693k4x
PARA
UMA FUNDAMENTAO TICA
DOS DIREITOS DO HOMEM
Eurico
Berti,
Professor de Filosofia da Universidade de Padova, Itlia
(Transcrio
da sua interveno no VI Colquio Internacional sobre Paz,
direitos do homem, desenvolvimento dos povos, organizado pela
prefeitura de Brescia e pela Cooperativa Catlica-Democrtica de
Cultura. O ensaio foi publicado na revista Humanitas Nuovas
Serie, n 4, de agosto de
1990).
O
tema a ser tratado se apresenta com um carter de atualidade por
vrias razes. Antes de tudo porque a luta pelos direitos
humanos, no mundo, no tem fim: intil relembrar os lugares
onde esta luta ainda ocupa enormes contingentes de pessoas, da frica
do Sul China e Europa Oriental.
O
tema dos direitos humanos adquire grandes atualidade tambm do
ponto de vista terico neste ano em que se comemora o II centenrio
da revoluo sa: 1789 foi a ocasio para uma das mais
famosas declaraes dos direitos do homem j promulgadas.
Talvez se esperava, entre as numerosas manifestaes feitas para
relembrar a revoluo sa, uma maior ateno
Declarao dos direitos do homem e do cidado, que, no
fundo, representa um dos aspectos mais vlidos, talvez o mais vlido,
de todo aquele evento. Ao contrrio, os debates entre os
estudiosos foi dedicado a outros aspectos do problema: falou-se
longamente do terror e de seus aspectos negativos, da existncia
ou no da continuidade entre as diferentes fases da revoluo,
porm no foi dedicada muita ateno Declarao dos
direitos do homem e do cidado.
De
qualquer maneira, tambm nesta oportunidade foi se consolidando
uma constatao que j de domnio pblico: isto , sobre
o tema dos direitos humanos existe hoje um amplo consenso de opinies.
No
se encontra mais ningum disposto a contestar a validade dos
direitos do homem; sobre eles existe uma convergncia, em sentido
positivo, entre orientaes culturais, polticas e religiosas,
embora muito diferentes entre si. Reconhecer a validade dos
direitos do homem tornou-se, hoje, quase um lugar comum.
Certamente,
porm, ao se observar mais atentamente quais so as motivaes
e qual o significado que cada um atribui a este consenso to
amplo e geral sobre os direitos do homem, encontra-se logo diferenas,
incertezas, obscuridades. Por exemplo, todos esto de acordo em
reconhecer a validade destes direitos, porm o acordo falta to
logo se discute a quem devem ser reconhecidos, se a todos os seres
humanos ou somente queles que esto na plena posse de suas
capacidades fsicas e psquicas.
Percebemos
tambm a existncia de vrias discordncias, quando se
pergunta, saindo do plano genrico, quais so os direitos
humanos que tm que ser reconhecidos. A propsito de alguns
deles o acordo fcil: a vida, a liberdade, a justia.
Porm,
indo um pouco mais longe, e colocando, por exemplo, o problema da
assistncia mdica: justo reconhec-la a todos, em todos os
3momentos e em todas as suas formas possveis? E a instruo,
justo garanti-la para todos at uma idade avanada? o
direito e usufruir de certos tipos de frias, certas comodidades,
certos confortos?
Sobre
isto, provavelmente nem todos esto de acordo; o consenso se
mostra, portanto, bastante superficial, ou pelo menos incompleto.
O
ponto, por conseguinte, sobre o qual no existe absolutamente
nenhum consenso, justamente aquele relativo fundamentao.
