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O FUTURO DA MORTE

James J. Hughes
Especial para o "Journal of Evolution and Technology"

Sumrio

A eroso da Morte

Alm do antropocentrismo

Mortos Cerebrais e Congelados

No-Pessoas

Legalmente Mortos

Definies desmoronando

A tecnologia est problematizando a morte. A tecnologia oferece condies de congelamento entre a vida e a morte que antes s haviam sido consideradas na mitologia, na fantasia ou na filosofia. At o advento do respirador artificial, a cessao da respirao espontnea levava imediatamente cessao da circulao e a dano cerebral irreversvel. Desde os anos 60, expandimos constantemente as reas cinzentas entre a vida e a morte, estabilizando uma srie de processos no at ento inexorvel trajeto da vida ao p.
A tecnologia realmente no criou essa rea cinzenta, mas a ampliou e a tornou evidente. A morte sempre foi um processo, mais que uma situao binria. Na viso budista ou parfitiana (de Derek Parfit, professor de filosofia da Universidade de Nova York), que eu adoto, no h uma identidade essencial ou real nas coisas.

Os limites que traamos ao redor da "vida" e do "self" so arbitrrios, motivados por interesses e objetivos especficos. A vida e o "self" no tm uma realidade essencial que possa ser claramente discernida ou limites que possam ser marcados definitivamente. H, sobretudo, uma variedade de processos envolvidos em nascer ou morrer, processos envolvidos na iluso da identidade contnua do "self". As linhas traadas tm a ver principalmente com a poltica, a economia, a cultura e a tecnologia dos que as desenham.

Essa foi a posio adotada por Robert Ettinger, em seu manifesto de 1965 do movimento crinico, "The Prospect of Immortality" (A Perspectiva de Imortalidade). Embora ele tenha alegado a natureza ilusria do "self", tambm sentiu o desejo apaixonado de persistir na iluso da existncia pessoal contnua. Em conseqncia, props congelar o corpo e, mais especificamente, o crebro das pessoas logo aps a morte. Se o congelamento preservasse informaes neurolgicas crticas da identidade, uma futura tecnologia poderia reparar os tecidos danificados e fazer o congelado reviver.

Ettinger e crionistas posteriores afirmaram que os congelados devem ser considerados pacientes vivos espera de tratamento. Atualmente, cerca de cem "pacientes" esto "suspensos crionicamente" nos EUA, e organizaes crinicas esto crescendo na Amrica do Norte e na Europa. Cerca de mil americanos se inscreveram em organizaes crinicas para serem suspensos quando morrerem. Angariou-se dinheiro para a construo de uma instalao crinica capaz de conter 900 corpos e/ou cabeas congelados.

Os crionistas enfrentam muitos desafios. Governos estaduais e mdicos os tratam com desprezo e ironia. O pblico rejeita o aspecto mrbido dos "mortos-vivos", enquanto muitos cientistas e mdicos concluram que os danos aos tecidos causados pela formao dos cristais de gelo destruiriam clulas demais, tornando irrecuperveis o corpo ou o crebro. Pesquisadores de crinica vm aperfeioando lentamente mtodos menos destrutivos de congelamento e substncias crioprotetoras para preservar o tecido cerebral.

Um grande progresso para a aceitao da crinica ocorreu com a publicao em 1986 do plano de nanotecnologia de Eric Drexler, "Engines of Creation" (Motores de Criao). Drexler, que um crionista, incluiu no texto uma discusso sobre a viabilidade de reparar por meio de nanotecnologia um tecido danificado pelo gelo. Posteriormente, ele e outros destacados defensores da nanotecnologia do Instituto Foresight forneceram slidas bases cientficas para a afirmao de que os congelados por meio das tcnicas atuais podero ser revividos dentro de 30 a 70 anos.

A definio de morte est mudando rapidamente com o avano da tecnologia de manuteno e reparo dos pacientes com leso cerebral. Os principais tericos da morte cerebral recentemente concluram que a iniciativa para definir um padro final de morte deve ser abandonada em favor de um conjunto de perguntas mais pragmticas: quando algum est "suficientemente morto" para interromper o e vida, transplantar rgos, efetivar testamentos e enterrar o corpo?
O avano da tecnologia de cuidados essenciais tambm est desafiando a irreversibilidade. As atuais definies de morte cerebral tm como predicado a suposio de que esses pacientes no podem se manter em vida fsica, mas hoje est demonstrado que isso no verdade. As tecnologias emergentes para tratamento de danos cerebrais aprofundaro o dilema das atuais leis e prticas sobre a declarao de morte cerebral. As condies antes consideradas como morte aro a ser reversveis, exigindo a elaborao de novas leis, definies e prticas relativas morte.

