Tortura: aspectos conceituais e normativos
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1
Introduo
2 Tortura-prova
3 Tortura como crime-meio
4 Tortura racial ou discriminatria
5 Tortura-pena ou
tortura-castigo
6 Tortura do encarcerado
7 Omisso
frente tortura
8 Crimes qualificados pelo resultado
9 Causas de aumento de pena
10 Efeitos da condenao:
perda do cargo e interdio para o seu exerccio
11 No
cabimento de fiana, graa ou anistia
12 Progressividade
na execuo da pena
13 Extraterritorialidade da lei penal
brasileira
14 Vigncia e irretroatividade
15 Revogao
do art. 233 do ECA
16 Outros temas relevantes.
1
Introduo
O
homem
o nico
animal que provoca
sofrimento aos outros
com o objetivo
exclusivo de provoc-lo
(Schopenhauer).
A
tortura acompanha a histria do ser humano. Desde a Antigidade
dela se tem registro. Na Idade Mdia, particularmente durante a
Inquisio,
a tortura era o meio mais comum de se alcanar a prova do delito
(confisso). Apesar dos avanos democrticos da humanidade, o
certo que a tortura ainda no acabou. No s no se
extinguiu como aparece s vezes institucionalizada
ou at mesmo legalizada, tal como itiu, h pouco
(15.11.1996), o Supremo Tribunal israelense, no que concerne aos
palestinos. Tambm na Irlanda do Norte, recentemente, uma das
suas Cortes (caso McCormick) avalizou a tortura como meio vlido
de punio.
No que se relaciona com nosso pas, um juiz auditor militar no
Rio de Janeiro, sob a influncia do clima de guerra que as Foras
Armadas declararam ao crime, acabou arquivando, a pedido do Ministrio
Pblico, um inqurito, onde se apurava o delito de tortura
contra dois capites, tortura essa praticada contra um cabo,
durante seis horas. O juiz itiu que possvel o uso do
rigor necessrio para a descoberta de um delito.
No incomum, de outra parte, como destacou Antonio Magalhes
Gomes Filho, a isso da confisso, pela jurisprudncia
brasileira, ainda que eventualmente tenha havido
maus-tratos.
Por
tudo isso que a ONU, em 1984, em Nova York, aprovou a Conveno
contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos
ou Degradantes, que foi adotada pelo Brasil em 1991 (Decreto 40,
de 15.02.1991). Logo em seguida proclamou-se a Conveno
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (OEA), que entrou
em vigor no Brasil em 1989 (Decreto 98.386, de 09.11.1989). A
Constituio brasileira a ela fez referncia (art. 5., inc.
XLIII), equiparando sua prtica aos crimes hediondos. No tnhamos,
no entanto, at o advento da Lei 9.455/97, nenhuma descrio tpica,
em nvel infraconstitucional, dessa conduta criminosa. O art. 233
do ECA apenas a mencionava, mas no a descrevia.
Nosso
Cdigo Penal, em vrios momentos, tambm se refere tortura:
como agravante, como circunstncia qualificadora do homicdio
etc. O Cdigo Penal Militar tampouco a desconhece. Mas fazia
falta uma lei para descrever, com preciso, o delito,
mesmo porque, se especialmente durante a ditadura isso aconteceu,
no se questiona que a democracia no pode toler-la.
A lex nova, pelo menos, tem a virtude de se posicionar contra a cultura
do extermnio, que decorre da banalizao da violncia e do
desrespeito ao ser humano.
A
Lei 9.455/97 veio, em sntese, suprir omisso indesculpvel do
legislador brasileiro. No seu art. 1. (caput
e 1. e 2.), descreveu seis condutas tpicas
(tortura-prova, tortura como crime-meio, tortura racial ou
discriminatria, tortura-pena ou castigo, tortura do encarcerado
e omisso frente tortura); no 3. cuidou do crime
qualificado; no 4. previu causas de aumento de pena. Nos pargrafos
seguintes ( 5., 6. e 7.) esto a perda do cargo, a
proibio de fiana, graa e anistia, assim como a previso
de progressividade de regime. No art. 2. temos duas hipteses
de extraterritorialidade. Nos dois artigos finais esto a vigncia
da lei e a revogao do art. 233 do ECA. Examinaremos em seguida
cada um desses dispositivos.
