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Tortura: aspectos conceituais e normativos 6o5w5a

1 Introduo
2 Tortura-prova
3 Tortura como crime-meio
4 Tortura racial ou discriminatria
5 Tortura-pena ou tortura-castigo
6 Tortura do encarcerado
7 Omisso frente tortura
8 Crimes qualificados pelo resultado
9 Causas de aumento de pena
10 Efeitos da condenao: perda do cargo e interdio para o seu exerccio
11 No cabimento de fiana, graa ou anistia
12 Progressividade na execuo da pena
13 Extraterritorialidade da lei penal brasileira
14 Vigncia e irretroatividade
15 Revogao do art. 233 do ECA
16 Outros temas relevantes.

1 Introduo

O homem o nico animal que provoca sofrimento aos outros com o objetivo exclusivo de provoc-lo (Schopenhauer).

A tortura acompanha a histria do ser humano. Desde a Antigidade dela se tem registro. Na Idade Mdia, particularmente durante a Inquisio,[1] a tortura era o meio mais comum de se alcanar a prova do delito (confisso). Apesar dos avanos democrticos da humanidade, o certo que a tortura ainda no acabou. No s no se extinguiu como aparece s vezes institucionalizada[2] ou at mesmo legalizada, tal como itiu, h pouco (15.11.1996), o Supremo Tribunal israelense, no que concerne aos palestinos. Tambm na Irlanda do Norte, recentemente, uma das suas Cortes (caso McCormick) avalizou a tortura como meio vlido de punio.[3] No que se relaciona com nosso pas, um juiz auditor militar no Rio de Janeiro, sob a influncia do clima de guerra que as Foras Armadas declararam ao crime, acabou arquivando, a pedido do Ministrio Pblico, um inqurito, onde se apurava o delito de tortura contra dois capites, tortura essa praticada contra um cabo, durante seis horas. O juiz itiu que possvel o uso do rigor necessrio para a descoberta de um delito.[4] No incomum, de outra parte, como destacou Antonio Magalhes Gomes Filho, a isso da confisso, pela jurisprudncia brasileira, ainda que eventualmente tenha havido maus-tratos.[5]

Por tudo isso que a ONU, em 1984, em Nova York, aprovou a Conveno contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes, que foi adotada pelo Brasil em 1991 (Decreto 40, de 15.02.1991). Logo em seguida proclamou-se a Conveno Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (OEA), que entrou em vigor no Brasil em 1989 (Decreto 98.386, de 09.11.1989). A Constituio brasileira a ela fez referncia (art. 5., inc. XLIII), equiparando sua prtica aos crimes hediondos. No tnhamos, no entanto, at o advento da Lei 9.455/97, nenhuma descrio tpica, em nvel infraconstitucional, dessa conduta criminosa. O art. 233 do ECA apenas a mencionava, mas no a descrevia.

Nosso Cdigo Penal, em vrios momentos, tambm se refere tortura: como agravante, como circunstncia qualificadora do homicdio etc. O Cdigo Penal Militar tampouco a desconhece. Mas fazia falta uma lei para descrever, com preciso, o delito,[6] mesmo porque, se especialmente durante a ditadura isso aconteceu, no se questiona que a democracia no pode toler-la.[7] A lex nova, pelo menos, tem a virtude de se posicionar contra a cultura do extermnio, que decorre da banalizao da violncia e do desrespeito ao ser humano.[8]

A Lei 9.455/97 veio, em sntese, suprir omisso indesculpvel do legislador brasileiro. No seu art. 1. (caput e 1. e 2.), descreveu seis condutas tpicas (tortura-prova, tortura como crime-meio, tortura racial ou discriminatria, tortura-pena ou castigo, tortura do encarcerado e omisso frente tortura); no 3. cuidou do crime qualificado; no 4. previu causas de aumento de pena. Nos pargrafos seguintes ( 5., 6. e 7.) esto a perda do cargo, a proibio de fiana, graa e anistia, assim como a previso de progressividade de regime. No art. 2. temos duas hipteses de extraterritorialidade. Nos dois artigos finais esto a vigncia da lei e a revogao do art. 233 do ECA. Examinaremos em seguida cada um desses dispositivos.

