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A DECLARAO UNIVERSAL DOS
DIREITOS HUMANOS
50 ANOS

Patricia Helena Massa Arzabe*

Potyguara Gildoassu Graciano**

A Declarao Universal dos Direitos Humanos, que comemora em 1998 seu cinqentenrio, um documento novo, com contedo novo. Sua novidade reside no fato de constituir o primeiro documento internacional a trazer por destinatrios no somente Estados, mas todas as pessoas de todos os Estados e territrios, mesmo os no signatrios da Declarao. Seu contedo novo, pelo conjunto de direitos que atribui, extravasando o campo dos direitos civis e polticos para especificar tambm direitos econmicos, sociais e culturais e pela universalidade, por postular a dignidade, a proteo e a promoo dos direitos de todos os humanos do planeta. O fato que o discurso dos direitos humanos, que a Declarao proclama e institucionaliza, um fator deste sculo. At ento, a preocupao com os direitos e a dignidade das pessoas independentemente de fronteiras era presente somente na filosofia e na religio.

Exatamente ao proclamar os direitos humanos para todas as pessoas, estabelecendo-os como uma meta a ser atingida por todos os povos e todas as naes, a Declarao Universal dos Direitos Humanos se manifesta como uma construo que vem abrir o espao para o tratamento universalizante das questes relacionadas aos direitos humanos e s suas violaes. com a Declarao que o discurso dos direitos humanos toma forma e contedo mais precisos, ando a transitar cada vez com maior intensidade nos mbitos poltico e jurdico. Por discurso de direitos humanos quer-se designar aqui todo o conjunto de instrumentos, tcnicas, princpios e normas que, tanto na esfera poltica como na esfera jurdica, possibilitam modificar pacfica e racionalmente a realidade existente para a constituio de uma nova, em que as relaes entre as pessoas e entre estas e os Estados se dm com a observncia dos elementos desse discurso.

Como um discurso novo, assentado no 'reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e de seus direitos iguais e inalienveis' e tendo esse reconhecimento como 'fundamento da liberdade, da justia e da paz no mundo'(1), sua incorporao praxis poltica e social apenas se inicia.

A dificuldade dessa incorporao explica-se pela natureza das relaes de fora que caracterizam as relaes polticas atuais, que no so exatamente compatveis com o respeito ir aos primados da liberdade e da igualdade. Porm, devido incontestvel relevncia dos princpios contidos na Declarao para as sociedades, certo que sua incorporao no mbito jurdico est consolidada em todo o mundo, estando presentes em quase todas as Constituies dos Estados.

Aproximao histrica

Os antecedentes remotos da Declarao da ONU de 1948 so encontrados, de um lado, no direito internacional e no direto humanitrio dos sculos XVIII e XIX e, de outro em dois documentos relacionados, um ao processo histrico de mudana de poder da Frana e o outro, instituio de poder ligada formao do Estado norte-americano, a saber, a Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, de 1789 e a Declarao de Independncia dos Estados Unidos, de 1776.

O tempo da Declarao sa de 1789 coincide com o perodo da codificao das normas jurdicas, sendo pouco anterior ao Cdigo de Napoleo. Elas Daz recorda que em fins do sculo XVIII que se opera a transformao do direito natural, universal e absoluto em direito positivo, vindo a criar um vazio valorativo, sob certo aspecto; visto que os ideais, uma vez positivados, tornam-se realidade (ao menos parcialmente), para, ento, transformarem-se em ideologia(2). A Declarao sa veio afirmar como dado aspectos culturais que ainda deveriam ser construdos, qualificando como direitos naturais a liberdade, a propriedade e a igualdade em direitos. Tais direitos no eram, de fato, naturais, e eram veis a uma minoria, posto que a estruturao da sociedade em estamentos apenas acabara de ser abolida.

Diferentemente da Declarao Universal dos Direitos Humanos, que se estende a todas as pessoas, sem contudo, possuir originariamente carter vinculante, a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789 efetivamente integra o direito positivo francs - vigorando at a atualidade, ao lado da Constituio sa. Os traos comuns desta com a Declarao da ONU, como a afirmao da liberdade, da propriedade, da segurana como direitos inerentes ao homem, o princpio da legalidade, o princpio da reserva legal e o da presuno de inocncia, a liberdade de opinio e de crena, dentre outros, so, sem dvida, referncias da linha comum que ligam os dois documentos. Deve-se, todavia, lembrar, com o historiador Hobsbawm, que as exigncias do burgus que foram delineadas na famosa Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789. Segundo afirma, "este documento um manifesto contra a sociedade hierrquica de privilgios da nobreza, mas no um manifesto a favor de uma sociedade democrtica e igualitria. Os homens nascem e vivem livres e iguais perante a leis, dizia seu primeiro artigo; mas ela tambm prev a existncia de distines sociais, ainda que somente no terreno da utilidade comum. ... a declarao afirmava (posio contrria hierarquia da nobreza ou absolutismo) que todos os cidados tm o direito de colaborar na elaborao das leis pessoalmente ou por meio de seus representantes. E a assemblia representativa que ela vislumbrava como rgo fundamental de governo no era necessariamente uma assemblia democraticamente eleita. ... Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada maioria dos liberais burgueses do que a repblica democrtica que poderia parecer uma expresso mais lgica de suas aspiraes tericas. De modo geral, o burgus liberal clssico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) no era um democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, de um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e de um governo de contribuintes e proprietrios."(3) As palavras de Hobsbawm permitem identificar que as intenes que nortearam a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado diferem em sentido e extenso da Declarao Universal dos Direitos Humanos, mas, uma vez que o texto escrito se desprende de seu contexto, hoje lemos a Declarao sa de 1789 com os olhos do nosso tempo.

Se, por um lado, a Declarao sa, a Declarao de Direitos da Virgnia e a Declarao de Independncia Americana foram importantes para o desenvolvimento dessas idias especialmente dentro dos Estados, o mesmo no ocorre de maneira direta para o direito internacional dos direitos humanos. A origem da proliferao dos documentos internacionais de proteo de direitos humanos est, principalmente, nos tratados internacionais bilaterais e multilaterais para a abolio da escravatura e do comrcio de escravos, assim como nas normas de direito humanitrio para o banimento de armas cruis e para a salvaguarda de prisioneiros de guerra, de feridos e de civis(4).

