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Declarao Universal dos Direitos Humanos: Um cinqentenrio luz da globalizao econmica 1i4e6y

Jos Eduardo Faria

O trao mais caracterstico da Declarao Universal dos Direitos do Homem, em seu cinqentenrio, a incongruncia entre o teor de seus dispositivos e as condies socioeconmicas para sua plena aplicao. Ao ser proclamada pela Assemblia-Geral das Naes Unidas, em 1948, regras como as de liberdade de participao poltica, representao democrtica e o direito de cada homem ao trabalho, a um salrio mnimo e proteo do emprego eram consideradas um objetivo moral a ser perseguido. Meio sculo depois, o que era tido como condio de legitimidade da ordem social e institucional a a ser apontado como obstculo ao livre funcionamento do mercado, como entrave produtividade e como freio competitividade dos agentes econmicos.

O que ocorreu ao longo destes 50 anos? Por que as redes sociais de proteo, to valorizadas entre os anos 50 e 70 por governos empenhados em consagrar os propsitos da Declarao Universal dos Direitos do Homem, cederam lugar privatizao dos mecanismos de previdncia? Por que a idia de justia social viabilizada por instrumentos fiscais foi substituda pela condenao sistemtica dos tributos progressivos? Por que os direitos sociais deixaram de ser obrigao pblica para se transformar em negcio privado? Por que os gastos sociais, considerados vitais para a correo de desigualdades e a promoo do bem-estar, deram vez a um discurso canonizador do equilbrio oramentrio, do "saneamento" das finanas pblicas? Por que as diferentes formas de proteo ao trabalho foram submetidas a um processo de desconstitucionalizao, deslegalizao e flexibilizao?

Quando a Declarao Universal dos Direitos do Homem foi proclamada, o crescimento da produo, o pleno emprego e a difuso de benefcios por meio do Estado estavam na ordem do dia da agenda poltica de todos os pases desenvolvidos e de muitos pases em desenvolvimento. Meio sculo depois, os valores subjacentes transnacionalizao dos mercados e do sistema financeiro, como a acumulao irrestrita, a abertura comercial, a livre circulao de capitais e a nfase em ganhos ilimitados de produtividade, converteram-se em imperativos categricos. Nesse cenrio, como ficam a democracia e os direitos polticos? Sua efetividade est aumentando ou, pelo contrrio, vem sendo reduzida? Justificada em nome de "reformas istrativas", a desconstitucionalizao de vrios direitos na prtica no acarreta uma reduo da cidadania, um dos pilares da prpria idia de "declarao de direitos fundamentais"? A representao eleitoral se converte em poder concreto? Os mecanismos de controle poltico mantm sua jurisdio ou a esto vendo ser progressivamente reduzida? As instituies jurdicas encarregadas de processar, neutralizar e decidir conflitos, como os tribunais e o Ministrio Pblico, tm condies de manter intocadas suas prerrogativas, suas competncias funcionais, sua independncia e seu campo de atuao?

O objetivo deste trabalho no responder a cada uma dessas indagaes. Ele bem mais modesto e, situando-se num plano jus-sociolgico, visa mapear o terreno da discusso relativa ao descomo entre o teor dos dispositivos da Declarao Universal dos Direitos do Homem e as condies socioeconmicas para sua efetiva aplicao. O ponto de partida o impacto desagregador da transnacionalizao dos mercados sobre as estruturas institucionais contemporneas e sobre o tipo de ordem jurdica forjado pelos Estados-nao com base nos princpios da soberania e da territorialidade, princpios esses subjacentes Declarao Universal dos Direitos do Homem e presentes no contexto poltico da poca de sua proclamao. Se hoje as decises econmicas fundamentais - como, por exemplo, as relativas a moeda, cmbio, juros, pesquisa e desenvolvimento tecnolgico, produo industrial e comercializao - cada vez mais tendem a ser tomadas no mbito de organismos multilaterais, conglomerados multinacionais, bancos, fundos de investimento, fundos de penso e companhias seguradoras com atuao mundial, de que modo control-las por meio de mecanismos cujo alcance basicamente circunscrito s fronteiras geogrficas de cada pas?

