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Direitos Humanos 50 anos
Depois
Oscar Vilhena Vieira
1. Introduo
Numa conceituao
provocadora o filsofo Ronald Dworkin afirma que "os direitos so
melhores compreendidos como trunfos", pois devem prevalecer sobre
outras justificaes que fundam decises polticas e metas a serem
atingidas pela sociedade. (Dworkin, 1984:153). Como num jogo de baralho,
onde h determinadas combinaes ou curingas que se sobrepem s
cartas dos adversrios, a presena de direitos tambm deve se sobrepor
s demais alternativas de deciso coletiva. Assim, controlar e diminuir
a criminalidade pode ser uma meta mais do que desejvel, mas isto no
pode ser feito s custas da integridade fsica e moral de um nmero
indefinido de suspeitos ou mesmo de criminosos.
No se busca aqui
argumentar que os direitos, em geral, sejam absolutos, mesmo porque muitas
vezes eles se encontram em tenso com outros direitos. Mas quando
associamos a expresso "humanos" idia de
"direitos", surge uma presuno de superioridade tica destes
direitos sobre as demais metas e diretrizes impostas pelo sistema poltico.
Direitos humanos constituiriam assim, numa definio preliminar, aquela
esfera de intangibilidade voltada a proteger a dignidade de toda a pessoa,
pelo simples fato de ser humana. A grande dificuldade, e o que tem
monopolizado os debates entre filsofos e tericos do direito, pelo
menos nestes ltimos dois milnios, saber o qu so estes direitos
e de onde eles vm. Exemplo desta discusso sobre o fundamento ltimo
dos direitos humanos pode ser encontrado desde a Grcia antiga, como na
tragdia Antgona, de Sfocles.
Morto Polcines, irmo
de Antgona, numa batalha contra o reino de Tebas, Creonte, o rei, baixa
um dito determinando que o corpo do traidor fique insepulto, para ser
devorado pelos ces e abutres. Revoltada, Antgona enterra o irmo,
presa pelos soldados do rei e levada a sua presena, que indaga:
"Sabias que um dito proibia aquilo?" Antgona responde que
"Sabia. Como ignoraria? Era notrio."
O rei, ento, indaga
"Como ousastes desobedecer s leis?", ao que Antgona por fim
responde:
"Mas Zeus no
foi o arauto delas para mim,
nem essas leis so
as ditadas entre os homens pela Justia... e nem me pareceu
que tuas determinaes
tivessem fora
para impor aos
mortais at a obrigao
de transgredir normas
divinas, no escritas,
inevitveis; no
de hoje, no de ontem,
desde os tempos
mais remotos que elas vigem,
sem que ningum
possa dizer quando surgiram."
A resposta de Antgona,
alm de corajosa, tem um profundo sentido crtico, pois questiona, de
forma veemente, a idia de que direito tudo aquilo que colocado
pelo poder constitudo, limitando-se a uma mera expresso do poder, a
uma questo de fato. Porm ao buscar dar outro fundamento de validade ao
direito, que no o poder, Antgona vacila entre a transcendncia divina
e a Justia, que tambm uma deusa. Ao fundar os direitos na
autoridade divina e coloc-los como entidades atemporais, Antgona
pressupe a crena e a prpria existncia de Deus. Muito embora este
argumento tenha sido aceito por um longo perodo da histria,
principalmente naquele perodo em que prevaleceu no ocidente o domnio
quase que absoluto da Igreja, este direito de origem divina no mais se
sustenta face ao racionalismo. Com o fim da hegemonia crist, h uma
ruptura dos paradigmas de verdade impostos pelo pensamento dogmtico. E
com isto a idia de direitos naturais decorrentes de Deus perde a sua
sustentao.
J no renascimento o
pensamento de base crist comea a ser desafiado. Os fundamentos do
poder e da prpria arte, que estavam diretamente submetidos ao domnio
cultural da igreja, comeam a se esgarar. Basta para isto ter em mente
as figuras e as obras de Michelangelo e Maquiavel. O que une o gnio da
arte ao criador da cincia poltica moderna, foi a capacidade destes
dois homens, no apenas de se libertar dos paradigmas dominantes nas suas
esferas de ao, mas de reencontrar o humano, separando-o do religioso.
Se compararmos a arte pr-renascentista com as pinturas e esculturas
produzidas por Michelangelo, podemos perceber que seus personagens so
homens e mulheres que no so feitos imagem e semelhana de um Deus
idealizado, mas so o resultado da sobreposio de tecidos, msculos e
veias e que tm um movimento que resulta de uma vontade estritamente
humana. Como se sabe, um dos atempos preferidos de Michelangelo era
dissecar cadveres. Era o homem de carne e osso que o interessava. Basta
pensar em seu Moiss, na escultura do escravo em fuga ou mesmo no deus da
capela Sistina, para reencontrarmos o humano, mesmo nas figuras divinas.
Da mesma forma Maquiavel, no Prncipe, nada mais fez do que desvendar o
poder dissecando o seu objeto de anlise. Assim como Michelangelo,
Maquiavel, ao descrever o modo como o Prncipe conquista e se mantm no
poder, afasta as vises religiosas que fundamentavam o poder e busca
demonstrar a forma pela qual esse poder efetivamente exercido. Como
salientou o insuspeito Rousseau, ao dar lies ao Prncipe sobre como
alcanar o poder, Maquiavel estava na realidade demostrando ao povo a
forma pela qual o poder sobre ele exercido. Qualquer que tenha sido a
inteno de Maquiavel, o fato que ele nos demonstrou que o poder do
Estado e a legitimidade dos reis no decorrem da vontade divina ou mesmo
da tradio, seno da ao humana.