2 Tortura-prova

Esse crime est descrito desta maneira: Art. 1. Constitui crime de tortura: I constranger algum com emprego de violncia ou grave ameaa, causando-lhe sofrimento fsico ou mental: a) com o fim de obter informao, declarao ou confisso da vtima ou de terceira pessoa (...).[9]

Exige-se constrangimento (submetimento, sujeio, anulao da liberdade de vontade). Esse constrangimento (contra algum, isto , contra alguma pessoa) pode ocorrer de duas maneiras: a) mediante violncia (fora fsica sobre o corpo agresso, por exemplo , que cause prejuzo fsico essa a violncia sem preocupao esttica ou que afete o corpo e a mente sofrimento mental , tal como uso de drogas, suplcio da gua, privao do sono etc.) estes ltimos so os chamados suplcios com preocupao esttica; b) ou mediante grave ameaa (que a intimidao ou anncio de um mal futuro, seja pessoa da vtima ou a algum que lhe prximo) a ameaa grave afeta o intelecto, nela h sofrimento mental.

O crime de tortura, de outro lado, para sua configurao (nessa forma do inc. I), exige uma especial finalidade do agente (obter informao, declarao ou confisso da vtima ou de terceira pessoa). Vtima aqui s pode ser entendida como vtima da tortura, no como vtima de algum eventual delito que ela mesma praticara. Qualquer outra finalidade do agente (tortura por sadismo ou vingana, por exemplo) no configura o delito em questo (e sim crime comum do ).[10]

No preciso que se alcance a informao, declarao ou confisso pretendida. Consuma-se com o sofrimento fsico ou mental, decorrente do constrangimento. Pouco importa qual seja a natureza do fato em torno do qual gira a pretendida declarao ou confisso ou informao: fato penal, comercial, pessoal etc.[11] Por isso, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo: tanto funcionrio pblico como particular.[12] Essa qualidade de crime comum, alis, tambm vlida para as figuras tpicas que sero estudas em seguida (com exceo do crime omissivo).

3 Tortura como crime-meio

Na alnea b aparece o delito de tortura como meio para a realizao de outro delito (para provocar ao ou omisso de natureza criminosa). Exemplo: o chefe de uma quadrilha pode torturar algum para que cometa determinados crimes. Mas, independentemente da realizao dos crimes pretendidos, punvel a tortura cometida. preciso que seja ao ou omisso de natureza criminosa; logo, afastada est a contraveno. Quem tortura outra pessoa para a prtica de uma contraveno incorrer em outros delitos do .

4 Tortura racial ou discriminatria w2t2

A tortura racial ou discriminatria exige uma especial motivao do agente (tortura em razo de discriminao racial ou religiosa). Tortura-se por causa de uma determinada raa ou religio. Logo, tortura por outras motivaes (sexuais,[13] regionais etc.) no se encaixa nesse dispositivo legal. Outros crimes do resultaro configurados (leso, homicdio etc.)

O crime de tortura previsto neste art. 1. (inc. I) absorve (princpio da consuno) os delitos de constrangimento ilegal, ameaa, leso leve e, quando o caso, como acertadamente nos ensina Rui Stoco,[14] o abuso de autoridade (assim como os arts. 322 e 350, caput e inc. III, do ).[15] Se a informao que se pretende faz parte da execuo tpica de outro crime (tortura-se a vtima, dentro da execuo de um roubo, para que informe a senha do carto do crdito, por exemplo), s se configura este ltimo (roubo). No se configura a tortura como crime autnomo.[16]

5 Tortura-pena ou tortura-castigo

No inc. II do art. 1. est capitulado o delito de tortura-pena ou tortura-castigo, in verbis: Submeter algum, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violncia ou grave ameaa, a intenso sofrimento fsico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de carter preventivo.

