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Direitos Humanos 50 anos Depois

Oscar Vilhena Vieira

1. Introduo

Numa conceituao provocadora o filsofo Ronald Dworkin afirma que "os direitos so melhores compreendidos como trunfos", pois devem prevalecer sobre outras justificaes que fundam decises polticas e metas a serem atingidas pela sociedade. (Dworkin, 1984:153). Como num jogo de baralho, onde h determinadas combinaes ou curingas que se sobrepem s cartas dos adversrios, a presena de direitos tambm deve se sobrepor s demais alternativas de deciso coletiva. Assim, controlar e diminuir a criminalidade pode ser uma meta mais do que desejvel, mas isto no pode ser feito s custas da integridade fsica e moral de um nmero indefinido de suspeitos ou mesmo de criminosos.

No se busca aqui argumentar que os direitos, em geral, sejam absolutos, mesmo porque muitas vezes eles se encontram em tenso com outros direitos. Mas quando associamos a expresso "humanos" idia de "direitos", surge uma presuno de superioridade tica destes direitos sobre as demais metas e diretrizes impostas pelo sistema poltico. Direitos humanos constituiriam assim, numa definio preliminar, aquela esfera de intangibilidade voltada a proteger a dignidade de toda a pessoa, pelo simples fato de ser humana. A grande dificuldade, e o que tem monopolizado os debates entre filsofos e tericos do direito, pelo menos nestes ltimos dois milnios, saber o qu so estes direitos e de onde eles vm. Exemplo desta discusso sobre o fundamento ltimo dos direitos humanos pode ser encontrado desde a Grcia antiga, como na tragdia Antgona, de Sfocles.

Morto Polcines, irmo de Antgona, numa batalha contra o reino de Tebas, Creonte, o rei, baixa um dito determinando que o corpo do traidor fique insepulto, para ser devorado pelos ces e abutres. Revoltada, Antgona enterra o irmo, presa pelos soldados do rei e levada a sua presena, que indaga: "Sabias que um dito proibia aquilo?" Antgona responde que "Sabia. Como ignoraria? Era notrio."

O rei, ento, indaga "Como ousastes desobedecer s leis?", ao que Antgona por fim responde:

"Mas Zeus no foi o arauto delas para mim,

nem essas leis so as ditadas entre os homens pela Justia... e nem me pareceu

que tuas determinaes tivessem fora

para impor aos mortais at a obrigao

de transgredir normas divinas, no escritas,

inevitveis; no de hoje, no de ontem,

desde os tempos mais remotos que elas vigem,

sem que ningum possa dizer quando surgiram."

A resposta de Antgona, alm de corajosa, tem um profundo sentido crtico, pois questiona, de forma veemente, a idia de que direito tudo aquilo que colocado pelo poder constitudo, limitando-se a uma mera expresso do poder, a uma questo de fato. Porm ao buscar dar outro fundamento de validade ao direito, que no o poder, Antgona vacila entre a transcendncia divina e a Justia, que tambm uma deusa. Ao fundar os direitos na autoridade divina e coloc-los como entidades atemporais, Antgona pressupe a crena e a prpria existncia de Deus. Muito embora este argumento tenha sido aceito por um longo perodo da histria, principalmente naquele perodo em que prevaleceu no ocidente o domnio quase que absoluto da Igreja, este direito de origem divina no mais se sustenta face ao racionalismo. Com o fim da hegemonia crist, h uma ruptura dos paradigmas de verdade impostos pelo pensamento dogmtico. E com isto a idia de direitos naturais decorrentes de Deus perde a sua sustentao.

J no renascimento o pensamento de base crist comea a ser desafiado. Os fundamentos do poder e da prpria arte, que estavam diretamente submetidos ao domnio cultural da igreja, comeam a se esgarar. Basta para isto ter em mente as figuras e as obras de Michelangelo e Maquiavel. O que une o gnio da arte ao criador da cincia poltica moderna, foi a capacidade destes dois homens, no apenas de se libertar dos paradigmas dominantes nas suas esferas de ao, mas de reencontrar o humano, separando-o do religioso. Se compararmos a arte pr-renascentista com as pinturas e esculturas produzidas por Michelangelo, podemos perceber que seus personagens so homens e mulheres que no so feitos imagem e semelhana de um Deus idealizado, mas so o resultado da sobreposio de tecidos, msculos e veias e que tm um movimento que resulta de uma vontade estritamente humana. Como se sabe, um dos atempos preferidos de Michelangelo era dissecar cadveres. Era o homem de carne e osso que o interessava. Basta pensar em seu Moiss, na escultura do escravo em fuga ou mesmo no deus da capela Sistina, para reencontrarmos o humano, mesmo nas figuras divinas. Da mesma forma Maquiavel, no Prncipe, nada mais fez do que desvendar o poder dissecando o seu objeto de anlise. Assim como Michelangelo, Maquiavel, ao descrever o modo como o Prncipe conquista e se mantm no poder, afasta as vises religiosas que fundamentavam o poder e busca demonstrar a forma pela qual esse poder efetivamente exercido. Como salientou o insuspeito Rousseau, ao dar lies ao Prncipe sobre como alcanar o poder, Maquiavel estava na realidade demostrando ao povo a forma pela qual o poder sobre ele exercido. Qualquer que tenha sido a inteno de Maquiavel, o fato que ele nos demonstrou que o poder do Estado e a legitimidade dos reis no decorrem da vontade divina ou mesmo da tradio, seno da ao humana.