A eroso da morte

Logo depois da proposta do padro de morte cerebral (Beecher, 1968), formaram-se grupos para debater quanto o crebro precisa estar destrudo para que um paciente seja declarado morto. Veatch (1975) abriu a discusso dizendo que seres humanos deveriam ser declarados mortos quando tiverem perdido a capacidade de interagir significativamente com os outros humanos. Veatch recebeu o apoio de um pequeno grupo de "neocorticalistas". Esses afirmaram que o limite legal da morte deveria ser o estado de inconscincia permanente, que marca a morte da pessoa.

Em resposta, partidrios do "crebro inteiro" defenderam um padro que exige a completa morte cerebral. Esse padro foi posteriormente endossado pela Comisso Presidencial para o Estudo de Problemas ticos na Medicina e Pesquisa Biomdica e Comportamental, em seu relatrio "Defining Death" (Definindo a Morte), de 1981, e inscrito no Decreto de Declarao de Morte, que foi aprovado em 36 Estados norte-americanos.

O debate nas dcadas de 70 e 80 deixou claro que a vantagem do padro do crebro inteiro no a coerncia tica, mas o pragmatismo. O padro do crebro inteiro era mais fcil de operacionalizar, tendia conservadoramente para o lado da vida e foi considerado a mudana mais radical que o pblico poderia tolerar. A definio de crebro inteiro foi desde o princpio um compromisso entre os que preferiam uma definio neocortical e os que preferiam a definio somtica de morte.

O padro de crebro inteiro foi adotado como um compromisso entre os trs campos: morte corporal, morte do crebro inteiro e morte neocortical. O padro de morte do crebro inteiro foi apresentado para os neocorticalistas como uma verso conservadora de seu padro: se o crebro inteiro estivesse morto, no haveria possibilidade de recuperao da conscincia. Para os defensores da morte corporal, afirmou-se que a morte do crebro inteiro destri processos autnomos e conduz, inexoravelmente, cessao da respirao e da circulao: a morte do crebro inteiro seria simplesmente uma extenso do padro anterior.

Na dcada de 90, porm, houve uma eroso da posio do crebro inteiro, ao menos nos crculos em que debatida. A eroso derivou de uma variedade de problemas crescentes. Um desafio foi o conceito de reversibilidade como critrio para a morte. Durante dcadas ficou claro que alguns pacientes foram declarados mortos porque eles, seus responsveis e seus mdicos no queriam reviv-los, mesmo quando poderiam ter sido ressuscitados. Essa isso foi codificada na "Ordem de No Ressuscitar" (DNR, na abreviao em ingls).

Os cirurgies da Universidade de Pittsburgh deram o prximo o lgico. Em 1992, o centro mdico dessa universidade aprovou uma diretriz permitindo que os pacientes com doenas terminais ou leses cerebrais fossem inscritos para se tornar "doadores sem batimento cardaco" (NHBDs, na sigla em ingls), caso suas doenas permitissem o uso de seus rgos. Os pacientes no preenchem o critrio de morte cerebral, mas tm danos cerebrais que os tornam dependentes de ventilao. O procedimento coloc-los num ambiente cirrgico, desligar o respirador, esperar dois minutos e ento iniciar os procedimentos para preservar e remover seus rgos. Assim como na DNR, a morte no declarada porque tecnicamente irreversvel, mas porque se decide no revert-la.

O procedimento NHBD se disseminou por dezenas de outros hospitais, e houve grande debate sobre sua aceitabilidade tica. Em resposta, alguns cticos importantes mudaram para a posio de que a morte se tornara irrelevante. Notadamente os bioticos Robert Arnold e Stuart Youngner (1993) afirmaram que a regra do doador morto deveria ser abandonada. Wikler (1988), por exemplo, indica a circularidade de definir esses corpos como "mortos" cujo tratamento desejamos suspender, e ento suspender o tratamento dos "mortos". O protocolo de Pittsburgh amplia a atual definio de morte porque os rgos vitais s so retirados de doadores mortos com permisso, e no temos autorizao para "matar" um paciente para salvar outro.

Linda Emanuel (1995), da Associao Mdica Americana, props que a lei seja redefinida para reconhecer uma "zona de morte" entre a inconscincia permanente e a cessao da respirao. Dentro dessa zona seria permitido que as pessoas estabelecessem suas prprias definies de morte, itindo a suspenso do tratamento e a remoo de rgos at a inconscincia permanente. Ningum deve sofrer eutansia se estiver acima dessa zona, e ningum deve ser enterrado ou cremado antes de parar de respirar.
Outra linha desafiadora para a posio do crebro inteiro veio dos defensores do padro de morte da circulao e da respirao. Por exemplo, Alan Shewmon (1998), neurologista na Universidade da Califrnia em Los Angeles, demonstrou que alguns pacientes sobrevivem mais de dez anos depois de ter diagnosticada a "morte cerebral". A pesquisa de Shewmon demonstra que no h nada essencial no crebro para a regulao e a manuteno do corpo.