Neste contexto os
jusnaturalistas modernos, Hobbes e especialmente Locke, iro fundar o
direito no mais numa entidade transcendente, mas na razo humana.
Utilizando-se da abstrao do contrato, tanto Hobbes quanto Locke
apontam que se seres racionais fossem submetidos a uma situao de
natureza, ou seja, ausncia do Estado, certamente eles acordariam em
criar uma entidade voltada a regular a vida em sociedade. A criao do
Estado e do direito, assim, am a ser compreendidas como resultante da
vontade humana. Evidente que nenhum destes autores seria ingnuo o
suficiente para acreditar que o estado de natureza tenha realmente
existido. Mas a utilizao desta abstrao serve para demonstrar como
a razo funcionaria caso ela fosse consultada, no vazio de instituies
e outras condies que limitam a sua liberdade. A grande diferena
entre Hobbes e Locke o modo como cada um destes autores descreve o ser
humano. Dotados de menos qualidades morais, os indivduos hobbesianos
estabeleceriam um estado de guerra de todos contra todos, que para ser
pacificado exigiria um Estado forte. J os indivduos descritos por
Locke, que no estado de natureza sabem diferenciar o justo do injusto, mas
no tm quem resolva um conflito de modo imparcial quando este aparece,
vivem num mundo precrio e que pode e deve ser aperfeioado pela criao
de uma entidade imparcial, que auxilie o relacionamento entre os indivduos.
O que nos importa no
momento que para ambos os autores ser a razo que ditar qual o
fundamento ltimo do direito. Esse racionalismo levado a prtica impe
necessariamente que o direito seja fruto da vontade democrtica, como
pretendia Rousseau. Sendo todos os homens iguais, ou seja, tendo o mesmo
valor moral, para que se justifique uma regra que vincule a conduta de
todos, fundamental que todos participem de sua formulao. As Revolues
sa e Americana, assim como suas declaraes e constituies so
fruto dessa idia de um homem racional, emancipado e livre para decidir
seu prprio destino.
Essa razo abstrata ,
no entanto, intensamente criticada por autores conservadores como Edmund
Burke, e mesmo por progressistas como Hume, Bentham e Marx. Para Burke as
instituies decorriam de um longo processo de sedimentao histrica.
O direito era algo que se herdava das geraes anteriores, a partir de
um processo de erros e acertos que iria apurando a lei e o governo.
Pretender que todas as instituies fossem recriadas de um s ato, como
o poder constituinte, que a materializao da vontade geral
rousseauniana, pretender que a razo de um grupo de homens, num
determinado momento histrico, se sobreponha a sculos de experimentao.
Como dizia um de seus seguidores, fazer uma constituio no como
fazer um pudim, no basta que se siga uma receita para que o resultado
seja bom. Por fim, afirma que a Declarao poderia levar as pessoas a
crer que eles realmente tinham aqueles direitos, o que provocaria uma
grande desordem se viessem a exig-los. A crtica progressista ou
radical, embora tenha uma finalidade distinta, tambm desconfia desta razo
abstrata, da qual os jusnaturalistas derivam direitos. Hume faz uma crtica
voraz idia de estado de natureza, Bentham, descreve os direitos tais
como est expresso na Declarao sa: "falcias anrquicas".
No entender de Bentham, o bem estar da sociedade s pode ser alcanado a
partir do sacrifcio de todos e no pelo fortalecimento do egosmo de
cada um, como assegurado pela Declarao de 1789. Este tambm ser o
ponto bsico da crtica de Marx, quando da anlise da declarao
sa, em sua obra Questo Judaica. Ao garantir direitos que
separam a esfera pblica da privada, a Declarao estaria apenas
mantendo uma situao de natureza dentro da esfera do Estado. Esta
esfera cercada por direitos burgueses que asseguraria o mercado, onde
deve prevalecer o mais forte, aquele que tenha domnio sobre os meios de
produo. Ao vender a sua fora de trabalho, ou seja, ao realizar um
contrato que protegido pela Declarao, como parte intrnseca do
direito de propriedade, as pessoas esto indiretamente alienando tambm
seus demais direitos.
Estas crticas
direita e esquerda da Declarao, somadas a uma reao historicista
no pensamento jurdico alemo, retiraram credibilidade desse direito
racional, com pretenses universalistas. Assim a legitimidade do direito
deve derivar ou de sua sincronia com os valores e a herana cultural de
uma determinada comunidade ou do simples fato de ter sido produzido por
aqueles rgos que tem a responsabilidade formal pela produo de
normas. Esta ltima hiptese nos coloca em posio semelhante a de Antgona,
pois somos submetidos a um direito que tem como nico ttulo de
legitimidade o fato de derivar do poder. A importante distino, no
entanto, que a partir de Rousseau a soberania no mais compreendida
apenas da perspectiva que lhe foi atribuda por Bodin, ex parti
principe, mas como soberania popular, ou seja, no final do sculo
XIX, incio do sculo XX, a lei ganha validade quando produzida por um
parlamento que represente a nao, e este seu critrio ltimo de
validade.