Neste contexto os jusnaturalistas modernos, Hobbes e especialmente Locke, iro fundar o direito no mais numa entidade transcendente, mas na razo humana. Utilizando-se da abstrao do contrato, tanto Hobbes quanto Locke apontam que se seres racionais fossem submetidos a uma situao de natureza, ou seja, ausncia do Estado, certamente eles acordariam em criar uma entidade voltada a regular a vida em sociedade. A criao do Estado e do direito, assim, am a ser compreendidas como resultante da vontade humana. Evidente que nenhum destes autores seria ingnuo o suficiente para acreditar que o estado de natureza tenha realmente existido. Mas a utilizao desta abstrao serve para demonstrar como a razo funcionaria caso ela fosse consultada, no vazio de instituies e outras condies que limitam a sua liberdade. A grande diferena entre Hobbes e Locke o modo como cada um destes autores descreve o ser humano. Dotados de menos qualidades morais, os indivduos hobbesianos estabeleceriam um estado de guerra de todos contra todos, que para ser pacificado exigiria um Estado forte. J os indivduos descritos por Locke, que no estado de natureza sabem diferenciar o justo do injusto, mas no tm quem resolva um conflito de modo imparcial quando este aparece, vivem num mundo precrio e que pode e deve ser aperfeioado pela criao de uma entidade imparcial, que auxilie o relacionamento entre os indivduos.

O que nos importa no momento que para ambos os autores ser a razo que ditar qual o fundamento ltimo do direito. Esse racionalismo levado a prtica impe necessariamente que o direito seja fruto da vontade democrtica, como pretendia Rousseau. Sendo todos os homens iguais, ou seja, tendo o mesmo valor moral, para que se justifique uma regra que vincule a conduta de todos, fundamental que todos participem de sua formulao. As Revolues sa e Americana, assim como suas declaraes e constituies so fruto dessa idia de um homem racional, emancipado e livre para decidir seu prprio destino.

Essa razo abstrata , no entanto, intensamente criticada por autores conservadores como Edmund Burke, e mesmo por progressistas como Hume, Bentham e Marx. Para Burke as instituies decorriam de um longo processo de sedimentao histrica. O direito era algo que se herdava das geraes anteriores, a partir de um processo de erros e acertos que iria apurando a lei e o governo. Pretender que todas as instituies fossem recriadas de um s ato, como o poder constituinte, que a materializao da vontade geral rousseauniana, pretender que a razo de um grupo de homens, num determinado momento histrico, se sobreponha a sculos de experimentao. Como dizia um de seus seguidores, fazer uma constituio no como fazer um pudim, no basta que se siga uma receita para que o resultado seja bom. Por fim, afirma que a Declarao poderia levar as pessoas a crer que eles realmente tinham aqueles direitos, o que provocaria uma grande desordem se viessem a exig-los. A crtica progressista ou radical, embora tenha uma finalidade distinta, tambm desconfia desta razo abstrata, da qual os jusnaturalistas derivam direitos. Hume faz uma crtica voraz idia de estado de natureza, Bentham, descreve os direitos tais como est expresso na Declarao sa: "falcias anrquicas". No entender de Bentham, o bem estar da sociedade s pode ser alcanado a partir do sacrifcio de todos e no pelo fortalecimento do egosmo de cada um, como assegurado pela Declarao de 1789. Este tambm ser o ponto bsico da crtica de Marx, quando da anlise da declarao sa, em sua obra Questo Judaica. Ao garantir direitos que separam a esfera pblica da privada, a Declarao estaria apenas mantendo uma situao de natureza dentro da esfera do Estado. Esta esfera cercada por direitos burgueses que asseguraria o mercado, onde deve prevalecer o mais forte, aquele que tenha domnio sobre os meios de produo. Ao vender a sua fora de trabalho, ou seja, ao realizar um contrato que protegido pela Declarao, como parte intrnseca do direito de propriedade, as pessoas esto indiretamente alienando tambm seus demais direitos.

Estas crticas direita e esquerda da Declarao, somadas a uma reao historicista no pensamento jurdico alemo, retiraram credibilidade desse direito racional, com pretenses universalistas. Assim a legitimidade do direito deve derivar ou de sua sincronia com os valores e a herana cultural de uma determinada comunidade ou do simples fato de ter sido produzido por aqueles rgos que tem a responsabilidade formal pela produo de normas. Esta ltima hiptese nos coloca em posio semelhante a de Antgona, pois somos submetidos a um direito que tem como nico ttulo de legitimidade o fato de derivar do poder. A importante distino, no entanto, que a partir de Rousseau a soberania no mais compreendida apenas da perspectiva que lhe foi atribuda por Bodin, ex parti principe, mas como soberania popular, ou seja, no final do sculo XIX, incio do sculo XX, a lei ganha validade quando produzida por um parlamento que represente a nao, e este seu critrio ltimo de validade.

