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A Vala Clandestina de Perus

Evanize Sydow e Marilda Ferri*

At o ms de abril de 2000 a cena que se via na sala do Departamento de Medicina Legal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) destinada a guardar as cerca de mil ossadas humanas encontradas em 1990 numa vala clandestina do Cemitrio Dom Bosco, em Perus, So Paulo, era pattica. Amontoados por toda a sala de necrpsia, os sacos plsticos contendo os ossos de mortos polticos na dcada de 70, alm de vtimas do Esquadro da Morte, grupo de extermnio composto aps o golpe militar de 64 por policiais civis, e indigentes estavam em estado deplorvel, alguns abertos e em meio ao mofo, p e a baratas mortas. A terra seca que cobria o cho de todo o ambiente onde ficam as ossadas foi resultado de um problema no ralo ocorrido em 1998, que provoca o refluxo da gua. Como a sala fica num nvel baixo, as guas das chuvas se misturaram terra e invadiram o local, deixando as ossadas, algumas fora dos sacos, cheias de lama. Numa saleta ao lado ainda havia um aparelho de raio X que, segundo informaes de funcionrio da Unicamp, foi cedido pelo governo do Estado para ser utilizado nas percias desses ossos.

A sala s foi limpa e os sacos superficialmente arrumados porque o reitor da Unicamp, Hermano Tavares, quase dois anos depois de assumir a reitoria, resolveu nomear uma comisso para cuidar da transferncia das ossadas para a Universidade de So Paulo e esta comisso tratou de organizar os ossos para tentar evitar maior degenerao do material. Tavares anunciou em 1998 a devoluo oficial das ossadas ao governo do Estado. Conversar com o reitor sobre os ossos do Cemitrio de Perus sempre foi uma tarefa difcil. Seu assessor de imprensa era muito objetivo quando lhe solicitavam uma entrevista com a reitoria: O reitor no fala sobre este assunto porque a universidade no tem mais nada a ver com isso. Este um assunto da Secretaria de Segurana Pblica. O assessor complementa que era a comisso quem ou a responder pelo caso na Unicamp.

O foneticista Ricardo Molina, que at janeiro do ano ado dirigia o Departamento de Medicina Legal (DML) da Unicamp quando o setor foi extinto , diz que, enquanto esteve responsvel pelo DML, props fazer um inventrio e armazenar de forma mais adequada as ossadas, mas foi proibido por Tavares. Se voc conversar com o reitor, essa a posio clara dele: a universidade j disponibilizou as ossadas e est esperando uma resposta da sociedade, comenta o diretor.

A resposta da sociedade que o reitor aguarda tambm est sendo esperada h pelo menos seis anos, quando as percias nas ossadas cessaram, por familiares de mortos polticos enterrados em Perus. A Unicamp, alis, no deveria aguardar resposta. Ela, junto com a Secretaria da Segurana Pblica, responsveis pelos ossos desde 1990, que deveria estar preocupada em resolver a questo. Esta opinio compartilhada pela Comisso de Familiares de Desaparecidos e Mortos Polticos, pela direo do extinto Departamento de Medicina Legal da Unicamp e pelo mdico Nelson Massini, que trabalhou durante 20 anos na universidade e antecedeu o legista Fortunato Antonio Badan Palhares na chefia do Departamento de Medicina Legal, tornando-se famoso pela atuao em casos como o de Josef Mengele, Carlos Lamarca, Carlos Marighela, PC Farias e Chico Mendes. Ao assumir o DML em 1990, Badan Palhares ficou encarregado de coordenar o trabalho de identificao das ossadas encontradas em Perus.

A certeza de que a Unicamp e a Secretaria de Segurana Pblica de So Paulo deveriam uma satisfao sociedade se justifica em documentos e nmeros. Em 1990, a universidade, o governo do Estado e a Prefeitura de So Paulo am um convnio, vigente at dezembro de 1991, para que fossem feitas as percias nas ossadas humanas encontradas em Perus. Assinado pelo governador Orestes Qurcia, pela prefeita Luiza Erundina e pelo reitor Carlos Vogt, o convnio no estabaleceu ree de recursos Unicamp. Cada um dos participantes ficaria responsvel por suas prprias despesas. A Unicamp se comprometeu a fornecer locais adequados para a guarda das ossadas e para as percias a serem realizadas e os profissionais e tcnicos do Departamento de Medicina Legal para desenvolvimento do trabalho, conforme o documento.