Quando se pergunta sobre que se fundam, como se justificam, com33
que argumentos e razes podem ser defendidos os direitos humanos,
ento as posies divergem imediatamente. J. Maritain, filsofo
francs catlico que muito influenciou a cultura do nosso tempo,
em 1948 trabalhou na UNESCO numa comisso incumbida de promover
uma pesquisa sobre o que os homens de cultura pensavam a respeito
da Declarao Universal dos Direitos do Homem, promulgada pelas
Naes Unidas justamente naquele perodo. O filsofo relata
que todos os representantes dos vrios pases, culturas,
filosofias, orientaes polticas estavam de acordo quanto ao
contedo da carta, isto , quanto a enumerao dos direitos;
porm quando ele perguntou a cada um por quais razes eles
defendiam os direitos do homem cada um deu uma resposta
diferente. Existia um desacordo total sobre as razes, isto ,
sobre a fundamentao destes direitos.
Tambm
um filsofo italiano de grande prestgio e autoridade, Norberto
Bobbio, vrias vezes teve a oportunidade de afirmar que os
direitos humanos no so demonstrveis, no possvel
oferecer-lhes uma fundao filosfica: eles devem ser
defendidos, realizados, mas no devem ser colocados em discusso,
justamente porque impossvel chegar, com argumentos racionais,
a conferir-lhes uma verdadeira e cabal fundamentao.
O
que se pode fazer partir da constatao sobre a qual todos
esto de acordo, e ver se possvel retirar disso algumas
implicaes, isto , razes que sejam, ainda que no explcita
nem conscientemente, porm de fato, efetivamente itidas por
todos aqueles que reconhecem o valor dos direitos. na minha opinio,
possvel demonstrar que uma fundao tica esta
subentendida, est implcita, e necessariamente requerida nas
posies daqueles que esto dispostos a reconhecer a validade
destes direitos.
A
fundamentao a que se pode chegar deste modo, talvez no seja
uma fundamentao filosfica, no sentido mais rigoroso do
termo, isto , algo de incontrovertvel; uma fundamentao
que pode ter todo o valor que possuem geralmente os argumentos da
filosofia prtica. Ela no como a matemtica ou a geometria,
que dispem de axiomas evidentes e tm condies de construir
demonstraes sobre as quais todos esto obrigados a dar a sua
anuncia. Costuma-se dizer que a matemtica no uma opinio,
justamente porque nela no h lugar para o opinvel, mas to
somente para o demonstrvel: demonstra-se ou no se demonstra.
Na
opinio de alguns possvel fazer isto tambm9 em filosofia;
j outros discordam; de qualquer maneira, aquela parte da
filosofia, na qual mais difcil realizar este ideal de rigor
matemtico, a filosofia prtica, porque ela no lida com
princpios universais, de validade absoluta. A filosofia prtica
ocupa-se com as aes humanas, do indivduo e da sociedade, que
esto sujeitas a variaes constantes, a flutuaes, possuem
uma certa margem de imprevisibilidade, e so frutos de decises
livres e, portanto, no redutveis a leis imutveis e eternas.
por isso que, no mbito da filosofia prtica, no podem ser
aduzidas razes igualmente rigorosas como aquelas da matemtica
e da geometria.
Isto
significa afirmar 3que, no mbito da filosofia prtica, no
seja possvel discutir e argumentar, que no seja possvel
apresentar igualmente razes a favor ou contra uma certa fase,
porque, em ltima instncia, pode-se afirmar que uma determinada
posio mais vlida, mais fundada, mais justificada do que
uma outra.
Se
nos satisfazemos com um tipo de fundamentao como esta, com um
grau de rigor suficiente, ainda que no absoluto, embora de tal
natureza que induza a preferir uma certa posio em lugar da
oposta, possvel demonstrar que o consenso geral sobre os
direitos humanos implica3 uma determinada tica, isto , que
este consenso pode ser fundado do ponto de vista de uma tica
bastante precisa e identificvel.