Assim, muito embora a idia
de que as pessoas tm direitos que lhe so inerentes pelo simples fato
de serem humanas pode ser rastreada desde a antigidade, no incio de
nosso sculo o paradigma dominante era de que os direitos decorriam da
vontade dos Estados, ainda que estes Estados no correspondessem mais ao
modelo absoluto hobbesiano, mas ao Estado que tem no parlamento sua esfera
mxima de legitimao. H que se destacar, no entanto, que o conceito
de democracia parlamentar prevalente poca era um conceito bastante
formal, que se adaptava transio do Estado liberal para o Estado
intervencionista. Mais do que isto, o ambiente intelectual e poltico na
Europa nas primeiras dcadas do sculo tambm no contribuam para
uma percepo substantiva dos direitos. H, neste sentido, uma srie
de eventos que precedem ao perodo da II Guerra mundial que podem servir
para a compreenso se isto for possvel de como milhes de
pessoas tiveram seus direitos totalmente desrespeitados e violados pelos
regimes totalitrios e autoritrios que assolaram os diversos
continentes. Max Weber escreve, no primeiro ps-guerra, sobre o processo
de desencantamento pelo qual a o mundo. Constata que a prevalncia de
uma racionalidade instrumental, tanto na esfera da cincia, como no mbito
do funcionamento da empresa, provocou uma ruptura com os parmetros
intelectuais do sculo XIX. Neste mundo desencantado, a idia de uma
verdade absoluta ou mesmo da existncia de direitos naturais, inerentes a
qualquer pessoa, pelo simples fato de ser pessoa humana, totalmente
destituda de credibilidade. A herana do direito natural a,
portanto, por um vertiginoso processo de eroso nos anos 20 e 30, no
apenas na Alemanha, mas mais intensamente neste pas.
A cultura jurdica
produzida pelo positivismo jurdico sintetiza esta superao do direito
natural. Para o positivismo qualquer que seja o ttulo de legitimidade do
poder, os direitos no am de uma expresso da vontade do Estado e,
portanto, podem ser colocados e retirados a qualquer momento por este.
Deve-se destacar que, valendo-se dessa idia, Hitler, que dispunha de um
corpo de "juristas" de planto, assim como de instituies
organizadas sob os padres burocrticos bismarkianos, teve a possibilidade
de realizar os fins do nazismo utilizando-se dos mecanismos formalmente
estabelecidos pela Constituio de Weimar. Desta forma, o direito neutro
serviu de instrumento para um Estado nazista.
Aps chegar ao poder em
1933, por uma srie de medidas legislativas, Hitler altera a Constituio
(conquistando o quorum de dois teros) e promulga o Ato de Habilitao,
que seria o embrio do sistema jurdico nazista. Por este ato
constitucional, todas as medidas, propostas por Hitler, que fossem
incompatveis com a Constituio, desde que obtivesse maioria
parlamentar, poderiam ser transformadas em lei. Um dos primeiros atos de
Hitler foi destituir o estatus de nacionais de diversos grupos. Os judeus
foram os primeiros a serem desnacionalizados. Como no mais tinham vnculos
com o Estado alemo, como no haviam relaes jurdicas que os
ligassem a qualquer outra rbita de proteo de direitos, eles
encontravam-se excludos moral e juridicamente do sistema de proteo
concebido pela Constituio de Weimar, e mesmo do precrio sistema de
proteo oferecido pela Liga das Naes. Excludos, judeus, ciganos,
comunistas, homossexuais e outras minorias ficaram totalmente vulnerveis
e aram a ser tratadas como objeto e no como sujeito de direitos,
como descreve Hanna Arendt.
A II Guerra mundial se
diferencia das demais guerras pelo fato de que as principais vtimas
foram nacionais mortos pelos seus prprios Estados. No perodo que vai
de meados dos anos 30 at o final da II Guerra, morreram cerca de
45.000.000 de pessoas. Mais da metade desses mortos no foram soldados
vitimados em combate, mas civis mortos pelos seus prprios Estados,
primordialmente na Alemanha e na Unio Sovitica. Ento esses mais de
20 milhes de seres humanos foram vtimas da instituio que princpio
deveria proteg-las. Este um fato absolutamente aterrorizador. A idia
de que o Estado se utiliza do direito, e por intermdio deste direito
consegue liquidar grupos raciais, religiosos e dissidentes polticos, em
escala assustadora, algo peculiar ao perodo da II Grande Guerra.
2. Direitos Humanos no
Mundo Contemporneo
O holocausto, e as outras
barbries do perodo, como os campos soviticos de trabalhos forados
e mesmo a bomba atmica, causam um profundo choque na comunidade
internacional. como reao a esta demonstrao de irracionalidade e
da capacidade do homem de se auto destruir que surge a idia contempornea
de direitos humanos. Trata-se de uma resposta, ainda que filosoficamente no
bem resolvida, de uma reao ao vazio tico deixado pelo
desencantamento que favoreceu o nazismo e todas as atrocidades por ele
realizadas.
Assim que surge a
Declarao Universal dos Direitos Humanos, com o objetivo de estabelecer
um novo horizonte tico, a partir do qual a relao dos Estados com
seus cidados pudesse ser julgada. No momento em que esta Declarao
completa 50 anos, temos que compreender exatamente qual o seu papel, a
que ela veio e qual o seu objetivo. A Declarao, bom que se diga,
no surgiu com a pretenso de transformar-se em direito. Embora seja o
principal instrumento e certamente o mais conhecido dos documentos de
direitos humanos produzidos na esfera das Naes Unidas, no um
tratado internacional, mas uma simples declarao decorrente de uma
resoluo da Assemblia Geral das Naes Unidas. No sendo um
tratado, no pde ser ratificada e, portanto, no tinha originalmente
pretenso de obrigar os Estados juridicamente. Mas sim, de servir como
paradigma moral.
