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Tortura no Brasil, um pesadelo
sem fim ?
DIREITOS
HUMANOS
A
persistncia da prtica da tortura, no Brasil,
continua manchando nossa democracia. O pas ratificou a
Conveno das Naes Unidas contra a Tortura, criou
lei especfica que torna a torturo crime e tem uma avanada
Constituio que a repudia. Apesar desses esforos,
a prtica da tortura ainda faz parte da dinmica do
trabalho policial e do cotidiano das prises. Para
superar essa triste realidade que enfrentam as vtimas,
pertencentes s camadas pobres da sociedade, um enorme
esforo poltico deve se concentrar na luta contra a
impunidade dos agressores - principal motivo do
aparecimento renovado desses casos.
Porque
a tortura ainda praticada no Brasil?
No fcil
responder essa pergunta e muito menos solucionar o
problema. Com um regime democrtico, o pas reconhece
os tratados internacionais que buscam acabar com a
tortura, sua Constituio de 1988 repudia essa prtica,
tem leis que punem os agressores e boa parte da
sociedade escandaliza-se com os casos mais noticiados.
Apesar disso, a mdia continua mostrando, com certa
frequncia, que jovens em conflito com a lei, suspeitos
de crimes e encarcerados so alvo de tortura e
maus-tratos, e tais prticas custam a ser banidas do
aparato policial-prisional brasileiro. Tentamos
mostrar, neste artigo, como e por que a tortura continua
presente no cenrio nacional, na dinmica do
trabalho policial e na istrao da vida
prisional, a despeito dos recursos legais disponveis e
dos instrumentos internacionais que exigem dos pases
signatrios, como o Brasil, que a prtica seja
coibida e erradicada.
A
Conveno contra a tortura
No
mbito internacional, a tortura foi um dos primeiros
crimes - logo aps o genocdio - a serem
considerados, dada a sua gravidade. A Conveno contra
a tortura e outros tratamentos ou penas cruis,
desumanos ou degradantes foi proposta pela ONU em 28 de
setembro de 1984 e j foi ratificada por 124 pases. O
elevado nmero de adeses revela o alcance do
consenso internacional sobre o tema, bem preparados,
mais bem pagos, melhores condies de trabalho,
demandando assim fortes investimentos do prprio Estado
no aparato policial. Igualmente, a reduo da
tortura e da imposio de maus-tratos nas prises
a necessariamente pela melhoria das condies de
trabalho, salrio e preparao do pessoal de segurana.
Por
fim, a tortura persiste porque o Executivo, o Judicirio
e o Ministrio Pblico no se empenham o suficiente
para reverter essa prtica, respeitadas algumas excees.
O prprio poder Executivo estadual tolera que suas polcias
torturem e que suas prises sejam degradantes. juizes
e promotores, por sua parte, aquietam-se diante de inquritos
policiais de baixa qualidade tcnica, baseados muitas
vezes em informaes extorquidas dos suspeitos
mediante tortura. Ao mesmo tempo, nem sempre os juizes e
promotores cumprem suas atribuies de apurar a fundo
as irregularidades que as prises apresentam. Se os
executivos estaduais, que tm a responsabilidade pela
manuteno dos aparelhos policiais e prisionais,
submetem cidados a condies de encarceramento
aviltantes (tortura, superlotao, ausncia de
assistncia mdica, pssimas condies de
higiene, ventilao, alimentao de m qualidade
etc.), o poder Judicirio e o Ministrio Pblico, por
sua vez, fiscalizam e controlam o funcionamento do sistema
carcerrio e da polcia muito timidamente.
Os
desafios
Foram
criadas iniciativas importantes para o combate
tortura, como as ouvidorias de polcia e o SOS Tortura.
Porm, ados mais de quatro anos da adoo da Lei
n0 9.455, o nmero de agentes condenados
pela prtica da tortura, no pas inteiro, sequer chega
a 20. Segundo relatrio do Conselho Nacional dos
Procuradores Gerais de justia, houve 18 condenaes
por crime de tortura (Folha de S. Paulo, 23/08/01). Na
maioria dos casos, ainda se recorre aos tipos penais
de leso corporal ou constrangimento ilegal para
punir a tortura (como quando no existia a lei). Os
dados revelam que, na prtica, os avanos
introduzidos pela lei de 1997 ainda no foram incorporados.
No
entanto, o nmero de aes judiciais com base nessa
Lei cresceu 109% desde dezembro de 1999, conforme
levantamento do Conselho Nacional dos Procuradores
Gerais de Justia, em 24 estados. Se, at o fim de
1999, 240 denncias de tortura haviam sido oferecidas
pelo Ministrio Pblico, um ano e nove meses depois, o
nmero subira para 502.
A
prtica da tortura persistir enquanto ocorrer a impunidade
de seus agentes. Como j disse o relator da ONU, Nigel
Rodley, a tortura um crime de oportunidade,
que pressupe a certeza da impunidade. O combate a
esse crime exige, assim, a adoo pelo Estado de
medidas preventivas e repressivas. De um lado, necessria
a criao e manuteno de mecanismos que eliminem a
oportunidade de torturar, garantindo a transparncia
do sistema prisional-penitencirio. Por outro, a luta
contra a tortura impe o fim da cultura de impunidade,
exigindo do Estado rigor no dever de investigar,
processar e punir seus perpetradores.
Nossa
democracia e civilidade estaro ainda ameaadas
enquanto persistir a tortura a cidados abordados na
rua por policiais, ou detidos em dependncia policial
ou prisional, ou ainda enquanto se tolerar que os
condenados pena privativa de liberdade tenham uma
pena adicional por meio de tortura, maus-tratos e submisso
a condies degradantes de encarceramento.
Flvia
Piovesan
Departamento de Direito, Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo
A autora procuradora do estado de So Paulo e
coordenadora do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da
PGE/SP
Fernando
Salla
Ncleo
de Estados da Violncia, Universidade de So Paulo
O autor coordenador-executivo da Comisso
Teotnio Vilela de Direitos Humanos.
Sugestes
para leitura
ANISTIA
INTERNACIONAL, Brasil: aqui ningum dorme sossegado.
Violaes dos direitos humanos contra detentos. Porto
Alegre/So Paulo, Anistia Internacional, 1999.
COMISSO
DE DIREITOS HUMANOS DA ONU, Relatrio sobre a tortura
no Brasil, Genebra, ONU, 2001.
MINISTRIO
DA JUSTIA. Primeiro relatrio relativo implementao
da Conveno
contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruis,
desumanos ou degradantes no Brasil, Braslia, 2000.
PETERS,
E., Tortura, So Paulo, tica, 1989.
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