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Identidade e
Complexidade 6t2c31
por Leonardo Boff |
Homem vem de humus que
significa terra fecunda. Ado, Adam, em hebraico, "criatura humana
feita de terra", provm de adam, que quer dizer Me-Terra. O
ser humano filho e filha da Me-Terra. Ele a Terra em seu momento
de conscincia, de responsabilidade e de amor. Estas palavras,
Homo-humus, Adam-adam, j apontam para a estreita relao do ser
humano para com a Terra e atravs da Terra para com todo o universo.
nesta conexo que devemos buscar a identificao de sua natureza e de
sua misso.
1. A carteira de
identidade do ser humano |
A histria pessoal parte da
histria bio-scio-cultural. Esta, por sua vez, parte da histria
csmica. Esse enraizamento confere ao ser humano concreto uma
qudrupla identidade.
Uma csmica: somos feitos
daquelas partculas elementares que tm a idade do universo (15
bilhes de anos) e daqueles materiais forjados h bilhes de anos no
interior das grandes estrelas, especialmente os tomos de carbono,
oxignio e nitrognio imprescindveis vida. Segundo informaes
do Tycho Brahe Planatarium de Copenhagen, cada dia, caem cerca de 30
toneladas de poeira csmica sobre a Terra. Na Groenlndia pode ser
vista e recolhida da neve junto com a poeira terrestre (com 2/3 de
pureza). Bilhes destas partculas que podem ser mais antigas que a
prpria Terra e o sistema solar.
Outra terrenal : surgimos a partir
de formas primitivas de vida que se anunciaram na Terra h mais de 3,8
bilhes de anos com todos os seus componentes fsico-qumicos e
ecolgicos. Essas formas foram se complexificando at aparecerem os
hominidas bpedes com um crebro de 600 centmetros cbitos. Este
lhes permitia fabricar utenslios e abrigos. Com o evoluir da espcie
hominida em milhes de anos, emergiu, por fim, o homo sapiens com um
crebro de 1500 centmetros cbitos, do qual ns somos descendentes
diretos. Ele no rompeu a linha evolutiva nem perdeu a herana
acumulada de toda a trajetria terrenal da vida.
A partir do surgimento dos mamferos h
216 milhes de anos, incorporou o calor afetivo que une
me/pai/filhos. Soube estend-lo para um crculo maior na forma de
enternecimento, de amizade e de amor.
Em terceiro lugar, temos uma
identidade cultural: o ser humano criou a cultura, realidade
especificamente humana. Criou-a a partir de intervenes sobre si
mesmo e sobre a natureza. Essas intervenes permitiram que criasse o
habitat humano que o gregos, com justeza, chamava de ethos. Ethos, em
grego - donde vem a palavra tica, a morada humana. Quer dizer,
aquele pedao do mundo que escolhemos cuidadosamente, organizamos e
nele construmos nossa habitao permanente.
Intervir trabalhar. O trabalho o
meio maior de forjamento da cultura. Ele no s cria instrumentos e
aparatos tecnolgicos para transformar a natureza, mas tambm suscita
contedos da conscincia, formas de sentir, de valorar, de se
relacionar psicolgica e socialmente com os outros. Pertence ao
trabalho cultural a criao de linguagens, idias, mitos, artes,
etnias, organizaes sociais como a cidade, os estados-naes e hoje
a planetizao. Cada cultura projetou seu grande sonho para cima e
testemunhou seu encontro com o Mistrio que se esconde e se revela no
universo e em cada coisa. Chamou-o por mil nomes: Olorum da cultura
nag, Jav da cultura hebraica, Al da cultura muulmana, Tao da
cultura chinesa e japonesa, Pai e Me da cultura crist. Tudo na
cultura leva a marca registrada do ser humano que vem marcado tambm
por ela.
Por fim, temos uma identidade pessoal:
cada um possui um nome prprio, porque cada um representa um ponto onde
termina e se compendia o processo evolutivo. Pelo fato de ser
consciente, cada um faz uma sntese singular, nica, irrepetvel de
tudo o que capta, sente, entende e ama. Com os materiais acumulados em
seu inconsciente coletivo e com aqueles recolhidos em seu consciente faz
uma leitura e uma apreciao que s ele e ningum mais pode fazer.
