticas que aumentem sua eficincia
istrativa.
Mas vai alm disso a responsabilidade atual dessas organizaes.
Face aos imes criados pelo modelo econmico predominante no
mundo, predatrio ecologicamente e injusto socialmente, essas
entidades esto sendo chamadas a desempenhar um papel de crucial
importncia: buscar alternativas, do ponto de vista da sociedade
civil, para a crise ecolgica e social que, pela degradao
ambiental, ameaa o planeta e, pela globalizao da pobreza,
flagela a humanidade.
* O Servio de Ligao No Governamental das Naes Unidas
publicou, em agosto de 1996, o Dossier As Naes Unidas, as ONGs
e a Governabilidade Global, onde se constata que "as ONGs
deixaram de ser marginais e chegaram maturidade. Seus recursos
financeiros para desenvolvimento provavelmente ultraam os da
ONU. As ONGs contribuem para fixar agendas das Naes Unidas,
influenciar suas decises e mobilizar a opinio pblica. A
agenda de desenvolvimento humano elaborada durante as conferncias
da ONU representa, em grande medida, a agenda das ONGs".
Participao
Internacional
Nas reunies internacionais, no existem procedimentos uniformes
para a participao das ONGs, que conseguiram se integrar em
contextos decisrios de variadas formas. Em muitos pases, em
geral do Ocidente (Canad, Holanda, Suecia, Frana etc), j
rotina a incluso de representantes de ONGs nas delegaes
nacionais s conferncias internacionais. Eles participam
diretamente das negociaes como representante da delegao
nacional com a designao de "membros pblicos".
Metade das delegaes do Canad e dos EUA na Conferncia sobre
Populao no Cairo (setembro 94) era composta de representantes
de ONGs. Existe, entretanto, segundo algumas organizaes, o
perigo de cooptao, o que explica a recusa dos grupos de
direitos humanos em participar das delegaes governamentais.
Os pases de tradio autoritria so mais hermticos e
impermeveis influncia das organizaes da sociedade
civil. O processo das conferncias das Naes Unidas inaugurado
com a Rio-92, porm, forou muitos governos, inclusive o Brasil,
a se abrirem ao dilogo com as ONGs. Posteriormente, o governo
brasileiro, a exemplo dos pases mais democrticos do Norte,
convidou representantes da sociedade civil para integrar a delegao
do Itamaraty nas Conferncias sobre Populao no Cairo (94), Cpula
Social em Copenhague (95), Mulheres em Pequim (95), o que jamais
ocorrera antes dos anos 90.
Wally N'Dow, secretrio geral da Conferncia Habitat II,
realizada na cidade de Istambul, em junho de 1996, afirmou que
houve uma revoluo na forma de trabalho da ONU, pois pela
primeira vez as autoridades locais e as ONGs tiveram assento e voz
no plenrio de uma Conferncia das Naes Unidas, embora sem
direito a voto. Para ele, o principal avano obtido foi a presena
de novos parceiros na mesa de negociaes.
Alm das Conferncias, as ONGs participaram de diversos grupos
de trabalho que definiram normas, diretrizes e regimes de proteo.
A Conveno dos Direitos da Criana, por exemplo, teve
participao direta da entidade internacional Salvem as Crianas,
alm de outras ONGs. Desde 1968, uma srie de ONGs tem status
consultivo junto Comisso Econmica e Social da ONU. A
Declarao de Estocolmo de 1972 e a Conveno de
Biodiversidade da Rio-92 partiram de documentos elaborados pela
Unio Internacional pela Conservao da Natureza. Os povos indgenas
tm representao direta na Comisso de Direitos Humanos, as
organizaes de mulheres alcanaram vitrias expressivas na
Conferncia sobre Populao do Cairo, as organizaes
ambientalistas participam das reunies da Comisso de
Desenvolvimento Sustentvel.
Como assinalou o Forum de ONGs Internacionais estabelecidas no
Canad, os dirigentes de ONGs tm mais fora do que a maioria
dos governos de pequenos pases. O secretrio-geral da Anistia
Internacional ou do Greenpeace, por exemplo, tem mais poder de
influncia no cenrio internacional do que muitos pases do
Terceiro Mundo (Foy & Rgallet, 1995).
A incluso das ONGs no processo de deciso no est
formalizada; depende, no raro, da compreenso da presidncia
dos trabalhos e da tolerncia das delegaes nacionais. Ainda
assim, documentos elaborados por ONGs so por vzes oficialmente
apresentados em plenrio atravs de um membro de um governo
qualquer. As regras da ONU dificultam a participao direta das
ONGs, sobretudo as do Sul. A ONU ainda no incorporou
integralmente o esprito da Agenda 21, aprovada na Conferncia
da Rio-92, que dedica 10 de seus 40 captulos a discutir o
envolvimento dos chamados "grupos sociais principais" no
acompanhamento, desenvolvimento e implementao das medidas de
desenvolvimento sustentvel aprovadas pelos governos.