No cinqentenrio da Declarao Universal dos Direitos Humanos, a globalizao econmica - e este apenas um juzo de fato, no de valor est substituindo a poltica pelo mercado, como instncia privilegiada de regulao social. Por tornar os capitais financeiros muitas vezes imunes a fiscalizaes governamentais, fragmentar as atividades produtivas em distintas naes, regies e continentes e reduzir as sociedades a meros conjuntos de grupos e mercados unidos em rede, esse fenmeno vem esvaziando parte dos instrumentos de controle dos atores nacionais. medida que o processo decisrio foi sendo transnacionalizado, as decises polticas tornaram-se crescentemente condicionadas por equilbrios macroeconmicos que aram a representar, mais do que um simples indicador, um efetivo princpio normativo responsvel pelo estabelecimento de determinados limites s intervenes reguladoras e disciplinadoras dos governos. Sua autonomia decisria, como conseqncia, tornou-se progressivamente vulnervel a opes feitas em outros lugares, sobre as quais dirigentes, legisladores, parlamentares, magistrados e promotores tm reduzida capacidade de presso e influncia. Acima de tudo, ao gerar formas de poder novas, autnomas e desterritorializadas, a transnacionalizao dos mercados debilitou o carter essencial da soberania, fundado na presuno superiorem non recognoscens, e ps em xeque tanto a centralidade quanto a exclusividade das estruturas jurdico-polticas do Estado-nao.

No difcil verificar como isso vem ocorrendo. Diante do policentrismo que hoje caracteriza a economia globalizada, o Direito Positivo e suas instituies perdem uma parte significativa de sua jurisdio. Como foram concebidos para atuar dentro de limites territoriais precisos, com base nos instrumentos de violncia monopolizados pelo Estado-nao, seu alcance ou seu universo tende a diminuir na mesma proporo em que as barreiras geogrficas vo sendo superadas pela expanso da microeletrnica, da informtica, das telecomunicaes e dos transportes. E quanto maior a velocidade desse processo, mais os tribunais e o Ministrio Pblico am a ser atravessados pelas justias emergentes, quer nos espaos infra-estatais (os locais, por exemplo), quer nos espaos supra-estatais. Os espaos infra-estatais esto sendo polarizados por formas "inoficiais" ou no-oficiais de resoluo dos conflitos - como usos, costumes, diferentes estratgias de mediao, negociao e conciliao, autocomposio de interesses e auto-resoluo de divergncias, arbitragens privadas ou mesmo a imposio da lei do mais forte nos guetos inexpugnveis controlados pelo crime organizado e pelo narcotrfico (constituindo assim uma espcie de "Direito marginal").

J os espaos supra-estatais tm sido polarizados pelos mais diversos organismos multilaterais (Banco Mundial, Fundo Monetrio Internacional, Organizao Mundial do Comrcio etc.), por conglomerados empresariais, por instituies financeiras, por entidades no-governamentais e por movimentos representativos de uma sociedade civil supranacional. Alm disso, a ordem jurdica do Estado-nao enfrenta outra enorme limitao estrutural. Suas normas padronizadoras, editadas com base nos conhecidos princpios da impessoalidade, da generalidade e da abstrao e tradicionalmente organizadas sob a forma de um sistema lgico-formal fechado e hierarquizado, so singelas demais para disciplinar aes crescentemente complexas. Elas no conseguem atingir, de maneira lgica, uma pluralidade de situaes sociais, econmicas, polticas e culturais cada vez mais diferenciadas. Revelam-se igualmente incapazes de regular e disciplinar, guardando coerncia sistmica, fatos multifacetados e heterogneos. Organizadas sob a forma de um cdigo rigidamente binrio (permitido/proibido, legal/ilegal e constitucional/inconstitucional), essas normas padronizadoras se revelam ineficazes na regulamentao e tratamento de casos muito especficos e singulares (WILLKE, 1986; e TEUBNER, 1996).