Uma outra maneira de cometer o delito de tortura, como se v, consiste em submeter algum sob sua guarda (seja jurdica ECA, por exemplo ou ftica algum sob seu cuidado, vigilncia), poder ou autoridade (existem duas formas de se interpretar as palavras poder e autoridade: no art. 61 do , o abuso de poder refere-se a relaes pblicas, enquanto o abuso de autoridade refere-se a relaes privadas; mas aqui, na Lei 9.455/97, no se fala em abuso, seno em poder e autoridade, tout court; assim, o primeiro pode estar relacionado a relaes privadas poder de uma pessoa sobre outra, como tutor, curador etc. , enquanto a expresso autoridade pode referir-se a relaes pblicas ter algum sob sua autoridade, numa deteno legal, por exemplo) com emprego de violncia ou grave ameaa, a intenso (exagerado, veemente, forte) [17] sofrimento fsico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de carter preventivo. Aqui est a chamada tortura-pena (o castigo a finalidade do agente). Difere da tortura-prova (quando meio para a obteno de uma prova). Esse crime absorve os delitos de maus-tratos [18] e leso leve. O sofrimento intenso depende, evidentemente, de cada vtima concreta, de cada caso concreto. O mesmo sofrimento pode ser intenso para uma e no intenso para outra pessoa. Mas Direito Penal isso mesmo: Direito de cada caso concreto.

A pena, para as quatro hipteses de tortura at aqui examinadas, de recluso, de dois a oito anos. extremamente discutvel o cabimento do sursis,[19] por duas razes: a) ex vi legis, pretende-se que o regime inicial seja sempre o fechado ( 7., infra); b) considerando a gravidade do delito de tortura, pode ser que falte o requisito do mrito (grau de culpabilidade e reprovabilidade do fato, motivao, conseqncias, circunstncias etc.) para sua concesso. Embora preenchido o requisito objetivo da pena (at dois anos), em cada caso concreto, pode faltar o requisito subjetivo (mrito). Se de um lado haveria exagero na determinao do cumprimento da pena integralmente em regime fechado, de outro talvez o sursis, no caso especfico, no se apresente como a medida poltico-criminal mais aconselhada. In medio est virtus.

6 Tortura do encarcerado

O 1. do art. 1. prev o delito de tortura contra o encarcerado, in verbis: Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurana a sofrimento fsico ou mental, por intermdio da prtica de ato no previsto em lei ou no resultante de medida legal.

O tipo exige que se submeta pessoa presa (recolhida a crcere, pouco importando o ttulo do encarceramento: preso definitivo ou provisrio, penal ou civil etc.) ou sujeita a medida de segurana (pessoa recolhida em hospital prprio) a sofrimento fsico ou mental por intermdio da prtica de ato no previsto em lei ou no resultante de medida legal (exemplos: jogo de luz, privao de luz, privao de sol, solitria etc.).

7 Omisso frente tortura

No 2. do art. 1. o legislador incriminou a omisso frente tortura, nestes termos: Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evit-las ou apur-las, incorre na pena de deteno de um a quatro anos.

Aquele que se omite em face de um dos delitos de tortura acima citados, quando tinha o dever (jurdico) de evit-los ou apur-los, responde pelo crime previsto no 2.. A punio pressupe conhecimento da situao ftica da tortura (verbo evitar) e conhecimento e competncia para a sua apurao (verbo apurar). Exige-se dolo. Impossvel a figura culposa, por falta de previso. Crime omissivo prprio, no possui resultado. Consuma-se com a simples omisso.

Pena: deteno de um a quatro anos. Em tese, pela pena mnima cominada, esse delito ite sursis e at mesmo suspenso condicional do processo. De qualquer modo, preciso examinar com cautela o requisito do mrito (culpabilidade, antecedentes etc.). Se no concedidos, o mximo que o juiz pode fixar o regime semi-aberto (porque se trata de pena de deteno). Nessa hiptese, no existe a obrigatoriedade de cumprimento inicial em regime fechado (v. 7.). O omitente, mesmo que no tenha evitado a tortura, no responde por eventual forma qualificada do delito.[20]

8 Crimes qualificados pelo resultado

Por fora do 3., se resulta leso corporal de natureza grave ou gravssima, a pena de recluso de quatro a dez anos; se resulta morte, a recluso de oito a dezesseis anos.