H uma srie de propostas de reformas para assegurar a participao
formal das ONGs nos organismos internacionais. Lembrando os
precedentes da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e da
Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico
(OCDE), essas propostas propugnam a extenso desse reconhecimento
formal para outros contextos, como os rgos da ONU, entidades
internacionais de acompanhamento e monitoramento das decises da
ONU e das instituies de Bretton Woods, aonde as ONGs teriam
assento juntamente com os governos e empresas.
As reformas propostas, incluindo o Direito de Petio para
atores no-estatais, assegurariam, mediante procedimentos
equitativos, a participao da Sociedade Civil nas reunies
inter-governamentais, no Sistema das Naes Unidas e nas
instituies financeiras internacionais. Os benefcios
institucionais resultantes seriam evidentes, pois, segundo
assinalou a Comisso sobre Governabilidade Global - uma
iniciativa do ex-chanceler alemo Willy Brandt para analisar o
sistema internacional - um fator crucial na eficcia das organizaes
a percepo de sua legitimidade, vinculada participao
e transparncia em seu processo decisrio e natureza
representativa de seus rgos executivos.
Reivindicar a primazia da sociedade civil exige a articulao de
valores humanos universais que vo alm da dominao do Estado
e das foras do mercado. Tudo indica que as ONGs tm um papel
importante a desempenhar nesse processo. Temas como direitos das
mulheres, populao, emprego, economia, meio ambiente, migrao
so temas globais, que requerem forums globais para examinar as
escolhas e decises. As aes das ONGs tendem a fortalecer a
autonomia e a capacidade das organizaes da sociedade civil em
todo o mundo. Elas esto enfrentando o enorme desafio de levar os
problemas do nvel local ao global e vice-versa.
muito difcil criar polticas e mecanismos de coordenao
entre organizaes de culturas diversificadas. Apesar de todas
as limitaes, a emergente sociedade civil global pretende
desempenhar um papel histrico importante como a conscincia
moral do planeta e tambm por sua capacidade de expressar as
necessidades e aspiraes que se tornaram uma demanda social em
todas as partes e de propor as respectivas solues.
Em sntese, existem fortes indicaes de que as ONGs tendem a
desempenhar um papel crescente nas negociaes internacionais,
como catalizadores de mudanas destinadas a incorporar a
sociedade civil no processo de tomada de decises, e como
instrumento de uma emergente cidadania planetria enraizada em
valores humanos universais. As organizaes no governamentais
que atuam no plano internacional podero, assim, contribuir para
a constituio de uma nova institucionalidade poltica
consubstanciada numa esfera pblica transnacional.
8. Governabilidade Global e Cidadania Planetria
A idia de governabilidade global tem encontrado muitas resistncias,
principalmente nos pases do Sul, onde a interdependncia
crescente, de dinmica essencialmente econmica, tem se
traduzido em maior dependncia e menor governabilidade. A noo
de "global governance", como j vimos, no se confunde
com a idia de governo global de carter centralizado. Trata-se
antes de um sistema global de governo e tomada de decises
envolvendo os atores que atuam no cenrio internacional.
Vivemos uma situao indita, pois o problema no mais
apenas a articulao nacional/internacional, mas tambm a
amplitude e intensidade dos problemas globais, e o o aos nveis
de deciso pertinentes. Como o Estado soberano j no a
melhor instncia para tomar decises em escala planetria,
torna-se imperiosa a necessidade de regulao em termos mundiais
- uma governabilidade global - para enfrentar os desafios impostos
humanidade e ao planeta.
Apesar disso, a "Nova Ordem Mundial" - prometida aps a
Guerra do Golfo e a queda dos regimes comunistas do Leste europeu
- no a hoje de um mundo fragmentado, conflituado, sem ordem
coerente e marcado pela generalizao dos conflitos
intraestatais. A proposta de governabilidade global, encaminhada
nos anos 80 a partir de questes de segurana e meio ambiente, no
foi acompanhada de um esclarecimento sobre a natureza das instituies
que assumiriam a tarefa, nem sobre a articulao dos Estados
nacionais com elas.
Para o economista francs Michel Rogalsky, a governabilidade
global parece esbarrar em 3 grandes paradoxos: a) supe a existncia
de uma racionalidade identificvel e controlvel, num mundo
fragmentado, com acentuadas divises e interesses divergentes; b)
como a governabilidade nacional perde terreno dia-a-dia, como
subscrever compromissos sem a autoridade suficiente para
cumpri-los?; c) diante da impotncia crescente do sistema das Naes
Unidas, como imaginar e construir uma instituio suplementar
democrtica, no submetida influncia dos Estados mais
poderosos, das foras econmicas e financeiras, ou da comunidade
cientfica? (Rogalsky, 1994).