Os defensores do crebro inteiro afirmam que esse padro estaria intimamente ligado morte somtica, j que a morte do crebro inteiro levaria inevitavelmente morte somtica. J se revelou que essa ligao enganosa. Se a separao do crebro de sua funo na integridade somtica fosse equivalente morte, diz Shewmon, condies como "transeco da juno crvico-medular mais vagotomia", com a completa separao do crebro da coluna vertebral, tambm seria equivalente morte, embora o paciente permanea consciente e o corpo continue funcionando.

Tecnologias emergentes de tratamento neurolgico logo provocaro uma crise total do infeliz padro de morte do crebro inteiro. Pesquisas com clulas-tronco demonstraram que o crebro tem a capacidade de gerar novas clulas pluripotentes para reparar danos cerebrais, e que essas clulas migram para as reas danificadas, assumindo as funes necessrias. Vetores adenovirais tm sido usados com sucesso para introduzir fatores de crescimento de nervos e estimular esse crescimento em reas lesionadas. Pesquisas conseguiram bloquear cadeias qumicas que em geral suprimem a regenerao de neurnios no sistema nervoso central. Dentro de uma dcada, deveremos ver prteses neurais capazes de assumir as funes de tecidos neurais danificados. O desenvolvimento de dispositivos de informtica usando materiais biolgicos e de software desenvolvido sobre modelos biolgicos sugere futuras convergncias entre computao orgnica, software de redes neurais e interfaces entre o sistema nervoso e o computador. No futuro, vtimas de leses neurolgicas devastadoras, que antes seriam declaradas sem esperana ou mortas, sero vistas como pacientes potencialmente vivos que merecem uma tentativa de terapia reparadora, a menos que partes do crebro com estruturas crticas de identidade estejam comprovadamente destrudas. Se a restaurao fracassar, o paciente poder ento ser deixado para morrer.

Alm do antropocentrismo

Em junho de 1999, o Escritrio de Patentes dos EUA recusou uma patente para um hbrido de humano e animal, ou "quimera", que havia sido apresentada pelo ativista antibiotecnologia Jeremy Rifkin. Ao recusar a patente, o departamento itiu que, embora tenha permitido extenso patenteamento de formas de vida criadas pela biotecnologia e de DNA humano, a 13 emenda constitucional probe a propriedade de seres humanos e, portanto, seu patenteamento. Como a Suprema Corte, o Congresso e o Escritrio de Patentes nunca definiram o que um ser humano, rejeitaram a patente de um meio-humano/meio-animal transgnico, que consideraram estar prximo demais dessa fronteira.
Na prxima dcada, os transgnicos obrigaro os EUA e o mundo a definirem o que humano. Se no na primeira tentativa, e trabalhando a partir de princpios democrticos e liberais, a definio de humano dever enfocar as capacidades cognitivas, a subjetividade e a autoconscincia como base da cidadania, em vez dos limites das espcies, enganosos e em via de desaparecer.
Por exemplo, o filsofo biotico Peter Singer e um grupo internacional de ativistas organizaram o Projeto Primata Superior. Sua proposta que devemos ampliar os limites dos direitos primeiramente e de forma extensiva aos primatas superiores, j que h fortes evidncias de que eles compartilham nossas capacidades de autoconscincia. Eles afirmam que esses macacos devem ter os mesmos direitos que as crianas humanas: no devemos permitir que crianas e macacos sejam mortos, torturados ou presos. A pedido do projeto, a Nova Zelndia proibiu experimentos mdicos com esses animais. Singer (1990) estendeu o argumento a uma crtica da pecuria industrial, afirmando que bebs humanos e gado domstico tm mais ou menos as mesmas capacidades mentais e, portanto, deveriam ser tratados igualmente, de acordo com a lei.

Parece improvvel que o consumo de carne seja proibido num futuro prximo, ou que tenhamos permisso para comer bebs. Mas parece provvel que a tendncia a aumentar a proteo dos interesses dos animais continue. De modo similar, a biotecnologia continuar criando vrios tipos de quimera e fazendo experimentos com o aperfeioamento da inteligncia dos animais, forando a concepo de uma tica centrada na conscincia a suplantar o antropocentrismo. Os primeiros animais de cognio aperfeioada que se expressarem de maneira clara causaro mudana drstica no pensamento sobre os direitos das coisas vivas.