2
Tortura-prova
Esse
crime est descrito desta maneira: Art. 1. Constitui crime
de tortura: I constranger algum com emprego de violncia ou
grave ameaa, causando-lhe sofrimento fsico ou mental: a) com o
fim de obter informao, declarao ou confisso da vtima
ou de terceira pessoa (...).
Exige-se
constrangimento (submetimento,
sujeio, anulao da liberdade de vontade). Esse
constrangimento (contra algum, isto , contra alguma pessoa)
pode ocorrer de duas maneiras: a) mediante violncia
(fora fsica sobre o corpo agresso, por exemplo , que
cause prejuzo fsico essa a violncia sem preocupao
esttica ou que afete o corpo e a mente sofrimento mental
, tal como uso de drogas, suplcio da gua, privao do
sono etc.) estes ltimos so os chamados suplcios com
preocupao esttica; b) ou mediante grave
ameaa (que a intimidao ou anncio de um mal futuro, seja
pessoa da vtima ou a algum que lhe prximo) a ameaa
grave afeta o intelecto, nela h sofrimento mental.
O
crime de tortura, de outro lado, para sua configurao (nessa
forma do inc. I), exige uma especial
finalidade do agente
(obter informao, declarao ou confisso da vtima ou
de terceira pessoa). Vtima aqui s pode ser entendida como
vtima da tortura, no como vtima de algum eventual
delito que ela mesma praticara. Qualquer outra finalidade do
agente (tortura por sadismo ou vingana, por exemplo) no
configura o delito em questo (e sim crime comum do ).
No
preciso que se alcance a informao, declarao ou confisso
pretendida. Consuma-se com o sofrimento fsico ou mental,
decorrente do constrangimento. Pouco importa qual seja a natureza
do fato em torno do qual gira a pretendida declarao ou confisso
ou informao: fato penal, comercial, pessoal etc.
Por isso, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo: tanto funcionrio
pblico como particular. Essa qualidade de crime
comum, alis, tambm vlida para as figuras tpicas que sero
estudas em seguida (com exceo do crime omissivo).
3
Tortura como crime-meio
Na
alnea b aparece o
delito de tortura como meio para a realizao de outro delito
(para provocar ao ou omisso de natureza criminosa).
Exemplo: o chefe de uma quadrilha pode torturar algum para que
cometa determinados crimes. Mas, independentemente da realizao
dos crimes pretendidos, punvel a tortura cometida. preciso
que seja ao ou omisso de natureza criminosa; logo, afastada
est a contraveno. Quem tortura outra pessoa para a prtica
de uma contraveno incorrer em outros delitos do .
4 Tortura racial ou discriminatria
w2t2
A
tortura racial ou discriminatria exige uma especial
motivao do agente
(tortura em razo de discriminao racial ou religiosa).
Tortura-se por causa de uma determinada raa ou religio. Logo,
tortura por outras motivaes (sexuais,
regionais etc.) no se encaixa nesse dispositivo legal. Outros
crimes do resultaro configurados (leso, homicdio etc.)
O
crime de tortura previsto neste art. 1. (inc. I) absorve (princpio
da consuno) os delitos de constrangimento ilegal, ameaa, leso
leve e, quando o caso, como acertadamente nos ensina Rui Stoco,
o abuso de autoridade (assim como os arts. 322 e 350, caput e inc. III, do ).
Se a informao que se pretende faz parte da execuo tpica
de outro crime (tortura-se a vtima, dentro da execuo de um
roubo, para que informe a senha do carto do crdito, por
exemplo), s se configura este ltimo (roubo). No se configura
a tortura como crime autnomo.