O
tipo de raciocnio que proponho remete ao pensamento de um filsofo
alemo ainda vivo, muito apreciado: Karl-Otto Apel, um dos
expoentes da assim chamada Segunda gerao da Escola de
Frankfurt. Depois dos famosssimos Horkheimer, Adorno e Marcuse,
que nos anos Sessenta inspiraram a contestao estudantil,
surgiu, na Escola de Frankfurt, uma nova gerao de filsofos,
destacando-se entre eles sobretudo Apel e Habermas, como os mais
conhecidos. Apel elaborou uma filosofia chamada de pragmtica
transcendental, que consiste em mostrar que na base do nosso
comportamento, isto da prxis, da ao concreta dos homens,
se encontram alguns pressupostos que devem ser explicitados, e que
todos aqueles que assumem um determinado comportamento esto
obrigados a itir, se no querem cair na contradio pragmtica
ou performativa, isto , na contradio entre aquilo que
dizem e aquilo que fazem.
Apel,
na verdade, usa a expresso contradio performtica ou
pragmtica para dizer coisas que j foram ditas h muitos sculos
atrs por Aristteles. Um exemplo de contradio performativa
utilizado por Apel e este: se algum afirmar Eu no
existo, o fato que ele o afirme desmente o que ele afirma, isto
, existe contradio entre o ato de dizer, que s pode ser
realizado se se existe, e o contedo da coisa dita, isto ,
Eu no existo. Este um caso t;ip3ico, muito elementar,
de contradio performativa.
Isto
lembra aquilo que Aristteles objetava aos que negavam o princpio
de no contradio: quando estes sustentavam que no existe
nenhuma diferena entre dizer uma coisa e dizer o seu contrrio,
ele respondia: Mas, ento, por que, quando ides a Megara,
caminhais e no ficais em casa, se para vs a mesma coisa
caminhar e no caminhar? Ou por que, quando caminhais, tomais
muito cuidado para no cairdes num poo, se para vs no h
nenhuma diferena entre cair ou no cair no poo? Desta
maneira ele revelava uma contradio entre uma verta maneira de
agir e um determinado contedo de pensamento.
Todos
aqueles que item a validade dos direitos humanos, se no
querem cair numa srie de contradies pragmticas ou
performativas, devem honestamente reconhecer que, no fundamento
dos direitos humanos, existe uma determinada tica, uma
determinada concepo do homem, uma determinada concepo do
que bem e daquilo que mal. Isto vlido independentemente
da orientao filosfica, religiosa e poltica que algum
possa ter.
Sabe-se
muito bem que, em todas as declaraes dos direitos humanos (no
somente na sa de 1789, mas ainda antes com a declarao
dos Estados Unidos da Amrica, a constituio dos Estado de
Virgnia, a prpria constituio dos E. E. e depois em todas
as constituies modernas, incluindo a italiana) afirma-se que
todos os homens s9o por natureza livres e iguais. Se afirmamos,
apelando para os direitos humanos, que no justo que na frica
do Sul os negros sejam discriminados pelos brancos e submetidos a
uma srie de restries, porque aceitamos que no h
diferena entre ricos e pobres, pessoas cultas e ignorantes, isto
, defendemos que os homens por natureza so iguais e possuem
iguais direitos.
Isto
significa que existe uma certa caracterstica, uma certa
propriedade, que comum a todos os homens, independentemente de
raa, sexo, condio social, nascimento, e que os distingue de
qualquer outro ser vivo, por exemplo dos animais. Tanto verdade
que se fa3la de direitos humanos, isto , do homem.
Hoje
existem at me3smo pessoas que falam dos direitos dos animais,
com um certo fundamento, porque tambm os animais podem
experimentar prazer e dor, e portanto injusto faz-los sofrer
desnecessariamente.
Todavia,
mesmo aqueles que defendem os direitos dos animais, no os
colocam no mesmo plano dos direitos do homem: a ningum a
pela cabea de propor, por exemplo, o direito instruo para
os animais. Ento, implicitamente se reconhece que existe algo
que une todos os homens entre si, que os congrega e que, ao mesmo
tempo, os distingue dos animais, das plantas, de qualquer outro
ser. Isto aquilo que se chama tradicionalmente de
natureza humana.