Se resulta (da violncia empregada na tortura) leso corporal grave (, art. 129, 1.) ou gravssima (, art. 129, 2.), a pena de recluso de quatro a dez anos. Cuida-se de crime preterdoloso. Logo, se o agente no pretendia torturar e sim lesar a vtima, s responde por leso corporal grave ou gravssima. De outro lado, se resulta (da violncia ou ameaa) a morte, a pena de recluso de oito a dezesseis anos. crime preterdoloso tambm. Logo, se o agente pretendia a morte desde o incio (dolo direto ou eventual): homicdio qualificado pela tortura (pena: de 12 a 30 anos).[21] Se o agente queria, no princpio, apenas torturar e s depois resolve matar, h duas posies possveis: a) caso de progresso criminosa o maior (homicdio) absorve o menor (tortura); b) concurso material de crimes: tortura mais homicdio.[22]

Penso que devem ser distinguidas as hipteses: no caso de tortura-castigo, haveria progresso criminosa (o homicdio surge na mesma linha de afetao do bem jurdico: integridade fsica, vida); no caso de tortura-prova, dois crimes, em concurso material.

9 Causas de aumento de pena

Em razo do 4., aumenta-se a pena de 1/6 at um 1/3: (a) se o crime cometido por agente pblico v. art. 327 do ; (b) se o crime cometido contra criana (menos de doze anos), gestante (exige-se dolo do agente), deficiente (fsico ou mental) e adolescente (de doze a dezoito anos de idade); (c) se o crime cometido mediante seqestro (este fica absorvido, princpio da consuno).

Discute-se se essas causas de aumento tambm incidiriam ou no sobre a forma qualificada. Alberto Silva Franco entende ser impossvel:[23] esse aumento s recairia sobre o preceito secundrio bsico. O tema reconhecidamente polmico: verifique-se, por exemplo, a jurisprudncia a respeito da incidncia ou no do furto agravado (noturno) sobre o qualificado. Impe-se no perder de vista que as causas de aumento de pena implicam uma especial alterao no contedo do injusto, que leva a uma maior reprovabilidade do fato. Se cada um deve ser punido de acordo com sua culpabilidade (, art. 29), no nos parece equivocada a concluso de que tais causas de aumento incidiriam inclusive sobre as formas qualificadas. Com isso estamos itindo tambm que eventuais causas especiais de diminuio devero ter tratamento idntico. Quanto ao furto, por exemplo, sempre entendi que o privilgio se aplica s qualificadoras (porque reduz o contedo do injusto). E se so issveis as causas de diminuio, conseqentemente tambm o sero as de aumento.

10 Efeitos da condenao: perda do cargo e interdio para o seu exerccio

Para demonstrar rigor punitivo, no 5. esto previstas duas sanes extras para o condenado: perda do cargo e interdio para o seu exerccio. Por fora do disposto no art. 92 do , fala-se tambm aqui em efeito secundrio da condenao penal. que j no existe dentro do a pena ria. Mas esta permeia ainda vrias leis especiais (M, Dec.-lei 201/67, Lei de Falncias etc.). Logo, tambm seria possvel o emprego de tal terminologia na hiptese em tela (por se tratar de lei especial).[24]

A condenao por crime de tortura acarretar (desde que se trate de agente pblico) a perda do cargo, funo ou emprego pblico. Cuida-se de pena ria (ou efeito secundrio da condenao) que no necessita de especial motivao (segundo a literalidade do diploma legal). Alm da perda, o agente pblico fica proibido para o exerccio de funo ou cargo ou emprego pblico pelo dobro do prazo da pena aplicada, isto , mesmo reabilitado, no pode concorrer a nenhum cargo ou funo ou emprego pblico no referido prazo. Ultraado esse prazo, pode o sujeito concorrer a cargos pblicos, porque nenhuma pena pode ser perptua. Mas jamais voltar para o cargo que ocupava.