5
Tortura-pena ou tortura-castigo
No
inc. II do art. 1. est capitulado o delito de tortura-pena ou
tortura-castigo, in verbis:
Submeter algum, sob sua guarda, poder ou autoridade, com
emprego de violncia ou grave ameaa, a intenso sofrimento fsico
ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de carter
preventivo.
Uma
outra maneira de cometer o delito de tortura, como se v,
consiste em submeter algum sob
sua guarda
(seja jurdica ECA, por exemplo ou ftica algum
sob seu cuidado, vigilncia), poder ou autoridade
(existem duas formas de se interpretar as palavras poder e
autoridade: no art. 61 do , o abuso de poder
refere-se a relaes pblicas, enquanto o abuso de
autoridade refere-se a relaes privadas; mas aqui, na Lei
9.455/97, no se fala em abuso, seno em poder e
autoridade, tout court;
assim, o primeiro pode estar relacionado a relaes privadas
poder de uma pessoa sobre outra, como tutor, curador etc. ,
enquanto a expresso autoridade pode referir-se a relaes
pblicas ter algum sob sua autoridade, numa deteno
legal, por exemplo) com emprego
de violncia ou grave
ameaa, a intenso
(exagerado, veemente, forte)
sofrimento fsico ou mental,
como forma de
aplicar castigo
pessoal ou medida
de carter preventivo.
Aqui est a chamada tortura-pena (o castigo a finalidade do
agente). Difere da tortura-prova (quando meio para a obteno
de uma prova). Esse crime absorve os delitos de maus-tratos e leso leve. O
sofrimento intenso depende, evidentemente, de cada vtima
concreta, de cada caso concreto. O mesmo sofrimento pode ser
intenso para uma e no intenso para outra pessoa. Mas Direito
Penal isso mesmo: Direito de cada caso concreto.
A
pena, para as quatro hipteses de tortura at aqui examinadas,
de recluso, de dois a oito anos. extremamente discutvel
o cabimento do sursis,
por duas razes: a) ex vi
legis, pretende-se que o
regime inicial seja sempre o fechado ( 7., infra); b)
considerando a gravidade do delito de tortura, pode ser que falte
o requisito do mrito (grau de culpabilidade e
reprovabilidade do fato, motivao, conseqncias, circunstncias
etc.) para sua concesso. Embora preenchido o requisito objetivo
da pena (at dois anos), em cada caso concreto, pode faltar o
requisito subjetivo (mrito). Se de um lado haveria exagero na
determinao do cumprimento da pena integralmente em regime
fechado, de outro talvez o sursis,
no caso especfico, no se apresente como a medida poltico-criminal
mais aconselhada. In medio
est virtus.
6
Tortura do encarcerado
O
1. do art. 1. prev o delito de tortura contra o
encarcerado, in verbis:
Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a
medida de segurana a sofrimento fsico ou mental, por intermdio
da prtica de ato no previsto em lei ou no resultante de
medida legal.
O tipo exige que
se submeta pessoa presa (recolhida a crcere, pouco importando o
ttulo do encarceramento: preso definitivo ou provisrio, penal
ou civil etc.) ou sujeita a medida de segurana (pessoa recolhida
em hospital prprio) a sofrimento fsico ou mental por intermdio
da prtica de ato no previsto em lei ou no resultante de
medida legal (exemplos: jogo de luz, privao de luz, privao
de sol, solitria etc.).
7
Omisso frente tortura
No
2. do art. 1. o legislador incriminou a omisso frente
tortura, nestes termos: Aquele que se omite em face dessas
condutas, quando tinha o dever de evit-las ou apur-las,
incorre na pena de deteno de um a quatro anos.
