Comentrio
ao Artigo 11 4z336c
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O
artigo 11 da Declarao Universal dos Direitos Humanos elenca
o direito do acusado presuno de inocncia at a sentena final,
ao processo e julgamento pblicos e plenitude de defesa, alm
de sufragar a regra de ouro do direito penal como hortus conclusus,
exigindo que a definio legal do delito seja anterior ao fato
denunciado e que a pena aplicvel s possa ser a ali prevista,
caso tenha sido posteriormente agravada, deixando espao para
a retroatividade da lei posterior mais benigna. A anterioridade
da lei bem como a irretroatividade da lei nova que desfavorece
o acusado, esto entre as maiores conquistas humanizadoras do
direito penal e dispensam comentrios em anotaes assistemticas
como as que seguem.
Em
todos os seus tpicos, o dispositivo traa uma sbia limitao
ao exerccio do mandato de coero legitimada. Sente-se objetivamente
a preocupao anti-estado de fora porque a pr-histria e a
histria do circuito funcional do direito sempre apresentaram
a triste tendncia em transformar a dominao, o poder em violncia
institucional e at constitucional. O dispositivo cuida de despersonalizar
a inclinao para a violncia jurdica deslegitimadora to profundamente
quanto possvel, aspecto sob o qual se pode perceber no direito
presuno de inocncia uma incisiva proteo do arbtrio de
instruir a perseguio processual sob a tica do agente e no
da conduta. Presumir a inocncia um modo de abstrair a pessoa,
um veil of ignorance no sentido que Rawis d imparcialidade,
pois, em direito penal, sempre se retrata uma pessoa abstrata,
o homem comum, o homem mdio, ou do que comum a todos os seres
humanos, salvo na escolha ou dosagem da pena em concreto. Ao presumir
a inocncia do ru, o juiz abstrai tambm a sua prpria pessoa,
imparcialidade que no uma virtude ou estado de esprito, mas
um esforo, uma conquista em cada caso.
Essa
leitura da presuno da inocncia tem, ao que parece, uma justificao
metdica, uma vez que a acusao desde sua pea inicial , por
definio, uma presuno de culpa do acusado. A Denncia est
necessariamente informada por elementos objetivos, cujos significados
desenham a individualizao de uma conduta e de seu agente, o
que estabelece, desde o incio do procedimento, mais que uma possibilidade
real, uma probabilidade de culpa, ou seja, se esses elementos
ou seus significados jurdicos no forem desconstitudos, a culpa,
normalmente, confirma-se. Assim, o despacho interlocutrio do
recebimento da acusao, por sua natureza, reconhece que ela
tem fundamento, o que, a rigor, envolve, em alguma medida, a presuno
de culpa. Do ponto de vista da vida tal como ela , a presuno
de culpa comprova-se pelo olhar com que a sociedade a a ver
o ru, o que hoje, muitas vezes, se produz por intermdio dos
meios de comunicao de massa e se reproduz cruelmente na massa,
s vezes de forma to irreversvel que a prpria absolvio do
acusado no tem a fora de restaurar a inocncia. Diante dessa
realidade, a presuno de inocncia do acusado um princpio
de resistncia ao fascnio do Julgamento social intuitivo que
se alimenta da fragilidade psicolgica de criaturas cujo sentido
de identidade e cuja inteligncia crtica esto seriamente corrodos
pelo zeitgeist, avassaladoramente implantado pela banalizao
miditica. A partir dessa constatao, teramos de itir uma
grave contradio entre o procedimento tal como ele , uma presuno
de culpa, e a regra de procedimento que manda presumir a inocncia.
Talvez se possa dizer que as duas presunes so a mesma coisa,
servindo-nos da teoria do ver corno, que Wittgenstein trabalhou
na segunda parte das Investigaes Filosficas. A presuno de
culpa e a presuno de inocncia seriam a mesma prestino tal
como no desenho de Wittgenstein: o coelho e o pato so o mesmo
desenho. Conforme o processo mental do observador, quando ele
v o coelho no v o pato, e quando ele v o pato no v o coelho,
ou seja, a obrigao de ver a presuno como presuno de inocncia
uma negao do processo mental que v no procedimento uma presuno
de culpa, projetando toda a responsabilidade de provar e demonstrar
no acusador. Em ltima anlise, no h presuno de culpa porque,
em princpio, no h culpa, ou seja, a culpa exceo, embora
reconhecvel mediante prova capaz de mostr-la de forma lquida
e certa. A presuno de inocncia sobrevive se a instruo deixar
espao para qualquer dvida.