Como o Estado no pode deixar muitas dessas aes, fatos, situaes e casos sem algum tipo de controle, v-se obrigado a editar normas ad hoc para casos altamente especializados. E quanto maior sua produo normativa nessa linha, mais seu Direito Positivo perde organicidade e racionalidade sistmica, dada sua pretenso de abarcar uma intrincada e por vezes contraditria pluralidade de interesses e comportamentos altamente particularsticos.

Mas no s. Viabilizada pela substituio das rgidas plantas industriais de carter fordista por plantas mais leves, enxutas e flexveis, a fragmentao das atividades produtivas d aos conglomerados transnacionais um extraordinrio poder para barganhar e decidir a localizao de suas unidades fabris. Dados do Centro de Estudos e Pesquisas sobre as Empresas Multinacionais da Universidade de Paris - (Nanterre) informam que, no incio da dcada de 80, os 886 maiores conglomerados transnacionais j controlavam 76% da produo manufatureira mundial (LATOUCHE, 1996. p. 102). Para definir os locais de instalao de suas plantas industriais, eles tendem a exigir dos poderes pblicos isenes fiscais, subsdios, crditos favorecidos, infra-estrutura bsica a custo zero e alteraes drsticas nas legislaes previdenciria e trabalhista. E, lutando para atra-las, com a finalidade de alargar seu mercado de trabalho, cidades, naes e regies, muitas vezes entram numa competio predadora e selvagem. Na medida em que essa competio leva o poder pblico a se indiferenciar ou confundir com o poder dos grupos empresariais, tal o nmero de concesses que obrigado a fazer, o resultado acaba sendo a negao da "frmula smithiana da riqueza das naes". Isso porque no mais o Estado que decide as taxas e os impostos a serem cobrados, mas, pelo contrrio, os conglomerados que escolhem onde e quanto iro pag-los (CALGANO et alli, 1993. p. 49-50 e 65). No o Estado que impe sua ordem jurdica sobre esses conglomerados (e isso ser fatal para a efetividade dos direitos humanos); so eles que, podendo concentrar suas linhas de produo nos pases que oferecerem as melhores contrapartidas para seus investimentos, acabam selecionando as legislaes nacionais a que iro se submeter.

Essa fragmentao geoespacial das atividades produtivas vem tornando possvel uma ampliao sem precedentes do comrcio intrafirmas (PETRELLA,1996), com importantes conseqncias para as engrenagens jurdicas do Estado-nao. Hoje, pelo menos 1/3 das atividades e negcios das 37 mil empresas transnacionais que atuam na economia globalizada, por meio de 200 mil filiais e subsidirias, realizado entre elas prprias. Essa expanso do comrcio intrafirmas abre caminho para a ruptura da centralidade e exclusividade do Direito Positivo nacional. Editado sob a forma de uma ordem jurdica postulada como lgica, coerente e livre de ambigidades ou antinomias, esse Direito desafiado por regras e procedimentos normativos espontaneamente forjados no sistema econmico. So Direitos autnomos, com normas, lgicas e processos prprios, entreabrindo a coexistncia (por vezes sincrnica, por vezes conflitante) de diferentes normatividades; mais precisamente, de um pluralismo jurdico de natureza infra-estatal ou supra-estatal (SANTOS, 1995). esse o caso, por exemplo, da lex mercatoria, o corpo autnomo de prticas, regras e princpios constitudos pela comunidade empresarial transnacional para autodisciplinar suas relaes. esse, tambm, o caso do "Direito da produo", o conjunto de normas tcnicas formuladas, entre outros objetivos, para atender s exigncias de padres mnimos de qualidade e segurana dos bens e servios em circulao no mercado transnacionalizado, de especificao de seus componentes, da origem de suas matrias primas etc.