Aquele
que se omite em face de um dos delitos de tortura acima citados,
quando tinha o dever (jurdico) de evit-los ou apur-los,
responde pelo crime previsto no 2.. A punio pressupe
conhecimento da situao ftica da tortura (verbo evitar)
e conhecimento e competncia para a sua apurao (verbo
apurar). Exige-se dolo. Impossvel a figura culposa, por
falta de previso. Crime omissivo prprio, no possui
resultado. Consuma-se com a simples omisso.
Pena:
deteno de um a quatro anos. Em tese, pela pena mnima
cominada, esse delito ite sursis
e at mesmo suspenso condicional do processo. De qualquer modo,
preciso examinar com cautela o requisito do mrito
(culpabilidade, antecedentes etc.). Se no concedidos, o mximo
que o juiz pode fixar o regime semi-aberto (porque se trata de
pena de deteno). Nessa hiptese, no existe a
obrigatoriedade de cumprimento inicial em regime fechado (v. 7.).
O omitente, mesmo que no tenha evitado a tortura, no responde
por eventual forma qualificada do delito.[20]
8
Crimes qualificados pelo resultado
Por
fora do 3., se resulta leso corporal de natureza grave
ou gravssima, a pena de recluso de quatro a dez anos; se
resulta morte, a recluso de oito a dezesseis anos.
Se
resulta (da violncia empregada na tortura) leso corporal grave
(, art. 129, 1.) ou gravssima (, art. 129, 2.), a
pena de recluso de quatro a dez anos. Cuida-se de crime
preterdoloso. Logo, se o agente no pretendia torturar e sim
lesar a vtima, s responde por leso corporal grave ou gravssima.
De outro lado, se resulta (da violncia ou ameaa) a morte, a
pena de recluso de oito a dezesseis anos. crime
preterdoloso tambm. Logo, se o agente pretendia a morte desde o
incio (dolo direto ou eventual): homicdio qualificado pela
tortura (pena: de 12 a 30 anos).
Se o agente queria, no princpio, apenas torturar e s depois
resolve matar, h duas posies possveis: a) caso de
progresso criminosa o maior (homicdio) absorve o menor
(tortura); b) concurso material de crimes: tortura mais homicdio.
Penso
que devem ser distinguidas as hipteses: no caso de
tortura-castigo, haveria progresso criminosa (o homicdio surge
na mesma linha de afetao do bem jurdico: integridade fsica,
vida); no caso de tortura-prova, dois crimes, em concurso
material.
9
Causas de aumento de pena
Em
razo do 4., aumenta-se a pena de 1/6 at um 1/3: (a) se o
crime cometido por agente pblico v. art. 327 do ; (b)
se o crime cometido contra criana (menos de doze anos),
gestante (exige-se dolo do agente), deficiente (fsico ou mental)
e adolescente (de doze a dezoito anos de idade); (c) se o crime
cometido mediante seqestro (este fica absorvido, princpio da
consuno).
Discute-se
se essas causas de aumento tambm incidiriam ou no sobre a
forma qualificada. Alberto Silva Franco entende ser impossvel:
esse aumento s recairia sobre o preceito secundrio bsico. O
tema reconhecidamente polmico: verifique-se, por exemplo, a
jurisprudncia a respeito da incidncia ou no do furto
agravado (noturno) sobre o qualificado. Impe-se no perder de
vista que as causas de aumento de pena implicam uma especial
alterao no contedo do injusto, que leva a uma maior
reprovabilidade do fato. Se cada um deve ser punido de acordo com
sua culpabilidade (, art. 29), no nos parece equivocada a
concluso de que tais causas de aumento incidiriam inclusive
sobre as formas qualificadas. Com isso estamos itindo tambm
que eventuais causas especiais de diminuio devero ter
tratamento idntico. Quanto ao furto, por exemplo, sempre entendi
que o privilgio se aplica s qualificadoras (porque reduz o
contedo do injusto). E se so issveis as causas de diminuio,
conseqentemente tambm o sero as de aumento.