Assim, muito embora a idia de que as pessoas tm direitos que lhe so inerentes pelo simples fato de serem humanas pode ser rastreada desde a antigidade, no incio de nosso sculo o paradigma dominante era de que os direitos decorriam da vontade dos Estados, ainda que estes Estados no correspondessem mais ao modelo absoluto hobbesiano, mas ao Estado que tem no parlamento sua esfera mxima de legitimao. H que se destacar, no entanto, que o conceito de democracia parlamentar prevalente poca era um conceito bastante formal, que se adaptava transio do Estado liberal para o Estado intervencionista. Mais do que isto, o ambiente intelectual e poltico na Europa nas primeiras dcadas do sculo tambm no contribuam para uma percepo substantiva dos direitos. H, neste sentido, uma srie de eventos que precedem ao perodo da II Guerra mundial que podem servir para a compreenso se isto for possvel de como milhes de pessoas tiveram seus direitos totalmente desrespeitados e violados pelos regimes totalitrios e autoritrios que assolaram os diversos continentes. Max Weber escreve, no primeiro ps-guerra, sobre o processo de desencantamento pelo qual a o mundo. Constata que a prevalncia de uma racionalidade instrumental, tanto na esfera da cincia, como no mbito do funcionamento da empresa, provocou uma ruptura com os parmetros intelectuais do sculo XIX. Neste mundo desencantado, a idia de uma verdade absoluta ou mesmo da existncia de direitos naturais, inerentes a qualquer pessoa, pelo simples fato de ser pessoa humana, totalmente destituda de credibilidade. A herana do direito natural a, portanto, por um vertiginoso processo de eroso nos anos 20 e 30, no apenas na Alemanha, mas mais intensamente neste pas.

A cultura jurdica produzida pelo positivismo jurdico sintetiza esta superao do direito natural. Para o positivismo qualquer que seja o ttulo de legitimidade do poder, os direitos no am de uma expresso da vontade do Estado e, portanto, podem ser colocados e retirados a qualquer momento por este. Deve-se destacar que, valendo-se dessa idia, Hitler, que dispunha de um corpo de "juristas" de planto, assim como de instituies organizadas sob os padres burocrticos bismarkianos, teve a possibilidade de realizar os fins do nazismo utilizando-se dos mecanismos formalmente estabelecidos pela Constituio de Weimar. Desta forma, o direito neutro serviu de instrumento para um Estado nazista.

Aps chegar ao poder em 1933, por uma srie de medidas legislativas, Hitler altera a Constituio (conquistando o quorum de dois teros) e promulga o Ato de Habilitao, que seria o embrio do sistema jurdico nazista. Por este ato constitucional, todas as medidas, propostas por Hitler, que fossem incompatveis com a Constituio, desde que obtivesse maioria parlamentar, poderiam ser transformadas em lei. Um dos primeiros atos de Hitler foi destituir o estatus de nacionais de diversos grupos. Os judeus foram os primeiros a serem desnacionalizados. Como no mais tinham vnculos com o Estado alemo, como no haviam relaes jurdicas que os ligassem a qualquer outra rbita de proteo de direitos, eles encontravam-se excludos moral e juridicamente do sistema de proteo concebido pela Constituio de Weimar, e mesmo do precrio sistema de proteo oferecido pela Liga das Naes. Excludos, judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e outras minorias ficaram totalmente vulnerveis e aram a ser tratadas como objeto e no como sujeito de direitos, como descreve Hanna Arendt.

A II Guerra mundial se diferencia das demais guerras pelo fato de que as principais vtimas foram nacionais mortos pelos seus prprios Estados. No perodo que vai de meados dos anos 30 at o final da II Guerra, morreram cerca de 45.000.000 de pessoas. Mais da metade desses mortos no foram soldados vitimados em combate, mas civis mortos pelos seus prprios Estados, primordialmente na Alemanha e na Unio Sovitica. Ento esses mais de 20 milhes de seres humanos foram vtimas da instituio que princpio deveria proteg-las. Este um fato absolutamente aterrorizador. A idia de que o Estado se utiliza do direito, e por intermdio deste direito consegue liquidar grupos raciais, religiosos e dissidentes polticos, em escala assustadora, algo peculiar ao perodo da II Grande Guerra.

2. Direitos Humanos no Mundo Contemporneo

O holocausto, e as outras barbries do perodo, como os campos soviticos de trabalhos forados e mesmo a bomba atmica, causam um profundo choque na comunidade internacional. como reao a esta demonstrao de irracionalidade e da capacidade do homem de se auto destruir que surge a idia contempornea de direitos humanos. Trata-se de uma resposta, ainda que filosoficamente no bem resolvida, de uma reao ao vazio tico deixado pelo desencantamento que favoreceu o nazismo e todas as atrocidades por ele realizadas.

Assim que surge a Declarao Universal dos Direitos Humanos, com o objetivo de estabelecer um novo horizonte tico, a partir do qual a relao dos Estados com seus cidados pudesse ser julgada. No momento em que esta Declarao completa 50 anos, temos que compreender exatamente qual o seu papel, a que ela veio e qual o seu objetivo. A Declarao, bom que se diga, no surgiu com a pretenso de transformar-se em direito. Embora seja o principal instrumento e certamente o mais conhecido dos documentos de direitos humanos produzidos na esfera das Naes Unidas, no um tratado internacional, mas uma simples declarao decorrente de uma resoluo da Assemblia Geral das Naes Unidas. No sendo um tratado, no pde ser ratificada e, portanto, no tinha originalmente pretenso de obrigar os Estados juridicamente. Mas sim, de servir como paradigma moral.