UMA
EXTENSO NECESSRIA
A
preocupao do artigo 11 da Declarao Universal dos Direitos
Humanos emerge da evidncia de que o teor literal de uma norma
jurdica uma coisa, e a ao dessa norma jurdica outra, ou
seja, o que se faz com uma norma jurdica raramente tem a ver,
em sentido estrito, com o seu teor liberal. Normalmente, a subsuno
ars inveniendi, no apenas em razo) da natureza da linguagem
e dos princpios hermenuticos que enclausuram o texto, mas sobretudo
em razo das dificuldades inerentes reproduo probatria do
fato e dos princpios hermenuticos que enclausuram a faticidade,
ou seja, do que J. J. Rambach, citado por Gadamer, chamou de substilitas
applicandi, no sentido de uma compreenso que atualiza a relao
entre a norma e o fato desenhado pela prova. Diante disso, associa-se
a presuno de inocncia com a plenitude de defesa do acusado.
A culpa s pode ser reconhecida quando se der ao acusado o
defesa plena, mas foroso reconhecer que o que se tem exigido
luz desse princpio, quando se trata de um excludo ou de um
suprfluo social, no tem muito a ver com o direito que se pretendeu
consagrar no texto. No h a mnima relao de identidade entre
a recente defesa de Collor no Supremo Tribunal Federal e o que
(ou no ) a defesa dos rus marginais. E certo que se exige
alguma defesa, mas tambm certo que o esteretipo da defesa
minimal reconhecido jurisprudencialmente como defesa defesa
nenhuma, ou seja, meramente formal, s tem a forma ou aparncia
de defesa. Aqui a responsabilidade no do texto do artigo 11,
que se circunscreve ao o e no podia entrar nos detalhes
substantivos e, muito menos, nos qualitativos da exigncia. Nos
muitos anos em que exerci a magistratura no Rio Grande do Sul,
so incontveis as vezes em que fui moralmente constrangido a
transformar a presuno de inocncia em ao, colhendo ex officio
provas cuja importncia para a defesa e cuja praticabilidade cuidava
de predeterminar no curso do interrogatrio do ru, ante o deprimente
desinteresse do defensor dativo. Em processos penais, a distncia
entre a defesa formal e a presuno de culpa quase nenhuma.
Acontecem,
entre ns, violaes ainda mais intolerveis. As que acabo de
lembrar so, at certo ponto, institucionais, no sentido de uma
institucionalidade consuetudinria, mas a que a seguir comento,
embora ligeiramente, institucional em sentido estrito. Refiro-me
s internaes de menores realizadas luz do Estatuto da Criana
e do Adolescente, que pretendem livrar o menor da jurisdio penal,
da linguagem penal, da processualidade penal que caracterizava
a legislao precedente. A nova lei substitui a punibilidade (disfarada)
pelo estado de carncia pedaggica e compreende a deciso judicial
como uma destinao educativa, a pena como uma educao compulsria,
na pior das hipteses a de internao. Acontece que o Estatuto
aplicado pelo mecanismo burocrtico que aplicava a lei anterior
sem suficientes reajustes operacionais, estruturais e culturais,
de tal sorte que o menor, na mesma medida em que se diz que no
acusado, no tem defesa, e na mesma medida em que se diz que
no punido ou condenado, internado em estabelecimentos que,
normalmente, so estruturalmente a prpria negao do encaminhamento
pedaggico, falsa e conscientemente comemorado pela deciso judicial.
Em suma, a pretexto de uma lei idealmente correta, mas totalmente
alienada da realidade, estamos dispensando aos menores com desvios
de conduta um tratamento penal medieval, sem acusao, sem presuno
de inocncia, sem defesa e com pena previamente definida. E o
caso tpico e trgico de uma lei excelente em tese, que se torna,
na aplicao, mais cruel que a pssima lei anterior, porque
aplicada numa sociedade que no tem a organizao que ela pressupe
e em um Estado sem instituies preparadas para aplic-la, e,
muito menos, para executar as decises judiciais nela fundamentadas.