10
Efeitos da condenao: perda do cargo e interdio para o seu exerccio
Para
demonstrar rigor punitivo, no 5. esto previstas duas sanes
extras para o condenado: perda do cargo e interdio para
o seu exerccio. Por fora do disposto no art. 92 do , fala-se
tambm aqui em efeito secundrio da condenao penal. que j
no existe dentro do a pena ria. Mas esta permeia ainda
vrias leis especiais (M, Dec.-lei 201/67, Lei de Falncias
etc.). Logo, tambm seria possvel o emprego de tal terminologia
na hiptese em tela (por se tratar de lei especial).
A
condenao por crime de tortura acarretar (desde que se trate
de agente pblico) a perda do cargo, funo ou emprego pblico.
Cuida-se de pena ria (ou efeito secundrio da condenao)
que no necessita de especial motivao (segundo a literalidade
do diploma legal). Alm da perda, o agente pblico fica
proibido para o exerccio de funo ou cargo ou emprego pblico
pelo dobro do prazo da pena aplicada, isto , mesmo
reabilitado, no pode concorrer a nenhum cargo ou funo ou
emprego pblico no referido prazo. Ultraado esse prazo, pode
o sujeito concorrer a cargos pblicos, porque nenhuma pena pode
ser perptua. Mas jamais voltar para o cargo que ocupava.
A
parte final desse 5. tambm se aplica a particular que tenha
cometido tortura, isto , condenado por esse crime, fica
impossibilitado do exerccio de qualquer cargo pblico, pelo
dobro do prazo da pena aplicada. Mesmo que reabilitado, deve
observar esse prazo. Depois de transcorrido, pode concorrer a
cargos pblicos.
Discute-se
se esse efeito automtico da condenao seria exagerado,
desproporcional, particularmente no caso do 2. (omisso em
evitar ou apurar o delito). Mesmo porque a pena cominada para esse
delito de deteno. Em casos concretos particulares,
efetivamente, pode ser que a perda do cargo seja exagerada,
especialmente se a conduta refere-se ao verbo apurar. Nessa
hiptese, deve o juiz valer-se do princpio da proporcionalidade
para afastar a incidncia da norma no caso concreto. No
se trata de algo impossvel, mas exigir do juiz uma construo
fundamentada e convincente.
11
No cabimento de fiana, graa ou anistia
O
crime de tortura inafianvel e insuscetvel de graa ou
anistia ( 6.). So restries previstas na Constituio
Federal (art. 5., inc. XLIII). No cabe fiana, mas em tese no
est impedida a liberdade provisria sem fiana; no cabe graa,
mas em tese no est vedado o indulto coletivo. A lei penal no
pode ser interpretada extensivamente quando o legislador usa uma
determinada expresso, sabendo do seu sentido tcnico. Tampouco
pode-se itir a analogia in
malam partem.
12
Progressividade na execuo da pena
Pelo
que ficou estatudo no 7., o condenado iniciar o
cumprimento da pena em regime fechado. Isso significa que possvel
a progresso de regime. A melhor doutrina afiana o acerto do
legislador.
Quanto ao delito omissivo ( 2.), no entanto, como punido
com deteno, est fora da exigncia do cumprimento inicial em
regime fechado. Aplica-se normalmente o : o mximo que se pode
impor, no princpio, o regime semi-aberto.
A tortura, na
configurao constitucional, ao lado do terrorismo, do trfico
de drogas e dos crimes definidos em lei como hediondos, constitua
um bloco de infraes com tratamento jurdico nico (muito
distinto, no entanto, das demais infraes penais). Seja em nvel
constitucional, seja em nvel infraconstitucional, o bloco
referido tinha regime jurdico especial unitrio. No plano ordinrio,
tudo era regido pela Lei 8.072/90. Em nada qualquer uma dessas
infraes diferenciava das outras. Agora, com a Lei 9.455/97,
ite-se progresso na execuo da pena do crime de tortura.