Essas mudanas no ocorrero facilmente e sero uma das divises polticas fundamentais nos prximos anos, entre biofundamentalismo e transumanismo. De um lado, os biofundamentalistas insistiro nos direitos de todos os seres humanos, conscientes ou no, e tentaro banir as tecnologias reprodutivas, a eliminao, pela transgnese, dos limites entre as espcies e a relativizao da definio de morte. Por outro lado, a emergente viso de mundo transumanista abranger a transgresso tecnolgica e manter o foco nas capacidades cognitivas de vrias formas de vida. Em outras palavras, os transumanistas sero os agentes dessa elucidao final da lei e da tica liberal-democrticas.
A controvrsia que hoje gira em torno da coerente tica utilitria da vida de Peter Singer uma amostra das futuras lutas. A aplicao liberal de um padro de direitos com base na conscincia poder permitir certas conseqncias que muitos consideram "repulsivas", como a criao de clones sem cabea para transplantes, a eutansia de recm-nascidos e dos gravemente dementes e mais direitos para alguns animais do que para alguns humanos, como prope Singer. Mas os benefcios tangveis do novo padro, ainda mais do que sua coerncia com o pensamento ocidental, oferecero enormes incentivos para sua adoo. Poucos dentre ns estaro dispostos a recusar os potenciais benefcios da cincia mdica com base em um terreno "moral" incoerente, com base na repulsa.

Mortos cerebrais e congelados

Se um padro tico com base na conscincia fosse institucionalizado nas prximas dcadas, improvvel que tivesse um impacto imediato sobre as pessoas preservadas crionicamente. Em 1965, Ettinger argumentou que os congelados devem ser classificados como cidados vivos: "Os congelados sero proprietrios e contribuintes". De modo similar, a maior organizao crinica do mundo, Alcor, afirma que os pacientes crinicos devem ser considerados vivos por seu potencial de renascimento.

Stephen Bridge e a Alcor resumiram as vantagens e desvantagens jurdicas de o paciente crinico ser considerado morto ou vivo. Se o crionauta est morto, pode legalmente doar seu corpo Alcor para armazenamento sob leis que regem as doaes anatmicas. Mas poderia decidir ser "tratado" na Alcor se fosse considerado vivo. Se o crionauta estiver morto, pode usar aplices de seguro de vida para custear a suspenso e mecanismos estatais para deixar dinheiro para se manter em criostase e se sustentar aps a reanimao. Se estivesse "vivo", tambm poderia deixar seu dinheiro num fundo.

O principal motivo para os crionistas se preocuparem com a definio de seu status que muitos gostariam de ser congelados antes de legalmente mortos, de ser tratados como pacientes em unidades de emergncia em vez de cadveres. No apenas eles tm de esperar at que a doena tenha potencialmente destrudo seus crebros, como "aps a morte" podem sofrer atrasos no congelamento e at autpsias, que tornam impossvel a boa conservao de informaes neurolgicas.?????AE????/font>/p>

Thomas Donaldson defendeu recentemente o caso do congelamento pr-morte. Ele tem um tumor inopervel no crebro, que atualmente est em remisso, mas nos anos 80 ele acreditou que aquilo ameaava sua vida. Processou o Estado da Califrnia para ter o direito de que seu provedor crinico, a Alcor, fosse protegido de acusaes de assassinato ou suicdio assistido por ajud-lo a ter sua cabea removida e congelada. Os tribunais da Califrnia recusaram o processo em apelao.

Qual a probabilidade de que crionautas sejam redefinidos como "suficientemente vivos" para ter direitos como o de ser congelado sem uma declarao de morte?
Quando as pessoas potenciais devem ser tratadas como pessoas reais? Um embrio codifica as informaes de uma potencial pessoa autoconsciente, da mesma maneira que o tecido cerebral congelado. claro que o embrio no contm um padro de personalidade autoconsciente, enquanto o crebro adulto congelado potencialmente contm. Mas isso suficiente para tratar o crebro adulto congelado como "vivo"? Claramente os congelados no preenchem uma definio baseada na conscincia da vida como percepo contnua em viglia, muito menos personalidade autoconsciente. Por outro lado, se tal padro for aplicado com muita rigidez, as pessoas que esto em sono profundo ou em suspenso hipotrmica, mas podem ser reanimadas, ou que foram colocadas em estados teraputicos de suspenso temporria, tambm estariam mortas. Desejamos continuar tratando pessoas potenciais sem percepo como "vivas", mas quais?