O resultado desse pluralismo jurdico, como est ilustrado pelo quadro anexo no final deste artigo, acaba levando, no plano infra-estatal, ao advento de justias profissionais (especializadas em conciliao e arbitragem) e no-profissionais (as comunitrias, por exemplo), ambas operadas basicamente com critrios de racionalidade material e circunscrevendo sua atuao a conflitos intragrupos, intracomunidade e intraclasses. E, no plano supra-estatal, propiciando a proliferao de foros descentralizados de negociao (como a Chambre International du Commerce e a Camera di Commercio, Industria, Artigianato e Agricoltura di Milano) e a multiplicao de rgos tcnico-normativos (como a International Organization for Standardization e o ing Standards Committee). (GESSNER, 1995; e OLGIATI, 1997). Criados especialmente para fixar parmetros de qualidade, estabelecer padres de segurana, homologar pesquisas, dar pareceres e tambm promover arbitragens, esses foros de negociao e arbitragem e esses rgos tcnico-normativos tendem, na maioria absoluta dos casos, a oferecer processos de resoluo dos conflitos muito mais rpidos, baratos e eficientes do que os judiciais.

Diante da integrao dos sistemas produtivo e financeiro em escala mundial, do enfraquecimento do poder de controle e interveno sobre fluxos internacionais de capitais pelos bancos centrais e da crescente autonomia de setores econmicos funcionalmente diferenciados e especializados, com suas racionalidades especficas e muitas vezes incompatveis entre si, levando ampliao do pluralismo de ordens normativas, o Estado-nao encontra-se num ime. Por um lado, ele j no consegue mais disciplinar e regular sua sociedade e sua economia exclusivamente por meio de seus instrumentos jurdicos tradicionais. Com as intrincadas tramas e entrelaamentos promovidos pelos diferentes setores econmicos, no mbito dos mercados transnacionalizados, seu ordenamento jurdico e suas instituies judiciais tm um alcance cada vez mais reduzido e uma operacionalidade cada vez mais limitada. Por outro lado, sem condies de assegurar uma eficaz regulao direta e centralizadora das situaes sociais e econmicas, pressionado pela multiplicao das fontes materiais de Direito, perdendo progressivamente o controle da racionalidade sistmica de seus cdigos e leis ao substituir as tradicionais normas abstratas, genricas e impessoais por normas particularizantes, especficas e "finalsticas" e tendo seu ordenamento submetido a uma competio com outros ordenamentos, o Estado-nao atinge os limites fticos de sua soberania. Isso fica particularmente evidente quando constrangido a negociar com foras econmicas que transcendem o nvel nacional, condicionando seus investimentos aceitao de seus valores, regras, procedimentos e de seus mecanismos particulares de resoluo de conflitos.

Essa soberania compulsoriamente partilhada, sob pena de acabar ficando margem da economia globalizada, tem obrigado o Estado-nao a rever sua poltica legislativa, reformular a estrutura de seu Direito Positivo e redimensionar a jurisdio de suas instituies judiciais mediante amplas e ambiciosas estratgias de desregulamentao, deslegalizao e desconstitucionalizao de direitos sociais, implementadas paralelamente promoo da ruptura dos monoplios pblicos. A noo dessa estratgia justificada, entre outros fatores, por uma espcie de clculo de custo/benefcio feita pelos dirigentes e pelos legisladores. Sem ter como ampliar a complexidade de seu ordenamento jurdico e de seu aparato judicial em nvel equivalente de complexidade e diferenciao funcional dos diferentes sistemas socioeconmicos, eles am a agir pragmaticamente. Afinal, se quanto mais tentam disciplinar e intervir, menos conseguem ser eficazes, obter resultados satisfatrios, manter a coerncia lgica e assegurar a organicidade de seu Direito Positivo, no lhes resta outro caminho para preservar sua autoridade funcional: quanto menos procurarem disciplinar e intervir, menor ser o risco de acabarem desmoralizados pela inefetividade de seu instrumental regulatrio e de seus mecanismos de controle.