Disso
pode-se extrair, como bem destacou Alberto Silva Franco, a
seguinte concluso: No h razo lgica que justifique a
aplicao do sistema progressivo aos condenados por tortura e
que, ao mesmo tempo, se negue igual sistema aos condenados por
crimes hediondos (...) a extenso da regra do 7. do art. 1.
da Lei 9.455/97, para todos os delitos referidos na Lei 8.072/90,
equaliza hipteses fticas que esto constitucionalmente
equiparadas e restabelece, em sua inteireza, a racionalidade e a
sistematizao do ordenamento penal.
No
mesmo sentido, Ney Moura Teles e o famoso acrdo da
Sexta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justia, relatado
pelo Min. Luiz V. Cernicchiaro.
Para Oswaldo Duek Marques, nada impede possa dar-se uma
interpretao sistemtica, para estabelecer o tratamento mais
benfico aos crimes previstos na Lei 8.072/90.
Na
esteira do entendimento que acaba de ser citado vem o HC 7.197-DF,
do STJ, 6. Turma, rel. Min. Vicente Leal, j. 04.06.1998, DJU
de 03.08.1998, p. 325. V. ainda: HC 7.185-DF, STJ, 6. Turma,
rel. Min. Vicente Leal, j. 19.05.1998, DJU
de 10.08.1998, p. 81.
A
introduo no sistema penal brasileiro do regime integral
fechado (Lei dos Crimes Hediondos) foi um dos maiores equvocos
legislativos j ocorrido: primeiro porque no havia autorizao
constitucional para isso (resultando violado o princpio da
individualizao da pena); em segundo lugar porque no resolveu
em nada o problema da criminalidade violenta; em terceiro lugar
porque retirou do preso a esperana de uma progresso, que
favorece a ressocializao e o bom comportamento; por ltimo
porque acabou desencadeando a maior avalanche de fugas e rebelies,
jamais vistas no sistema penitencirio brasileiro. Est correta,
nesse ponto, a Lei de Tortura, ao prever a progressividade. Mas o
melhor caminho, de lege
ferenda, ser permitir
a progressividade em todos os delitos, exigindo-se, no entanto,
para crimes violentos, o cumprimento de uma parcela maior da pena
em cada regime. O atual patamar de um sexto, para crimes que
realmente perturbam o convvio social, demasiadamente inferior
ao que se imagina ser o equilibrado e poltico-criminalmente
correto.
A
questo da extenso da progressividade, prevista na Lei 9.455/97
para os crimes de tortura, a todos os crimes hediondos e
equiparados, no entanto, ainda no est totalmente resolvida.
Vale recordar que no Colendo Supremo Tribunal Federal a tese da
aplicao analgica (in
bonam partem) da lei
citada a todos os crimes hediondos no foi aceita (STF, HC
76.371-SP, j. 25.03.1998). No Egrgio TJSP vem predominando tambm
esse ltimo entendimento restritivo (v. Ap.Crim. 229.0873/7, rel.
Silva Pinto, j. 20.10.1997).
13
Extraterritorialidade da lei penal brasileira
Est
previsto no art. 2.: aplica-se a Lei de Tortura a crimes
ocorridos fora do territrio brasileiro desde que (a) a vtima
seja brasileira ou (b) encontre-se o agente em local sob jurisdio
brasileira. De se observar que o dispositivo legal nada diz sobre
o sujeito ativo: pode ser brasileiro ou no. O que apresenta de
peculiar o seguinte: sendo brasileira a vtima da tortura, a
aplicao da lei brasileira incondicional (no preciso o
atendimento ao 2. do art. 7. do ); no sendo a vtima
um brasileiro, s ser punido o autor da tortura pela lei
brasileira se ingressar no mbito da jurisdio nacional. Essa
a condio exigida (nica) para se punir o autor da tortura.
No importa se esse autor estrangeiro. No interessa a
nacionalidade da vtima.