O fato que a Declarao
ocupou um papel to importante no imaginrio da comunidade internacional
aps a II Guerra, e exerceu um papel to importante no processo de
descolonizao e mesmo na luta de resistncia contra os regimes autoritrios
nas mais diversas partes do mundo, que deixou de ser mero instrumento retrico
e ou a ser incorporada pelos Estados enquanto direito em sua constituies.
Basta olharmos o exemplo da frica, onde dezenas de constituies foram
promulgadas a partir da concepo de direitos humanos proposta pela
Declarao, o que jamais significou o respeito incondicional a estes
direitos. Pases na Amrica Latina que se reconstitucionalizaram nesse
perodo, quase todos incorporaram a estrutura e a lgica da Declarao
dentro de suas constituies. Talvez a Constituio brasileira de 1988
seja um ponto exemplar, no s de reproduo da lgica da Declarao,
mas de uma ampliao e atualizao de seus ideais. A nossa Constituio
absolutamente generosa e criativa em termos de confeco do mapa tico
segundo o qual a nossa sociedade deve se organizar. Isto no significa,
no entanto, que estes 50 anos sejam motivo apenas para comemoraes.
Pois apesar da Declarao ter estabelecido essa rgua tica, a partir
da qual ns podemos medir a legitimidade dos Estados, ainda h muito o
que fazer.
Diversas so as
promessas no cumpridas. Um tero da populao mundial vive em extrema
pobreza. Um milho e trezentas mil pessoas ganham menos de U$ 1,00 por
dia; mais de 150 milhes de crianas esto mal nutridas e outras 100
milhes se encontram fora das escolas. O desequilbrio na distribuio
de renda abissal, no apenas entre norte e sul, mas dentro de cada
continente e cada pas. Na Amrica Latina, os 20% mais ricos tm uma
renda per capita de U$ 17.000,00 por ano, enquanto os 20% mais pobres no
ultraam os U$ 930,00 por ano. O pior disto que dentro do continente
americano, o Brasil ocupa a pior posio no quesito distribuio de
renda. O Brasil, embora seja uma das 10 maiores economias do mundo, no
sendo portanto um pas pobre, se encontra na constrangedora posio de
Segundo pas mais desigual do mundo, perdendo apenas para Serra Leoa. No
que se refere ao ndice de Desenvolvimento Humano, estabelecido pelas Naes
Unidas, o Brasil ocupa o 62 lugar. Embora a concentrao de riquezas e
a espoliao dos em desenvolvimento pelas economias centrais seja a
principal responsvel pela misria no mundo, isto no elide a
responsabilidade de sociedades, como a brasileira, de reproduzirem estes
padres perversos de distribuio de renda no plano interno. No se
justifica que os 10% dos brasileiros que se encontram no topo da pirmide
social concentrem em suas mos 50% da riqueza nacional, deixando aos 50%
mais pobres, apenas 10% desta riqueza. Sem dvida nenhuma, a misria e a
desigualdade so as principais responsveis pela criao de sociedades
hierarquizadas, onde prevalecem as relaes de dominao e onde a lgica
dos direitos humanos tem uma enorme dificuldade de penetrar, como veremos
a seguir.
Enumerando ainda as
promessas e fatos que a Declarao buscava impedir, basta citar o
estupro e a violao das mulheres islmicas no que foi a Iugoslvia,
ou o que aconteceu em Ruanda, recentemente, onde em menos de uma semana
mais de 500 mil pessoas foram sumariamente mortas num ato genocida. Tudo
isto pode ser debitado certamente na conta da no comemorao da
Declarao Universal dos Direitos Humanos.
Mas h fatores que devem
tambm nos alertar no sentido positivo. A pobreza, apesar de todos estes
dados negativos, teve uma reduo maior nos ltimos 50 anos do que nos
ltimos 500 anos da humanidade, conforme ltimo relatrio das Naes
Unidas sobre o desenvolvimento humano. A mortalidade infantil, que um
bom ndice para se medir a condio de vida das sociedades, foi
reduzida metade nos ltimos 20 anos; a m nutrio reduziu-se em
1/3 tambm nos ltimos 20 anos; o nmero de crianas nas escolas
aumentou em 1/4 nestas duas ltimas dcadas; e espera-se que at o
final do sculo, 4 bilhes e 500 mil pessoas tenham o educao.
E ns sabemos o que isso significa em termos de o cidadania.
Estes avanos devem ser mencionados, para fortalecer a ao daqueles
que lutam pela promoo e proteo destes direitos e evidenciar os
progressos na direo da consolidao de nosso Estado Democrtico de
Direito.
Por fim, penso que o que
mais temos comemorar em relao Declarao Universal dos
Direitos Humanos sua capacidade de criar um consenso quase que
universal em torno de princpios morais e de um novo parmetro de justia
pelo qual ns podemos guiar nossas sociedades. O que no pouco. Tambm
mostra-se de fundamental importncia, num momento de fragmentao ideolgica
e cultural e de um processo de globalizao, onde os caminhos esto to
pouco claros. Neste terreno pantanoso, os direitos humanos se demonstram o
caminho mais adequado e seguro a ser seguido. Diferentemente das demais
utopias e ideologias polticas, que eram finalistas, ou seja, propunham
um fim fantstico para o homem, e permitiam que quaisquer meios, desde
que fossem eficientes, pudessem ser utilizados para que se atingisse esses
fins, os direitos humanos estabelecem meios ticos para que se alcance
uma sociedade mais justa. A carta de direitos nada mais do que um
conjunto de medidas ticas para se chegar a um mundo justo. nossa ncora,
do ponto de vista tico, lanada no seio da comunidade internacional.