Em minha ontologia budista/parfitiana, "vivo" e "morto" no podem ser definidos absolutamente, mas somente num contexto histrico especfico. Ento, em vez de perguntar que pessoas esto realmente vivas ou mortas, a questo se reduz s condies sob as quais a definio da Alcor dos congelados como vivos seria aceita pela lei e pela opinio pblica. O fator-chave nas decises sociais e jurdicas para tratar pessoas potenciais como pessoas reais a probabilidade de que o potencial se realize: qual a probabilidade de que uma pessoa potencial se torne pessoa real?

Pessoas dormindo ou em coma temporrio tm probabilidade suficiente de retornar personalidade consciente para continuar possuindo direitos de pessoas vivas. Adotar a definio de vida da Alcor significaria que a persistncia da memria que codifica informaes e da personalidade no crebro congelado devem ser consideradas vida, mesmo que essa informao nunca seja reanimada como autoconscincia. Mas, se uma pessoa congelada for enviada para flutuar eternamente no espao, de que serviria consider-la em estado de "vida"?

No-pessoas

A probabilidade de se tornar uma pessoa, ou de retornar condio de pessoa, na verdade produto de dois fatores: a capacidade de as no-pessoas se tornarem novamente pessoas e a inteno dos responsveis socialmente legtimos de retornar no-pessoas condio de pessoas. A inteno de ressuscitar uma pessoa com o corao e a respirao suspensos determina parcialmente quando no processo de morte uma pessoa declarada morta. Pessoas com parada cardaca so tratadas como pessoas vivas a serem reanimadas, se sob outros aspectos forem saudveis e reanimveis. Mas se estiverem doentes e sem condies de recuperar a conscincia, ou se elas e seus responsveis no quiserem que sejam reanimadas, so tratadas como mortas. O responsvel deve ter a sano social. Se uma enfermeira decidir no ressuscitar algum em suspenso, poder ser acusada de assassinato.

A lei de morte cerebral de Nova Jersey, sob presso dos judeus ortodoxos, que no aceitam a morte cerebral como morte, permite uma exceo religiosa ao estatuto de morte cerebral. Em outras palavras, os mortos cerebrais esto mortos em Nova Jersey, a menos que seus parentes, que fazem parte de um poderoso lobby religioso, no queiram que estejam. Um feto tratado como paciente se sua me pretender lev-lo a termo, ou se o Estado tiver aprovado a legislao de proteo fetal, para proteger os fetos de drogas ou violncia. Mas no ser tratado como paciente se for to deficiente que no possa sobreviver. Ser abortado.

Supostamente, os responsveis por crionautas sempre desejaro sua reanimao um dia, mas sero sempre uma parcela reduzida da populao. Por isso a situao social em mutao dos congelados ser determinada pelas mudanas nas avaliaes da probabilidade de que o congelado possa ser reanimado com sucesso. Com efeito, embora os congelados tenham sido pragmaticamente classificados como mortos porque esto ausentes do mundo dos vivos, poderiam ser reinseridos nesse mundo se houvesse evidncias de que estariam apenas em uma longa viagem.

H vrias outras circunstncias em que a situao de uma pessoa como morta ou viva determinada pela probabilidade estatstica de seu retorno. Por exemplo, a classificao de algum como em estado "permanentemente vegetativo" uma questo de probabilidade estatstica. A prtica americana se baseia nas recomendaes da Fora-Tarefa Multissocietria sobre o Estado Vegetativo Permanente (1994) de que os pacientes devem ser considerados permanentemente inconscientes se ficarem inconscientes durante trs meses depois de uma leso no-traumtica (como overdose qumica) ou 12 meses depois de uma leso cerebral traumtica. Uma vez classificado como permanentemente vegetativo, os mdicos tm muito maior latitude para o tratamento conservador, com frequncia permitindo que a morte "siga seu curso".
Outra situao semelhante a da pessoa desaparecida. Quando algum desaparece em alto-mar ou no volta da guerra, a lei comum h muito tempo permite que essas pessoas desaparecidas sejam declaradas mortas, por motivos prticos. Se as circunstncias da morte da pessoa desaparecida forem incertas e houver alguma possibilidade de que ela tenha naufragado ou seja refm numa priso secreta no Vietn ou esteja simplesmente escondida para evitar o pagamento de penso aos filhos, o tribunal impe um perodo de espera de alguns anos para que a morte seja declarada. O Cdigo Uniforme de Validade de Testamento, aprovado por 18 Estados americanos e parcialmente vlido nos demais, declara a morte como tendo ocorrido depois de um perodo de espera de cinco anos.