A conseqncia desse processo de desregulamentao, deslegalizao e desconstitucionalizao, longe de conduzir a um vazio jurdico, abre caminho para uma intrincada articulao de sistemas e subsistemas socioeconmicos internos e externos, nos planos micro e macro. Uma parte significativa do Direito Positivo do Estado-nao, por exemplo, hoje vem sendo internacionalizada pela expanso da lex mercatoria e do "Direito da produo" e por suas relaes com as normas emanadas dos organismos multilaterais (SANTOS, 1995). Uma outra parte, por sua vez, vem sendo minada pela fora constitutiva de situaes criadas pelos detentores do poder econmico; e, como conseqncia, est sendo substituda pelo veloz crescimento do nmero de normas privadas, no plano infranacional, na medida em que cada corporao empresarial tende a criar as regras de que precisa e a jurisdicizar suas respectivas reas e espaos de atuao segundo suas convenincias. A desregulamentao e a deslegalizao em nvel de Estado significam, dessa maneira, a "re-regulamentao" e a relegalizao em nvel dos prprios sistemas socioeconmicos (SANTOS, 1995); mais precisamente, em nvel das organizaes privadas capazes de efetuar investimentos produtivos, oferecer empregos, gerar receita tributria, impor comportamentos etc.

No contexto socioeconmico do cinqentenrio da Declarao Universal dos Direitos do Homem, o que resta do Direito Positivo forjado pelo Estado-nao, com base no dogma da completude, no princpio da coerncia, no postulado da inexistncia de lacunas e antinomias e nos primados da previsibilidade, da certeza e da segurana? Depois dos processos de "publicizao do Direito privado" e "istrativizao do Direito pblico", ocorridos no mbito do Welfare State entre os anos 40 e 70, o que se tem a partir da dcada de 80 um ordenamento jurdico sem centralidade e exclusividade (TEUBNER, 1987); dito de outro modo, um ordenamento constitudo como mais um sistema normativo, entre vrios outros igualmente vlidos; e, o que mais importante, um ordenamento que se destaca por sua legislao "descodificada". Em linhas gerais, essa legislao formada por normas pragmticas, de comportamento e de organizao que, intercruzando-se continuamente, terminam produzindo inmeros microssistemas e distintas cadeias normativas no mbito do ordenamento jurdico estatal. Assumindo assim a forma de redes, esses microssistemas legais e essas cadeias normativas se caracterizam pela extrema multiplicidade e heterogeneidade de suas regras; pela flagrante provisoriedade e mutabilidade de suas engrenagens normativas; pelo acolhimento de uma pluralidade de pretenses contraditrias e muitas vezes excludentes. Num ordenamento com tais caractersticas, por isso mesmo, a idia de "interesses gerais e universais" j no consegue mais exercer o papel de "princpio totalizador" destinado a compor, integrar e harmonizar os distintos interesses especficos. Ela pode at continuar preservada retoricamente nos textos legais, sobrevivendo aos processos de deslegalizao e desconstitucionalizao, mas no tem mais o mesmo peso simblico e funcional detido poca do advento do Estado constitucional, da democracia representativa e das declaraes de direitos.

luz de todas essas mudanas, as perguntas formuladas no incio deste trabalho, relativas efetividade dos direitos humanos, encontram respostas algo cticas. Se, historicamente, os direitos humanos nasceram "contra" o Estado, ou seja, como forma de coibir a interferncia arbitrria do poder pblico na esfera individual, o que pode acontecer com eles agora que o Estado-nao entra em reflexo com a transnacionalizao dos mercados? Se os direitos humanos so inseparveis de garantias fundamentais e se estas somente podem ser instrumentalizadas por meio do prprio poder pblico, como se depreende da leitura de praticamente todas as declaraes de direitos fundamentais, inclusive a de 1948, de que modo podem ser eles eficazes no momento em que esse mesmo poder relativizado pelo fenmeno da globalizao? Com a democracia, as indagaes no so diferentes. Qual seu alcance, num perodo histrico em que a poltica perde para o mercado seu papel como instncia privilegiada de deliberao e deciso? De que modo os vencedores no mbito de eleies democrticas podem realizar as promessas feitas em sua campanha aos eleitores, principalmente em matria de controle dos fluxos de capitais e garantias mnimas aos trabalhadores, uma vez que o alcance de suas medidas legislativas ou executivas circunscrito ao espao territorial do Estado-nao? Em que medida a transnacionalizao dos mercados e a desterritorializao das decises no minam o significado do voto e da representao popular? Se certo que a esfera da poltica vem sendo esvaziada pela esfera da economia e que esta, por sua vez, vem sendo cada vez menos determinada pelos Estados e cada vez mais condicionada pelos conglomerados transnacionais, sem nenhum compromisso com o ambiente em que atuam, a quem cobrar responsabilidades? Que tipo de direito "fundamental" pode ser invocado e que tribunal pode ser acionado?