O fato que a Declarao ocupou um papel to importante no imaginrio da comunidade internacional aps a II Guerra, e exerceu um papel to importante no processo de descolonizao e mesmo na luta de resistncia contra os regimes autoritrios nas mais diversas partes do mundo, que deixou de ser mero instrumento retrico e ou a ser incorporada pelos Estados enquanto direito em sua constituies. Basta olharmos o exemplo da frica, onde dezenas de constituies foram promulgadas a partir da concepo de direitos humanos proposta pela Declarao, o que jamais significou o respeito incondicional a estes direitos. Pases na Amrica Latina que se reconstitucionalizaram nesse perodo, quase todos incorporaram a estrutura e a lgica da Declarao dentro de suas constituies. Talvez a Constituio brasileira de 1988 seja um ponto exemplar, no s de reproduo da lgica da Declarao, mas de uma ampliao e atualizao de seus ideais. A nossa Constituio absolutamente generosa e criativa em termos de confeco do mapa tico segundo o qual a nossa sociedade deve se organizar. Isto no significa, no entanto, que estes 50 anos sejam motivo apenas para comemoraes. Pois apesar da Declarao ter estabelecido essa rgua tica, a partir da qual ns podemos medir a legitimidade dos Estados, ainda h muito o que fazer.

Diversas so as promessas no cumpridas. Um tero da populao mundial vive em extrema pobreza. Um milho e trezentas mil pessoas ganham menos de U$ 1,00 por dia; mais de 150 milhes de crianas esto mal nutridas e outras 100 milhes se encontram fora das escolas. O desequilbrio na distribuio de renda abissal, no apenas entre norte e sul, mas dentro de cada continente e cada pas. Na Amrica Latina, os 20% mais ricos tm uma renda per capita de U$ 17.000,00 por ano, enquanto os 20% mais pobres no ultraam os U$ 930,00 por ano. O pior disto que dentro do continente americano, o Brasil ocupa a pior posio no quesito distribuio de renda. O Brasil, embora seja uma das 10 maiores economias do mundo, no sendo portanto um pas pobre, se encontra na constrangedora posio de Segundo pas mais desigual do mundo, perdendo apenas para Serra Leoa. No que se refere ao ndice de Desenvolvimento Humano, estabelecido pelas Naes Unidas, o Brasil ocupa o 62 lugar. Embora a concentrao de riquezas e a espoliao dos em desenvolvimento pelas economias centrais seja a principal responsvel pela misria no mundo, isto no elide a responsabilidade de sociedades, como a brasileira, de reproduzirem estes padres perversos de distribuio de renda no plano interno. No se justifica que os 10% dos brasileiros que se encontram no topo da pirmide social concentrem em suas mos 50% da riqueza nacional, deixando aos 50% mais pobres, apenas 10% desta riqueza. Sem dvida nenhuma, a misria e a desigualdade so as principais responsveis pela criao de sociedades hierarquizadas, onde prevalecem as relaes de dominao e onde a lgica dos direitos humanos tem uma enorme dificuldade de penetrar, como veremos a seguir.

Enumerando ainda as promessas e fatos que a Declarao buscava impedir, basta citar o estupro e a violao das mulheres islmicas no que foi a Iugoslvia, ou o que aconteceu em Ruanda, recentemente, onde em menos de uma semana mais de 500 mil pessoas foram sumariamente mortas num ato genocida. Tudo isto pode ser debitado certamente na conta da no comemorao da Declarao Universal dos Direitos Humanos.

Mas h fatores que devem tambm nos alertar no sentido positivo. A pobreza, apesar de todos estes dados negativos, teve uma reduo maior nos ltimos 50 anos do que nos ltimos 500 anos da humanidade, conforme ltimo relatrio das Naes Unidas sobre o desenvolvimento humano. A mortalidade infantil, que um bom ndice para se medir a condio de vida das sociedades, foi reduzida metade nos ltimos 20 anos; a m nutrio reduziu-se em 1/3 tambm nos ltimos 20 anos; o nmero de crianas nas escolas aumentou em 1/4 nestas duas ltimas dcadas; e espera-se que at o final do sculo, 4 bilhes e 500 mil pessoas tenham o educao. E ns sabemos o que isso significa em termos de o cidadania. Estes avanos devem ser mencionados, para fortalecer a ao daqueles que lutam pela promoo e proteo destes direitos e evidenciar os progressos na direo da consolidao de nosso Estado Democrtico de Direito.