UMA
EXTENSO DESNECESSRIA
A
mdia tem uma funo socialmente relevante, tanto que o rdio
e a televiso so servios pblicos. O jornalismo brasileiro tem,
entre outras paixes, a de participar de investigaes, a de investigar
ele prprio e, principalmente, a de julgar. Diz-se que isso se
a na esfera moral da existncia, o que, no momento, no importa.
O que importa que isso se a em nossa coexistncia.
Concretamente,
a mdia assume um papel de poder policial e judicirio paralelos,
mas, enquanto os poderes legtimos esto enclausurados em princpios,
diretrizes e normas legitimadas procedimentalmente em mandatos
de coero cada vez mais cuidadosamente controlados (hoje se pensa
em mecanismos para o controle social do exerccio desses mandatos),
a mdia no apenas se arvora ela prpria em titular desse controle,
mas assume, a seu critrio, os prprios mandatos de coero, e
os exerce na mais absoluta permissividade, definindo, depois do
fato, a regra moral a ele referida precisamente ela que adota
explicitamente o relativismo tico e aplicando punies no
previstas constitucionalmente e irrecorrveis, destruindo reputaes,
estabilidades, carreiras e vidas inteiras sem conceder aos acusados
um espao de defesa equivalente ao da acusao, quando concede
algum, proclamando, em cima dessa tragdia, o triunfo da liberdade
de imprensa.
Ora,
o conceito dessa liberdade jamais teve tal abrangncia e se nega
a si mesmo na medida em que se transforma, seja pelas urdiduras
do monoplio, seja pela clandestinidade da competio gerenciada,
que parceiriza as empresas e as transforma na linguagem doxal
do poder, e, como tal, tende a ser nica na medida em que se apropria
da opinio pblica. certo que h legislao a respeito, mas
a elaborao legislativa controlada pela prpria linguagem
doxal. H tambm um preceito constitucional prevendo genericamente
a nocividade e a reparabilidade desses desvios de conduta da
mdia. Entretanto, outra vez sob a presso da linguagem doxal,
raramente a jurisprudncia pune a mdia em quotas que ultraem
o que ela prpria j providenciou oramentariamente para manter
essa jurisdio paralela, que acaba sendo, seja do ponto de vista
financeiro seja do ponto de vista do marketing, unia de suas mercadorias
de maior consumo. Com seus poderes policiais e jurisdicionais
paralelos, isentos de qualquer controle que no seja uma lei de
imprensa, elaborada indiretamente por ela prpria, e no princpio
constitucional de reparao carente ainda de uma legislao que
o complemente condignarnente, a mdia , hoje, a mais recorrente
violao do artigo 11 da Declarao Universal dos Direitos Humanos.
UMA
CONCLUSO PRIMA FACIE
Na
verdade, porque so princpios, e no propriamente normas, dispositivos
como esses do artigo 11, reproduzidos em nossa Constituio Federal
de 1988, no artigo 5, funcionam, na prtica, de modo geomtrico,
ou seja, como assintotas cujas linhas so tangentes em relao
a um ponto que se desloca para um infinito difuso e incerto, que
a gente costuma chamar de futuro, mas que, de certo modo, a gente
pode chamar tambm de Histria, se que o ser humano, embora
no e de evento, consegue manter alguma coisa advinda de suas
origens, conservada em seu ado e destinada a ter esse tnue
sentido de continuidade em seu futuro. Nesse caso, a Declarao
Universal dos Direitos Humanos suscetvel de aperfeioamentos,
porque, mesmo que no tenhamos nenhuma essncia, como afirma a
hermenutica filosfica, to certo dizer cartesianamente cogito,
ergo sum, como dizer que a coexistncia humana , por definio,
um direito justia, embora esta lhe seja interminavelmente concedida
em parte e em parte negada, talvez porque justia e injustia
tambm sejam como o desenho do coelho e do pato sobre o qual
se torturam as Investigaes Filosficas de Ludwig Wittgenstein.
Jos
Paulo Bisol Secretrio de Estado da Justia e
Segurana do Rio Grande do Sul, magistrado aposentado e
ex-senador.
A lei a mesma para
todo mundo, deve ser aplicada da mesma maneira para todos, sem distino.
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