A parte final desse 5. tambm se aplica a particular que tenha cometido tortura, isto , condenado por esse crime, fica impossibilitado do exerccio de qualquer cargo pblico, pelo dobro do prazo da pena aplicada. Mesmo que reabilitado, deve observar esse prazo. Depois de transcorrido, pode concorrer a cargos pblicos.

Discute-se se esse efeito automtico da condenao seria exagerado, desproporcional, particularmente no caso do 2. (omisso em evitar ou apurar o delito). Mesmo porque a pena cominada para esse delito de deteno. Em casos concretos particulares, efetivamente, pode ser que a perda do cargo seja exagerada, especialmente se a conduta refere-se ao verbo apurar. Nessa hiptese, deve o juiz valer-se do princpio da proporcionalidade[25] para afastar a incidncia da norma no caso concreto. No se trata de algo impossvel, mas exigir do juiz uma construo fundamentada e convincente.

11 No cabimento de fiana, graa ou anistia

O crime de tortura inafianvel e insuscetvel de graa ou anistia ( 6.). So restries previstas na Constituio Federal (art. 5., inc. XLIII). No cabe fiana, mas em tese no est impedida a liberdade provisria sem fiana; no cabe graa, mas em tese no est vedado o indulto coletivo. A lei penal no pode ser interpretada extensivamente quando o legislador usa uma determinada expresso, sabendo do seu sentido tcnico. Tampouco pode-se itir a analogia in malam partem.

12 Progressividade na execuo da pena

Pelo que ficou estatudo no 7., o condenado iniciar o cumprimento da pena em regime fechado. Isso significa que possvel a progresso de regime. A melhor doutrina afiana o acerto do legislador.[26] Quanto ao delito omissivo ( 2.), no entanto, como punido com deteno, est fora da exigncia do cumprimento inicial em regime fechado. Aplica-se normalmente o : o mximo que se pode impor, no princpio, o regime semi-aberto.

A tortura, na configurao constitucional, ao lado do terrorismo, do trfico de drogas e dos crimes definidos em lei como hediondos, constitua um bloco de infraes com tratamento jurdico nico (muito distinto, no entanto, das demais infraes penais). Seja em nvel constitucional, seja em nvel infraconstitucional, o bloco referido tinha regime jurdico especial unitrio. No plano ordinrio, tudo era regido pela Lei 8.072/90. Em nada qualquer uma dessas infraes diferenciava das outras. Agora, com a Lei 9.455/97, ite-se progresso na execuo da pena do crime de tortura.

Disso pode-se extrair, como bem destacou Alberto Silva Franco, a seguinte concluso: No h razo lgica que justifique a aplicao do sistema progressivo aos condenados por tortura e que, ao mesmo tempo, se negue igual sistema aos condenados por crimes hediondos (...) a extenso da regra do 7. do art. 1. da Lei 9.455/97, para todos os delitos referidos na Lei 8.072/90, equaliza hipteses fticas que esto constitucionalmente equiparadas e restabelece, em sua inteireza, a racionalidade e a sistematizao do ordenamento penal.[27]

No mesmo sentido, Ney Moura Teles[28] e o famoso acrdo da Sexta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justia, relatado pelo Min. Luiz V. Cernicchiaro.[29] Para Oswaldo Duek Marques, nada impede possa dar-se uma interpretao sistemtica, para estabelecer o tratamento mais benfico aos crimes previstos na Lei 8.072/90.[30]

Na esteira do entendimento que acaba de ser citado vem o HC 7.197-DF, do STJ, 6. Turma, rel. Min. Vicente Leal, j. 04.06.1998, DJU de 03.08.1998, p. 325. V. ainda: HC 7.185-DF, STJ, 6. Turma, rel. Min. Vicente Leal, j. 19.05.1998, DJU de 10.08.1998, p. 81.