As normas de Direito Humanitrio(5) comeam a surgir no sculo XIX, para disciplinar o tratamento das vtimas em conflitos armados, a proteo humanitria aos militares postos fora de combate (feridos, doentes, nufragos, prisioneiros) e s populaes civis(6), declarando limites ao uso da violncia em guerras.

A Liga das Naes, materializada no Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, ao fim da Primeira Guerra Mundial, veio abrir caminho para a proteo, de forma mais ampla, aos direitos de pessoas, prevendo, tambm, o direito de petio Liga, reconhecido s populaes dos Estados membros(7). Segundo observa Louis Henkin, "com base nos precedentes do sculo XIX, Estados dominantes pressionaram determinados Estados a aderir a tratados de minorias garantidos pela Liga, nos quais os Estados Partes assumiam obrigaes de respeitar direitos de minorias tnicas, nacionais ou religiosas determinadas"(8).

Este o perodo a partir do qual o direito internacional deixa de ter por objeto, com poucas excees, a relao somente entre Estados, ando a tratar, tambm, das pessoas e de seus direitos relacionados dignidade humana. Observa-se, entretanto, que os tratados sobre minorias celebrados sob os auspcios da Liga das Naes eram impostos seletivamente, em especial sobre naes derrotadas em guerras e sobre Estados recm criados ou ampliados. Tais documentos no previam, ao contrrio do que se esperaria hoje, normas gerais impondo o respeito s minorias tambm por parte dos Estados com maior poder, assim como no exigiam que fossem respeitadas as pessoas que no pertenciam s minorias especificadas ou s pertencentes maioria(9).

Muitas vezes esquecida no seu papel de fixao e promoo de direitos humanos, a Organizao Internacional do Trabalho OIT, constituda tambm por ocasio do Tratado de Versalhes, tem desempenhado papel importante na defesa e promoo de direitos relacionados ao trabalho, bem como de outros direitos econmicos, sociais e culturais, por meio de programas especficos e de suas convenes, estabelecendo definies e padres mnimos sobre as condies de exerccio dos direitos de que trata. no mbito da OIT que se v os primeiros documentos internacionais de proteo mulher, criana, aos indgenas e povos tribais, ao trabalhador, documentos contra a discriminao racial, e de reduo dos efeitos do desemprego, dentre outros.

Vale notar que a introduo de mecanismos internacionais de proteo de direitos humanos no se deveu conscientizao sbita da relevncia e necessidade de proteo desses direitos ou de um comprometimento tico dos Estados.

No caso da Liga das Naes, como visto, a proteo de minorias estava voltada, via de regra, proteo daquelas que foram incorporadas a outros Estados ou que ficaram sem vnculo a um Estado, como os curdos e palestinos, no significando isto, por si, que outros grupos tnicos, lingsticos ou nacionais existentes, estariam igualmente protegidos, como de fato no estavam, a exemplo dos ciganos.

No mbito da OIT, pode-se dizer que, ao tempo de sua criao, o socialismo estava em expanso na Europa, justificando a implantao, nos Estados capitalistas, de medidas de proteo s condies do trabalho(10). Melhores condies sociais e de trabalho em todos os Estados significava, tambm, como ainda significa, melhores condies para a competio no mercado internacional, possibilitando minimizar os efeitos de pases que, com menos direitos sociais garantidos, entram no mercado com preos mais baixos.

Porm, com a criao da Organizao das Naes Unidas ONU, na Carta de So Francisco, em 1945, que a proteo e promoo internacionais dos direitos humanos se converte em princpio jurdico de direito internacional. A Carta de So Francisco ou Carta das Naes Unidas consiste em tratado internacional, vinculando juridicamente, portanto, todos os Estados que fazem parte da ONU. Desse modo, todos os Estados membros devem dar cumprimento ao princpio do "respeito universal aos direitos humanos e s liberdades fundamentais para todos, sem distino por motivos de raa, sexo, idioma ou religio". De fato, o artigo 1 da Carta coloca como propsitos das Naes Unidas, "conseguir uma cooperao internacional para resolver os problemas internacionais de carter econmico, social, cultural ou humanitrio e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e s liberdades fundamentais", sem qualquer distino. Tratam da questo da proteo e promoo dos direitos humanos o artigo 1, itens 2 e 3, artigos 13, 55 e 56. A importncia dada pela Carta matria revelada com especial fora no artigo 55, que vem vincular o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e liberdades fundamentais como necessrio criao de condies de estabilidade e bem-estar, que, por sua vez, so necessrias s relaes pacficas e amistosas entre as naes, estando tais relaes fundadas no respeito ao princpio da igualdade de direitos e da autodeterminao dos povos.

A Declarao Universal dos Direitos Humanos

J quando da elaborao da Carta das Naes Unidas, grupos defendiam que ela deveria trazer uma declarao de direitos anexa. Isso no ocorreu. Entretanto, apesar de mencionar os direitos humanos de modo conciso e genrico, a Carta trouxe a valiosa contribuio de tornar a promoo dos direitos humanos uma finalidade da ONU e, sobretudo, expande a relao entre os Estados e seus habitantes para esfera internacional. Merece ser observado que, "no seio da ONU, programou-se, a partir de 1947, uma International Bill of Human Rights, que deveria ter sido constituda por uma Declarao universal, contendo a enunciao dos direitos humanos, por um Covenant contendo compromissos especficos jurdicos dos Estados no que toca ao respeito dos mesmos direitos humanos e um sistema de controle Measures of Implementation, voltado para a garantia desses direitos. A realizao desse programa encontrou enormes dificuldades"(11).

A prpria Declarao poderia ter tomado a forma de tratado, de modo a, aps sua adoo pela ONU, vincular os Estados que a ratificassem obrigao de proteger e promover os direitos humanos. Prevaleceu, entretanto, o entendimento de que a carta de direitos deveria tomar a forma de declarao, ou seja, de uma recomendao de maior solenidade, utilizada em raras ocasies relacionadas a matrias de grande importncia, em que se espera o mximo comprometimento moral e poltico dos partcipes.