Vale lembrar uma agem de Carlos Nino, que alm de um grande jurista,
como personalidade pblica teve um papel tremendamente relevante como
assessor jurdico de Alfonsin, logo depois do fim do regime militar na
Argentina. Ao ser questionar sobre o que so os direitos humanos, qual a
origem, se direito natural ou no, Nino guardou a seguinte linha de
raciocnio: assim como o ser humano foi capaz, atravs da cincia,
atravs da sua razo, de conceber vacinas e antibiticos que nos livram
dos males que afetam os nosso corpos (imaginem o que era o mundo sem a
vacina, imaginem o que ser o mundo ps vacina da AIDS), a humanidade
criou os direitos humanos como uma forma de se auto proteger daquelas
principais ameaas que atingem o corpo social, como a desigualdade, o arbtrio,
a tortura e a misria. Isso , na realidade, uma construo humana,
faz parte de nossa capacidade operacional de construir, corrigir e criar
mecanismos de autodefesa. A Declarao Universal no nada mais do
que isso.
Porm, a Declarao,
ou qualquer outro instrumento jurdico, no realiza sua pretenso
normativa se no estiverem presentes uma srie de fatores, entre os
quais a compatibilidade entre o contedo da norma e o que as pessoas
entendem como justo naquela sociedade e a sintonia entre a burocracia e os
dispositivos legais. Embora os preceitos estabelecidos pelos principais
instrumentos de direitos humanos alcancem normalmente consenso entre os
povos, no raramente aqueles que se encontram no poder ou que pelo menos
exercem o poder coercitivo ou econmico dentro de uma sociedade, tm
dificuldade em agir em conformidade com a gramtica dos direitos humanos.
Da a importncia da sociedade civil enquanto instrumento de denncia,
sensibilizao e difuso dos direitos humanos. Somente a partir da ao
das entidades que se organizam no seio da sociedade, assim como da
comunidade internacional, que veremos aqueles dispositivos
estabelecidos nos documentos internacionais, transformados em realidade.
emos ento a uma breve anlise do processo de formao e consolidao
do movimento de direitos humanos em nosso pas.
3. O Movimento pelos
Direitos Humanos no Brasil
O perodo autoritrio,
aberto em 1964, marca o surgimento de diversas entidades nacionais de
proteo aos direitos humanos, bem como de interveno e no
monitoramento da situao interna. De acordo com o relatrio O
Universo das ONGs no Brasil, foi com o acentuar da represso nos
anos setenta que a sociedade, desprovida de canais tradicionais de
participao poltica, ou a se organizar margem das estruturas
formais de poder, com o objetivo de defender aqueles que vinham sendo
excludos e torturados pelo regime militar, bem como lutar pela restaurao
do Estado de Direito. Tratava-se de uma luta restrita ao restabelecimento
dos direitos daqueles que se colocavam contra o regime, e no de
universalizao da cidadania.
Em 1971, a Anistia
Internacional publica um primeiro relatrio, antecedido por uma investigao,
in locu, que aponta mais de mil pessoas vtimas de tortura; prtica
comum no perodo militar. No mesmo ano, juntamente com a Comisso
Internacional de Juristas, Desenvolvimento e Paz (SODEPAX) uma
organizao conjunta do Conselho Mundial de Igrejas e da Comisso
Pontifcia de Justia e Paz, a Anistia Internacional fez um apelo ao
governo brasileiro para que cessassem as prises de dissidentes polticos,
assim como a tortura a que eram sistematicamente submetidos. Essas
organizaes buscavam pr termo ao regime de exceo iniciado em
1964.
Com a transio poltica
e a anistia, os presos polticos foram libertados. A realidade dos que
continuaram nos presdios e cadeias ou daqueles que tinham contato com os
aparatos de represso do Estado e pertenciam s classes populares, no
entanto, ficou inalterada. O mesmo se diga em relao a violncia domstica
e a discriminao racial. Pode-se at dizer que a situao se agravou
em funo da banalizao dos novos meios de tortura incorporados
durante o perodo militar e pela maior autonomia conquistada pelo
aparelho policial, sem falar numa magistratura e num ministrio pblico
tmidos face a essa problemtica.
Em confronto com essa
realidade, diversas entidades surgidas no regime militar decidiram
continuar o seu trabalho junto queles que at ento se encontravam
totalmente marginalizados do processo de cidadania. Outras, como a Comisso
Teotnio Vilela, surgem com mandatos especficos para a proteo
daqueles que se encontram sob a custdia de estabelecimentos fechados. A
Ordem dos Advogados do Brasil, em suas sedes regionais, cria diversas
comisses de direitos humanos. As Comisses de Justia e Paz, ligadas
Igreja, disseminam-se por todo o pas sob inspirao de Dom Paulo
Evaristo Arns e outros bispos.
Com a eleio dos
primeiros governos democrticos, em 1982, o movimento de direitos humanos
ou a enfrentar novos desafios. Os governantes agora eram eleitos,
abrindo possibilidades maiores de dilogo do que no perodo anterior.