Por fim, penso que o que mais temos comemorar em relao Declarao Universal dos Direitos Humanos sua capacidade de criar um consenso quase que universal em torno de princpios morais e de um novo parmetro de justia pelo qual ns podemos guiar nossas sociedades. O que no pouco. Tambm mostra-se de fundamental importncia, num momento de fragmentao ideolgica e cultural e de um processo de globalizao, onde os caminhos esto to pouco claros. Neste terreno pantanoso, os direitos humanos se demonstram o caminho mais adequado e seguro a ser seguido. Diferentemente das demais utopias e ideologias polticas, que eram finalistas, ou seja, propunham um fim fantstico para o homem, e permitiam que quaisquer meios, desde que fossem eficientes, pudessem ser utilizados para que se atingisse esses fins, os direitos humanos estabelecem meios ticos para que se alcance uma sociedade mais justa. A carta de direitos nada mais do que um conjunto de medidas ticas para se chegar a um mundo justo. nossa ncora, do ponto de vista tico, lanada no seio da comunidade internacional. Vale lembrar uma agem de Carlos Nino, que alm de um grande jurista, como personalidade pblica teve um papel tremendamente relevante como assessor jurdico de Alfonsin, logo depois do fim do regime militar na Argentina. Ao ser questionar sobre o que so os direitos humanos, qual a origem, se direito natural ou no, Nino guardou a seguinte linha de raciocnio: assim como o ser humano foi capaz, atravs da cincia, atravs da sua razo, de conceber vacinas e antibiticos que nos livram dos males que afetam os nosso corpos (imaginem o que era o mundo sem a vacina, imaginem o que ser o mundo ps vacina da AIDS), a humanidade criou os direitos humanos como uma forma de se auto proteger daquelas principais ameaas que atingem o corpo social, como a desigualdade, o arbtrio, a tortura e a misria. Isso , na realidade, uma construo humana, faz parte de nossa capacidade operacional de construir, corrigir e criar mecanismos de autodefesa. A Declarao Universal no nada mais do que isso.

Porm, a Declarao, ou qualquer outro instrumento jurdico, no realiza sua pretenso normativa se no estiverem presentes uma srie de fatores, entre os quais a compatibilidade entre o contedo da norma e o que as pessoas entendem como justo naquela sociedade e a sintonia entre a burocracia e os dispositivos legais. Embora os preceitos estabelecidos pelos principais instrumentos de direitos humanos alcancem normalmente consenso entre os povos, no raramente aqueles que se encontram no poder ou que pelo menos exercem o poder coercitivo ou econmico dentro de uma sociedade, tm dificuldade em agir em conformidade com a gramtica dos direitos humanos. Da a importncia da sociedade civil enquanto instrumento de denncia, sensibilizao e difuso dos direitos humanos. Somente a partir da ao das entidades que se organizam no seio da sociedade, assim como da comunidade internacional, que veremos aqueles dispositivos estabelecidos nos documentos internacionais, transformados em realidade. emos ento a uma breve anlise do processo de formao e consolidao do movimento de direitos humanos em nosso pas.

3. O Movimento pelos Direitos Humanos no Brasil

O perodo autoritrio, aberto em 1964, marca o surgimento de diversas entidades nacionais de proteo aos direitos humanos, bem como de interveno e no monitoramento da situao interna. De acordo com o relatrio O Universo das ONGs no Brasil, foi com o acentuar da represso nos anos setenta que a sociedade, desprovida de canais tradicionais de participao poltica, ou a se organizar margem das estruturas formais de poder, com o objetivo de defender aqueles que vinham sendo excludos e torturados pelo regime militar, bem como lutar pela restaurao do Estado de Direito. Tratava-se de uma luta restrita ao restabelecimento dos direitos daqueles que se colocavam contra o regime, e no de universalizao da cidadania.

Em 1971, a Anistia Internacional publica um primeiro relatrio, antecedido por uma investigao, in locu, que aponta mais de mil pessoas vtimas de tortura; prtica comum no perodo militar. No mesmo ano, juntamente com a Comisso Internacional de Juristas, Desenvolvimento e Paz (SODEPAX) uma organizao conjunta do Conselho Mundial de Igrejas e da Comisso Pontifcia de Justia e Paz, a Anistia Internacional fez um apelo ao governo brasileiro para que cessassem as prises de dissidentes polticos, assim como a tortura a que eram sistematicamente submetidos. Essas organizaes buscavam pr termo ao regime de exceo iniciado em 1964.

Com a transio poltica e a anistia, os presos polticos foram libertados. A realidade dos que continuaram nos presdios e cadeias ou daqueles que tinham contato com os aparatos de represso do Estado e pertenciam s classes populares, no entanto, ficou inalterada. O mesmo se diga em relao a violncia domstica e a discriminao racial. Pode-se at dizer que a situao se agravou em funo da banalizao dos novos meios de tortura incorporados durante o perodo militar e pela maior autonomia conquistada pelo aparelho policial, sem falar numa magistratura e num ministrio pblico tmidos face a essa problemtica.

Em confronto com essa realidade, diversas entidades surgidas no regime militar decidiram continuar o seu trabalho junto queles que at ento se encontravam totalmente marginalizados do processo de cidadania. Outras, como a Comisso Teotnio Vilela, surgem com mandatos especficos para a proteo daqueles que se encontram sob a custdia de estabelecimentos fechados. A Ordem dos Advogados do Brasil, em suas sedes regionais, cria diversas comisses de direitos humanos. As Comisses de Justia e Paz, ligadas Igreja, disseminam-se por todo o pas sob inspirao de Dom Paulo Evaristo Arns e outros bispos.