Por isso cada pessoa humana representa um absoluto concreto. Ele a
ponta da pirmide para onde convergem todas as linhas ascendentes da
evoluo. Cada um est no topo. Em razo disso se entende a
dignidade humana. Entende-se tambm a afirmao dos filsofos que
ensinam: o ser humano singular um fim em si mesmo e no pode ser
meio para nada.
Tal afirmao no deve levar a pessoa
arrogncia, imaginando-se o centro do universo. A ponta da pirmide
no est isolada. Est unida a toda a pirmide, com a intricada teia
de solidariedades e interdependncias.
Assim como na nossa carteira de
identidade esto inscritos os nomes de nosso pai, de nossa me e de
nosso lugar de origem, assim tambm aqui, na nossa complexa carteira de
identidade humana, aparecem os nossos quatro enraizamentos: o csmico,
o terrenal, o cultural e o pessoal. Somos efetivamente um microcosmos.
No precisamos ter vergonha de nossas mltiplas razes. Ao
contrrio, temos razes de orgulho de nossa mestiagem universal.
Precisamos humildemente acolher nosso bilionrio processo de fazimento.
Saudar a imensa riqueza csmica que em ns desgua e que ganha um
perfil pessoalssimo em cada indivduo. Ele surge como um Amazonas de
interrogaes, um mar de desejos e um oceano de utopias.
Hoje, graas civilizao
tecnolgica, aprofundamos ainda mais o nosso enraizamento seja na
dimenso micro como na dimenso macro. Estamos deixando a Terra e nos
lanando para os espaos celestes.
Sim, algo nosso, como a nave espacial
Voyager 2, j virou corpo interestelar, pois como ultraou os
confins do sistema solar. Libertada das foras gravitacionais de nosso
sistema, viajar, se nada acontecer, por mais de 1 bilho de anos ao
redor do centro da Via lctea. Carrega dentro de si um disco
fonogrfico de ouro contendo nele e no seu invlucro dourado
saudaes em 59 lnguas humanas; uma em lngua de baleia; um ensaio
sonoro de doze minutos que inclui um beijo, um choro de beb e o
registro eletrencelogrfico das emoes de uma jovem apaixonada; 116
imagens codificadas sobre nossa cincia, sobre nossa civilizao e
sobre o ser humano; e noventa minutos dos maiores sucessos musicais da
Terra, desde msica primitivas, ando por Bach e Stravinski at os
blues modernos. Algo nosso se perenizou no universo.
Se um dia a nave for abordada por seres
inteligentes de outros mundos, estes podero saber da histria dos
humanos deste minsculo Planeta-Terra do sistema solar. Talvez a Terra
e a humanidade possam j ter desaparecido. Ou pela evoluo nossa
espcie possa j ter se transformado em outra. Permaneceu, entretanto,
a Voyager como um sacramento da Terra. Sem qualquer intencionalidade
agressiva, ela mesma significa uma mensagem de comunho, uma busca
respeitosa de relao com outros eventuais companheiros de aventura
csmica.
2. O ser humano, o
ltimo a chegar ao cenrio da histria |
De sada devemos renunciar a
qualquer arrogncia ou pretenso de privilgio ou de domnio. No
assistimos ao nascimento do universo. Ela no a Terra para ns.
Ns somos para a Terra. Ela no fruto de nosso desejo. Nem precisou
de ns para produzir sua imensa complexidade e biodiversidade. Ns
somos resultado de processos csmicos e planetrios anteriores ao
nosso aparecimento. Somos os ltimos a chegar. Entramos em cena quando
j haviam transcorridos 99, 98% da histria do universo.
H 3,8 bilhes de anos, nossos
anteados eram micrbios nas fendas profundas dos oceanos. H meio
bilho de anos ramos peixes. H 235 milhes de anos ramos
dinossauros. H 150 milhes de anos ramos pssaros. H 10 milhes
de anos ramos primatas pulando alegremente de galho em galho nas
savanas africanas. H um milho de anos ramos j plenamente
humanos, tentando domesticar o fogo. H 100 mil anos enterrvamos com
rituais e flores nossos mortos. H 40.000 j nos comunicvamos com a
linguagem. H 10.000 anos fazamos as primeiras plantaes e
domesticvamos cachorros e galinhas. Desde aquela poca a galinha
ficou confinada nos galinheiros e virou expresso de uma dimenso
humana, da histria e do universo.