Apesar do esvasiamento do perigo nuclear e do fim do conflito
leste-oeste, a maioria dos problemas globais sobreviveu guerra
fria, trazendo tona o que estava em segundo plano: a fratura
Norte-Sul e os conflitos entre pases desenvolvidos. Os desafios
mundiais que persistem (proliferao nuclear, qumica,
bacteriolgica, ataques aos ecossistemas planetrios, migraes
massivas, fome, drogas, mfias, desemprego e excluso social
massiva) exigem uma cooperao internacional de fato, pois a
mundializao do problemas e dos comportamentos avanou mais rpido
do que sua regulao.
Enquanto setores democrticos resistem idia de
governabilidade global temendo um governo de especialistas que
elimine o debate democrtico e se transforme numa instncia
global totalitria - globalitria - certas correntes ecologistas
se deixam seduzir por argumentos de cunho ecofascista (ex:
Cousteau e a eliminao diria de 350.000 homens para
estabilizar a populao da terra).
Por outro lado, a maioria dos Estados nacionais no costuma
perceber a urgncia de determinadas situaes, como o risco
ecolgico. As controvrsias cientficas retardam ainda mais as
decises que custam ou nem chegam a ser tomadas porque os
diversos pases no se sentem imediatamente ameaados. Os
governos democrticos, habituados a curtos perodos eleitorais,
s exigncias da mdia e a resultados imediatos, se adaptam mal
necessidade de enfrentar problemas de longo prazo.
Mas o essencial que somente atravs da cooperao
internacional de todos os atores que atuam no processo de
globalizao podemos esperar solues. Isto aponta para a
limitao das soberanias nacionais e para um compromisso
soberano por parte dos Estados. A governabilidade global no se
implementar contra as naes, mas, ao contrrio, com naes
capazes de comprometer-se de modo confivel. O desenvolvimento
sustentvel uma dimenso planetria que requer a cooperao
de naes, diversas e desiguais, com organizaes, desiguais e
diversas, da sociedade civil global.
Segundo Hein, o essencial que o institucional acompanhe o
socioeconmico e a poltica de poder, pois a transformao da
funo pblica deve estar unida a uma transformao do modelo
de acumulao, de modo a possibilitar um desenvolvimento
ecologicamente sustentvel do potencial de produo e a satisfao
das necessidades, especialmente nas regies pobres. Esta a
base para que o processo de socializao global, ainda parcial,
possa conduzir a uma sociedade global, que por sua parte deve
constituir o embasamento para a funo pblica global.
Um dos fatores que impedem o desenvolvimento de um sistema global
de governabilidade o chamado sistema das Naes Unidas, pois
seu carter inter-nacional bloqueia a emergncia de um novo
sistema transnacional de governabilidade, onde teriam participao
ativa organizaes vivas da sociedade civil (associaes cientficas,
religiosas, entidades de classe, ONGs etc.).
Mas um dos grandes obstculos globalizao da funo pblica
o fato de a maioria dos habitantes do 3o. Mundo no existir
como sujeito poltico. Os chamados "riscos do Sul"
podem levar a mecanismos globais de controle e represso, o que
demonstra o carter contraditrio do processo poltico de
globalizao (Hein, 1994).
Por outro lado, o conceito de desenvolvimento sustentvel oferece
significativa contribuio ao debate sobre uma nova ordem
mundial e a globalizao da organizao poltica. Esse
conceito, se quer favorecer o objetivo de sustentabilidade fixado
pelo Relatrio Brundtland ("Nosso Futuro Comum"), isto
, satisfao das necessidades do presente sem comprometer as
geraes futuras, deve conter, segundo Hein, entre outros
elementos, a necessidade de um novo modelo mundial de acumulao/desenvolvimento,
que reintegre grupos sociais ou regies at agora marginalizados
e que possua um carter ecologicamente durvel.
O processo de aprofundamento da socializao global parece
irreversvel, e a longo prazo tudo indica que a socializao
global exigir seu equivalente em termos da funo pblica
global. Mas no se trata de um desenvolvimento social abstrato, e
sim de conflitos sociais e polticos intensos. At que surja uma
sociedade mundial com fundamento suficiente para a ampla transferncia
de soberania a um Estado global - compreendido no como governo
central mas como sistema global de governo - continuaro tendo
importncia as questes de uma ordem mundial regulada pelas
diferentes sociedades nacionais.
Em suma, importante repisar que no h motivos para supor que
a transferncia da soberania poltica a instncias globais
transcorrer de forma menos contraditria ou mais planificada
que a formao dos Estados nacionais burgueses. Por outro lado,
a discusso sobre a estrutura institucional da poltica global
deve levar em conta a constituio tendencial de novos atores do
processo de globalizao - as organizaes da sociedade civil
global - bem como as tendncias econmicas mundiais. As
tentativas de influir eficazmente nessas ltimas s tero
perspectivas de xito se ocorrerem mudanas nas estruturas
institucionais da esfera pblica transnacional, redefinindo-se,
no plano global, as relaes entre Estado, Mercado e Sociedade
Civil.
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