A Declarao vem constituir, ento, a especificao dos direitos que a Carta de So Francisco menciona apenas de maneira genrica, estabelecendo, como afirmado em seu Prembulo, uma compreenso comum do que sejam esses direitos para seu pleno cumprimento.

Este detalhamento de direitos humanos, que a Declarao Universal dos Direitos Humanos traz, constitui a primeira iniciativa de enumerao de direitos humanos no mbito do direito internacional e institui, sobretudo, como aponta Flvia Piovesan(12), "extraordinria inovao, ao conter uma linguagem de direitos at ento indita .... Ao conjugar o valor da liberdade com o valor da igualdade, a Declarao demarca a concepo contempornea de direitos humanos, pela qual esses direitos am a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisvel". A Declarao expressa, a um s tempo, o discurso liberal dos direitos civis e polticos, nos artigos 3 a 21, com o discurso social dos direitos econmicos, sociais e culturais, nos artigos 22 a 28.

No demasiado lembrar que a invocao de direitos econmicos, sociais e culturais, como decorrentes do princpio da igualdade, era politicamente relacionada ao socialismo e, portanto, a movimentos polticos de grande apelo popular. Recorde-se que j a Declarao sa de 1793 incorporada como introduo Constituio de 1793 da Repblica Jacobina do Ano I, conseqncia da segunda revoluo em 1792, proclamava a igualdade por natureza e perante a lei (art. 3), prevendo o dever da sociedade de colocar a educao ao alcance de todos (art. 22), proporcionar trabalho e seguridade social aos menos favorecidos (art. 21)(13). Mas essa Declarao, forjada no perodo do Terror de esquerda, vigorou somente por trs meses(14).

Os direitos econmicos e sociais somente vm tomar relevo jurdico neste sculo, com a Constituio Mexicana, de janeiro de 1917, a Declarao dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da URSS, de janeiro de 1918 e a Constituio de Weimar, de agosto de 1919.

Sobre as condies que impulsionam os direitos sociais, Jos Afonso da Silva alerta que "o desenvolvimento industrial e a conseqente formao de uma classe operria logo demonstraram a insuficincia daquelas garantias formais, caracterizadoras das chamadas liberdades formais, de sentido negativo, como resistncia e limitao ao poder. Pois a opresso no era, em relao a ela, apenas de carter poltico formal, mas basicamente econmico. No vinha apenas do poder poltico do Estado, mas do poder econmico capitalista. De nada adiantava as constituies e leis reconhecerem liberdades a todos, se a maioria no dispunha e ainda no dispe, de condies materiais para exerc-las. Sintetiza bem a questo Juan Ferrando Bada, quando escreve: "A burguesia liberal aparenta conceder a todos a liberdade de imprensa, a liberdade de associao, os direitos polticos, as possibilidades de oposio poltica: mas, de fato, tais direitos e liberdades no podem ser exercidos seno pelos capitalistas, que so os que tm meios indispensveis para que tais liberdades sejam reais. E, assim, no caso do direito ao sufrgio, este servia para camuflar diante dos olhos dos proprietrios uma papeleta de voto, mas a propaganda eleitoral se encontra nas mos das foras do dinheiro."(15) Desse modo, os direitos econmicos, sociais e culturais revelam-se essencialmente necessrios para que direitos civis e polticos possam ser verdadeiramente efetivos, provando-se reciprocamente necessrios.

Como visto na Introduo, a Declarao Universal dos Direitos Humanos se constitui numa construo, de matriz iluminista a Declarao sa de 1789 se apresenta como sua fonte mais evidente e como construo reflete as disputas de poder no mbito internacional. Os direitos ali plasmados no se confundem com direitos naturais e absolutos que, segundo os jusnaturalistas, acompanhariam os seres humanos desde tempos imemoriais. Ou, segundo Celso Lafer, no so um dado, externo polis; so um construdo, uma inveno ligada organizao da comunidade poltica(16). Consistem, sim, em resultado de disputas entre grupos sociais e entre estes e o Estado, desenvolvidas no tempo. Os direitos humanos, nos dizeres de Jos Afonso da Silva, "so histricos, como qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. Eles apareceram com a revoluo burguesa e evoluem, ampliam-se com o correr dos tempos. Sua historicidade rechaa toda fundamentao baseada no direito natural, na essncia do homem ou na natureza das coisas."(17)

A dimenso histrica dos direitos humanos est ligada, como no poderia deixar de ser, noo de pessoa, em sua concreo social e histrica. Miguel Reale, ao tratar sobre o ser pessoa, aponta que "o homem a sua histria, mas tambm a histria por fazer-se. prpria do homem, da estrutura mesma de seu ser, essa ambivalncia e polaridade de ser ado e ser futuro, de ser mais do que sua prpria histria". Reale arremata: "e note-se que o futuro no se atualiza como pensamento, para inserir-se no homem como ato, caso em que deixaria de ser futuro mas se revela em nosso ser como possibilidade, tenso, abertura para o projetar-se intencional de nossa conscincia, em uma gama constitutiva de valores."(18) Suas palavras permitem perceber como as pessoas no so meros pacientes da histria, mas agentes possveis de agir de forma ativa (o projetar-se intencional da conscincia) participar criativamente da vita activa, como dizia Hannah Arendt constituindo novos valores.

Retomando a dimenso poltica da construo da Declarao Universal dos Direitos Humanos, que, neste aspecto, coincide com a Declarao Americana de Direitos Humanos, verifica-se que liberdade e igualdade, no sentido que temos atualmente, no se encontravam, em meados deste sculo, no mesmo nvel. Pugnar pela igualdade, muitas vezes, significava assumir-se comunista ou socialista, ainda que no o fosse. Defender a liberdade, por outro lado, significava, muitas vezes, defender a liberdade de ao e, por via de conseqncia, a possibilidade de sucesso dos melhores, dos mais capazes, em consagrao ao liberalismo.