Viemos desta longa histria. Como a vida
emergiu da Terra, assim o ser humano emergiu da vida. Somos parentes e
consangneos com todos os seres e os viventes do planeta. Entre o
humanos e os chimpanzs h, por exemplo, 99,6% de genes ativos em
comum. A verso humana do cromossomo o difere da do macaco reso por um
nico aminocido. Das verses do cachorro, da r, do bicho-da-seda e
do trigo por 11, 18, 43 e 53 aminocidos. Poderia haver um parentesco
maior entre as espcies que esta? Os primatas superiores no so
nossos ancestros. So nossos primos-irmos junto com os demais seres
vivos.
Mas estes quatro dcimos de diferena e
esse nico aminocido fazem toda a diferena. Precisamos nos deter
nela, pois a emerge o humano da humanidade. Em que reside?
3. O esprito:
primeiro no cosmos depois na pessoa |
A singularidade do humano reside na
autoconscincia, na liberdade, na autodeterminao, na capacidade de
responsabilizar-se e de assim mostrar-se um ser tico. Capaz at de
tomar decises em sua desvantagem para defender desvalidos. Reside na
capacidade de compaixo, de enternecimento e de entreter laos de
comunho com todos os seres e de sentir-se um com eles. Reside na
capacidade de criao pela qual modifica seu mundo circundante. Reside
na abertura ao mundo, cultura e ao infinito. O ser humano tudo
isso e ainda mais, pois habitado por uma paixo insacivel que no
encontra no universo nenhum objeto que lhe seja adequado e que o faa
repousar. Ele um projeto infinito.
Todas estas determinaes podem ser
resumidas pela palavra esprito. Ele um portador singular do
esprito. Mas no o nico como logo veremos .
Para entendermos o esprito precisamos
superar duas compreenses: a clssica e a moderna. A clssica diz que
o esprito uma parte do ser humano ao lado da matria que seu
corpo. Seria o lado imortal, vital, inteligente, capaz de amor e
transcendncia. Convive por um determinado tempo, com o lado mortal,
opaco e pesado: o corpo. Esta viso dualista e no responde pela
unidade concreta do ser humano. Todo inteiro vivo e aberto, com um
desejo de eternidade para o corpo e para o esprito.
A concepo moderna diz que esprito
o modo de ser singular do homem/mulher, cuja essncia a
liberdade. Ele seria o portador exclusivo da dimenso de esprito. Com
certeza o esprito na pessoa liberdade. Mas o esprito humano no
pode ser compreendido desconectado do processo cosmognico, do
esprito na natureza, na histria e no cosmos. Ele no pode ficar
ilhado como uma realidade parte sem relao com o processo global
que se apresenta como um sistema aberto e marcado pela indeterminao
e pela criao contnua.
H a concepo contempornea de
esprito, elaborada a partir da nova cosmologia. Essa a que
assumiremos. Coloca o esprito dentro do imenso processo da evoluo
ascendente. A dentro, o esprito foi se constituindo e ganhando
crescente emergncia e autoconscincia at implodir no esprito
humano. O esprito possui uma ancestralidade como aquela do universo.
Da ser importante arrancarmos, primeiramente, do esprito em sua
dimenso csmica. A partir da veremos uma realizao singular no
esprito humano. Que ento o esprito?
Na perspectiva cosmognica, entendemos
por esprito a capacidade das energias primordiais e da prpria
matria de interagirem entre si, de se auto-organizarem, de se
constiturem em sistemas abertos, de se comunicarem e de se formarem a
teia complexssima de inter-retro-relaes que sustentam o universo.
O esprito fundamentalmente relao, interao e
auto-organizao. Desde o primeiro momento da exploso primordial,
criaram-se relaes e interaes, gerindo unidades ainda
rudimentares que foram se organizando de forma sempre mais complexa.
Emergia ento o esprito.
O universo cheio de esprito porque
reativo, panrelacional, auto-organizativo e complexo. Neste sentido
no h seres inertes diferena de outros chamados seres vivos.
Todos participam, em seu grau, do esprito e da vida. A diferena
entre o esprito de uma rocha e o esprito humano no de
princpio, mas de grau. O princpio de relao, de interao e de
auto-organizao complexa se realiza em ambos, apenas de forma
diferente.