Em certo sentido, embora conheamos a localizao de seus corpos, os que esto suspensos crionicamente so pessoas desaparecidas. Eles esto numa condio da qual podero ou no retornar. Mesmo quando a tecnologia comea a convencer o pblico e os tribunais de que os suspensos podero teoricamente ser reanimados, existe a possibilidade de que eles tenham sofrido perda de informao alm da capacidade tecnolgica de restaurao. Os tribunais provavelmente continuaro a declar-los mortos, por pragmatismo, para que seus negcios e seus herdeiros no sejam deixados no limbo, espera de sua potencial futura reanimao. Para que os congelados sejam novamente declarados vivos, como um soldado que retorna depois de 20 anos perdido na selva, ser preciso esperar a reanimao com sucesso de pelo menos um crionauta, estabelecendo que a probabilidade de retorno maior do que zero.
A Alcor salienta que a atual definio de morte s uma confisso da ineficcia da medicina atual. Na medida em que a tecnologia alterar o padro de morte cerebral, a futura definio operacional de "suficientemente morto" se tornar algo como: "O paciente no pode ser trazido de volta autoconscincia, com continuidade das memrias e personalidade anteriores, porque perdeu essa informao de maneira irrecupervel, ou no somos capazes de recuper-las, ou ele ou seus guardies no desejam que seja reanimado".

Quando houver reanimao com sucesso, ou houver provas substanciais da possibilidade de reanimao por meio de experimentos com animais, o status e os direitos dos suspensos crionicamente aumentaro gradualmente. Halperin (1998) apresenta isso muito bem em "The First Immortal" (O Primeiro Imortal) -as pessoas talvez no sejam acusadas de assassinato por descongelamento indevido, mas isso se tornar um delito cada vez mais srio, ligado probabilidade de que a pessoa pudesse ter sido recuperada. Ettinger props em 1965 que "talvez a lei e a reconhecer trs tipos de pessoas... as que esto em animao suspensa, as que foram congeladas aps a morte e as que esto totalmente mortas porque foram queimadas, decompostas, perdidas no mar ou de alguma forma se considerou improvvel sua recuperao".

Halperin adotou a proposta de Ettinger e a ampliou, sugerindo um acordo legal que reconhea quatro categorias de mortos, com direitos crescentes: "Primeiro, os irrevogavelmente mortos, isto , cremados, perdidos no mar etc.; segundo, pessoas congeladas ou com seu DNA preservado de alguma forma, mas com leses cerebrais irreparveis; terceiro, pessoas congeladas aps a morte com tecido cerebral razoavelmente salvo; quarto, pessoas em animao suspensa, congeladas antes da morte e de qualquer tipo de decomposio material cerebral". A quarta categoria retorna verdadeira questo no debate sobre o status dos congelados: ser um dia legal ser congelado antes da declarao de morte, garantindo a maior preservao possvel de informao neuronal?

Legalmente mortos

"Os critrios legais e mdicos atuais para declarar a morte geralmente so irrelevantes para o prognstico definitivo do paciente, se a suspenso crinica for iniciada imediatamente e as condies pr-morte no tiverem prejudicado a estrutura cerebral. Na prtica, a necessidade de esperar at que esses critrios sejam satisfeitos pode resultar em danos srios e at irreversveis em casos especficos" (Alcor, 2000).

O principal motivo de preocupao dos crionistas sobre a definio de seu status que muitos gostariam de ser congelados antes de estarem legalmente mortos e de ser tratados como pacientes que recebem tratamentos emergentes, em vez de cadveres.

As pessoas sempre tero de estar mortas para serem congeladas? Talvez no. Desde que estar congelado considerado "morto", ajudar a congelar algum que ainda no est morto considerado assassinato ou "suicdio assistido". Quando Thomas Donaldson enfrentou os tribunais da Califrnia sem sucesso no incio da dcada de 90 pelo direito de ter sua cabea removida e congelada, a Suprema Corte da Califrnia considerou que, embora o suicdio seja legal, Donaldson no tinha o direito de "assistncia do Estado", e que a "assistncia" da equipe crinica poderia ser considerada assassinato. Por isso, a capacidade de congelar pessoas antes de estarem mortas depender da legalizao de um conjunto muito liberal de modos aceitveis de suicdio assistido.
A maioria dos americanos apia o direito ao suicdio assistido. Pessoas com educao superior so mais seculares e aprovam uma maior liberdade pessoal, e parcela crescente de americanos recebe educao superior. As perspectivas a longo prazo de liberalizao do suicdio assistido e de muitas outras liberdades pessoais parecem promissoras.

