Comentrio
ao Artigo 6 2b246i
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Marcos
Terena
O
ms de dezembro de 1948 foi fundamental para milhes
de pessoas e centenas de pases no mundo todo, quando
a Assemblia Geral das Naes Unidas aprovou a
Declarao Universal dos Direitos Humanos,
principalmente para aqueles pases dominados pelo
desrespeito dignidade humana e vida, pois o ponto
bsico de criao da referida Declarao era o
princpio das liberdades fundamentais e os direitos
humanos.
Corno
membro da famlia indgena do Brasil, preciso
destacar que acima de todos os escritos e recomendaes
mais rebuscados que possam ser, nada ter sentido se
ns, como pessoas, famlias, povos e naes das mais
variadas tradies, no soubermos transmitir as
recomendaes que eles contm, por meio de um sistema
de educao e conscientizao, assim como se as
autoridades constitudas simplesmente ignorarem o valor
do respeito a esse cdigo importante para o relacionamento
entre os povos, inclusive.
Um
dia, um chefe indgena visitava o alto prdio de 24
andares do Senado Federal, quando, em um dos andares,
entraram um impaciente pai e seu inquieto filho de mais
ou menos seis anos, que, como toda criana de sua
idade, no parava de correr e de fazer perguntas. De
repente, aquele pai, j cansado das artes do filho,
teve uma brilhante idia: gritou e disse: ... se voc
no parar de fazer baguna, vou mandar esse ndio te
pegar!! ! Como num e de mgica, aquele menino
abraou a perna do pai e aquietou-se assustado olhando
para a cara tambm assustada do chefe indgena. A
questo agora saber como o pai da criana teve aquela
idia, e o porque. O que iria acontecer com a cabea
daquela criana a partir desse episdio, e qual o tipo
de imagem que naquele momento fora plantado a respeito
dos ndios?
Apesar
de todo um processo de silenciamento da voz indgena,
lembrando por oportuno quando estamos as vsperas dos
500 Anos do Brasil, acreditamos nos ideais e nas esperanas
dos direitos humanos, pois dentro de uma perspectiva indgena
vale a pena ser ndio no Brasil e lamentamos as muitas
vezes que assistimos a algum tipo de desconsiderao e
desrespeito aos nossos valores, sobretudo quando
olhamos o mundo que nos cerca e deparamos com um mundo
atravessado pela desvalorizao do amor terra, aos
animais e, o mais grave, s crianas, aos velhos e s
mulheres e aos prprios irmos...
Somos
em todo o Brasil apenas 330 mil pessoas e, por isso,
sabemos que dentro de qualquer etapa do processo democrtico
e dos valores humanos, mesmo sendo donos naturais de
todas essas terras, no podemos mais caminhar
sozinhos e, para isso, buscamos junto aos outros 160
milhes de brasileiros, entre os negros, os brancos e
entre aqueles que de outras origens hoje am a fazer
parte da construo de um mundo melhor para as futuras
geraes desta terra, o respeito forma como
nascemos, como vivemos e como morreremos, dentro de
uma compreenso de que nada igual, homogneo, e que
o fato de termos origens diferentes no seja motivo
de discriminao ou preconceito, me5m() quando
considerados sobreviventes da ltima escala social do
pas. Nisso est o verdadeiro sentido da
universalidade dos direitos civis e polticos, dos direitos
econmicos, sociais e culturais e dos direitos ao desenvolvimento,
ao meio ambiente e paz.
Apesar
de todas as evidncias, a impunidade ainda perdura em
relao ao cruel assassinato de um irmo do povo
Patax, que caracteriza exatamente o alto significado
do artigo 6 da referida Declarao, pois morreu
enquanto adormecido na principal avenida de Braslia:
foi incendiado vivo por cinco jovens filhos de famlias
nobres e de bons recursos financeiros, mas que
provavelmente desconheciam o respeito mtuo, mesmo Com
aqueles que no fazem parte de seu crculo, como
ocorreu com Galdino Patax, sob o argumento de estar se
fazendo uma brincadeira de queimar as pessoas mendigas,
pobres um diferente.
Alm
da anlise individual do ser humano, dentro de um esprito
indgena, no podemos deixar de citar o esprito da
famlia, da coletividade, da sociedade e a prpria
origem e formao da nossa ptria, considerada como
um gigante adormecido, como um pas do Terceiro Mundo.