Institucionalizada a partir das lutas anti-absolutistas, no sculo XVIII, e da expanso dos movimentos codificados, no sculo XIX, a democracia representativa, como sabido, foi construda e consolidada ao longo de um processo histrico marcado pelo reconhecimento de trs geraes de direitos humanos, todas sintetizadas na Declarao de 1948: os relativos cidadania civil e poltica, que se destacam pelo direito s liberdades de locomoo, pensamento, voto, iniciativa, propriedade e disposio da vontade; os relativos cidadania social e econmica, que se destacam pelo direito educao, sade, segurana social e ao bem-estar tanto individual quanto coletivo, concedidos s classes trabalhadoras; e, por fim, os relativos cidadania "ps-material", que se destacam pelo direito qualidade de vida, a um meio ambiente saudvel, tutela dos interesses difusos e ao reconhecimento da diferena, da singularidade e da subjetividade (BENDIX, 1977; FERRY e RANAULT, 1985; CAPELLA, 1993; e SANTOS, 1995). Todas essas trs geraes de direitos humanos gravitam, em maior ou menor grau, em torno do Estado. A primeira o enquadra por meio da promulgao de uma ordem constitucional garantidora dos direitos individuais e das liberdades pblicas; j a segunda requer sua atuao eficaz na regulao dos mercados, na implementao de polticas distributivas e na promoo de transferncias de renda no mbito da sociedade; a terceira, por sua vez, pressupe o fortalecimento dos poderes das instituies encarregadas de assegurar a proteo dos interesses "ps-materiais", como o caso dos tribunais e o Ministrio Pblico.

A cada nova gerao dos direitos humanos, conforme se v, um dos poderes do Estado-nao - respectivamente, o Legislativo, o Executivo e o aparato judicial, incluindo-se a o Ministrio Pblico - afirmado, destacado e enfatizado. Com o fenmeno da globalizao, no entanto, como j se viu, todos eles so funcionalmente esvaziados ou relativizados. Por isso, as trs geraes de direitos humanos acabam enfrentando problemas para serem efetivadas. Seus valores bsicos - liberdades pblicas, igualdade substantiva e afirmao dos interesses "ps-materiais" - colidem frontalmente com os imperativos categricos da transnacionalizao dos mercados, dos quais se destacam, como j dito antes, a eficcia, a produtividade e a competitividade. O clculo econmico e a "razo produtiva", em outras palavras, revelam-se potencialmente incompatveis com os princpios bsicos de convivncia e sociabilidade no mbito de formas organizacionais e institucionais dotadas de um mnimo de legitimidade jurdica e equilbrio social.

Como no choque entre as as de ferro e de barro sempre quebra a mais fraca, no difcil identificar as conseqncias desse tipo de coliso. Na medida em que a dinmica da acumulao privada e a mobilidade dos capitais j no so mais controladas pelo Estado-nao, os direitos humanos e a democracia representativa, numa viso basicamente juridicista, parecem estar ingressando numa fase regressiva. Eles podem at continuar existindo no plano jurdico-positivo, sobrevivendo em termos formais aos processos de desregulamentao, deslegalizao e desconstitucionalizao anteriormente mencionados. Contudo, j no so mais efetivamente implementados no plano real (se que o foram, integralmente, um dia). E quando isso hoje eventualmente ocorre, sua aplicao tende a ser seletiva (SANTOS, 1995). Entre outros motivos porque, conforme tambm j se viu, as decises jurdicas, em sua grande maioria, no so mais necessariamente implementadas por atos de autoridade capazes de suscitar obedincia, dependendo, pelo contrrio, de negociaes entre decisores e destinatrios para serem eficazes. Nesse cenrio, cada vez mais as decises dotadas de enforcement no so as relativas aos direitos humanos, porm as destinadas a neutralizar os perversos efeitos desagregadores da globalizao na vida social.