O tempo da Declarao tambm o tempo da consolidao da Guerra Fria. Segundo Lindgren Alves, "durante esse perodo, a disputa ideolgica entre os dois sistemas antagnicos favorecia, pelo enfoque estritamente coletivista de um deles, a idia de que a obteno de condies econmicas adequadas teria prioridade sobre o usufruto dos direitos civis e polticos e das liberdades fundamentais"(19). Boaventura de Souza Santos, de outra parte, observa que "durante muitos anos aps a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da poltica da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda."(20) A tenso entre o discurso liberal e o discurso socialista est presente na Declarao, quando se verifica que vinte um artigos tratam dos direitos civis e polticos, dos quais vinte referem-se a direitos civis e um refere-se unicamente a direitos polticos (a liberdade de opinio e de expresso, bem como a liberdade de associao e reunio pacficas so relacionadas simultaneamente aos direitos polticos) e apenas seis esto relacionados aos direitos sociais. O artigo XXVIII j trata, de forma especialmente genrica da espcie de direitos que posteriormente veio a ser denominada direitos de solidariedade, ao prever que toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades constantes da Declarao possam ser plenamente realizados. Este artigo no consubstancia, pois, quer direitos civis, polticos, econmicos, sociais ou culturais, tratando, sim, de um dos direitos de solidariedade.

O contedo da Declarao

A Declarao Universal dos Direitos Humanos traz, em seu Prembulo, sete consideranda, consolidando, em especial, (i) a dignidade humana inerente a todos como fundamento da liberdade, da justia e da paz; (ii) o desrespeito aos direitos humanos como causa da barbrie; (iii) o direito de resistncia opresso como alternativa ltima ausncia de proteo e garantia dos direitos humanos sob o imprio da lei; (iv) a relao direta entre a efetividade dos direitos humanos e a construo do progresso social e de melhores condies de vida e (v) o estabelecimento de uma compreenso comum dos direitos humanos para seu pleno cumprimento.

Ao proclamar a Declarao, a Assemblia Geral a coloca como um ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as naes. Ela dirige seu campo de validade, portanto, a todas as pessoas, independente do Estado ou nao a que pertenam ou de qualquer outra especificidade. Ainda, ao dispor que cada pessoa e cada rgo da sociedade devam se esforar para promover o respeito aos direitos humanos e para a adoo de medidas progressivas para assegurar seu reconhecimento e observncia universais e efetivos, prev, efetivamente, que no somente aos Estados incumbe cuidar para a proteo, no violao e promoo desses direitos, mas a todos os membros da sociedade, quer sejam pessoas, quer sejam empresas com fins lucrativos, quer sejam organizaes no governamentais j que todos so rgos da sociedade. Nicola Matteucci alerta, a esse respeito, que "as ameaas podem vir do Estado, como no ado, mas podem vir, tambm da sociedade de massa, com seus conformismos, ou da sociedade industrial, com sua desumanizao. significativo tudo isso, na medida em que a tendncia do sculo atual e do sculo ado parecia dominada pela luta em prol dos direitos sociais, e agora se assiste a uma inverso de tendncias e se retoma a batalha pelos direitos civis."(21)

interessante notar que, mesmo ados cinqenta anos da Declarao Universal, o postulado nela contido que atribui a todos os agentes sociais a incumbncia de no violar, de proteger e promover os direitos humanos pouco adentrou praxis da Organizao das Naes Unidas. A participao das ONGs nos procedimentos da ONU demasiadamente , a despeito da grande capacidade de mobilizao da sociedade civil que algumas delas congregam e da sua proximidade com as situaes de violao de direitos humanos, no s civis e polticos. Ainda, pelo que prev a Declarao, cada pessoa poderia ou deveria cuidar para a proteo e promoo dos direitos humanos independente das fronteiras dos Estados e no apenas no mbito de seu Estado nacional. Verifica-se a permanncia da concepo de que a ONU somente pode relacionar-se com Estados, seguindo a matriz do direito internacional que vigorou at o incio deste sculo.

Cumpre destacar que a Declarao no faz distino de processo de efetivao ou de efetividade formal ou material entre direitos civis e polticos e direitos econmicos, sociais e culturais, diversamente do que expressam os dois Pactos Internacionais de Direitos de 1966. Os direitos previstos na Declarao devem, todos, ser implementados progressivamente pela educao e ensino e por polticas pblicas que assegurem seu reconhecimento e observncia. O sentido da expresso progressivamente no deve significar na medida da vontade poltica, mas sim iniciar-se de imediato e seguir continuamente avanando at sua integral implementao. Ou seja, no ser na medida da existncia de recursos, mas na destinao contnua e prioritria de recursos pblicos para a sua consecuo, de modo a no se verificar, a, qualquer margem para a discricionariedade istrativa(22).

A linguagem dos direitos humanos

A Declarao reconhece os direitos humanos considerados essenciais para garantir a dignidade de cada pessoa na sociedade em que vive, de forma a possibilitar a cada uma o desenvolvimento integral de sua personalidade e de sua capacidade de participao na sociedade. de se observar, todavia, que a linguagem normativa de enunciao de direitos contida na Declarao Universal dos Direitos Humanos, e especialmente por se tratar de direitos humanos, vem permeada de palavras gerais e que, por sua generalidade e vagueza, apresentam um grau de incerteza alto. Termos como liberdade, igualdade e mesmo pessoa so polissmicos, ou seja, comportam vrios sentidos(23). A conseqncia disso redunda na seleo, ou eleio, de um sentido determinado para, no mbito dos Estados, desenhar-se e implementar-se direitos e polticas pblicas destinadas a satisfazer a pauta dos direitos humanos.

Estes termos liberdade, igualdade, democracia, pessoa, dentre outros que esto presentes em toda a Declarao, bem como em todas as normas jurdicas de direitos humanos, internas ou internacionais, so correntes na linguagem poltica e na linguagem comum, e possuem carga emotiva forte, sendo, por isso mesmo, imprecisas na linguagem jurdica.

Desse, modo, alm de sua funo descritiva, tais palavras ou expresses comportam uma funo persuasiva. A conjugao dessas duas funes das palavras, especialmente as retiradas da linguagem poltica, a linguagem dos direitos humanos - e do direito, de forma geral - se converte, como colocado por Jos Eduardo Faria, num instrumento no s de compreenso, mas tambm de modificao e transformao das pautas valorativas em funo das mudanas scio-econmicas, possibilitando a formao de hbitos, a induo de comportamentos e a consolidao de crenas(24).

