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O Operrio da Utopia
Affonso
Romano de Sant'anna
Apanhado em
meio noite,
jogado no cho da cela,
o corpo conhece, n,
a primeira humilhao.
Outras viro: o soco,
o choque, a ameaa,
o urro na escurido.
- Quantos volts
a o corpo
- em coao,
at que dele escorra o fel
da delao?
- O que procura o torturador
nas pedras do rim alheio
como vil minera/dor?
-O que ama esse ama/dor
da morte?
esse morcego suga/dor
sob os pores da corte?
esse joga/dor
do jogo bruto?
esse servial da morte
e cria/dor
- do luto?
O torturador se julga, e acaso o ,
um trabalha/dor diferente:
seu trabalho destruir
o sonha/dor insistente
como o mdico que resolvesse
matar de dor
- o paciente.
Mas sob a tortura
o que h de melhor no homem
jamais se manifesta. Quando muito
podeis catar pelo cho
o pouco que dele resta.
Mas soltai-o em festa, ao sol
e vereis que a verdade
de seus gestos se irradia.
Livre
vestindo a pele do dia,
o torturado caminha
com seu corpo tatuado
de violncia e poesia.
Mas ele no marcha s.
Apenas segue na frente
na direo da utopia.
Os Desaparecidos
De repente, naqueles dias, comearam
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereo e outro
ou no txi que se ia.
Culpado ou no, sumia-se
ao regressar do escritrio ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mo, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que no via.
Mes segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e mdicos em meio cirurgia.
Mecnicos se diluiam
- mal ligavam o trno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
e no era miopia. Desaparecia-se
at a primeira vista. Bastava
que algum visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspcuo
e o mais obscuro sumia.
At deputados e presidentes esvaneciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, arefeitos, constatar no alm,
como os pescadores partiam.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da platia
enquanto riam.
No, no era fcil ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
- desapareciam.
Se fosse ao tempo da Bblia, eu diria
que carros de fogo arrebatavam os mais puros
em mstica euforia. No era. ironia.
E os que estavam perto, em pnico, fingiam
que no viam. Se abstraam.
Continuavam seu baralho a conversar demncias
com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo
com suas roupas e dentes.
Em toda famlia mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
e isto alimentava fices
- nas salas e mentes
enquanto no palcio, remorsos vivos boiavam
- na sopa do presidente.
As flores olhando a cena, no compreendiam.
Indagavam dos pssaros, que emudeciam.
As janelas das casas, mal podiam crer
- no que viam.
As pedras, no entanto,
gravavam os nomes dos fantasmas
pois sabiam que quando chegasse a hora
por serem pedras, falariam.
O desaparecido como um rio:
- se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou ter voz.
No h verme que em sua fome
roa totalmente um nome. O nome
habita as vsceras da fera
Como a vtima corri o algoz.
E surgiam sinais precisos
de que os desaparecidos, cansados
de desaparecerem vivos
iam aparecer mesmo mortos
florescendo com seus corpos
a primavera de ossos.
Brotavam troncos de rvores,
rios, insetos e nuvens em cujo porte se viam
vestgios dos que sumiam.
Os desaparecidos, enfim,
amadureciam sua morte.
Desponta um dia uma tbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da histria
- coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.
A natureza, como a histria,
segrega memria e vida
e cedo ou tarde desova
a verdade sobre a aurora.
No h cova funda
que sepulte
- a rasa covardia.
No h tmulo que oculte
os frutos da rebeldia.
Cai um dia em desgraa
a mais torpe ditadura
quando os vivos saem praa
e os mortos da sepultura. |