Hoje,
para muitos filsofos, utilizar a palavra natureza
motivo de escndalo, porque se pensa que exista por trs algum
tipo de cilada ideolgica. Uma vez que, de fato, se afirma que a
natureza obra de Deus, algum que ite a natureza teme ser
c9ompelido a itir a existncia de Deus, a itir a criao,
com tudo o que lhe conexo. Ou ento se diz que o termo
natureza provm da filosofia medieval, da escolstica, e
assim se receia que ele comporte o imutveis, no issveis
do ponto de vista da cincia.
O
conceito de natureza estava ainda muito em voga no final do sc.
XVIII, tanto verdade que, em todas as declaraes dos
direitos do homem, se diz que por natureza os homens so
iguais, Rousseau dizia: Os homens nascem livres e iguais, a
natureza nos remetendo at o nascimento, isto , ao momento em
que uma pessoa no deveria ser nem rico nem pobre, nem culto nem
ignorante.
Durante
todo o sculo XVIII o conceito de natureza no oferecia
dificuldades; ao contrrio, a partir do sc. XIX comeou a ser
posto em discusso, pois tornou-se comum se dizer que, quem
acredita na natureza, no leva devidamente em conta a histria.
A histria nos ensina, na verdade, que tudo muda e que tambm3 a
maneira de pensar, de se comportar, isto os costumes, a moral,
so determinados por particulares condies histricas, e,
portanto, no se deve falar de uma natureza humana igual para
todos os homens. Alm disso, o conceito de igual vale no
somente para os homens que existem hoje, mas tambm para aqueles
que existiram nos sculos precedentes e para todos aqueles que
existiro no futuro, se eles so homens. Esta foi a primeira crtica
ao conceito de natureza, feita em nome da histria e do
historicismo.
No
sculo XX, uma nova crtica foi feita a partir das cincias
humanas: a etnologia, a antropologia, a psicologia, a
sociologia. Estas mostram que 3os homens so diferentes uns dos
outros, como tambm o so os povos, que possuem sentimentos e hbitos
diferentes.
Porm,
se se duvida que exista uma natureza humana, coerentemente seria
preciso recusar a idia de que os homens tm os mesmos direitos.
se, ao contrrio, se ite que todos os homens gozam dos mesmos
direitos, prescindindo do lugar de nascimento, d momento em que
vivem, da raa a que pertencem, significa que, apesar de todas as
mudanas e aparncias, algo de comum existe, uma base mnima
existe e este mnimo chama-se natureza.
Em
que consiste esta natureza? O que este mnimo que associa
todos os homens? Antigamente se dizia: o homem um animal
racional. Tambm esta parece ser uma afirmao proibida,
porque se sabe o que significa racional. Algum pensa logo
no esprito, na alma, na razo, e, ento, quem no acredita na
alma no est mais de acordo. Deixando de lado esta frmula,
parece que o homem se distingue de todos os outros seres porque
tem condies de se comunicar, e pode faz-lo atravs da
linguagem dotada de termos universais. Por essa razo algum
props substituir a frmula tradicional do animale
rationale por uma nova frmula: animale
symbolicum, animal capaz de se expressar atravs de smbolos.
Expressar-se por meio de smbolos significa comunicar-se, porque
o smbolo tal somente enquanto compreendido por algum a
quem comunicado.
O
dado da comunicao parece constituir a natureza, porm com
esta nova definio no se foi muito longe daquilo que se dizia
com a expresso animal racional, porque ratio
em latim era a traduo do grego logos,
que no significa somente razo, mas tambm linguagem, palavra,
comunicao. Por isto, um dos mais antigos filsofos, Herclito,
dizia que o lgos aquilo que congrega todos os homens, isto ,
o koinn, aquilo que comum, e que em virtude do lgos todos
os homens vivem no mesmo mundo, no em um mundo particular, como
acontece com aqueles que sonham. De fato, a diferena entre estar
acordados e sonhar que, quando acordados, estamos todos no
mesmo mundo, isto , se tem algo em comum, e esta dimenso comum
o lgos.