Como o avano desse fenmeno est aprofundando a desigualdade e a excluso - uma vez que os ganhos de produtividade, em grande parte, tm sido obtidos s custas da degradao salarial, da informatizao da produo e do subseqente fechamento dos postos de trabalho convencional - , a simbiose entre marginalidade econmica e social obriga as instituies jurdicas do Estado-nao a concentrar sua atuao na preservao da ordem, da segurana e da disciplina. Em outras palavras, com a globalizao econmica, os excludos dos mercados de trabalho e consumo perdem progressivamente as condies materiais para exercer os direitos humanos de primeira gerao e para exigir o cumprimento dos direitos humanos de segunda e terceira gerao; tornam-se suprfluos no mbito do paradigma vigente, ando a viver sem leis protetoras efetivamente garantidas em sua universalidade. Condenados marginalidade socioeconmica e, por conseqncia, a condies hobbesianas de vida, eles no mais aparecem como portadores de direitos subjetivos pblicos. Nem por isso, contudo, so dispensados das obrigaes e deveres estabelecidos pela legislao. Com suas normas penais, o Estado os mantm vinculados ao sistema jurdico basicamente em suas feies marginais, isto , como transgressores de toda natureza.

Diante da ampliao das desigualdades sociais, setoriais e regionais, dos bolses de misria e guetos "quarto-mundializados" nos centros urbanos, da criminalidade e da propenso desobedincia coletiva, as instituies judiciais do Estado, antes voltadas ao desafio de proteger os direitos civis e polticos e de conferir eficcia aos direitos sociais e econmicos, acabam agora tendendo a assumir funes eminentemente punitivo-repressivas. Para tanto, a concepo de interveno mnima e ltima do Direito Penal alterada radicalmente (ADORNO, 1996). Essa mudana tem por objetivo torn-lo mais abrangente, rigoroso e severo, para disseminar o medo e o conformismo no seu pblico-alvo: os excludos. Por isso, enquanto no mbito dos direitos basicamente sociais e econmicos vive-se hoje um perodo de reflexo e "flexibilizao", no Direito Penal se tem uma situao diametralmente oposta: uma veloz e intensa definio de novos tipos penais; uma crescente jurisdicizao e criminalizao de vrias atividades em inmeros setores da vida social; o enfraquecimento dos princpios da legalidade e da tipicidade, por meio do recurso a normas com "textura aberta" (isto , regras porosas, sem conceitos precisos); a ampliao do rigor de penas j cominadas e da severidade das sanes; o encurtamento das fases de investigao criminal e instruo processual; e, por fim, a inverso do nus da prova, ando-se a considerar culpado quem, uma vez acusado, no provar sua inocncia.

Posta a discusso em termos estritamente "juridicistas", portanto, as condies atuais para a plena efetividade da Declarao Universal dos Direitos Humanos, no seu primeiro cinqentenrio, parecem nebulosas e cinzentas. Esse ceticismo, porm, em hiptese alguma deve ser entendido como desqualificao das lutas pelo reconhecimento dos direitos humanos, por consider-las inviveis a priori. Encarados numa perspectiva menos jurdica e mais poltica, onde se destacam por sua dimenso muitas vezes utpica e/ou revolucionria, os direitos humanos podem propiciar aes incertas quanto obteno de resultados concretos a curto prazo - tendo em vista os problemas aqui apontados - mas potencialmente desafiadoras e transformadoras a mdio e longo prazo. Isso j foi percebido por quem vem encarando os direitos humanos fora das relaes de poder situadas no mbito estatal; mais precisamente, concentrando sua ateno nas relaes de poder existentes nos distintos contextos da vida social, identificando-os como "espaos de democratizao" (LECHNER, 1993; SANTOS, 1995). Lutar pela universalizao e efetivao dos direitos humanos significa, nessa perspectiva, implementar e executar programas emancipatrios no mbito desses espaos no-estatais. Programas cujo valor bsico o princpio da reciprocidade, ou seja, o reconhecimento do outro como homens livres e iguais, permitindo assim que as mltiplas formas de cidadania - a poltica, a econmica, a social, a cultural etc. - constituam-se como uma ordem coletiva baseada em padres mnimos de respeito e confiana, e no nos primados da competitividade e da produtividade levadas ao extremo, do individualismo sem freios e da disseminao dos valores de mercado em todas as esferas da vida, como hoje ocorre com o fenmeno da globalizao.

