2k3q71
Quais
os limites e possibilidades da cidadania planetria?
Virgnia Vargas*
Ao longo do processo que representou
a luta contra a ditadura de Fujimori e em prol da democracia,
h um fator que muito importante: a globalizao, que uma
ameaa e uma promessa. Ela nos permite realizar uma srie de
outras lutas, como estamos fazendo agora, e um terreno de
disputa, como, por exemplo, a disputa entre Davos e ns. Estamos
disputando contedos e orientaes relacionados globalizao.
H mudanas na forma de questionar a tradio, as formas arcaicas,
h uma nova percepo poltica ampliada para o cotidiano, e
essas mudanas alteram as formas pelas quais se constroem as
identidades nacionais. Elas obrigam a encontrar novas formas
de interpretar e gerar respostas criativas e podem ser a base
da construo de cidadanias globais.
Uma das caractersticas fundamentais
da cidadania o fato de ser uma categoria permanentemente em
construo, num processo dinmico que s vezes anda para trs,
perde o controle. Por exemplo, na Amrica Latina os polticos
esto adquirindo um novo valor depois das ditaduras; os direitos
humanos se perderam com o neoliberalismo, mas continuam sendo
uma fonte fundamental de reivindicaes. O que perdemos a nvel
nacional, comea a manifestar-se no plano global. Atualmente,
a cidadania contm um grande potencial de transformao porque
justamente um terreno de disputa democrtica entre a sociedade
civil e o Estado. No s com o Estado, mas dentro da prpria
sociedade civil, que obviamente tem traos conservadores e democrticos.
Se partirmos da cidadania como princpio mobilizador, poderemos
dar a devida importncia construo no plano global.
A expanso da cidadania sempre
correspondeu, nacionalmente, a um movimento de cima para baixo
e de baixo para cima os direitos conquistados e os direitos
outorgados, com as devidas diferenas que em ambos existem.
Para a cidadania global, existem duas formas de construo:
as iniciativas que so geradas de cima para baixo, nos organismos
internacionais, as reunies de populaes etc. e as que vm
de baixo para cima, geradas pela presso dos movimentos sociais
que vo impondo a adoo de novos direitos medida que os descobrem
e os exercem. Isto nos aproxima de uma caracterstica que vai
ter uma importncia fundamental na construo da cidadania global,
que a dimenso objetiva e subjetiva.
A dimenso objetiva a dos direitos
que de fato existem, que sempre so menos do que merecemos.
A dimenso subjetiva refere-se auto-percepo dos cidados
enquanto merecedores ou no de direitos. Esses aspectos da dimenso
subjetiva de cidadania so a principal mola propulsora da formao
de cidadanias globais. Obviamente, existe a vertente poltica
oficial (das reunies de cpula dos governos) assim como as
vertentes dos movimentos sociais, e ambas correm paralelamente
numa disputa contestadora, no s porque seguem diferentes lgicas
e dinmicas de atuao, mas porque se baseiam em diferentes
perspectivas. Por exemplo, as feministas encontraram na atual
dinmica do Mercosul uma forma de recuperar sua participao,
o que j aconteceu na conferncia de Viena, organizada pelas
Naes Unidas e representou um terreno de disputa e de comunicao
muito importante para as mulheres e para os grupos excludos.
Pela primeira vez, os direitos das mulheres foram considerados
nessa conferncia como direitos humanos. O mesmo se aplica aos
movimentos ecolgicos: a presena dos ativistas do Greenpeace,
que agem a nvel global e comearam a ganhar visibilidade e
a lanar luz sobre problemas ambientais.
claro que tudo muito incipiente,
mas os temas globais se caracterizam pela luta permanente de
setores importantes no mundo inteiro. A visibilidade do risco
da Amaznia no teria sido possvel se pessoas como Chico Mendes
no tivessem lutado apesar das dramticas conseqncias da
sua luta para chamar ateno para o problema. O que est acontecendo
com o comrcio internacional no seria uma questo to central
se, um ano atrs, no tivesse acontecido o que aconteceu. Todos
esses problemas foram gerando vrias diretrizes, mas o importante
a forma pela qual o local e o global vo se integrando e se
unindo, tentando revelar essas disputas. O caso Pinochet mostra
claramente como conseguimos que se fizesse justia mundialmente,
o que trouxe repercusses nacionalmente, confrontando essa democracia
com o que havia no Chile.
Na perspectiva da cidadania global,
os direitos humanos tm uma importncia fundamental, pois a
idia que est por trs da cidadania global a de que possamos
pensar num futuro que oferea possibilidades para todas as pessoas,
em qualquer lugar do planeta. Este um potencial imenso para
ao. Alm disso, o espao global oferece muitos mritos para
a cidadania. A experincia que ns, feministas, tivemos no caso
das mulheres indgenas foi totalmente transparente, mostrando
de que forma a cidadania que tinha sido totalmente rejeitada.