Depois
da igualdade, um outro direito afirmado por todos a liberdade.
Os homens nascem em todo lugar livres e iguais, dizia
Rousseau, e acrescentava: e agora esto todos acorrentados.
Portanto, a liberdade considerada um direito que pertence a
todos por natureza. Porm, se se ite isto, se atribui ao indivduo
uma capacidade, uma qualidade, alguma coisa que no se encontra
em todos os seres. Ningum ousaria dizer que uma pedra livre,
que livre uma planta, que deve crescer numa determinada
maneira, ou que livre um animal, que obedece a determinados
instintos. Reconhecer a liberdade uma maneira para indicar
aquilo que antigamente se chamava de espiritualidade do homem. Porm,
tambm aqui, muita gente prefere no falar disto, porque poderia
implicar uma srie de obrigaes desagradveis do ponto de
vista moral; ao contrrio, no hesitam em falar de
liberdade. A liberdade, porm, no concebvel seno
quando se ite alguma coisa que vai um pouco alm do puro
instinto, ou condicionamento biolgico, fisiolgico ou psicolgico,
e portanto transcende. Chame-se como se quiser, mas isto
de qualquer forma algo que no se deixa reduzir ao simples dado
determinstico e ambiental.
Entre
os direitos fundamentais se consideram liberdades, bem mais
comprometedoras do que aquela elementar de realizar pelo menos um
certo movimento, as liberdades de palavra, de opinio, de
imprensa, de associaes, de criar partidos polticos e de
concorrer, na forma permitida pela lei, tambm conquista do
poder. Quem hoje se permitiria duvidar de tais liberdades? Ningum
pode dizer Voc no tem direito de falar, de pensar deste
modo ou de escrever aquilo que pensa.
Porm,
reconhecer isto significa reconhecer que o homem um sujeito
capaz de comunicar aos outros as prprias opinies, de defend-las
com determinados argumentos, capaz de responder s objees
contrrias, isto , capaz de inserir-se num certo contexto de
relaes argumentativas, porque, se houvesse o que argumentar, no
teria sido reivindicar a liberdade de opinio, de palavra, de
imprensa. Se uma pessoa no devesse se servir disto para difundir
a sua maneira de pensar, e para procurar convencer os outros de
que aquela maneira justa, no haveria razo de ser a
reivindicao do direito a tais liberdades. No momento em que se
ite isto, se reconhece tambm que o homem capaz de
argumentar, isto , de dar razo a favor ou contra uma
determinada tese, de pedir razes, explicaes, isto ,
capaz de realizar toda uma srie de operaes grvidas de
implicaes inclusive de ordem moral.
Apel
no o expoente de uma filosofia tradicional, metafsica; ele
afirma que hoje vivemos na era da cincia e que, portanto, o
ponto de partida de qualquer argumentao nossa deve ser a
maneira de operar prpria dos cientistas. Acrescenta, porm, que
os cientistas em geral formam uma comunidade no interior da qual
se discute. A comunidade cientfica argumenta, os cientistas se
fazem objees, opem razes entre si. Mas, na discusso
cientfica, conduzida desta maneira, se ite toda uma srie de
pressuposies, que possuem um significado moral, na medida em
que se reconhece a cada um o direito interlocuo, a formular
objees, e cada um se obriga a considerar estas objees.
Portanto, se reconhece a igual dignidade dos interlocutores, a
liberdade de palavra, de opinio, a capacidade que cada um tem de
pensar. Estes pressupostos acabam por fazer do homem um sujeito
particular, bem caracterizado, com uma srie de propriedades que
no pertencem a outros sujeitos.