O esprito humano este mesmo
dinamismo tornado consciente. Sente-se inserido no todo e vinculado a um
corpo animado e vivificado. Atravs desse corpo entra em contato com
todos os demais corpos e energias do universo. No nvel reflexo,
esprito significa comunicao, irradiao, entusiasmo. Significa
tambm criao e auto transcendncia para alm dele mesmo, gerindo
comunidade com o mais distante e o mais diferente at com absoluta
Alteridade, Deus. O homem/mulher-esprito o que de mais aberto e de
mais universal existe. um n de relaes e re-ligaes para
todos os lados e dimenses. A vida consciente, livre, criadora,
amorizadora caracteriza vida humana. o esprito. a guia na
pujana de sua natureza de guia. o smbolo em sua verdadeira
acepo de ligar e re-ligar.
Se o esprito vida e relao, seu
oposto no matria mas morte e ausncia de relao. Pertence ao
esprito tambm sua capacidade de encapsulamento, de recusa
comunicao com o outro, sua vontade de dominao. A guia pode
virar galinha. o imprio do dia-blico como energia de
desestruturao e morte.
4. A subjetividade
csmica e pessoal |
Os seres todos do universo quanto
mais complexos mais vitais se apresentam. E quanto mais vitais, tambm
mais interioridade e subjetividade possuem. Esta interioridade e
subjetividade vai, por sua vez, se densificando at atingir um grau
eminente no ser humano. Ele possui um centro a partir donde organiza
toda sua vida consciente. Possui profundidade, dimenso ameaada de
desaparecer na cultura materialista de consumo e de massas. Seu eu
consciente dialoga com o seu eu profundo. To complexo quanto o
macrocosmo o microcosmos interior do ser humano. Vem habitado por
energias ancestrais, por vises e arqutipos abissais, paixes,
eventualmente to virulentas quanto tufes e terremotos. Habitado por
anjos e demnios, pelo sim-blico e pelo dia-blico, por tendncia
de ternura e compaixo que enxugam qualquer lgrima e desanuviam
qualquer perplexidade.
Dialogar com este universo interior,
integr-lo a partir de um centro pessoal e livre, canalizar as
pluriformes energias, particularmente ligadas libido, aos arqutipos
do masculino e do feminino e do Self, harmonizar o sim-blico com o
dia-blico num projeto coerente, livre e revelador da pessoa
realizar o processo de individuao/personalizao.
Assumir este processo conferir um
perfil singular e nico ao esprito de cada pessoa humana. Significa
construir a sua prpria espiritualidade. Esta espiritualidade no vem
enquadrada num marco religioso. Ela pertence caminhada de cada um,
rumo escuta e conquista de seu prprio corao. Obviamente para
uma pessoa religiosa, dialogar com sua realidade profunda, escutar
apelos que afloram de seu centro, significa ouvir Deus e escutar a sua
Palavra.
5. Qual a
misso do ser humano no universo? |
As reflexes que vertebramos
acima, colocam-nos naturalmente a pergunta: qual o sentido do ser humano
no conjunto dos seres e no universo?
Vamos logo dizendo: certamente no foi
chamado existncia para dominar, ameaar e destruir as demais
espcies. Seria contra o sentido da seta do tempo que se rege pela lei
mais universal que existe: a solidariedade csmica. Ele membro,
entre outros tantos, da imensa comunidade universal, planetria e
bitica.
Por ser portador singular do esprito
que pervade todas as coisas, chamado a agradecer, a celebrar e a
louvar a indescritvel beleza e simetria dinmica da criao. A
irar sua complexidade e sua criatividade. Convocado a ser capaz de
fazer do caos e do dia-blico condio para um cosmos mais rico e
mais sim-blico.
A tradio judaico-crist fala do
sbado como a festa da criao. Os seis dias da criao representam
o trabalho de Deus. No sbado Ele mesmo descansou, alegrou-se e
festejou o resultado de sua ao criadora. O descanso a plenitude
do trabalho e da criao.
Esse relato sim-blico oferece uma
indicao para o ser humano. H seis dias para trabalhar e produzir.
Mas h o dia da gratuidade, do cio, da festa e da dana. O trabalho
penoso e divide as pessoas por seus vrios interesses, distinta
repartio de seus frutos. No sbado todos devem olvidar estas
diferenas e se colocar no mesmo cho, iguais e confraternizados, como
filhos e filhas da Terra, e irmos e irms universais. No cabe
produzir nem obras, nem pensamentos, nem estruturar interesses. Importa
festejar, comer, danar e extasiar-se.