Com a eleio dos primeiros governos democrticos, em 1982, o movimento de direitos humanos ou a enfrentar novos desafios. Os governantes agora eram eleitos, abrindo possibilidades maiores de dilogo do que no perodo anterior. Mais do que isso, diversos militantes de direitos humanos aram a ocupar cargos importantes nos governos estaduais, exigindo uma deciso difcil entre manter o padro das denncias ou ar a colaborar com as autoridades que, na maioria das vezes, encontravam grande resistncia por parte dos rgos policiais.

O aumento da criminalidade, a partir do final dos anos 70, estabelece uma presso cada vez maior sobre os rgos de segurana que se utilizam de mais violncia como resposta criminalidade. A tortura prtica sistemtica de investigao e extorso. As execues sumrias, levadas a cabo pela polcia militar, chegam a constituir, no incio dos anos 90, um quarto dos homicdios dolosos praticados em So Paulo. Com a superlotao das cadeias pblicas, distritos policiais e penitencirias, as condies prisionais tambm se deterioram. As organizaes de direitos humanos, que surgiram com o mandato de denunciar as violaes praticadas pelo aparato repressivo do Estado, se vem na constante defesa de pessoas que cometeram algum delito ou que, aos olhos da polcia, so suspeitas.

Junto com as autoridades que buscavam a reforma do aparato policial e do sistema penitencirio, as entidades de direitos humanos am a ser taxadas de "defensoras de bandidos" e, at mesmo, responsabilizadas pelo clima de intranqilidade causado pelo medo da violncia. Programas de rdio e uma parcela da imprensa escrita iniciam uma campanha fortssima contra os direitos humanos e todos aqueles que os defendem, de forma a legitimar a represso sistemtica contra as classes populares.

Neste contexto, surge o Ncleo de Estudos da Violncia da Universidade de So Paulo. Seu objetivo inicial era compreender no apenas a continuidade do autoritarismo nos mecanismos de represso, mas tambm o autoritarismo da prpria sociedade que, atemorizada, reclama por mais segurana, ainda que isso signifique mais violncia por parte do Estado, apoiando a ao de justiceiros ou a prtica de linchamentos. Alm disso seu objetivo tambm propor, s autoridades, alternativas que ao mesmo tempo reduzam a violao dos direitos humanos e controlem a violncia que afeta a sociedade. Estabelece-se, assim, um padro mais analtico em relao aos direitos humanos e violncia social, e tem incio uma forma mais produtiva de dilogo com as agncias de aplicao da lei.

Em meados dos anos 80, com apoio de entidades nacionais, outras entidades internacionais am a visitar o Brasil e elaborar seus relatrios, com a preocupao fundamental de monitorar as questes da violncia policial, execues sumrias, tortura, violncia contra a mulher, situao da criana e a condio das prises no Brasil. O foco desses relatrios no se concentra mais nos presos polticos, mas naqueles que, por qualquer motivo, se encontram excludos e discriminados. A Anistia Internacional tambm vem ao Brasil diversas vezes nessa dcada, publicando relatrios como Matando com Impunidade, que denuncia a tolerncia das autoridades para com as mortes no campo, a tortura nas cadeias, etc.

Em 1989, a Comisso Teotnio Vilela, junto com outras entidades internacionais, busca pela primeira vez a Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEA, para denunciar a omisso da justia brasileira, principalmente a militar, em apurar as violaes praticadas por agentes do Estado. O caso levado Comisso referia-se morte de 18 presos, por asfixia mecnica, numa cela do 42 Distrito Policial de So Paulo. Tambm entidades brasileiras, como o Centro Santo Dias de Direitos Humanos e a Comisso Pastoral da Terra, aram a denunciar o Brasil, especialmente junto Comisso Interamericana de Direitos Humanos.

4. Violao de Direitos Humanos e Democracia: um Desafio para as ONGs

Com o restabelecimento da democracia e do Estado de Direito, a expectativa era de que haveria uma reduo nas violaes dos direitos humanos, o que evidentemente no aconteceu. Diversos atores sociais, preocupados com a questo da violao de direitos, especialmente as mulheres, h muito j vinham denunciando outras violaes que no decorrem do Estado, mas sim das relaes inter-subjetivas, no seio da prpria sociedade. Estas violaes sistemticas, demonstram as feministas, compem o alicerce de uma sociedade que se organiza e se hierarquiza a partir das relaes de gnero.

Da mesma forma o movimento negro, que certamente constitui a mais antiga forma de organizao e ao em favor dos direitos humanos no Brasil, recoloca a questo do racismo e da discriminao, como a forma perversa de excluir os negros dos principais frutos socialmente concebidos no decorrer de sculos de trabalho.

No Brasil, como em outros pases, o fim dos regimes autoritrios no correspondeu ao surgimento automtico de um modelo democrtico capaz de garantir o respeito aos direitos humanos. No s a permanncia de muitos atores do regime anterior, especialmente na esfera da segurana e justia, como tambm uma forma de organizao hierarquizada, resultaram numa sociedade que continua a ser extremamente autoritria e excludente.