Um
direito sobre o qual, hoje, em teoria no existe talvez um
consenso universal, mas que, na prtica, existe mais amplamente
do quanto se cr, o direito de propriedade. No fundo, tambm
Marx, o pensador que mais vigorosamente contestou o direito de
propriedade, no momento em que descreve a condio do homem na
sociedade capitalista, caracterizando-a por meio do conceito de
alienao, isto , quando diz que o operrio alienado do
produto do seu trabalho e deve reapropri-lo, reconhece que o
operrio teria direito de possuir o fruto do seu trabalho. O fato
de que este lhe seja retirado constitui justamente uma alienao,
isto , uma expropriao indevida, que preciso remediar por
meio da reapropriao. Isto significa reconhecer o direito de
propriedade, pelo menos sobre os frutos do prprio trabalho.
Ora,
reconhecer este direito significa itir uma realidade que parece
bvia, mas que muitos filsofos contestam. verdade que no
existe quase nada que no tenha sido contestado por algum filsofo,
mas esta uma realidade de particular importncia, isto , a
identidade pessoal. Isto significa que uma pessoa sempre a
mesma e mantm a sua identidade nos diversos momentos de sua
vida; consequentemente, quem realizou um certo trabalho tem o
direito de possuir o seu fruto, porque se pressupe que quem
trabalhou no mudou depois de ter terminado de trabalhar.
Quando
alm disso se estende o direito de propriedade at torn-lo um
direito de herana, se supe, e parece bvio, que ns temos
direito de possuir os bens que os nossos anteados possuam,
porque negam que exista um sujeito, uma substncia imutvel sob
as mudanas ela sofre nas experincias, na maneira de pensar,
nos acontecimentos da vida. Em que sentido podemos, portanto,
dizer que permanecemos os mesmos? Hume, por exemplo, o grande filsofo
escocs do sculo XVIII, afirma que a identidade pessoal
depende3 somente da conscincia ou da permanncia da conscincia,
isto , da memria; somos sempre os mesmos porque relembramos a
nossa infncia, nosso pai e nossa me. Porm se acontece um
acidente e perdemos a memria, no somos mais os mesmos.
Isto
tem consequncias sobre o direito de propriedade se uma pessoa no
mais a mesma pessoa, no mais o legtimo proprietrio de
seus bens; quem perdeu a memria no ter mais direito de
possuir nada daquilo que possua. Porm ningum considera justa
esta consequncia. Ento significa que no reconhecimento do
direito de propriedade pressupomos o conceito de pessoa como substncia
que permanece idntica e si mesma, quaisquer que sejam as mudanas
por ela sofridas a nvel fsico e psquico. Este o conceito
antigo de pessoa, definido por Bocio - rationalis
naturae individua substantia, isto , uma substncia
individual da natureza racional.
Tambm
o princpio da responsabilidade pessoal sobre o qual se funda o
direito penal, segundo o qual cada um chamado a responder
perante a lei pelas aes que pratica, pressupe que a pessoa
punida seja a mesma que perpetrou o delito.
Outros
filsofos contemporneos negam a identidade da pessoa.
Recentemente foi publicado um livro de um filsofo americano,
Derek Parfit, intitulado Razes
e Pessoas. Parfit, filsofo analtico, afirma que existe na
pessoa uma identidade parecida com aquela que existe numa nao:
a nao no est sempre composta pelos mesmos indivduos, porm,
se reconhecemos que eram italianos aqueles que h cem anos viviam
na Itlia, e que tambm ns somos italianos, itimos uma
continuidade de histria, hbitos, tradies e costumes, de
maneira de pensamento, no a permanncia de um idntico. Cada
um de ns, segundo Partif, como uma nao, isto , uma srie
de indivduos sucessivos, ligados entre si por vnculos como a
memria, a tradio, os hbitos. Aceitamos uma teoria deste
tipo, deve-se duvidar das responsabilidades penais. justo, por
exemplo, que se puna uma pessoa por um crime cometido h dez ou
vinte anos atrs?