Mais do que isso, diversos militantes de direitos humanos aram a
ocupar cargos importantes nos governos estaduais, exigindo uma deciso
difcil entre manter o padro das denncias ou ar a colaborar com
as autoridades que, na maioria das vezes, encontravam grande resistncia
por parte dos rgos policiais.
O aumento da
criminalidade, a partir do final dos anos 70, estabelece uma presso cada
vez maior sobre os rgos de segurana que se utilizam de mais violncia
como resposta criminalidade. A tortura prtica sistemtica de
investigao e extorso. As execues sumrias, levadas a cabo pela
polcia militar, chegam a constituir, no incio dos anos 90, um quarto
dos homicdios dolosos praticados em So Paulo. Com a superlotao das
cadeias pblicas, distritos policiais e penitencirias, as condies
prisionais tambm se deterioram. As organizaes de direitos humanos,
que surgiram com o mandato de denunciar as violaes praticadas pelo
aparato repressivo do Estado, se vem na constante defesa de pessoas que
cometeram algum delito ou que, aos olhos da polcia, so suspeitas.
Junto com as autoridades
que buscavam a reforma do aparato policial e do sistema penitencirio, as
entidades de direitos humanos am a ser taxadas de "defensoras de
bandidos" e, at mesmo, responsabilizadas pelo clima de intranqilidade
causado pelo medo da violncia. Programas de rdio e uma parcela da
imprensa escrita iniciam uma campanha fortssima contra os direitos
humanos e todos aqueles que os defendem, de forma a legitimar a represso
sistemtica contra as classes populares.
Neste contexto, surge o Ncleo
de Estudos da Violncia da Universidade de So Paulo. Seu objetivo
inicial era compreender no apenas a continuidade do autoritarismo nos
mecanismos de represso, mas tambm o autoritarismo da prpria
sociedade que, atemorizada, reclama por mais segurana, ainda que isso
signifique mais violncia por parte do Estado, apoiando a ao de
justiceiros ou a prtica de linchamentos. Alm disso seu objetivo
tambm propor, s autoridades, alternativas que ao mesmo tempo reduzam a
violao dos direitos humanos e controlem a violncia que afeta a
sociedade. Estabelece-se, assim, um padro mais analtico em relao
aos direitos humanos e violncia social, e tem incio uma forma mais
produtiva de dilogo com as agncias de aplicao da lei.
Em meados dos anos 80,
com apoio de entidades nacionais, outras entidades internacionais am a
visitar o Brasil e elaborar seus relatrios, com a preocupao
fundamental de monitorar as questes da violncia policial, execues
sumrias, tortura, violncia contra a mulher, situao da criana e a
condio das prises no Brasil. O foco desses relatrios no se
concentra mais nos presos polticos, mas naqueles que, por qualquer
motivo, se encontram excludos e discriminados. A Anistia Internacional
tambm vem ao Brasil diversas vezes nessa dcada, publicando relatrios
como Matando com Impunidade, que denuncia a tolerncia das
autoridades para com as mortes no campo, a tortura nas cadeias, etc.
Em 1989, a Comisso Teotnio
Vilela, junto com outras entidades internacionais, busca pela primeira vez
a Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEA, para denunciar a
omisso da justia brasileira, principalmente a militar, em apurar as
violaes praticadas por agentes do Estado. O caso levado Comisso
referia-se morte de 18 presos, por asfixia mecnica, numa cela do 42
Distrito Policial de So Paulo. Tambm entidades brasileiras, como o
Centro Santo Dias de Direitos Humanos e a Comisso Pastoral da Terra,
aram a denunciar o Brasil, especialmente junto Comisso
Interamericana de Direitos Humanos.
4. Violao de Direitos
Humanos e Democracia: um Desafio para as ONGs
Com o restabelecimento da
democracia e do Estado de Direito, a expectativa era de que haveria uma
reduo nas violaes dos direitos humanos, o que evidentemente no
aconteceu. Diversos atores sociais, preocupados com a questo da violao
de direitos, especialmente as mulheres, h muito j vinham denunciando
outras violaes que no decorrem do Estado, mas sim das relaes
inter-subjetivas, no seio da prpria sociedade. Estas violaes sistemticas,
demonstram as feministas, compem o alicerce de uma sociedade que se
organiza e se hierarquiza a partir das relaes de gnero.
Da mesma forma o
movimento negro, que certamente constitui a mais antiga forma de organizao
e ao em favor dos direitos humanos no Brasil, recoloca a questo do
racismo e da discriminao, como a forma perversa de excluir os negros
dos principais frutos socialmente concebidos no decorrer de sculos de
trabalho.
No Brasil, como em outros
pases, o fim dos regimes autoritrios no correspondeu ao surgimento
automtico de um modelo democrtico capaz de garantir o respeito aos
direitos humanos. No s a permanncia de muitos atores do regime
anterior, especialmente na esfera da segurana e justia, como tambm
uma forma de organizao hierarquizada, resultaram numa sociedade que
continua a ser extremamente autoritria e excludente.
A desigualdade, em suas
diversas formas, tem sido o fator preponderante para que as pessoas tenham
seus direitos humanos mais fundamentais - como a vida, a igualdade e a
integridade fsica - violados, no por ao direta do Estado, mas pela
ao da prpria sociedade, com a omisso ou conivncia do Estado.