A situao comeou a se ampliar e a se modificar pelas interaes
que surgiram e as visibilidades legitimadoras que aconteceram
no espao global, tanto por parte do Estado como da sociedade
civil. Obviamente as limitaes so imensas e gostaria de me
concentrar nas limitaes que ns, mulheres, enfrentamos, enquanto
parte da sociedade civil. As limitaes de poder tambm ocorrem
entre as classes e entre os grupos tnicos, com as mulheres
e com todos os que esto envolvidos em uma relao de poder,
simblico, poltico ou cultural. No chegamos na forma pura
ao espao global: sempre chegamos impregnados de todas as dificuldades
e reticncias em relao democracia que temos dentro ns e
de nossos pases. A cidadania subjetiva tambm carrega essa
subjetividade tradicional. Uma pergunta democrtica fundamental
: como poderemos entrar nesse espao global com pontos de partidas
democrticos consensuais? Isso fundamental para a construo
de uma sociedade civil global, um marco.
As relaes de poder no esto
fora, mas dentro de ns, e se manifestam no plano global. Se
a diversidade parece se expressar de forma mais clara no espao
global, no deixa de estar impregnada pela desigualdade. O espao
global est minado pelo conservadorismo e deve ser concebido
como um habitat a ser constantemente construdo. Nesse habitat,
os movimentos sociais globais expressam tambm suas presses
internas e externas: negociam, revelam e reproduzem caractersticas
e prticas que tentam superar. Da, a democratizao do espao
global ser fundamental.
A deteriorao das identidades
foi inevitvel por todos esses movimentos que citei anteriormente,
mas ao mesmo tempo abriu-se uma srie de possibilidades para
as mulheres e homens. A globalizao poltica permite a possibilidade
de articular a reflexo de princpios, um dos grandes temas
da sociedade, pois a fonte poltica de identidade mudou radicalmente.
Deixou de ser um ponto de referncia nas horas de decises cruciais.
Isso permitiu a possibilidade de assumir a democracia como eixo
de articulao com outras lutas. Essa foi uma das mudanas mais
importante do feminismo, que vai progredindo sem abandonar a
luta para a democratizao da relao dos gneros. Assim como
progride na luta contra o racismo e em todos os nveis pelo
reconhecimento e pela redistribuio do espao global.
No comeo do feminismo, quando
surgimos na luta contra as ditaduras, uma das nossas palavras
de ordem era: O que bom para as mulheres, bom para a democracia.
J nos foi demonstrado que essa frase justa, mas no suficiente.
Modificamos essa frase, assim como a orientao das polticas
de aliana, para definir um novo parmetro para as lutas feministas:
O que no bom para a democracia, no bom para as mulheres.
Assim, pensamos que os feminismos recuperaram a relao intrnseca
entre direitos e democracia. A partir da surgiu uma constante
reviso da idia de ampliar a cidadania das mulheres. Porque
essa cidadania no totalmente assumida, apesar de estar em
permanente relao com a qualidade dos processos democrticos,
a nvel nacional e global, e totalmente relacionada s foras
democrticas. Essa identidade descentralizada e enriquecida
deve ser a garantia das articulaes entre o global e local.
Isso deixa claro que importante avanar na formao do espao
nacional, a partir de um corte democrtico. Obviamente, no
podemos deixar de lado a disputa das mulheres com relao a
um terreno hegemnico no s com relao aos Estados e grupos
anti-democrticos, mas tambm no prprio terreno democrtico,
onde muitas vezes imperam discursos racistas, sexistas e anti-democrticos.
Como disse Frei Betto no primeiro dia, nenhuma poltica de mudana
pode acontecer se no forem modificadas as esferas privadas
e as relaes de poder que ali foram concebidas.
Todos queremos um mundo novo, mas
temos que itir que a mudana deve vir de baixo para cima
e um desafio s formas e medidas autoritrias. A democracia
tem que ser exercida em diferentes nveis, no pas e no global,
em casa e na cama, na esfera privada e pblica. S a partir
dessa viso ampliada de democracia ser possvel disputar uma
dinmica cidad estatal no global e no local. Essa a contribuio
das mulheres e dos homens para a globalizao de baixo para
cima e para a construo de uma cidadania democrtica.
Virgnia Vargas* peruana,
Centro da Mulher Peruana Flora Tristan
Reproduo editada da gravao
da palestra proferida, sem reviso final do expositor.
|