Ao viver esta dimenso, o ser humano
comparte da profunda gratuidade do universo. Cumpre sua misso csmica
na esteira da festa do prprio Deus. Quando volta, trabalhar sem
sentir-se escravizado por ele ou vtima da lgica da produtividade.
Por seu esprito e por sua
autoconscincia, o ser humano se mostra sempre concriador. Ele
intervm no seu projeto. Ele se faz responsvel pelo sentido de sua
liberdade e de sua criatividade. Emerge ento como um ser tico. Ele
pode agir com a natureza ou contra ela. Pode desentranhar virtualidades
presentes em cada coisa e em cada ecossistema. Conhecendo as leis da
natureza, ele pode usar esse conhecimento para prolongar a vida, reduzir
e at anular a entropia dos processos evolutivos. O futuro da Terra
dependeria assim do ser humano.
As tradies dos povos falam do ser
humano como jardineiro. Cultiva a Terra com cuidado e senso de
esttica. um verdadeiro culto que gera cultura. Ele chamado a
completar a criao deixada incompleta. A acrescentar-lhe dimenses
que possivelmente sem ele jamais viriam luz. Tal vocao no deve
servir de pretexto para o antropocentrismo e a ideologia da dominao
do mundo. Sua interveno no mundo deve se fazer sem sacrificar a
comunidade planetria e csmica da qual participa. Ele vocacionado
para ser o sm-bolos e no o dia-blos da criao.
Ele tem ainda a misso de mdico da
Terra. Historicamente se mostrou demente. Ameaou, desestruturou e
matou. A mquina que mata pode tambm salvar. Somos chamados a
revitalizar, a animar e a reintegrar o que foi durante sculos
agredido, ferido e desestruturado. No podemos, numa atitude
obscurantista, dar as costas cincia e tcnica e deixar a Terra
com suas chagas e enfermidades. Se a ferimos outrora e continuamos a
mago-la, devemos hoje san-la e dar-lhe condies de sade
integral. As solues teraputicas devem se inspirar em muitas fontes
e tradies curativas, ensaiadas pelos povos dos mais originrios aos
mais contemporneos. Nesse af no devemos desprezar o concurso de
nossa civilizao tcnico-cientfica, apesar de ter sido ela a
principal causadora de seu traumatismos.
Por fim, nossa civilizao
tecnolgica, to sim-blica quanto dia-blica, suscita uma pergunta
radical: qual seu significado mais transcendente? A que ela,
finalmente, se ordena? dominao da Terra? A fazermo-nos apenas
mais ricos materialmente, ao preo de ficarmos mais pobres
espiritualmente porque mais alienados de nossas razes csmicas? Ao
responder a estas indagaes, surge outro aspecto da misso humano: a
de salvar a Terra e a prpria espcie homo.
Importa reconhecer os inestimveis
mritos da civilizao tecnolgica. Foi ela que nos permitiu sair da
Terra. Avanar para dentro do espao exterior. Chegar Lua e,
mediante sondas, satlites e robs, estudar quase todos os planetas e
luas do sistema solar. Esta civilizao tecnolgica propiciou a
realizao de uma das aspiraes mais ancestrais da humanidade:
poder voar como os pssaros; poder viajar at onde pudssemos ir.
At onde podemos ir? At o sem
fronteiras. Para alm do sol, das estrelas, das galxias e do inteiro
universo. At o infinito. Pois at l chega nosso sonho e nosso
desejo. E no voamos porque temos avies e foguetes espaciais. Voamos
porque ansiamos voar. por causa desta sede irreprimvel que criamos
o avio e os foguetes. a guia em ns que nos convoca sempre mais
para cima e sempre mais para o alto.
A aventura espacial, iniciada nos anos
sessenta, revela a dimenso csmica do projeto humano. Ela nos fornece
uma compreenso mais concreta do radical desejo humano de sempre
transcender, de violar todas as barreiras e de s se satisfazer com o
infinito.