As expresses de arco aberto desempenham papel decisivo na reproduo das formas de poder e dominao, podendo conduzir alienao da realidade, conforme o grau de participao popular na esfera pblica, ao firmar nos agentes sociais, individuais ou coletivos, a crena em uma ordem harmnica e equilibrada, mantidas intactas, todavia, as estruturas de poder preexistentes(25).

Verifica-se a necessidade, ento, de incrementar-se as aes e mecanismos que permitam amplificar a participao ativa dos agentes sociais, especialmente pela via associativa, para que seja reivindicada a efetividade dos direitos proclamados na Declarao Universal, com apropriao ex parte populi da linguagem dos direitos humanos, com propostas concretas de polticas pblicas que permitam o o material ao gozo desses direitos em todas as suas vertentes. Para um discurso eficiente dos direitos humanos, necessrio que a participao por meio de associaes e entidades em favor desses direitos e de polticas pblicas se d tambm e cada vez mais, no mbito internacional ou transnacional. Boaventura de Souza Santos salienta que as atividades cosmopolitas, que caracterizam as globalizaes de baixo-para-cima, incluem entre outras, "dilogos e organizaes Sul-Sul, organizaes mundiais de trabalhadores (a Federao Mundial de Sindicatos e a Confederao Internacional dos Sindicatos Livres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assistncia jurdica alternativa, organizaes transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizaes no governamentais (ONGs) transnacionais de militncia anticapitalista, redes de movimentos e associaes ecolgicas e de desenvolvimento alternativo, movimentos literrios, artsticos e cientficos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, no imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas ps-coloniais ou subalternas, etc."(26).

A Indivisibilidade dos Direitos Humanos na Declarao

Do que ficou dito acima, infere-se que a Declarao Universal dos Direitos Humanos ao combinar o discurso liberal e o discurso social da cidadania, associando o valor da liberdade ao valor da igualdade, traz para si, de fato, a tenso entre estes dois valores. Esta tenso aparente e existe somente enquanto se mantenha a leitura de seus sentidos sob a forma do absoluto. da tradio ocidental, acentuada com o cartesianismo, a oposio de valores, o maniquesmo, que impede a visualizao da mirade de possibilidades entre dois extremos, como existem entre o branco e o preto, o zero e o infinito. O zero pressupe o infinito, assim como a liberdade deve pressupor a igualdade, uma conduzindo outra, recproca e simultaneamente. O equilbrio entre estes dois valores essencialmente necessrio para que uma e outra existam no mundo real.

Segundo observa Domenico Losurdo(27) a partir da crtica efetuada por Marx, "o que est em discusso a relao liberdade-igualdade. Alm de certo limite, a desigualdade nas condies econmico-sociais acaba anulando a liberdade, por mais que esta esteja solenemente garantida e consagrada em nvel jurdico-formal". E, cita esse autor uma agem de Hegel de Fundamentos da Filosofia do Direito, p. 127: "quem sofre de fome desesperada, chegando a correr o risco de morrer de inanio, est numa condio de total falta de direitos, ou seja, numa condio que, em ltima anlise, no difere substancialmente da situao de escravo". Por isso que no possvel considerar-se direitos humanos simplesmente os direitos civis e polticos, pois, sem os direitos econmicos, sociais e os culturais, eles se desmancham no vazio, sem qualquer possibilidade de realizao sequer parcial. A garantia e o o efetivos aos direitos econmicos, sociais e culturais, permite a todos alcanar e manter as condies econmicas e sociais necessrias para que possam se fazer concretos os direitos civis e polticos, como a liberdade de opinio com contedo opinativo, a liberdade de expresso possvel de contribuir criativa e construtivamente para a comunidade poltica, com pleno o aos meios e modos para tal expresso os meios de comunicao, etc.

As desigualdades no so privadas, isto , no esto situadas e nem podem estar fora da dimenso da esfera pblica. indevido associar-se a liberdade ao pblico e a igualdade ao privado, de forma a situar somente a liberdade no plano da regulao estatal para a sua proteo, especialmente pelo direito civil e pelo direito penal. Nada h no sistema jurdico que permita comparar o nvel de proteo da liberdade com o nvel de proteo da igualdade, em seu sentido material. A igualdade formal permanece somente como o eixo legitimador do sistema liberal de atribuio de direitos. Porm, exatamente porque o exerccio da igualdade material est geneticamente ligado ao exerccio da liberdade, torna-se a primeira (a igualdade) de fundamental relevncia para a esfera pblica, impondo a ao do Estado para sua proteo, especialmente com a implementao de polticas. Jamais se poder falar, por conta do modo como opera o sistema capitalista que faz maximizar o lucro com a desvalorizao da mo-de-obra , que a desigualdade existe por conta da preguia ou da ausncia de vocao para o trabalho e para a riqueza, mantendo certo nmero de pessoas na misria. Este darwinismo social argumento prprio dos que vm a desigualdade na distribuio da riqueza como natural ao primado da liberdade em sua acepo absoluta.

A percepo da liberdade sob a perspectiva do confronto (a liberdade de um vai at onde se inicia a liberdade do outro) no adequada efetivao dos preceitos da Declarao Universal dos Direitos Humanos, pois, para tal necessrio e inerente a colaborao o labor com , ou seja, a liberdade de um termina quando termina a liberdade do outro. O discurso dos direitos humanos no pode persistir associado ao parmetro do direito subjetivo, pilar fundamental do direito privado. A titularidade dos direitos humanos, pelo que deflui da Declarao, no contra todos erga omnes, mas com todos, exercendo-se coletivamente.

Partindo desta concepo, o o aos direitos proclamados na Declarao no se d de modo ivo, a mera recepo ou o simples reconhecimento desses direitos, mas de forma ativa, com a conjugao de todos os agentes sociais para a efetivao de todo o rol ali previsto, bem como dos direitos humanos que se somaram.