Como no poderia deixar de ser, numa sociedade marcadamente hierarquizada
como a brasileira, a violao dos direitos humanos se abate de forma
mais drstica sobre os discriminados, aqueles que vivem nas periferias
sociais, que tm menos o educao, ao trabalho, aos bens de
consumo, aos confortos da urbanizao e, por fim, s instituies de
aplicao da lei. Estas so as concluses dos movimentos sociais
(mulheres, negros, jovens em conflito com a lei, etc.) e, especialmente,
dos recentes Mapas de Risco da Violncia, elaborados pelo CEDEC.
A percepo da
incapacidade de nosso Estado de Direito de assegurar os direitos
fundamentais, especialmente das faixas e grupos excludos e
discriminados, tem levado a sociedade a se organizar de forma cada vez
mais sofisticada e abrangente. O Brasil possui hoje uma extensa rede de
organizaes de direitos humanos. O Movimento Nacional de Direitos
Humanos congrega mais de trezentas entidades em todo o pas: so
organizaes de base, grupos que tm por mandato a defesa de um direito
especfico, como o direito terra, que defendem os direitos humanos em
geral, como as tradicionais entidades de direitos humanos, ou ainda
entidades que buscam a promoo e garantia dos direitos de uma categoria
especfica de pessoas, como mulheres, crianas, ndios, presos, negros,
homossexuais, jovens em conflito com a lei, etc. Isto sem falar nas
milhares de ONGs que no se auto denominam entidades de proteo de
direitos, mas que, de fato, tm dado uma enorme contribuio no
fortalecimento de nossa frgil malha social.
Essas entidades de
direitos humanos variam em relao aos mtodos de organizao e
trabalho: h grupos voltados mobilizao, denncia, educao,
advocacia ou implementao de programas em parceria com a rede pblica.
H ainda entidades de apoio que buscam levantar fundos, e entidades que tm
por misso especfica dar visibilidade s denncias e programas de
direitos humanos, como a Agncia Nacional dos Direitos da Infncia
(ANDI), formada por jornalistas, em Braslia. No Rio Grande do Sul um
grupo de jovens advogadas criou a Themis Assessoria Jurdica da Mulher,
que j treinou mais de 150 "promotoras legais populares", que so
lideranas locais femininas, que depois de um curso semestral de Direito,
com autoridades e professores de Porto Alegre e de outros lugares do
Brasil, am a buscar a implementao dos direitos humanos em suas
comunidades. O impacto deste programa tem sido tremendamente positivo e
sinaliza a forma como os direitos humanos podem sair do papel e se
transformarem em realidade, inclusive para os setores mais vulnerveis da
populao.
Trata-se, portanto, de um
conjunto bastante diversificado de organizaes que vm recriar a luta
pelos direitos humanos no Brasil, que surgiu e por um longo tempo,
continuou sendo uma luta exclusivamente contra a violao praticada pelo
Estado.
Esse amplo movimento da
sociedade civil ampliou significativamente seu mandato, em funo de
outras formas de violao de direitos humanos de ordem
"privada", que tambm aram a ser detectadas por relatrios,
ou mesmo denncias produzidas pela imprensa.
5. Novo Patamar
Legislativo
Neste contexto de grande
fertilidade e ebolio da sociedade civil, o Brasil adota a mais democrtica
de suas Constituies. A Constituio de 1988 traz uma carta de
direitos que vai alm do estabelecido pelos documentos internacionalmente
adotados a partir da Declarao Universal de 1948. Como resultado do
processo de transio, a Constituio Federal serve como trincheira
para o fortalecimento da sociedade civil. O pargrafo 2 do artigo 5,
por exemplo, abre o ordenamento jurdico brasileiro aos instrumentos de
direitos humanos dos quais o Brasil seja parte. Isso modifica a insero
do Brasil no quadro da naes, pois o Estado Brasileiro anteriormente
negligente e desobrigado frente aos direitos humanos, sob a inspirao
da Constituio, rapidamente se torna parte dos principais documentos
internacionais e, consequentemente, a a se submeter fiscalizao
da comunidade internacional.
A partir do governo do
Presidente Itamar Franco, o Brasil a a reconhecer as suas violaes.
Se analisarmos o relatrio feito pelo governo brasileiro sobre o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Polticos, de 1966, ficaremos surpresos
com sua proximidade aos relatrios da Anistia Internacional ou outras
entidades de direitos humanos, nacionais ou internacionais. Em outras
palavras, o Brasil a a reconhecer os direitos humanos e
automaticamente a se auto-obrigar a prevenir as violaes e
responsabilizar os seus perpetradores.
Neste aspecto, o Programa
Nacional de Direitos Humanos elaborado em 1996, tem a perspectiva de
responder a essas obrigaes que foram previamente assumidas pelo
governo brasileiro, especialmente na Conferncia Mundial de Direitos
Humanos, realizada em Viena, em 1993. um programa realizado com ampla
participao da sociedade civil, sob a coordenao do Ncleo e
Estudos da Violncia da USP. Sua finalidade o estabelecimento de metas
concretas, mudanas e reformulaes legislativas, pragmticas,
istrativas, judiciais, para assegurar eficcia quelas obrigaes
que foram assumidas pelo Brasil na esfera internacional. Cabe aqui
destacar, ainda que de maneira apenas ilustrativa, algumas das medidas
incorporadas e implementadas pelo Programa: a transferncia para a justia
comum dos crimes dolosos praticados contra a vida; a criao do tipo
penal da tortura, o que muito significativo num pas que ou 497
anos sem tipificar este crime, (quando muito, a tortura poderia ser punida
como leso corporal ou abuso de autoridade). Tambm o Novo Cdigo de Trnsito,
que teve impacto fabuloso, reduzindo de forma significativa o nmero de
mortes no trnsito, foi uma decorrncia do Programa Nacional de Direitos
Humanos. V-se, hoje, uma generalizao do processo de implementao
do Programa nas esferas estadual e municipal. O Estado de So Paulo j
possui seu Programa Estadual de Direitos Humanos desde setembro de 1997, e
Porto Alegre realizou, em maio, uma reunio para a organizao de seu
Programa que contou com nada menos do que 1.700 pessoas. Os exemplos so
absolutamente inovadores.