A desigualdade, em suas diversas formas, tem sido o fator preponderante para que as pessoas tenham seus direitos humanos mais fundamentais - como a vida, a igualdade e a integridade fsica - violados, no por ao direta do Estado, mas pela ao da prpria sociedade, com a omisso ou conivncia do Estado. Como no poderia deixar de ser, numa sociedade marcadamente hierarquizada como a brasileira, a violao dos direitos humanos se abate de forma mais drstica sobre os discriminados, aqueles que vivem nas periferias sociais, que tm menos o educao, ao trabalho, aos bens de consumo, aos confortos da urbanizao e, por fim, s instituies de aplicao da lei. Estas so as concluses dos movimentos sociais (mulheres, negros, jovens em conflito com a lei, etc.) e, especialmente, dos recentes Mapas de Risco da Violncia, elaborados pelo CEDEC.

A percepo da incapacidade de nosso Estado de Direito de assegurar os direitos fundamentais, especialmente das faixas e grupos excludos e discriminados, tem levado a sociedade a se organizar de forma cada vez mais sofisticada e abrangente. O Brasil possui hoje uma extensa rede de organizaes de direitos humanos. O Movimento Nacional de Direitos Humanos congrega mais de trezentas entidades em todo o pas: so organizaes de base, grupos que tm por mandato a defesa de um direito especfico, como o direito terra, que defendem os direitos humanos em geral, como as tradicionais entidades de direitos humanos, ou ainda entidades que buscam a promoo e garantia dos direitos de uma categoria especfica de pessoas, como mulheres, crianas, ndios, presos, negros, homossexuais, jovens em conflito com a lei, etc. Isto sem falar nas milhares de ONGs que no se auto denominam entidades de proteo de direitos, mas que, de fato, tm dado uma enorme contribuio no fortalecimento de nossa frgil malha social.

Essas entidades de direitos humanos variam em relao aos mtodos de organizao e trabalho: h grupos voltados mobilizao, denncia, educao, advocacia ou implementao de programas em parceria com a rede pblica. H ainda entidades de apoio que buscam levantar fundos, e entidades que tm por misso especfica dar visibilidade s denncias e programas de direitos humanos, como a Agncia Nacional dos Direitos da Infncia (ANDI), formada por jornalistas, em Braslia. No Rio Grande do Sul um grupo de jovens advogadas criou a Themis Assessoria Jurdica da Mulher, que j treinou mais de 150 "promotoras legais populares", que so lideranas locais femininas, que depois de um curso semestral de Direito, com autoridades e professores de Porto Alegre e de outros lugares do Brasil, am a buscar a implementao dos direitos humanos em suas comunidades. O impacto deste programa tem sido tremendamente positivo e sinaliza a forma como os direitos humanos podem sair do papel e se transformarem em realidade, inclusive para os setores mais vulnerveis da populao.

Trata-se, portanto, de um conjunto bastante diversificado de organizaes que vm recriar a luta pelos direitos humanos no Brasil, que surgiu e por um longo tempo, continuou sendo uma luta exclusivamente contra a violao praticada pelo Estado.

Esse amplo movimento da sociedade civil ampliou significativamente seu mandato, em funo de outras formas de violao de direitos humanos de ordem "privada", que tambm aram a ser detectadas por relatrios, ou mesmo denncias produzidas pela imprensa.

5. Novo Patamar Legislativo

Neste contexto de grande fertilidade e ebolio da sociedade civil, o Brasil adota a mais democrtica de suas Constituies. A Constituio de 1988 traz uma carta de direitos que vai alm do estabelecido pelos documentos internacionalmente adotados a partir da Declarao Universal de 1948. Como resultado do processo de transio, a Constituio Federal serve como trincheira para o fortalecimento da sociedade civil. O pargrafo 2 do artigo 5, por exemplo, abre o ordenamento jurdico brasileiro aos instrumentos de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte. Isso modifica a insero do Brasil no quadro da naes, pois o Estado Brasileiro anteriormente negligente e desobrigado frente aos direitos humanos, sob a inspirao da Constituio, rapidamente se torna parte dos principais documentos internacionais e, consequentemente, a a se submeter fiscalizao da comunidade internacional.

A partir do governo do Presidente Itamar Franco, o Brasil a a reconhecer as suas violaes. Se analisarmos o relatrio feito pelo governo brasileiro sobre o Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos, de 1966, ficaremos surpresos com sua proximidade aos relatrios da Anistia Internacional ou outras entidades de direitos humanos, nacionais ou internacionais. Em outras palavras, o Brasil a a reconhecer os direitos humanos e automaticamente a se auto-obrigar a prevenir as violaes e responsabilizar os seus perpetradores.

Neste aspecto, o Programa Nacional de Direitos Humanos elaborado em 1996, tem a perspectiva de responder a essas obrigaes que foram previamente assumidas pelo governo brasileiro, especialmente na Conferncia Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993. um programa realizado com ampla participao da sociedade civil, sob a coordenao do Ncleo e Estudos da Violncia da USP. Sua finalidade o estabelecimento de metas concretas, mudanas e reformulaes legislativas, pragmticas, istrativas, judiciais, para assegurar eficcia quelas obrigaes que foram assumidas pelo Brasil na esfera internacional. Cabe aqui destacar, ainda que de maneira apenas ilustrativa, algumas das medidas incorporadas e implementadas pelo Programa: a transferncia para a justia comum dos crimes dolosos praticados contra a vida; a criao do tipo penal da tortura, o que muito significativo num pas que ou 497 anos sem tipificar este crime, (quando muito, a tortura poderia ser punida como leso corporal ou abuso de autoridade). Tambm o Novo Cdigo de Trnsito, que teve impacto fabuloso, reduzindo de forma significativa o nmero de mortes no trnsito, foi uma decorrncia do Programa Nacional de Direitos Humanos. V-se, hoje, uma generalizao do processo de implementao do Programa nas esferas estadual e municipal. O Estado de So Paulo j possui seu Programa Estadual de Direitos Humanos desde setembro de 1997, e Porto Alegre realizou, em maio, uma reunio para a organizao de seu Programa que contou com nada menos do que 1.700 pessoas. Os exemplos so absolutamente inovadores.

