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Uma
crtica individualista aos direitos sociais: o caso da Declarao
Universal dos Direitos Humanos (D.U.D.H.)*
Alguns excntricos tentam evitar envolver-se em hierarquias...
L.
Peter e R. Hull, O Princpio
de Peter, Ed. Futura, Lx. 1973, p. 26
Para
o liberalismo clssico, os direitos so sempre dos
indivduos e nunca das
colectividades. Considerar qualquer colectividade (nao, etnia,
igreja, cl, famlia, empresa, clube, partido, sindicato, etc.)
sujeito de direitos implica sujeitar-lhes os indivduos e os seus
direitos. Os direitos das colectividades s podem emanar dos indivduos,
pelo que elas s podero ser consideradas, a esta luz, realidades
voluntrias: isto , colectividades a que os indivduos aderem, no
uso de uma liberdade juridicamente inalienvel. Da o conflito insanvel,
para a tradio liberal clssica, entre os direitos
individuais que pretende preservar e os chamados direitos
sociais que, sob a influncia das correntes radicais, socialistas
e conservadoras, se foram com eles confundindo.
A
D.U.D.H. consagra, nos seus vinte primeiros artigos, as garantias da
liberdade individual, tal como se foram definindo desde a Declarao
de Direitos inglesa de 1689 (embora no explicite, como esta, um
princpio to fundamental como o habeas
corpus e que dizer da omisso de outro princpio de 1689,
depois tornado no leitmotiv
da rebelio Americana de 1776, o de no
taxation without representation?). Mas o estabelecimento, logo no
artigo 1., do dever dos indivduos agirem em esprito de
fraternidade j uma cedncia retrica da fraternidade
laica da Revoluo sa na sua verso radical de 1793 e
atravs da qual em geral se intrometem os argumentos a favor dos
direitos da comunidade sobre o indivduo. O artigo 15.
garante o direito nacionalidade, no que parece um excesso de
identificao da liberdade com a ideia de Estado-nao, outra
herana prpria da Revoluo sa mas que muito discutvel
advogar o direito mudana de nacionalidade importante mas no
suficiente: o direito de gozar de garantias fora do quadro de uma
nacionalidade politicamente organizada tambm deveria ser assegurado.
O artigo 17. fala no direito da pessoa propriedade
colectiva, o que uma contradio obvia e uma cedncia ao
comunismo triunfante em 1948 (-se sempre individualmente
proprietrio daquilo que se tem ou usufrui, mesmo que seja uma parte
de algo que tambm, em parte, propriedade de outrm).
Depois,
o artigo 21. comea a pecar por linguagem de significao
duvidosa, com expresses como a vontade do povo o fundamento da
autoridade dos poderes pblicos, sem que se defina o que o povo
ou os poderes pblicos. No
aceitvel este exclusivismo democrtico ou eleitoralista que se
pretende sugerir na gesto das formas de autoridade e muito menos
introduzir o princpio da legitimidade da autoridade se esta puder
reclamar uma origem democrtica ou popular. So preferveis
enunciados de princpios que limitem ou neutralizem o poder das
autoridades, qualquer que seja a sua natureza. Alm disso, o poder
judicial um poder pblico
e muitos resistiro ideia de que, para serem legtimos, os juizes
tenham de ser eleitos (o mesmo extensvel aos monarcas hereditrios,
cuja existncia per se no
atenta contra a liberdade individual de ningum).
O
artigo 22. garante o direito segurana social mas esta no
(como provavelmente no poderia ser) definida, por uma razo
simples: em 1948, tal como hoje, no h acordo sobre o que deve ser
um sistema de segurana social, que parte deve caber nele ao Estado,
que benefcios deve cobrir e para quem, ou sequer se a maioria dos
indivduos realmente ganha alguma coisa com esses sistemas. H, no mnimo,
razes fundadas para se pensar que esses sistemas tm legitimado
(tal como o mito do ensino gratuito) uma crescente apropriao
pelos governos da riqueza produzida sem que seja obvio que a gesto
resultante dos recursos disponveis seja mais eficiente e responsvel
por melhorias de benefcios. O artigo 23. confunde o direito
escolha do trabalho (isto , no fundo, o direito a no ser obrigado
a fazer algo que no resulte do respeito da igual liberdade dos
outros enformada nas regras recprocas de justa conduta ou em
contratos livremente aceites pelo prprio) com o demaggico
direito ao trabalho dos socialistas do sculo XIX (e isto
mais uma obvia cedncia ideolgica historicamente compreensvel
mas no aceitvel). O princpio de salrio igual por trabalho
igual, no mesmo artigo, pressupe a negao da diversidade de
talentos e capacidades humanas e da mais elementar liberdade
contratual (Hayek escreveu, a este propsito, que numa sociedade
livre ningum pode esperar ser remunerado em virtude das suas
habilitaes mas s do uso e utilidade que lhes souber dar).