A aceitao de um procedimento experimental aumenta na medida em que o risco de mortalidade diminui. Quando houver provas substanciais de que a reanimao possvel, a suspenso ser considerada uma opo de tratamento experimental com uma chance de sucesso maior do que zero.
Um novo tratamento contra a Aids pode ficar em teste clnico por anos. O dilema tico colocado pelos pacientes terminais de Aids que poderiam ser beneficiados pelo tratamento experimental muito conhecido. Se o paciente receber tratamento antes do trmino do teste clnico, possvel que sua situao piore significativamente. Por outro lado, negar um tratamento que poderia salvar a vida de algum que morrer em breve de todo modo eticamente insustentvel. No caso da crinica, isso no um dilema enquanto se aguarda o resultado dos testes clnicos (quase concludos). um dilema inerente natureza da proposta.

Quando a viabilidade da reanimao for provada, e o risco de mortalidade, minimizado, a tecnologia dever estar suficientemente desenvolvida para que menos pessoas precisem recorrer a medida to extrema. Em outras palavras, quando os congelados forem considerados pessoas vivas submetidas a um procedimento experimental, ningum mais estar sendo congelado.

O status de uma pessoa reanimada ser determinado pelo quanto daquela pessoa sobreviveu. Uma das avaliaes-chave a fazer sobre a situao de cada crebro congelado a da probabilidade de que tenha retido informao suficiente para recuperar a pessoa congelada. Muito antes que a sociedade tenha de enfrentar essas decises, porm, o terreno para elas ser criado pelos debates sobre o tratamento e a situao dos que sofreram leses cerebrais. Numa era de tratamentos neurolgicos para leses cerebrais graves, teremos de enfrentar o significado de recuperar uma pessoa viva que perdeu toda informao crtica identidade. Diremos que essa pessoa idntica anterior, com seus direitos e obrigaes, ou ser considerada uma nova pessoa?

Quando formos capazes de reanimar os congelados, provavelmente poderemos prever a probabilidade de recuperar informaes crticas identidade com certa preciso. Fazer essa previso ser importante para as famlias que esto pensando em tentar a reanimao. Se a recuperao for improvvel, diretrizes prvias da pessoa ou de seus responsveis devero especificar se a reanimao deve ser tentada, com o provvel resultado de uma nova pessoa. Quando a pessoa for reanimada, dever ser avaliada para ver se de fato cumpre a exigncia de continuidade. Se for uma nova pessoa, haver uma forte tendncia de que seja considerada uma sucessora ou parente da pessoa morta, e no a mesma pessoa. "Apesar de nossos instintos em contrrio, h uma coisa que a conscincia no : uma entidade nas profundezas do crebro que corresponde ao "self", uma espcie de ncleo de conscincia que dirige o espetculo, assim como o "homem atrs da cortina" manipulava a iluso em "O Mgico de Oz". Depois de mais de um sculo de buscas, os pesquisadores do crebro h muito concluram que no existe um lugar concebvel para esse "self" se localizar no crebro fsico, e que ele simplesmente no existe" (Nash, Park e Wilworth, 1995).
Assim como a tecnologia nos leva a reconhecer que valorizamos pessoas contnuas, singulares e autoconscientes mais do que as plataformas em que se apresentam, tambm nos forar a reconhecer que essas pessoas so fices. A tecnologia eventualmente desenvolver a capacidade de traduzir o pensamento humano em mdias alternativas. Essa tecnologia ameaa os limites e a continuidade do "self", a autonomia do indivduo e suas decises e a til fico da igualdade social.

"Quando possvel facilmente modificar, emprestar ou se fundir com outros, e separar quaisquer de suas caractersticas externas e internas (...) no haver mais linhas distintas entre os indivduos. Existe um bom termo -"divduos'- para as entidades de "self" configurvel; tambm h o aspecto da sobreposio de entidades em uma ecologia funcional lquida. Voc poderia dizer se as florestas ou trechos de grama so iguais? E as coisas de estrutura mais fluida, como as comunidades da internet ou as idias? Os ncleos de conhecimento sero mais fluidos e entrelaados do que qualquer coisa que conhecemos, e o conceito de igualdade pareceria a eles uma relquia" (Alexander Chislenko, 1997).
Ameaas ao "self" surgiro em muitas reas. Nosso controle do crebro lentamente deixar claro que a cognio, a memria e a identidade pessoal so na verdade muitos processos que podem ser desagregados. Teremos um controle cada vez maior sobre nossas prprias personalidades e memrias, e sobre as de nossos filhos. A completa nanorreplicao do processo mental abre a possibilidade de clonagem de identidades, distribuio da identidade de uma pessoa em diversas plataformas, compartilhamento de componentes mentais com outros e fuso de vrios indivduos numa s identidade.