O cu profundo, acima de nossa cabeas,
o maior sm-bolo desta transcendncia. Por isso os seres humanos
querem chegar l. Bem o expressou o astronauta russo Yuri Romanenko ao
retornar Terra, depois de ter ficado dois anos no espao: "O
cosmos um m. Depois de ter estado l em cima, voc s pensa em
voltar para l". Queremos voltar para o cu porque somos mais do
que filho e filhas da Terra. Somos, na verdade, seres celestiais e
csmicos. Do cosmos viemos e para o cosmos queremos consciente e
inconscientemente voltar. Sempre fomos errantes. A partir do neoltico
ficamos, por breve tempo, sedentrios em moradias, cidades e estados.
Agora retomamos nossa errncia rumo s estrelas, nossa verdadeira
morada. Os materiais que nos constituem no foram formados no seio das
grandes estrelas vermelhas?
Mas no a nossa origem estelar que
explica a explorao do espao acima de nossas cabeas. por uma
razo bem mais prtica: sentimos a urgncia de sobreviver como
espcie.
Primeiramente, o desenvolvimento
exponencial do projeto tcnico-cientfico deu origem ao princpio de
autodestruio. Pela primeira vez na histria nossa espcie pode se
dizimar a si mesma. natural que as pessoas no queiram aceitar esse
eventual veredicto de morte. Os que podem, querem fugir para o espao,
bem longe da casa em chamas.
Em segundo lugar, as cincias da Terra
nos forneceram dados bastante precisos dos impactos que o planeta sofreu
durante o tempo de sua formao. Algumas vezes quase todo seu capital
biolgico foi destrudo, como, por exemplo, no perodo
cretceo-tercirio, 67 milhes de anos atrs. Desaparecem, ento,
num lapso curto de tempo, os dinossauros. Curiosamente, constatou-se que
todas as vezes que ocorreram dizimaes em massa na biosfera,
seguiu-se uma pluriferao fantstica de novas formas de vida. uma
espcie de vendetta do sistema-vida.
Sabemos hoje que existem prximos
Terra cerca de 300 mil asterides com mais de 100 metros de dimetro.
E mais de 2000 com um quilmetro ou mais. Na nuvem de Oort, nos confins
do sistema solar (entre 20 a 100 mil unidades astronmicas), existem
mais de um trilho de meteoros, asterides e cometas, alguns muito
grandes. De vez em quando saem de l, por razes gravitacionais ainda
no esclarecidas, e colidem com os planetas solares. Nenhum planeta nem
a Terra so imunes contra eles. Caindo aqui fariam estragos
formidveis. Alguns deles, dizem renomados cientistas, poderiam nos
destruir.
Se desaparecer nossa espcie homo,
seguramente ser substituda por uma outra, inteligente e, esperamos,
mais sbia. Ser algum ramo direto da espcie homo ou de algum ser
complexo de outra linhagem. Bilogos constataram que na rvore da
vida, especialmente, a partir do surgimento dos animais, se verifica
forte presso seletiva que propicia a criao de redes neuronais cada
vez mais complexas, terminando no crebro humano. Esse processo se
mantm . Ele ser responsvel pelo princpio de inteligibilidade e
de amorizao que emergir como emergiu outrora. Mesmo atualmente,
ele leva a humanidade a evoluir na direo de um superorganismo
planetrio. Tende a faz-la mais societria, mais comunitria, mais
solidria e cooperativa.
O perigo de uma hecatombe biolgica
permanente. Em funo da salvaguarda da Terra e da biosfera,
estudam-se hoje tecnologias de deflexo (desvio de rota) dos
asterides. Ou at a ocupao deles por humanos. Criar-se-iam l
condies de vida artificial, aproveitando materiais utilizveis como
os gelos e outros elementos fsico-qumicos e orgnicos de que so
abundantes. Esse alteraria sua trajetria para no danificar os
planetas solares.
Outros aventam, seriamente, a
possibilidade de os seres humanos comearem a terraformar (criao de
condies adequadas para a vida, semelhantes as da Terra) os planetas
vizinhos, especialmente Marte, a lua de Netuno, Trito, e a de Saturno,
Tit. A se desenvolveria parte da humanidade sob condies
tcnicas favorveis. Assim os ovos no estariam todos numa mesma
cesta. Caso houvesse algum cataclisma na Terra, salvar-se-ia uma
poro da humanidade, para dar continuidade ao projeto humano. Tal
como na arca de No, no se salvariam apenas humanos mas tambm
outros companheiros da comunidade vital, microorganismos, plantas e
animais.