A introduo no sistema penal brasileiro do regime integral fechado (Lei dos Crimes Hediondos) foi um dos maiores equvocos legislativos j ocorrido: primeiro porque no havia autorizao constitucional para isso (resultando violado o princpio da individualizao da pena); em segundo lugar porque no resolveu em nada o problema da criminalidade violenta; em terceiro lugar porque retirou do preso a esperana de uma progresso, que favorece a ressocializao e o bom comportamento; por ltimo porque acabou desencadeando a maior avalanche de fugas e rebelies, jamais vistas no sistema penitencirio brasileiro. Est correta, nesse ponto, a Lei de Tortura, ao prever a progressividade. Mas o melhor caminho, de lege ferenda, ser permitir a progressividade em todos os delitos, exigindo-se, no entanto, para crimes violentos, o cumprimento de uma parcela maior da pena em cada regime. O atual patamar de um sexto, para crimes que realmente perturbam o convvio social, demasiadamente inferior ao que se imagina ser o equilibrado e poltico-criminalmente correto.

A questo da extenso da progressividade, prevista na Lei 9.455/97 para os crimes de tortura, a todos os crimes hediondos e equiparados, no entanto, ainda no est totalmente resolvida. Vale recordar que no Colendo Supremo Tribunal Federal a tese da aplicao analgica (in bonam partem) da lei citada a todos os crimes hediondos no foi aceita (STF, HC 76.371-SP, j. 25.03.1998). No Egrgio TJSP vem predominando tambm esse ltimo entendimento restritivo (v. Ap.Crim. 229.0873/7, rel. Silva Pinto, j. 20.10.1997).

13 Extraterritorialidade da lei penal brasileira

Est previsto no art. 2.: aplica-se a Lei de Tortura a crimes ocorridos fora do territrio brasileiro desde que (a) a vtima seja brasileira ou (b) encontre-se o agente em local sob jurisdio brasileira. De se observar que o dispositivo legal nada diz sobre o sujeito ativo: pode ser brasileiro ou no. O que apresenta de peculiar o seguinte: sendo brasileira a vtima da tortura, a aplicao da lei brasileira incondicional (no preciso o atendimento ao 2. do art. 7. do ); no sendo a vtima um brasileiro, s ser punido o autor da tortura pela lei brasileira se ingressar no mbito da jurisdio nacional. Essa a condio exigida (nica) para se punir o autor da tortura. No importa se esse autor estrangeiro. No interessa a nacionalidade da vtima.

14 Vigncia e irretroatividade

Pelo que se extrai do art. 3., a lei entrou em vigor no dia 08.04.1997. S vale para fatos ocorridos a partir desta data. No retroativa. Lei nova incriminadora no retroage para alcanar fatos pretritos.

15 Revogao do art. 233 do ECA

O art. 233 do ECA previa o crime de tortura, mas no descrevia a conduta. Apesar disso, o Colendo Supremo Tribunal Federal entendeu ser vlido tal dispositivo.[31] Se de um lado recebeu o apoio de Luza Eluf,[32] de outro lado foi acertadamente criticado por Sylvia Steiner.[33] Agora acaba de ser revogado (art. 4.).

inconsistente o argumento de que a nova lei pune menos severamente a tortura contra criana ou adolescente quando resulta morte.[34] Pena do ECA: de quinze a trinta anos; pena da Lei 9.455/97: de oito a dezesseis anos, com aumento de 1/6 a 1/3. A pena do ECA era desarrazoada, desproporcional. Cuida-se de crime preterdoloso. O ECA punia crime preterdoloso com pena maior que o homicdio qualificado pela tortura (totalmente doloso). Est certa a nova lei nesse ponto. mais razovel.

16 Outros temas relevantes

Prova do delito. Certamente teremos muita dificuldade na colheita de provas no delito de tortura. No porque no seja possvel a comprovao mdico-forense da tortura, seja fsica, seja psquica (mental). A Medicina Forense est avanada o suficiente em termos cientficos para tanto, podendo-se comprovar no somente as evidncias fsicas, seno tambm suas seqelas.[35] O problema est na falta de estrutura da Polcia Cientfica. De outro lado, existe tambm a questo da insegurana. Perdeu o legislador mais uma oportunidade para disciplinar o tema da proteo das vtimas e testemunhas. Quando a tortura tem como sujeito ativo membros de alguma corporao policial, no infreqente o uso de ameaas contra vtimas e testemunhas. E com isso resulta afetado o princpio da verdade real ou material: muitas pessoas, por causa do medo, no depem.