14
Vigncia e irretroatividade
Pelo
que se extrai do art. 3., a lei entrou em vigor no dia
08.04.1997. S vale para fatos ocorridos a partir desta data. No
retroativa. Lei nova incriminadora no retroage para alcanar
fatos pretritos.
15
Revogao do art. 233 do ECA
O
art. 233 do ECA previa o crime de tortura, mas no descrevia a
conduta. Apesar disso, o Colendo Supremo Tribunal Federal entendeu
ser vlido tal dispositivo.
Se de um lado recebeu o apoio de Luza Eluf,
de outro lado foi acertadamente criticado por Sylvia Steiner.
Agora acaba de ser revogado (art. 4.).
inconsistente o argumento de que a nova lei pune menos severamente
a tortura contra criana ou adolescente quando resulta morte.
Pena do ECA: de quinze a trinta anos; pena da Lei 9.455/97: de
oito a dezesseis anos, com aumento de 1/6 a 1/3. A pena do ECA era
desarrazoada, desproporcional. Cuida-se de crime preterdoloso. O
ECA punia crime preterdoloso com pena maior que o homicdio
qualificado pela tortura (totalmente doloso). Est certa a nova
lei nesse ponto. mais razovel.
16
Outros temas relevantes
Prova
do delito. Certamente
teremos muita dificuldade na colheita de provas no delito de
tortura. No porque no seja possvel a comprovao mdico-forense
da tortura, seja fsica, seja psquica (mental). A Medicina
Forense est avanada o suficiente em termos cientficos para
tanto, podendo-se comprovar no somente as evidncias fsicas,
seno tambm suas seqelas.
O problema est na falta de estrutura da Polcia Cientfica. De
outro lado, existe tambm a questo da insegurana. Perdeu o
legislador mais uma oportunidade para disciplinar o tema da
proteo das vtimas e testemunhas. Quando a tortura tem
como sujeito ativo membros de alguma corporao policial, no
infreqente o uso de ameaas contra vtimas e testemunhas. E
com isso resulta afetado o princpio da verdade real ou material:
muitas pessoas, por causa do medo, no depem.
Lei
dos Crimes Hediondos versus Lei
9.455/97. Aquela proibia
para a tortura o indulto; esta no o probe; aquela vedava a
liberdade provisria; esta no repete semelhante
inconstitucionalidade; aquela previa regime fechado integral; esta
ite a progressividade.
Notas
finais: (a) quadrilha ou
bando para o cometimento de tortura: pena, de trs a seis anos de
recluso; (b) para obteno de livramento condicional em crime
de tortura: deve-se cumprir mais de dois teros; reincidente especfico
em tortura: no tem direito a livramento; na verdade, em razo
da possibilidade de progresso de regime, o livramento
condicional perder o interesse em matria de tortura, porque o
regime aberto, que constitui a terceira fase do sistema
progressivo, muito mais vantajoso que o livramento condicional;
(c) direito de apelar em liberdade: itido, desde que o juiz
fundamente; (d) priso temporria: permitida, pelo prazo de
at 30 dias, prorrogvel por igual perodo. Todas essas matrias
continuam disciplinadas pela Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes
Hediondos).
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penal, coord. J. C.
Penteado, n. 5, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 13
e ss. Contra, com apoio em ampla doutrina estrangeira, FRANCO,
Alberto S., Breves anotaes., cit., p. 58 e ss.; TAVARES,
Juarez, A delimitao da autoria, Enfoque
Jurdico n. 6, Braslia,
TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 7-8.
Nesse sentido, DIAS, Jos Carlos. Enfoque
Jurdico n. 6, Braslia,
TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 7.
STOCO, Rui. A tortura, Enfoque
Jurdico n. 6, Braslia,
TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 5. O crime de tortura
praticado por funcionrio pblico afasta a aplicao da
lei de abuso de autoridade: v. FONSECA, Antonio C. L., Abuso
de autoridade, Porto
Alegre, Livraria do Advogado, 1997, p. 80-81.