muito curioso que este artigo 23. garanta o direito de fundar com
outras pessoas sindicatos mas no o de fundar uma empresa ou
fazer negcio (com outras pessoas). Sobre o prprio conceito de
trabalho que transpira da Declarao muito haveria a dizer:
trata-se de um conceito muito oitocentista, ligado essencialmente
ideia de trabalho nico e assalariado e que pouco ou nada diz
respeito a outras realidades importantes como o auto emprego, o
trabalho livre ou a pluralidade de ocupaes no mesmo indivduo.
Os
artigos 24., 25. e 26. garantem a proteco de outros
direitos deste gnero, que no so resultado da aplicao
universal de regras recprocas de justa conduta entre os indivduos
mas tm de implicar uma aco colectiva que pretenda atingir os
fins enunciados, pressupondo-se que os mesmos indivduos poderiam
depois reclamar das autoridades
pblicas incumbidas da prossecuo desses fins (os governos?) a
respectiva quota parte dos benefcios consagrados na Declarao;
mas esta nada diz sobre os meios de efectivar tal reclamao (de
obrigar as autoridades pblicas
a cumpri-los), porque s a tentativa de os ar a escrito mostraria
o pantanoso terreno em que se movem os proponentes de tais
direitos. Esses outros direitos so o repouso e os
lazeres, a limitao razovel da durao do trabalho e as frias
pagas, um nvel de vida suficiente para lhe assegurar e sua
famlia a sade e bem-estar, a segurana no desemprego, na doena,
na invalidez, na viuvez, a ajuda e assistncia especiais
maternidade e infncia (25.), a educao elementar gratuita, a
generalizao do ensino tcnico e profissional, o o ao ensino
superior em funo do mrito de cada um, a pertena prioritria
aos pais da escolha do gnero de educao a dar aos filhos (26.).
Ora,
a aceitao da validade destes direitos (normalmente chamados
sociais), alm de significar o abandono de uma concepo de
sociedade em que cada um vive por sua conta e constri livremente o
seu percurso (associando-se apenas a outros voluntariamente,
no emprego, no matrimnio, etc.) a favor de outra em que cada um
participa numa gesto comum de quase tudo, implica ar-se do
universo jurdico das regras
recprocas de justa conduta entre os indivduos para o universo
poltico das regras de aco
colectiva. Esta agem que problemtica, pelo menos para
aqueles que se revem na tradio do liberalismo clssico e que
esto essencialmente preocupados com a limitao do poder e das
formas de aco colectiva
a favor da esfera de liberdade de conscincia e aco de cada
pessoa.
O
ponto 2 do artigo 26. e os artigos 27. e 28. tm uma redaco
muito vaga, resultando num mero enunciado mais de ideais que de princpios
objectivveis. O artigo 29., de uma forma tambm pouco clara,
proclama os direitos da comunidade sobre o indivduo, dizendo que
fora da primeira os segundos no poderiam desenvolver a sua
personalidade; mas, para uma carta de direitos, o facto central
deveria ser que a comunidade em geral que limita e tem
limitado esse desenvolvimento da personalidade e, se assim no fosse,
a prpria ideia de uma declarao de direitos no teria sentido
(isto tanto mais preocupante quanto se parece itir, em linguagem
equvoca no ponto 2 deste artigo, limitaes ao exerccio dos
direitos individuais em nome de justas exigncias da moral ou da
ordem pblica).
Lus
Aguiar Santos