O sonho alcana mais longe. Com os
avanos tecnolgicos crescentes, deve-se pensar em viagens siderais.
Elas adentrariam a Via-Lctea em busca de outros sistemas estelares,
possuidores de planetas habitveis. H cerca de centenas de milhares
de milhes destes na nossa galxia.
O ser humano desenvolver-se- em tais
paragens csmicas, gerando culturas diferentes, certamente outro tipo
de pessoas, todas versadas em altas tecnologias como ns hoje somos
versados no alfabeto ou nas tecnologias dos aparelhos domsticos.
Lembrar-se-o talvez, como diz o cosmlogo Carl Sagan, de seu
ancestrais quase mticos que, na segunda metade do sculo XX, no
terceiro planeta do sistema solar, a Terra, se aventuraram pela primeira
vez pelo mar-oceano dos espaos exteriores. Sorriro, nos
irar-nos-o e amar-nos-o.
Cresce mais e mais esta conscincia: ou
prolongamos a aventura dos vos espaciais ou corremos o risco de nos
destruirmos por ns mesmos, ou de sermos destrudos por algum impacto
vindo de fora. Os projetos espaciais norte-americanos, russos e europeus
estariam a servio do inconsciente coletivo da humanidade. De forma
antecipatria e prognstica, pressente um eventual cataclismo, capaz
de interromper a aventura humana na Terra.
Importa ouvir o chamado do inconsciente
coletivo, esse grande e sbio ancio que fala dentro de ns e
associ-lo ao outro chamado que vem da cincia moderna, feita com
conscincia. Esta nos conclama a entender mais radicalmente nossa
misso que : salvar nossa espcie, junto com representantes de
outras espcies, proteger nosso belo planeta contra ameaas de
asterides fatais ou de quaisquer outros perigos vindo dos espaos
siderais.
A misso do ser humano alcana mais
longe ainda: ao terraformar outros planetas, cabe a ele disseminar vida,
como dom maior da cosmognese, deve ele dar vida aos outros.
Transportada a outros mundos, a vida far seu curso. Resistir s
situaes adversas. Adaptar-se- Ao ambiente. Criar para si um
ambiente adequado, como criou um dia a biosfera sobre a Terra.
Complexificar-se- e gerar espcies talvez nunca dantes havidas,
todas cheias de propsito e de beleza.
Essa misso radical do ser humano __ o
de disseminador de vida no universo __ nos recordar a frase daquele
que se entendeu como o Filho do Homem e que, ao seu tempo, disse: eu vim
trazer vida e vida em abundncia. Essa misso no s do Filho do
Homem mas de todos os homens, seus irmos e irms.
Nesta linha de reflexo, a dimenso em
ns despertada como jamais antes. Se nos quedarmos apenas na
dimenso-galinha, quer dizer, se ficarmos em casa, melhorando apenas
nosso planeta, sem o propsito de ultra-lo, no estaremos a
salvo de assaltos possveis que vm dos impactos exteriores ou de ns
mesmos. A condio de sobrevivncia dar asas guia para que
alce vo e se salve nos cus. Se o universo est se expandindo, ns,
seres humanos, obedecemos mesma lgica: estamos nos expandindo
tambm, viajando s estrelas.
Por fim, h uma derradeira misso do
ser humano que somente discernvel a partir de uma perspectiva
espiritual: o ser humano existe para permitir um realizao nica de
Deus. Com freqncia temos asseverado que o ser humano revela uma
abertura para o infinito. Essa abertura se ordena a recepcionar o
prprio infinito dentro de si. como a taa cristalina. S realiza
sua meta quando acolhe uma sede infinita para poder se auto-comunicar a
Ele e sac-lo plenamente. Mais ainda: Deus sai de si totalmente e se
entrega absolutamente ao diferente. Deus se fez humano para que o humano
se fizesse Deus. Quando Deus resolveu sair de si mesmo e ir ao encontro
de algum que o acolhesse totalmente, surgiu ento o ser humano. O ser
humano o reverso de Deus. Permitir essa realizao divina a
suprema misso do ser humano, homem e mulher. Para isso ele foi
pensado, eternamente amado e colocado na criao.
Importa curvarmo-nos, reverentemente,
diante desta nossa realidade humana, nossa misso e osso mistrio que
se articula com o Mistrio absoluto. |