Talvez sejamos ignorantes no como dos pases
modernos e altamente tecnolgicos, mas aqui em nossa
terra que esto as fontes de vida do futuro, como os
grandes mananciais de guas doces, terras, matas,
recursos minerais e recursos naturais, como a
biodiversidade, surgindo verdadeiras criticas ao nosso
modelo de vida que caminha em ritmo prprio, apesar de
toda interferncia externa, pois junto a esse patrimnio
ecolgico esto os valores espirituais que nenhuma mquina,
por mais capaz que seja, saber decifrar e que
caracteriza nossa identidade autonoma e de
criatividade. Da ento a necessidade de que todos
devem participar de todos os processos de justia
social, desenvolvimento econmico, cultural, poltico,
caracterizando o verdadeiro sentido dos direitos e
deveres.
Por
outro lado, muito comum a homenagem aos diversos
setores da sociedade nacional, como o Dia da Criana, o
Dia das Mes, e, no caso indgena, o Dia do ndio, o
que para ns se torna hoje, dentro dessa compreenso
da busca dignidade e ao respeito, insuficiente.
Queremos sim ser parte integrante das decises que
afetem o nosso sistema de vida, como conquistas a determinados
direitos e no apenas concesso de quem quer que seja,
assegurando a identidade individual, coletiva,
inclusive a cultural. So formas de promoo aos
direitos humanos, afinal, todas as pessoas tm direito
ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade
jurdica, onde a compreenso, o entendimento, o
respeito pelo outro devem necessariamente ar por um
sistema de educao e de conscientizao, e no
apenas nos foros especficos ou nas instncias jurdicas,
onde geralmente o cidado toma conhecimento dos seus
direitos e dos seus deveres, muitas vezes prestes a ser
penalizado.
Finalmente,
dentro dessa reflexo, que no deveria ser
ageira, dos cinquenta anos da Declarao Universal
dos Direitos Humanos, lembrando que ela nasceu sob o
manto de dor do povo japons, e dentro do relato da
histria do chefe indgena, a sociedade brasileira no
pode viver contemplando esse tipo de situao ou
enaltecendo o preconceito velado, pois o que est em
jogo o verdadeiro esprito de solidariedade e de
respeito mtuo. Ao longo do processo de contato entre
ndios e brancos nesses 500 Anos de Brasil, os povos
indgenas sofreram todo tipo de tratamento, inclusive a
denominao ndio, quando na verdade nessas terras
ainda sobrevivem 180 lnguas nativas. Tratados em determinados
momentos como seres sem alma, selvagens, miserveis,
pecadores, obstculos ao desenvolvimento, ficaram
merc de seus donos. At no momento em que
tentaram se libertar da opresso assistencialista e
paternalista, como ocorreu na elaborao da Carta Magna,
diversos constituintes quiseram impor uma categoria
dos chamados por eles de ndios aculturados, ou
ndios da cidade, mas que foi rechaada pela
nova conscincia indgena e indigenista com a mensagem
como ser o que voc , sem deixar de ser quem sou!
Todos
ns ndios, brancos, negros e aqueles das mais
diversas origens, acreditamos que o altrusmo nacional
est nessa raiz e que somente esses que formam a ptria
brasileira podem sentir bem prximo o esprito
contestador, mas tambm o de contribuidor, onde a
aparente desigualdade d lugar ajuda mtua em
busca da utopia por um mundo melhor para as futuras geraes,
como exemplo para aqueles povos, inclusive irmos,
que se digladiam e se matam em nome da soberania e da
paz, como ocorre na Europa e na frica. No sonho de
nossos ancestrais estava a mensagem de que sempre
devemos respeitar o outro ser humano, mas no contato com
o homem branco, que parecia amigo, jamais fomos
reconhecidos como povos com origem, tradies e
costumes diferentes. Por isso, uma nova aliana h de
surgir, ento a criana no deixar de ser criana,
arteira, enrgica, por medo de um ndio, e o chefe no
se sentir constrangido, deixando para trs um tempo
em que pelo simples fato de sermos diferentes, fl05
marginalizaram e nos mataram!
Marcos
Terena ndio Terena do Pantanal do Mato Grosso
do Sul, fundador do primeiro movimento indgena no
Brasil Unio das Naes Indgenas; membro da
Comisso Brasil Indgena 500 Anos e
Coordenador-geral de Defesa dos Direitos Indgenas na
Funai.
A lei a mesma para
todo mundo, deve ser aplicada da mesma maneira para todos, sem distino.
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