6. Concluso

Ainda que este pas esteja mudando, que tenhamos hoje uma sociedade civil bem articulada, que o marco normativo imposto pela Constituio de 1988 e pelos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil se tornou parte seja tremendamente favorvel realizao dos direitos, que nossas autoridades, com as excees que se tem que lamentar, conjuguem a gramtica dos direitos humanos, h uma limitao material sua realizao, que vale reenfatizar. Lamentavelmente ns continuamos sendo um pas hierarquizado socialmente. Este o pas da desigualdade, da excluso moral, usando a expresso de Nancy Cardia, onde se violam direitos humanos sistematicamente.

A excluso de carter moral decorre da existncia de enormes hiatos entre ricos e pobres. Quando privamos um grupo de determinados recursos como educao, sade, habitao, condies urbanas, ou ainda o exclumos do mercado de trabalho e portanto, do mercado de consumo, de alguma maneira, este ser humano tem sua dignidade reduzida enquanto ser humano.

Outro dia, quando ava debaixo do Minhoco, vi um mendigo que se encontrava num profundo processo de degradao. Esse mendigo estava abaixado numa poa dgua ptrida, onde "escovava" (com os dedos) os dentes. Comecei a pensar no processo de excluso que esse mendigo havia ado. Ele deve ter ado por um processo de excluso do emprego, do consumo, excluso de sua comunidade e por fim de suas relaes familiares. Possivelmente, todo esse processo de excluso leva a um outro de auto-degradao. Mas a humanidade, mesmo assim, estava presente ali no ato de escovar os dentes, isso era um ato de resgate da humanidade.

Pensei ento no que aconteceria se este mendigo fosse morto noite. Se, como o ndio Galdino, fosse incendiado por jovens, sem qualquer razo aparente, ou se fosse atropelado por um dos nibus que avam a poucos centmetros da possa dgua em que escovava seus dentes. Dificilmente haveria qualquer conseqncia. Em So Paulo, no ano ado, mais de quatorze mendigos foram incendiados, sem que nada ou quase nada tenha ocorrido. O caso do ndio Galdino, por suas diversas peculiaridades, um ponto fora da curva.

A dor moral da nossa sociedade pela eliminao desse mendigo, de algum que no mais visto como um igual, absolutamente menor do que aquela dor decorrente da morte de um igual, de "qualquer um de ns". Por mais sinistro que possa parecer, a sociedade gradua o valor vida. Os 187 homicdios por 100.000 habitantes no Jardim ngela, zona sul de So Paulo, no comovem. A sociedade brasileira no est muito preocupada com isso. Por outro lado, a morte de uma pessoa num bairro de classe mdia ou alta que tem ndices de menos de 10 homicdios por 100.000 habitantes, causa uma verdadeira comoo na sociedade.

H uma desigualdade no tratamento da vida e essa desigualdade construda pelo processo de excluso econmica, social, moral e finalmente, de excluso jurdica. Qual seria a conseqncia jurdica da morte desse mendigo, alm de um registro burocrtico e estatstico? A excluso faz com que a lei no atinja determinadas pessoas. Certos grupos da sociedade esto abaixo da lei, enquanto outros esto acima dela. So os privilegiados. O preocupante que, em nosso pas, o montante dos que esto abaixo e o montante dos que esto acima da lei tremendamente grande, conferindo uma conformao peculiar sociedade brasileira que parece estar sendo agravada pelo processo de globalizao.

Embora boa parte destas consideraes tenha enfocado a questo da internacionalizao dos direitos humanos, at em funo dos 50 anos da Declarao, importante destacar que o sistema internacional de direitos humanos um sistema subsidirio, no se pode esperar que o sistema internacional de direitos humanos (na medida em que o Brasil se torna parte dele, ou mesmo ao confirmar a jurisdio da Corte Interamericana ou qualquer coisa do gnero) v automaticamente trazer para o Brasil um padro de direitos humanos mais adequado do que temos hoje. O papel de resgate e construo dos direitos humanos muito mais um papel de resgate de construo do Estado de Direito e da regra da Lei. Conforme mencionou o Professor Srgio Adorno, ainda estamos comprometidos ou em dbito com aqueles progressos decorrentes das revolues da modernidade, que aqui no se realizaram, pelo menos por completo. E essa revoluo moderna no nada mais do que o pacto de igualdade de direitos e a existncia de um Estado que seja capaz de levar a cabo a sua misso e aplicar essa Lei. Mos obra.

Professor de Direitos Humanos da PUC de So Paulo

Secretrio Executivo do Instituto Latino Americano das Naes Unidas para a Preveno do Delito e Tratamento do Delinqente e Procurador do Estado

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