V. MARQUES, Oswaldo H. D., Breves consideraes, cit., p. 6.
O noticiado primeiro caso de tortura em So Paulo (O Estado de
S. Paulo,
17.04.1997, p. C11), na verdade, era um roubo em que dois
rapazes ameaaram a vtima e exigiram dela a informao do
nmero da senha.
O legislador, ao utilizar a expresso intenso
sofrimento, colocou na lei um conceito poroso (Hassemer),
de difcil compreenso. um tipo aberto, que exige
complemento valorativo do juiz. V. FRANCO, Alberto S., Breves
anotaes, cit., p. 62. V., ainda, a acertada crtica de
SHECAIRA, Srgio S., Algumas notas, Boletim
IBCCrim n. 54, mai. 1997, p. 2.
Sobre a distino entre o delito de tortura-pena e o de
maus-tratos, v. FRANCO, Ana P. N., Distino, Boletim
IBCCrim n. 62, jan.
1998, p. 11.
No sentido de que cabe sursis:
SHECAIRA, Srgio S., Algumas notas, Enfoque
Jurdico, n. 6,
Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 11; FRANCO,
Alberto S., Breves anotaes, cit., p. 69, baseando-se na
doutrina e na jurisprudncia existentes a respeito dos crimes
hediondos; REALE JNIOR, Miguel, Tipificao da tortura, Enfoque
Jurdico, n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 17.
Assim, MIRABETE, Jlio F., Tortura, cit., RT
746/478.
A nova lei no revogou o homicdio qualificado pela tortura.
Assim, MEHMERI, Adilson, Enfoque
Jurdico n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 13.
a posio de FRANCO, Alberto S., Breves anotaes,
cit., p. 65. Tambm a de JESUS, Damsio E., Crimes de
tortura, artigo no publicado.
Breves anotaes, cit., p. 66.
Nesse sentido, PEREIRA, Carlos F. O., Observaes, Enfoque Jurdico n. 6,
Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 14.
V. BARROS, Suzana de T., Princpio da proporcionalidade e o
controle de constitucionalidade das leis restritivas de
direitos fundamentais, Braslia, Braslia Jurdica, 1996,
im.
Assim, TOLEDO, Francisco de A., Sobre o crime de tortura,
cit., p. 16.
Breves anotaes, cit., p. 69.
V. Revista Consulex
n. 5, 1997, p. 24.
V. a ntegra do REsp 140.617-GO, no Boletim
IBCCrim n. 60, nov.
1997, Jurisprudncia, p. 1-2.
Breves consideraes, cit., p. 6. No mesmo sentido,
invocando o princpio da igualdade, v. TOLEDO, Fbio
Henrique Prado de, in Boletim IBCCrim n. 60,
nov. 1997, p. 7. Em sentido contrrio: MIRABETE, Jlio F.,
Tortura, cit., RT
746/481; BALDIN, Antonio, in RT
753, p. 471 e ss.
STF, HC 70.389-5, rel. Min. CELSO DE MELLO, m.v., j.
23.07.1994, in Boletim
da AASP
n. 1.881, de 11 a 17.01.1995, p. 13.
O Estado
de S. Paulo, 10.08.1995, p.
A2.
In RBCCrim n. 13,
jan.-mar. 1997, p. 163 e ss.
Sobre a inconsistncia do argumento, v. FRANCO, Alberto S.,
Breves anotaes, cit., p. 71-72.
Assim, DELMONTE, Carlos, A percia na tortura, in Justia
penal, coord. J. C.
Penteado, n. 5, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 18
e ss.
Em sentido contrrio, v. AZEVEDO, Ral L. V., Breves reflexes,
Enfoque Jurdico, n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 16.
SEMINRIO
INTERNACIONAL SOBRE A EFICCIA DA LEI DA TORTURA (LEI 9.455/97)
30/nov e 1/dez Superior Tribunal de
Justia Braslia/DF
Resumo da exposio do Professor
Luiz Flvio Gomes 721n5g
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