Tambm
sobre o conceito de pessoa hoje a discusso est aberta. Um filsofo
italiano, bastante jovem e conhecido, Sebastio Maffettone,
escreveu um belo livro em 1989, Valores
comuns, onde sustenta que existe justamente um consenso sobre
certos valores compartilhados por todos, que so os valores
comuns, e que estes constituem o conjunto dos valores que
pertencem s pessoas. O ponto chave da questo, ainda que no
seja particularmente aprofundado por Maffettone, este: quem so
as pessoas, o que significa ser pessoa? Ele responde que nem todo
ser humano uma pessoa e faz uma diferena entre seres humanos
e pessoas: pode-se ser um ser humano, mas no uma pessoa. A
pessoa tem que possuir, como seu requisito, a integridade, isto ,
a posse plena de todas as suas faculdades fsicas e mentais. Se
algum perde uma destas faculdades no mais ntegro;
sempre um ser humano, mas no mais uma pessoa. Ento, o recm
nascido ou no uma pessoa? E se no uma pessoa, possui
direitos? se os direitos so somente das pessoas, quem no
pessoa no possui direitos e portanto no tem direito
propriedade: poder-se-ia desprov-lo de tudo. As pessoas prximas
morte, que perdem suas faculdades, perdem tambm todos os
direitos, cessam por isto de ser pessoas?
A
tese que vos proponho a seguinte: aqueles que se declaram favorveis
aos direitos humanos, aqueles que reconhecem sua validade, tm
que itir que existe uma natureza humana, que o homem por
natureza diferente dos animais, que esta natureza possuda por
um sujeito permanente se no queremos utilizar a palavra
substancial que se chama pessoa, isto , tm que itir
toda uma determinada concepo de homem, que no pacfica,
que no compartilhada por qualquer filosofia. fcil estar
de acordo sobre os direitos e, de fato, o acordo quase geral,
mas muito mais difcil estar de acordo sobre as implicaes
destes direitos; porm, se algum coerente consigo mesmo, se
no quer cair na contradio performativa, como acontece com
quem afirma Eu no existo!, deve itir coerentemente tambm
estas implicaes. Isto significa itir uma determinada tica,
significa procurar encontrar uma fundamentao tica aos
direitos humanos.
Todavia,
algum poderia itir que existe uma natureza humana, que existe
uma lei natural, mas como conhec-la? Ainda que existisse, ns no
podemos consider-la, porque no a conhecemos. A dificuldade
aqui fundamentada, porque os primeiros a sustentar os direitos
naturais, por exemplo, os jusnaturalistas, como Hugo Grotius,
afirmavam que existe uma natureza e existem leis, princpios,
direitos ligados natureza, os quais so evidentes para todos.
Grotius era um pouco cartesiano e, portanto, acreditava que
existissem idias inatas, claras e distintas, evidentes para
todos, e, portanto, itia que tambm os direitos e as leis da
natureza so evidentes para todos e no precisam ser
demonstrados. Este filsofo acreditava em Deus e que todos os
seres foram criados por vontade divina, mas considerava que esta
fosse uma complicao intil: interessava a ele que o direito
natural fosse aceito tambm pelos no crentes; de fato ele
afirmava que o direito natural seria vlido etsi
Deus non daretur (ainda que Deus no existisse).
As
objees aparecem logo: Locke contestou as idias inatas de
Descartes, afirmando que no era verdade que todos os homens
pensam da mesma maneira; de fato, observando os costumes dos
diferentes povos, nota-se que, verdades bvias para alguns no o
so de modo algum para outros. Portanto, mesmo itindo que
existe uma natureza, pode acontecer que esta no seja conhecida
por todos da mesma maneira, como prova o fato de que cada um se
comporta de maneira diferente.