Desta forma, torna-se evidente que a materializao dos direitos civis, dos direitos polticos, dos direitos econmicos, dos direitos sociais, dos direitos culturais, e tambm dos direitos de solidariedade estes j desenhados no artigo 28 da Declarao , esto indissoluvelmente ligados e interrelacionados, sendo verdadeiramente indivisveis e interdependentes.

A Declarao sobre o Direito ao Desenvolvimento(28), que vem sendo considerada parte integrante da Carta Internacional dos Direitos Humanos, ao lado da Carta de So Francisco, da Declarao Universal dos Direitos Humanos, e dos dois Pactos Internacionais de Direitos de 1966, prev expressamente (como j dispunha a Declarao de Teer, de 1968) no artigo 6, item 2 que "todos os direitos humanos e liberdades fundamentais so indivisveis e interdependentes; ateno igual e considerao urgente devem ser dadas implementao, promoo e proteo dos direitos civis, polticos, econmicos, sociais e culturais."

A Declarao e Programa de Ao de Viena(29) igualmente afirma a indivisibilidade dos direitos humanos no item I.5: "todos os direitos humanos so universais, indivisveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqitativa, em p de igualdade e com a mesma nfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em considerao, assim como diversos contextos histricos, culturais e religiosos, dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas polticos, econmicos e culturais".

A Universalidade dos Direitos Humanos na Declarao

O item reproduzido da Declarao e Programa de Ao de Viena afirma, tambm, a universalidade dos direitos humanos, que j estava prevista na Declarao Universal dos Direitos Humanos.

De fato, a Declarao de 1948 universal por seu ttulo e por seu contedo. Vimos, no incio deste trabalho, que a inteno primeira era elaborar uma declarao internacional. A mudana nos termos refletiu uma concepo intencional. A Declarao Universal dos Direitos Humanos se pauta pela generalidade na atribuio dos direitos e pela abstrao de quaisquer diferenas entre pessoas ou grupos. Em contraposio aos documentos celebrados anteriormente a ela, em que se buscava a proteo de nacionais ou de minorias, a Declarao visou proteo de todos os seres humanos. Conforme anota Rudolf Bystrick(30), a resoluo da ONU A/C3/307 R ev. I/add. 1 apontou, em relao universalidade da Declarao, no haver necessidade de proteo especfica de minorias. De fato, elas sequer foram mencionadas e o argumento usado no justifica a omisso.

Dentre as formas de manifestao da universalidade na Declarao Universal dos Direitos Humanos, Bystrick aponta (i) o sentido pessoal: a Declarao utiliza as expresses toda pessoa, ningum, todos, homens e mulheres, significando, assim, que os direitos humanos devem ser gozados por todos os seres humanos, independente de cidadania ou de domiclio; (ii) a validade sem fronteiras, conforme prev o artigo 2, item 2; (iii) a formulao de apelo no s aos Estados, mas a cada indivduo e a cada rgo da sociedade para a cooperao integral. O autor tcheco observa, porm, haver vrias concepes de mundo e de pessoa e que as noes de direito, justia, democracia, liberdade, etc., so categorias histricas, cujo contedo determinado pelas condies de vida de um povo e por suas circunstncias sociais. medida em que as condies de vida mudam, tambm podem mudar o contedo dessas noes e idias. As idias regentes de uma poca so as idias de sua classe dominante. Entretanto, o mesmo autor adverte que essa abordagem no nega a existncia de ideais, princpios, noes que possuem, ao menos em certa medida, um carter universal e uma espcie de denominador comum em certo perodo histrico(31).

O fato que o prprio termo universalidade possui acepes diversas no tempo e no espao, confundindo-se, no raro, com universalismo.

Riccardo Scartezzini adverte que o carter contraditrio do universalismo gentico, salientando que o universalismo moderno se fundamenta em uma ideologia individualista que defende a autonomia e a liberdade do indivduo, emancipado de crenas e de dependncias coletivas. Em suas palavras, "o universalismo moderno no se conota como promoo universal das totalidades, mas sim de indivduos concretos. Com efeito, diferentemente dos universalismos clssicos e monotestas, o universalismo moderno fomenta o individual, o singular, a diferena."(32) Da que falar-se em universalismo no pode jamais permitir que se tente evocar um modelo de homem universal. Modelos no existem no mundo real, assim como no h um homem padro, uma mulher padro ou a criana padro. Consideraes dessa espcie s se prestam a afastar os princpios e as regras de direitos humanos da realidade, neutralizam alternativas, produzem a irrelevncia das pessoas pelo nivelamento e produzem a desresponsabilizao dos agentes pblicos e dos agentes sociais.

por isso que a universalidade no pode significar uniformidade. A universalidade da Declarao no deve levar ao equvoco, que ainda se v, da desconsiderao das diferenas especficas entre pessoas por razo de gnero, raa, procedncia, credo, etnia, etc. Tratar como igual o que diferente, ou seja, tratar igualmente homens, mulheres, crianas, indgenas, minorias, negros, brancos, produz, de fato, desigualdades muitas vezes severas, que se constituem em violaes de direitos humanos. A proteo maior a tais grupos necessria para a efetividade da Declarao.

Porm, nestes tempos de globalizao, a diferena especfica em razo das marcas culturais vem tomando relevo, sob o temor da pasteurizao cultural. No falamos aqui de aspectos que, sob a falsa proteo da cultura em seu aspecto positivo, significam, em verdade, mecanismos de opresso e desumanizao ideolgica de grupos ou segmentos da populao(33), mas de diferenas entre culturas que, ao invs de atrapalhar, contribuem para esse chamado universalismo dos direitos humanos.