Quando chegarmos ao ponto em que as funes neurolgicas possam ser controladas, projetadas, clonadas, compartilhadas, vendidas e desligadas, a iluso da auto-identidade autnoma e contnua se tornar mais evidente. Quando nos livrarmos desse predicado fundamental da tica iluminista, a existncia do indivduo autnomo, estaremos alm dos esquemas ticos da lei democrtica liberal e da biotica. J comeamos a explorar esse territrio na lei sem o perceber. Por exemplo, quem culpado no caso de distrbio de personalidades mltiplas? Dilemas desse tipo certamente se multiplicaro.

Existem vises de mundo ticas que no tm o indivduo autnomo como centro, da teocracia ao comunismo. Esperemos que, se comearmos a levar a srio essas experincias do pensamento, teremos alternativas mais satisfatrias, baseadas na democracia liberal, e no a negando, quando chegar a hora.

Definies desmoronando

As atuais definies de morte, elaboradas 20 anos atrs para abordar a tecnologia do respirador, esto desmoronando. Algum sugerem que dispensemos a "morte" como um marcador unitrio de situao humana, enquanto outros pedem o reconhecimento de um padro neocortical. O sculo 21 comear a ver uma mudana em direo tica centrada na conscincia e na personalidade como um meio de abordar no s a morte cerebral, mas tambm fetos extra-uterinos, quimeras inteligentes, ciborgues e outras formas de vida que criaremos com a tecnologia.

A luta entre os antropocentristas e os biofundamentalistas, de um lado, e os transumanistas, do outro, ser feroz. Cada proposta de um meio para estender as capacidades humanas para alm de nossas limitaes "naturais" e "impostas por Deus", ou para apagar os limites do humano, ser batalhada politicamente e nos tribunais. Mas, no fim, devido crescente secularizao, s vantagens tangveis das novas tecnologias e lgica interna dos valores do Iluminismo, acredito que comearemos a desenvolver uma biotica que confira significado e direitos s gradaes de autoconscincia, independentemente da plataforma.
No entanto, essa transformao provavelmente no far com que as pessoas em suspenso crinica sejam automaticamente reclassificadas como vivas. Por motivos pragmticos, e devido incerteza da perda de informao, os congelados crinicos provavelmente continuaro mortos at que se prove que esto vivos. Estaro na posio do soldado desaparecido em ao, que foi considerado morto, sua mulher casou de novo, sua propriedade foi vendida e subitamente resgatado por um futuro "nano-Rambo". Quando houver provas tangveis de que os prisioneiros continuam no campo, haver reavaliao da situao dos congelados. Ser congelado ar ento a ser visto como uma alternativa plausvel para a morte, e no uma maneira bizarra de preservar um cadver. A essa altura, porm, poucas pessoas precisaro utilizar essa opo.

Como essa mudana na viso pblica da situao dos congelados est muitas dcadas frente, e j que enquanto isso os congelados sero considerados "mortos", as organizaes crinicas devem dar mais ateno colaborao com organizaes de "opo pela morte". A maioria das situaes propostas de suicdio assistido no permitiria a suspenso crinica como um mtodo. Mas, com as tendncias seculares que apiam uma maior liberalizao e a crescente organizao da maioria em defesa do suicdio assistido, parece provvel que nas prximas dcadas surjam leis permitindo que os crionistas escolham a suspenso como parte de seu mtodo de "suicdio".

A mudana sugerida na poltica social em direo a um padro pessoal afetaria drasticamente os reanimados. Um padro pessoal abriria a possibilidade de que a identidade legal de uma pessoa reanimada fosse contingente sua recuperao de alguma extenso da memria e da personalidade anteriores. Diretrizes prvias dos suspensos devem abordar a questo de se eles tm interesse em reparar e reanimar seu crebro, mesmo que nanossondas ou outros mtodos sugiram que a pessoa resultante no ser ela, mas uma nova pessoa.

Quando a tecnologia tiver decifrado completamente os processos constituintes e as estruturas da memria, da cognio e da personalidade, e nos tiver dado controle sobre elas; quando formos capazes de compartilhar ou vender nossas habilidades, caractersticas de personalidade e memrias; quando alguns indivduos comearem a abandonar a individualidade por novas formas de identidade coletiva -a o edifcio do pensamento tico ocidental desde o Iluminismo estar em uma crise terminal. As tendncias polticas e ticas que hoje so previsveis, enquanto o Iluminismo avana para seu telos, se tornaro imprevisveis. Enquanto os transumanistas trabalham para completar o projeto do Iluminismo, a mudana para um padro de lei e tica baseado na conscincia, tambm devemos preparar valores polticos e uma tica social para a era alm do indivduo autnomo e singular.

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