A possibilidade de efetuar interpretaes alternativas da realidade existente , nesta linha de raciocnio, uma das caractersticas do princpio da reciprocidade. No caso especfico dos direitos humanos, tal possibilidade permite alargar e ultraar os limites das concepes de carter juridicista que continuam animando muitos grupos e movimentos dispostos a resistir, quer violao e ao desmonte de garantias bsicas dos cidados, quer ao impacto desmobilizador da racionalidade tcnico-instrumental inerente transnacionalizao dos mercados. Valorizando novas pautas hermenuticas para a interpretao da realidade socioeconmica, as concepes de direitos humanos de carter no-juridicista vo muito alm da simples denncia das iluses homogeneizadoras que permitem sociedade representar-se sob a imagem de uma ordem funcionalmente integrada, unvoca e coesa, sob a gide de um texto constitucional. Elas, por exemplo, recolocam a idia de justia no centro das discusses - no mais uma justia abstrata, fundada em critrios metafsicos ou transcendentes, porm uma justia in fieri, pensada com base em situaes concretas e com perspectivas histricas especficas. E enfatizam a importncia da reciprocidade como um processo que permite combinar formas individuais com formas coletivas de cidadania, transformando e ampliando o conceito, ao criar condies para a formao de poderes sociais capazes de se contrapor ao poder privado e particularista do capital, compensando assim a eroso da soberania dos Estados-nao na nova ordem econmica internacional.

No momento em que os imperativos categricos da transnacionalizao dos mercados e da plenitude da democracia e da igualdade social se chocam e se excluem, os direitos humanos - por isso mesmo - esto vivendo uma situao de curiosa ambigidade. Se no plano estritamente jurdico-positivo o panorama parece sombrio e cinzento - uma vez que esto sendo vitimados pelos j mencionados processos de desregulamentao, deslegalizao e desconstitucionalizao atualmente promovidos pelos Estados-nao para melhor se adaptarem s exigncias da globalizao econmica - o mesmo j no ocorre no plano poltico. Aqui os direitos humanos seguramente continuaro sendo um importante critrio para animar e orientar as lutas em prol da revitalizao da liberdade e da dignidade humana. E a Declarao de 48, nesse sentido, como documento simblico, tem um importante papel a exercer nessas lutas.

TIPOS DE ORDENS NORMATIVAS

TIPOS DE ORDEM LEX MERCATORIA

DIREITO DA PRODUO

NORMATIVIDADE

AUTO-PRODUZIDA

PELAS PARTES/

DIREITO INOFICIAL

DIREITO

POSITIVO

DIREITO MARGINAL
CARACTERSTICAS
O que est em jogo Tenses no declaradas

publicamente

Conflitos materiais Litgios jurdico-processuais Agresses
Objetivos Legitimidade das relaes Solues substantivas Solues formais Contestao
Tipos de norma Pragmtico e casusta Normas ad hoc Direito codificado Lei do mais forte
Racionalidade Procedimental Material Formal Irracional
Modo de formalizao Contratual Negociao Aplicao Ausncia de formalizao
Tipo de procedimento Transao/mediao Conciliao/arbitragem Deciso Represso
Grau de institucionalizao Organizao flexvel e sistemas auto-regulados Campo social semi-autnomo Campo normativo estatal Marginalidade
Efetividade do Direito Por aceitao e por incluso, por meio de condies econmicas Por adaptao ao contexto scio-econmico Pretenso de universalidade Desafio

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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Jos Eduardo Faria Professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de So Paulo, Pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cediso).

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