Lei dos Crimes Hediondos versus Lei 9.455/97. Aquela proibia para a tortura o indulto; esta no o probe; aquela vedava a liberdade provisria; esta no repete semelhante inconstitucionalidade; aquela previa regime fechado integral; esta ite a progressividade.

Notas finais: (a) quadrilha ou bando para o cometimento de tortura: pena, de trs a seis anos de recluso; (b) para obteno de livramento condicional em crime de tortura: deve-se cumprir mais de dois teros;[36] reincidente especfico em tortura: no tem direito a livramento; na verdade, em razo da possibilidade de progresso de regime, o livramento condicional perder o interesse em matria de tortura, porque o regime aberto, que constitui a terceira fase do sistema progressivo, muito mais vantajoso que o livramento condicional; (c) direito de apelar em liberdade: itido, desde que o juiz fundamente; (d) priso temporria: permitida, pelo prazo de at 30 dias, prorrogvel por igual perodo. Todas essas matrias continuam disciplinadas pela Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos).



[1] GRIGULEVICH, I. Historia de la inquisicin. Trad. M. Kuznetsov. Mosc : Progresso, 1980, im.

[2] Sobre a tortura como instituio, v. TOLEDO, Francisco de A., Sobre o crime de tortura, in Justia penal, coord. de J. C. Penteado, n. 5, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 9 e ss.

[3] VERCHER NOGUEIRA, Antonio. La legalizacin de la tortura. El Pas-Internacional de 25.11.1996, p. 10.

[4] O Estado de S. Paulo de 14.04.1996, p. A3.

[5] GOMES FILHO, Antonio M. Tortura e prova penal. Enfoque Jurdico, n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 9.

[6] A doutrina brasileira reivindicava h tempos um diploma legal sobre o assunto: v. JORGE, Wiliam W., RT 665/391-392, mar. 1991. V. ainda: FERNANDES, Ana M. e FERNANDES, Paulo S., Aspectos jurdico-penais da tortura, So Paulo, Saraiva, 1982; VERRI, Pietro, Observaes sobre a tortura, So Paulo, Martins Fontes, 1992; FERREIRA, Wolgran J., A tortura, So Paulo, Julex, 1991.

[7] ELUF, Luiza N. Supremo reconhece crime de tortura. O Estado de S. Paulo, 10.08.1995, p. A2.

[8] PIETROCOLLA, Luci G. Torturar fcil. Boletim IBCCrim n. 55, jun. 1997, p. 15.

[9] Para uma ampla viso do crime em estudo, v. FRANCO, Alberto Silva, Breves anotaes sobre a Lei 9.455/97, RBCCrim n. 19, jul.-set. 1997, p. 55 e ss.

[10] Nesse sentido: MIRABETE, Jlio F., Tortura, RT 746/476, dez. 1997.

[11] MARQUES, Oswaldo H. D. Breves consideraes. Boletim IBCCrim n. 56, jul. 1997, p. 6.

[12] Em defesa da opo do legislador, v. TOLEDO, Francisco de A., Sobre o crime de tortura, in Justia penal, coord. J. C. Penteado, n. 5, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 13 e ss. Contra, com apoio em ampla doutrina estrangeira, FRANCO, Alberto S., Breves anotaes., cit., p. 58 e ss.; TAVARES, Juarez, A delimitao da autoria, Enfoque Jurdico n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 7-8.

[13] Nesse sentido, DIAS, Jos Carlos. Enfoque Jurdico n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 7.

[14] STOCO, Rui. A tortura, Enfoque Jurdico n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 5. O crime de tortura praticado por funcionrio pblico afasta a aplicao da lei de abuso de autoridade: v. FONSECA, Antonio C. L., Abuso de autoridade, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997, p. 80-81.