6. Concluso
Ainda que este pas
esteja mudando, que tenhamos hoje uma sociedade civil bem articulada, que
o marco normativo imposto pela Constituio de 1988 e pelos tratados de
direitos humanos dos quais o Brasil se tornou parte seja tremendamente
favorvel realizao dos direitos, que nossas autoridades, com as
excees que se tem que lamentar, conjuguem a gramtica dos direitos
humanos, h uma limitao material sua realizao, que vale
reenfatizar. Lamentavelmente ns continuamos sendo um pas hierarquizado
socialmente. Este o pas da desigualdade, da excluso moral, usando a
expresso de Nancy Cardia, onde se violam direitos humanos
sistematicamente.
A excluso de carter
moral decorre da existncia de enormes hiatos entre ricos e pobres.
Quando privamos um grupo de determinados recursos como educao, sade,
habitao, condies urbanas, ou ainda o exclumos do mercado de
trabalho e portanto, do mercado de consumo, de alguma maneira, este ser
humano tem sua dignidade reduzida enquanto ser humano.
Outro dia, quando ava
debaixo do Minhoco, vi um mendigo que se encontrava num profundo
processo de degradao. Esse mendigo estava abaixado numa poa dgua
ptrida, onde "escovava" (com os dedos) os dentes. Comecei a
pensar no processo de excluso que esse mendigo havia ado. Ele deve
ter ado por um processo de excluso do emprego, do consumo, excluso
de sua comunidade e por fim de suas relaes familiares. Possivelmente,
todo esse processo de excluso leva a um outro de auto-degradao. Mas
a humanidade, mesmo assim, estava presente ali no ato de escovar os
dentes, isso era um ato de resgate da humanidade.
Pensei ento no que
aconteceria se este mendigo fosse morto noite. Se, como o ndio
Galdino, fosse incendiado por jovens, sem qualquer razo aparente, ou se
fosse atropelado por um dos nibus que avam a poucos centmetros da
possa dgua em que escovava seus dentes. Dificilmente haveria qualquer
conseqncia. Em So Paulo, no ano ado, mais de quatorze mendigos
foram incendiados, sem que nada ou quase nada tenha ocorrido. O caso do ndio
Galdino, por suas diversas peculiaridades, um ponto fora da curva.
A dor moral da nossa
sociedade pela eliminao desse mendigo, de algum que no mais
visto como um igual, absolutamente menor do que aquela dor decorrente
da morte de um igual, de "qualquer um de ns". Por mais
sinistro que possa parecer, a sociedade gradua o valor vida. Os 187 homicdios
por 100.000 habitantes no Jardim ngela, zona sul de So Paulo, no
comovem. A sociedade brasileira no est muito preocupada com isso. Por
outro lado, a morte de uma pessoa num bairro de classe mdia ou alta que
tem ndices de menos de 10 homicdios por 100.000 habitantes, causa uma
verdadeira comoo na sociedade.
H uma desigualdade no
tratamento da vida e essa desigualdade construda pelo processo de
excluso econmica, social, moral e finalmente, de excluso jurdica.
Qual seria a conseqncia jurdica da morte desse mendigo, alm de um
registro burocrtico e estatstico? A excluso faz com que a lei no
atinja determinadas pessoas. Certos grupos da sociedade esto abaixo da
lei, enquanto outros esto acima dela. So os privilegiados. O
preocupante que, em nosso pas, o montante dos que esto abaixo e o
montante dos que esto acima da lei tremendamente grande, conferindo
uma conformao peculiar sociedade brasileira que parece estar sendo
agravada pelo processo de globalizao.
Embora boa parte destas
consideraes tenha enfocado a questo da internacionalizao dos
direitos humanos, at em funo dos 50 anos da Declarao,
importante destacar que o sistema internacional de direitos humanos um
sistema subsidirio, no se pode esperar que o sistema internacional de
direitos humanos (na medida em que o Brasil se torna parte dele, ou mesmo
ao confirmar a jurisdio da Corte Interamericana ou qualquer coisa do gnero)
v automaticamente trazer para o Brasil um padro de direitos humanos
mais adequado do que temos hoje. O papel de resgate e construo dos
direitos humanos muito mais um papel de resgate de construo do
Estado de Direito e da regra da Lei. Conforme mencionou o Professor Srgio
Adorno, ainda estamos comprometidos ou em dbito com aqueles progressos
decorrentes das revolues da modernidade, que aqui no se realizaram,
pelo menos por completo. E essa revoluo moderna no nada mais do
que o pacto de igualdade de direitos e a existncia de um Estado que seja
capaz de levar a cabo a sua misso e aplicar essa Lei. Mos obra.
Professor de Direitos
Humanos da PUC de So Paulo
Secretrio Executivo do
Instituto Latino Americano das Naes Unidas para a Preveno do
Delito e Tratamento do Delinqente e Procurador do Estado
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