Esta
dificuldade tinha motivos para existir numa cultura como aquela
dos sculos XVII-XVIII que assumiu como modelo indiscutvel de
saber a matemtica. Est claro que, se pretendemos, em qualquer
campo da vida humana, a mesma evidncia, o mesmo rigor, a mesma
fora demonstrativa que encontramos nas matemticas, bem pouco
setores sero suscetveis de ser conhecidos. fcil dizer
que, em relao aos direitos naturais, este conhecimento no
existe. Certos direitos e, para ns, parecem evidentes e
naturais, como a liberdade, no o eram para os antigos gregos e
romanos, os quais consideravam sumamente natural que alguns homens
tivessem que ser escravos. Tambm os Estados Unidos de Amrica
fizeram uma tremenda guerra, na metade do sculo ado, para
eliminar a escravido, que sobrevivia, at aquele momento, nos
prprios pases cristos; nem o cristianismo foi suficiente
para tornar evidente a injustia da escravido. Eis, portanto,
que o conhecimento da natureza progride, no dado
imediatamente, de maneira evidente, desde o comeo, mas um
conhecimento gradual, em parte obscuro, suscetvel de enriquecer.
Isto
aceitvel, itindo-se que a nica forma de saber vlido no
seja somente a matemtica, mas seja possvel tambm ou outro
tipo de saber, feito de perguntas e de respostas, de objees,
argumentaes, que no possuem o mesmo rigor da matemtica.
Abandonando a pretenso de um conhecimento absoluto, pode-se
chegar a um conhecimento da natureza humana.
Finalmente,
existe uma ltima dificuldade e objeo. Muitos afirmam: ainda
que itssemos que existe uma natureza humana, e que ele possa
ser conhecida, no se v por que deste conhecimento devam se
retirar prescries, isto , implicaes sobre como devemos
nos comportar. Esta uma posio muito difundida no pensamento
contemporneo, a diviso entre juzos de valores. Os fatos so
uma coisa e devem ser descritos; itamos que conseguimos descrev-los
e dessa forma conhec-los; por que desta descrio tem que se
retirar uma norma, um comando?
De
uma maneira de ser, por que deveramos retirar um dever
ser? O ser e o dever so dois planos separados entre eles.
Desta maneira se pressupe uma heterogeneidade entre o mbito do
conhecimento e o mbito da ao.
Tambm
esta maneira de pensar est, no entanto, ligada a uma viso da
realidade j superada, isto , ligada viso mecanicista da
natureza, prpria do sculo XVII e XVIII. Os filsofos daquele
tempo imaginaram a natureza como uma imensa mquina, isto ,
como o conjunto de massas sujeitas a deslocamentos, a movimentos
no espao, sob a ao de foras. Se a natureza isto,
verdadeiramente no se entende por que deve ser considerada como
lei. Tomemos uma lei qualquer, por exemplo, a da gravidade: um
corpo abandonado a si mesmo cai. Quais implicaes de ordem
moral podem ser retiradas de uma tal lei? um estado de implicaes
de coisas, um fato, mas no um valor. Se a natureza somente
isto, no h esperana de se retirar dela prescries e
direitos. mas o conceito de natureza que utilizamos e consideramos
bem diferente: quando falamos de natureza, supomos que exista
uma certa ordem natural. Na medicina a sade um estado
natural, a doena um estado patolgico, e preciso fazer tudo
para retornar ao estado natural. E por que a sade mais
natural que a doena? De um ponto de vista puramente fsico so
duas situaes anlogas.
Quando
se afirma que o homem no deve perturbar o equilbrio da
natureza, significa reconhecer naquele equilbrio um valor que
deve ser defendido. Falou-se da possibilidade de criar um indivduo
sub-humano, um hbrido entre o homem e o macaco, para empregar
nos trabalhos servis. Isto repugna a muitos: por qu? Contra que
leis e normas este fato se insurge? Quem afirma que isto est
errado, reconhece uma ordem natural contra a qual no se deve
agir. Por isso, da existncia e cognoscibilidade da natureza
retira-se o seu valor prescritivo e normativo, por parte daqueles
que reconhecem os direitos humanos. Todos aqueles que reconhecem
os direitos humanos, para no cair em contradio, devem,
portanto, itir que, na base deles, existe uma tica.
(Traduzido
pelo Prof. Giuseppe Tosi e revisado pelo Prof. Rui Gomes Dantas).
Curso
de Especializao em Direitos Humanos
Texto
n 05 Eixo Sistemtico
|