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O
CICLO DO CARANGUEJO 5z1y47
Josu de Castro
6s2v25
A
famlia Silva mora nos mangues da cidade do Recife, num mocambo
que o chefe da famlia fez quando chegou de cima.
A
famlia originria do serto. Desceu do Cariri, na sca, perseguida
pela fome. Fez uma paradinha no brejo, para tentar o trabalho nas usinas, mas
no se pde aguentar com os salrios dessa zona, sem ter direito a plantar
seno cana. Sem ter, nem ao menos o recurso do xiquexique e da macambira,
como no serto, para quando a fome apertasse.
Nesse
tempo espalharam pelo interior um boato que o governo tinha criado um ministrio
para defender os interesses do trabalhador e que com os fiscais da lei, a vida
na cidade estava uma beleza, trabalhador ganhando tanto que dava para comer at
matar a fome. A famlia Silva ouviu esta estria, acreditou piamente e
resolveu descer para a cidade, para gozar das vantagens que o governo bom
oferece aos pobres.
Logo
de chegada a famlia ouviu que a coisa era outra. No havia dvida que a
cidade era bonita, com tanto palcio e as ruas fervilhando de automveis.
Mas a vida do operrio, apertada como sempre. Muita coisa pros olhos, pouca
coisa pra barriga.
O
caboclo Z Lus da Silva no quis desanimar. Adaptou-se: Quem no tem
remdio, remediado est. Entrou na luta da cidade com todas as foras de
que dispunha, mas as foras dele no rendiam que desse para a famlia viver
com casa, roupa e comida. Casa s de 80 mil ris para cima, para comida uns
150 e os salrios sem arem de 5 mil ris por dia.
Comeou
o arrcho. S havia uma maneira de desapertar: era cair no mangue. No mangue
no se paga casa, come-se caranguejo e anda-se quase nu. O mangue um paraso.
Sem o cor-de-rosa e o azul do paraso celeste, mas com as cores negras da
lama, paraso dos caranguejos.
No
mangue o terreno no de ningum. da mar. Quando ela enche, se estira
e se espreguia, alaga a terra terra toda, mas quando ela baixa e se encolhe,
deixa descobertos os calombos mais altos. Num deles, o caboclo Z Lus
levantou o seu mocambo. As paredes de varas de mangue e lama amassada. A
coberta de palha, capim seco e outros materiais que o monturo fornece. Tudo de
graa encontrado ali mesmo numa bruta camaradagem com a natureza. O mangue
um camarado. D tudo, casa e comida: mocambo e caranguejo.
Agora,
quando o caboclo sai de manh
para o trabalho, j o resto da famlia cai no mundo. Os meninos vo pulando
do jirau, abrindo a porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a
gua barrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os braos
na lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braos atolados
na lama, a famlia Silva est com a vida garantida. Z Lus vai para o
trabalho sossegado, porque deixa a famlia dentro da prpria comida, atolada
na lama fervilhante de caranguejos e siris.
Os
mangues do Capibaribe so o paraso do caranguejo. Se a terra foi feita pro
homem, com tudo para bem servi-lo, tambm o mangue foi feito especialmente
pro caranguejo. Tudo a, , foi ou est para ser caranguejo, inclusive o
homem e a lama que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros
resduos que a mar traz, quando ainda no caranguejo, vai ser. O
caranguejo nasce nela, vive nela. Cresce comendo lama, engordando com as
porcarias dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a gelia
esverdeada de suas vsceras pegajosas. Por outro lado o povo da vive de
pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos at que
fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita de lama fazer a carne do
seu corpo e a carne do corpo de seus filhos. So cem mil indivduos, cem mil
cidados feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como
detrito, para a lama do mangue, para virar caranguejo outra vez.
Nesta
placidez de charco, identificada, unificada no ciclo do caranguejo, a famlia
Silva vai vivendo, com a sua vida solucionada, como uma das etapas do ciclo
maravilhoso. Cada elemento da famlia marcha dentro desse ciclo at o fim,
at o dia de sua morte.
Nesse
dia os vizinhos piedosos levaro aquela lama que deixou de viver, dentro dum
caixo pro cemitrio de Santo Amaro, onde ela seguir as etapas do verme e
da flor. Etapas demasiado poticas, cheias duma poesia que o mangue no
comportaria. Parte-se aparentemente, neste dia, o ciclo do caranguejo, mas os
parentes que ficam, derramam caridosos as suas lgrimas no mangue para
alimentar a lama que alimenta o ciclo do caranguejo
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