Ressaltando a importncia da cultura para a construo dos direitos humanos, Boaventura de Souza Santos prope uma concepo multicultural de direitos humanos. O autor observa que "concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tendero a operar como localismo globalizado uma forma de globalizao de cima-para-baixo. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalizao de-baixo-para-cima ou contra-hegemnica, os direitos humanos tm de ser reconceptualizados como multiculturais. ... O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana essencialmente diferente e superior restante realidade; o indivduo possui uma dignidade absoluta e irredutvel que tem que ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivduo exige que a sociedade esteja organizada de forma no hierrquica, como soma de indivduos livres."(34)

Tratando dessa questo, Boaventura de Sousa Santos prossegue alertando que contra o universalismo uniformizante deve se proceder a dilogos interculturais sobre preocupaes isomrficas, de forma a se buscar por "valores ou exigncias mximos e no por valores ou exigncias mnimos (quais seriam tais valores mnimos? Os direitos fundamentais? Os menores denominadores comuns?). A advertncia freqentemente ouvida hoje com novos direitos ou com concepes mais exigentes de direitos humanos uma manifestao tardia da reduo do potencial emancipatrio da modernidade ocidental emancipao de baixa intensidade, possibilitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa intensidade como o outro lado de democracia de baixa intensidade."(35)

O estabelecimento de um verdadeiro dilogo intercultural voltado conjuno dos valores mximos de cada cultura ir permitir a construo de um discurso dos direitos humanos hbil a implementar a efetividade da dignidade humana, conferindo contedo material aos direitos previstos na Declarao Universal dos Direitos Humanos. Um dilogo dessa espcie no pode se dar sem a compreenso da cultura do outro como uma cultura de igual valor, nem melhor nem pior. Deve ser, pois, um dilogo permeado pela solidariedade. Assim como so solidrios entre si os direitos humanos, tambm devem ser solidrias as culturas entre si.

*Procuradora do Estado Assistente - rea da Assistncia Judiciria, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de So Paulo, doutoranda em Direito pela USP e Mestra em Direito Econmico pela USP.

**Procurador do Estado na Procuradoria de Assistncia Judiciria, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de So Paulo, Professor de Direitos Humanos na Academia do Barro Branco e mestrando em Direito Constitucional pela PUC-SP.

_________

(1)Estas referncias iniciam o Prembulo da Declarao Universal dos Direitos Humanos.

(2)Ver Sociologa y filosofa del derecho, Madrid, Taurus, 1984, p. 286.

(3)Eric Hobsbawn. "A Revoluo sa", exerto de A Era das Revolues, So Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 19-20.

(4)Ver Louis Henkin, International Law: politics, values and functions - 216 Collected Courses of Hague Academy of International Law 13, v. 4, 1989, p. 208, in Henry J. Steiner e Philip Alston, International human rights in context: law, politics, morals. Oxford, Clarendon Press, 1996, p. 115-116.

(5)Para uma indicao dos tratados e convenes firmados nesse perodo, ver Enrique Ricardo Lewandowski, Proteo dos direitos humanos na ordem interna e internacional, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 78-79.

(6)Flvia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, So Paulo, Max Limonad, 1996, p. 133.

(7)Antonio Truyol y Serra, Los derechos humanos, Madrid, Tecnos, 1977, p. 24.

(8)Op. cit., p. 114.

(9)Vide, a esse respeito, Louis Henkin, cit., p. 115.

(10) Idem, ibidem.

(11)Paolo Mengozzi, Direitos Humanos II, Dicionrio de poltica, org. Norberto Bobbio et alli, 4. ed., Braslia, UnB, 1992, p. 356.

(12)Op. cit., p. 156.

(13)Alguns exemplos de direitos econmicos e sociais previstos na Declarao dos Direitos do Homem de do Cidado de 24 de junho de 1793.

Artigo 5 - Todos os cidados so igualmente issveis aos empregos pblicos. Os povos livres no conhecem outros motivos de preferncia, em

Artigo 17 - No se pode impedir que os cidados se dediquem a qualquer tipo de trabalho, atividade ou comrcio.

Artigo 19 - Qualquer pessoa pode contratar seus servios e seu tempo, mas no pode se vender nem ser vendido; sua pessoa no propriedade alienvel. A lei no ite a escravido; no pode haver mais do que um compromisso de servios e retribuio entre o homem que trabalha e o que lhe d emprego.

Artigo 21 - A beneficncia pblica uma dvida sagrada. A sociedade deve assegurar a subsistncia aos cidados menos favorecidos, seja proporcionando-lhes trabalho, seja garantindo-lhes os meios de existncia aos que esto incapacitados para trabalhar.

Artigo 22 - A instruo uma necessidade para todos. A sociedade deve favorecer com todo seu poder os progressos da razo pblica e colocar a instruo ao alcance de todos os cidados.

Nota: Para o inteiro teor da Declarao, ver Mara Jos Aon Roig et alli, Derechos humanos - textos y casos prcticos, Valencia, Tirant lo Blanch, 1996, p. 25-28.

(14)Em 1795, instalado o Terror de direita, foi implantada outra Constituio, que suprimiu os direitos econmicos e sociais de 1793.

(15)Ver Curso de Direito constitucional positivo, 9. ed. revista, 4 tiragem, So Paulo, Malheiros, 1994, p. 146.

(16)Ver A reconstruo dos direitos humanos - um dilogo com o pensamento de Hannah Arendt, So Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 134. Pode-se afirmar, como esclarecimento que entendemos a comunidade poltica como no adstrita simplesmente aos limites territoriais dos Estados. A justaposio indevida entre Estado e comunidade poltica atualmente destituda de consistncia material. Nestes tempos em que o capital globalizado e graa sem regras, considerar os direitos como locais ou nacionais significa permitir a violao de todo o conjunto de direitos humanos.

(17) Op. cit., p. 166.

(18)Cf. "Pessoa, sociedade e histria", em Pluralismo e liberdade, So Paulo, Saraiva, 1963, p. 71.

(19)Ver Os direitos humanos como tema global, So Paulo, Perspectivas, 1994, p. 45, Srie Estudos.

(20)Ver "Uma concepo multicultural de direitos humanos", em Lua Nova - Revista de Cultura e Poltica, CEDEC, n. 39, p. 105, 1997.

(21)Cf. Verbete Direitos Humanos, Dicionrio de Poltica, cit., p. 355.

(22)Este entendimento deflui no somente da Declarao Universal, mas especialmente da Constituio Federal que, no seu artigo 3, institui como objetivos fundamentais da Repblica (I) a construo de uma sociedade livre, justa e solidria, (II) garantir o desenvolvimento nacional, (III) a erradicao (e no simplesmente reduo) da pobreza, da marginalizao e reduo das desigualdades sociais e regionais e (IV) a promoo do bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao. Constituindo objetivos da Repblica, todas as aes do Estado e da sociedade devem estar voltadas direta ou indiretamente consecuo material destes fins e no de modo meramente formal, para todos, e no somente para alguns grupos.