[15] V. MARQUES, Oswaldo H. D., Breves consideraes, cit., p. 6.

[16] O noticiado primeiro caso de tortura em So Paulo (O Estado de S. Paulo, 17.04.1997, p. C11), na verdade, era um roubo em que dois rapazes ameaaram a vtima e exigiram dela a informao do nmero da senha.

[17] O legislador, ao utilizar a expresso intenso sofrimento, colocou na lei um conceito poroso (Hassemer), de difcil compreenso. um tipo aberto, que exige complemento valorativo do juiz. V. FRANCO, Alberto S., Breves anotaes, cit., p. 62. V., ainda, a acertada crtica de SHECAIRA, Srgio S., Algumas notas, Boletim IBCCrim n. 54, mai. 1997, p. 2.

[18] Sobre a distino entre o delito de tortura-pena e o de maus-tratos, v. FRANCO, Ana P. N., Distino, Boletim IBCCrim n. 62, jan. 1998, p. 11.

[19] No sentido de que cabe sursis: SHECAIRA, Srgio S., Algumas notas, Enfoque Jurdico, n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 11; FRANCO, Alberto S., Breves anotaes, cit., p. 69, baseando-se na doutrina e na jurisprudncia existentes a respeito dos crimes hediondos; REALE JNIOR, Miguel, Tipificao da tortura, Enfoque Jurdico, n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 17.

[20] Assim, MIRABETE, Jlio F., Tortura, cit., RT 746/478.

[21] A nova lei no revogou o homicdio qualificado pela tortura. Assim, MEHMERI, Adilson, Enfoque Jurdico n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 13.

[22] a posio de FRANCO, Alberto S., Breves anotaes, cit., p. 65. Tambm a de JESUS, Damsio E., Crimes de tortura, artigo no publicado.

[23] Breves anotaes, cit., p. 66.

[24] Nesse sentido, PEREIRA, Carlos F. O., Observaes, Enfoque Jurdico n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 14.

[25] V. BARROS, Suzana de T., Princpio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Braslia, Braslia Jurdica, 1996, im.

[26] Assim, TOLEDO, Francisco de A., Sobre o crime de tortura, cit., p. 16.

[27] Breves anotaes, cit., p. 69.

[28] V. Revista Consulex n. 5, 1997, p. 24.

[29] V. a ntegra do REsp 140.617-GO, no Boletim IBCCrim n. 60, nov. 1997, Jurisprudncia, p. 1-2.

[30] Breves consideraes, cit., p. 6. No mesmo sentido, invocando o princpio da igualdade, v. TOLEDO, Fbio Henrique Prado de, in Boletim IBCCrim n. 60, nov. 1997, p. 7. Em sentido contrrio: MIRABETE, Jlio F., Tortura, cit., RT 746/481; BALDIN, Antonio, in RT 753, p. 471 e ss.

[31] STF, HC 70.389-5, rel. Min. CELSO DE MELLO, m.v., j. 23.07.1994, in Boletim da AASP n. 1.881, de 11 a 17.01.1995, p. 13.

[32] O Estado de S. Paulo, 10.08.1995, p. A2.

[33] In RBCCrim n. 13, jan.-mar. 1997, p. 163 e ss.

[34] Sobre a inconsistncia do argumento, v. FRANCO, Alberto S., Breves anotaes, cit., p. 71-72.

[35] Assim, DELMONTE, Carlos, A percia na tortura, in Justia penal, coord. J. C. Penteado, n. 5, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 18 e ss.

[36] Em sentido contrrio, v. AZEVEDO, Ral L. V., Breves reflexes, Enfoque Jurdico, n. 6, Braslia, TRF 1. Regio, abr.-mai. 1997, p. 16.

SEMINRIO INTERNACIONAL SOBRE A EFICCIA DA LEI DA TORTURA (LEI 9.455/97)

30/nov e 1/dez Superior Tribunal de Justia Braslia/DF

Resumo da exposio do Professor Luiz Flvio Gomes 721n5g

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