(23)Sobre os conceitos e conceitos jurdicos indeterminados, ver Eros Roberto Grau, Direito, conceito e normas jurdicas, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1988, p. 55-84, especialmente p. 72 e ss. Genaro Carri, em suas Notas sobre derecho y lenguaje, 4. ed. corrigida e aumentada, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1965 (1990), alerta que "Es corriente presuponer que los criterios que presiden el uso de las palabras que empleamos para hablar acerca de la realidad estn totalmente determinados. Pero eso no s ms que una ilusin. Si se nos pide que hagamos explcito el criterio de aplicacin de una palabra podemos indicar un cierto nmero de caractersticas, o propiedades definitorias, y creer que todas las otras propiedades posibles no incluidas entre aquellas estn, por ello, excluidas como no relevantes. Esta creencia es equivocada. Slo pueden ser excluidas como irrelevantes las propiedades o caractersitcas posibles que han sido consideradas, pero no las que no lo han sido. Estas ltimas no estn excluidas; cuando se presenta un caso en el que aparece una o ms de ellas es perfectamente legtimo que sintamos dudas que no puedem ser eliminadas por un proceso de pura deduccin a partir del significado corriente de la palabra. El uso puede estar, a esse respecto, totalmente "abierto". Es decir, no decidido o, en otros trminos, dispuesto a itir extensiones o reducciones." (grifo nosso). Quer-se salientar com esta lio de Genaro Carri que a textura aberta da linguagem no permite que, de antemo ou por pura deduo, sejam determinados sentidos excludos quando de sua aplicao.

(24)Jos Eduardo Faria ( O modelo liberal de direito e Estado. In: Direito e justia,: funo social do judicirio, So Paulo, tica, 1989, p. 20-21) observa a esse respeito que "graas alta carga emotiva dessas palavras, como liberdade e igualdade, elas permitem a defesa de valores abstratos por aqueles que as invocam - o que explica a razo pela qual o liberalismo jurdico-poltico, partindo da noo de liberdade formal, se converte num eficiente recurso retrico de que se vale uma dada classe para, num dado momento da histria, agir hegemonicamente numa dada formao social. Ao mascarar a presena de significados emotivos pela aparncia de contedos informativos, esses expedientes retricos abrem caminho para a conquista de unanimidade de um conjunto de atitudes, hbitos e procedimentos. Ou seja: produzem reaes de aprovao/desaprovao e amor/dio, no propriamente por meio de indagaes sobre a realidade, mas por meio de predeterminaes ideolgicas disfaradas como dados inquestionveis sobre o mundo. A fora operativa desses expedientes retricos que faz, do liberalismo jurdico-poltico e de sua nfase noo de liberdade tutelada pela lei, um dos mais importantes esteretipos polticos do mundo moderno e contemporneo. Vinculado aos conflitos de interesse e luta pelo poder, o esteretipo poltico um termo que as aparncias descritivas envolvem, manipulam e escondem emoes, permitindo aos governantes conquistar a adeso dos governados aos valores prevalecentes pela fora mgica dos elementos significantes, em detrimento das significaes. As expresses estereotipadas na linguagem poltica cumprem, assim, um papel decisivo na reproduo das formas de poder - e nesse sentido que o esteretipo liberalismo, produzindo o efeito de distanciamento e o conseqente espao ideolgico no qual o Estado moderno monopoliza a produo do direito e manipula os instrumentos normativos e polticos necessrios manuteno de um padro especfico de dominao, provoca uma alienao cognoscitiva entre "cidados" formalmente "iguais": afinal, ao serem levados a acreditar na possibilidade de uma ordem legal equilibrada e harmoniosa, na qual os conflitos socio-econmicos so mascarados e "resolvidos" pela fora retrica das normas que regulam e decidem os conflitos jurdicos, tais "cidados" tornam-se incapazes de compreender e dominar as estruturas sociais em que eles, enquanto indivduos historicamente situados, esto inseridos".

(25)Patricia Helena Massa, Algumas observaes sobre direito ambiental e mercado, Dissertao de Mestrado, FD-USP, 1995.

(26)Op. cit., p. 110.

(27)Ver "Marx, a tradio liberal e a construo histrica do conceito universal de homem" em Educao e Sociedade, Revista Quadrimestral de Cincia da Educao - CEDES, n. 57, Campinas, 1996, p. 687.

(28)Adotada pela Resoluo n. 41/128, da Assemblia Geral das naes Unidas, de 4 de dezembro de 1986. Vide, para o texto integral, Instrumentos internacionais de proteo dos direitos humanos, Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado - Srie Documentos, n. 14, dez. 1996, p. 55-60.

(29)Adotada consensualmente, em plenrio, pela conferncia Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de junho de 1993. Vide Instrumentos ..., cit., p. 61-99.

(30)Ver The universality of human rights in a world of conflicting ideologies, p. 84.

(31)Op. cit., p. 84-88.

(32)Ver "Las razones de la universalidad y las de la diferencia" em Universalidad y diferencia, Salvador Giner e Ricardo Scartezzini (eds.), Madrid, Alianza Universidad, 1996, p. 24.

(33)A mutilao genital feminina praticada por muulmanos e, em especial por cristos coptas em boa parte da frica, o exemplo limite, sempre citado. Mas, tambm, o tratamento outorgado a delinqentes e a presos em nosso pas e em muitos outros pases se deve, igualmente, a razes culturais, no sendo nem mais nem menos defensvel do que o primeiro exemplo. Como bem aponta J. A. Lindgren Alves, "a violao deliberada de direitos humanos, do ponto de vista dos perpetradores, freqentemente se d, em toda e qualquer cultura, a partir de uma postura coletiva, mais ou menos assumida, que denega a humanidade da vtima." (cf. A fotografia de um conceito, Boletim Juzes para a Democracia, v. 4, n. 13, p. 10, jun./jul. 1998).

(34)Op. cit., p. 112.

(35)Cit., p. 114.

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