Entre os enterrados na vala clandestina de Perus foram confirmados os nomes de Denis Casemiro e Frederico Eduardo Mayr identificados pela equipe de Badan Palhares , Dimas Casemiro, Flvio Carvalho Molina, Grenaldo Jesus da Silva e Francisco Jos de Oliveira, cujas famlias at hoje esperam a identificao. Denis e Frederico foram reconhecidos at 1993. At essa poca tambm foram confirmadas as identidades de Antnio Carlos Bicalho Lana, Hlber Jos Gomes Goulart e Sonia Maria de Moraes Angel, que estavam em covas regulares.

Em janeiro de 1992, Badan Palhares enviou um termo aditivo ao convnio, no qual so solicitados recursos Prefeitura e ao Estado para a continuidade dos trabalhos desenvolvidos. De acordo com o processo, por meio do termo aditivo a prefeita Luiza Erundina e o governador Lus Antnio Fleury Filho disponibilizariam cerca de US$ 200 mil, pagos 70% pelo Estado e 30% pela Prefeitura em 12 parcelas mensais. Como justificativa, a equipe da Unicamp informou no contrato que teria de mandar dois professores ao Japo, com estadia de no mnimo 30 dias, para trabalho no Forensic Department School of Medicine, e aos Estados Unidos, com o objetivo de visitar o Servio Federal de Investigao (FBI). O motivo era o aprimoramento tcnico-cientfico na rea de antropologia e sobreposio de imagens. O custo das viagens ficava em torno de US$ 33 mil. Outra parte significativa do montante se destinava construo de rea para realizao de exames antropomtricos, no caso, a duplicao do prdio do Departamento de Medicina Legal: US$ 160 mil. Os dados constam no detalhamento do oramento enviado ao Estado e Prefeitura. Para Nelson Massini, hoje professor titular da faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, viagens ao Japo ou aos Estados Unidos no eram necessrias. Os tcnicos mais avanados para fazer identificaes esto na Argentina. No precisavam ir para o Japo.

No detalhamento do oramento a Unicamp ainda observa que o convnio foi celebrado visando uma anlise completa de todos os casos existentes e exumados naquele cemitrio.

Tivesse feito uma anlise completa de todos os casos existentes, Badan Palhares e sua equipe poderiam, h pelo menos cinco anos, quando foram enviados fragmentos de ossos para exames de DNA na Universidade Federal de Minas Gerais, ter colocado fim ao sofrimento de famlias como a de Flvio Carvalho Molina. A me de Flvio, Maria Helena, ao longo dos ltimos dez anos em que esteve oscilando entre a perspectiva de ver seu filho identificado e a decepo do descaso daqueles que ficaram responsveis por esse trabalho, sentiu sua sade minar. Persiste com a famlia, porm, a obstinao pelo direito de sepultar o filho.

Um dos irmos de Flvio, Gilberto Molina, se emociona ao lembrar o esforo de tantos anos para encontrar os restos mortais do irmo e, agora, a sensao de impotncia diante da falta de interesse na identificao de Flvio. Em 1980, quando soube que o Flvio estava na vala de Perus, eu nunca poderia imaginar que hoje, 20 anos depois, ia estar ando por essa mesma agonia, diz.

Gilberto viu seu pai morrer, em 1985, com a frustrao de no ter encontrado o filho. Agora, no consegue entender por que as coisas tornaram-se to difceis em relao s identificaes das ossadas. Parece brincadeira como uma arbitrariedade, uma violncia to grande se perpetua durante tanto tempo, lamenta.

A histria do trabalho de identificao de Flvio Carvalho Molina um exemplo da falta de respeito da Secretaria de Segurana Pblica, que acompanhou a paralisao das percias em Campinas, e da Unicamp em relao s famlias de mortos polticos que esperam identificao no Departamento de Medicina Legal da universidade. Desde 1993, no h avanos no trabalho de percias nas ossadas. A poca coincide com o perodo em que a prefeita de So Paulo Luiza Erundina, que vistoriava junto com os familiares o andamento dos trabalhos em Campinas, termina o seu mandato. Segundo Ivan Seixas e Maria Amlia Almeida Teles, membros da Comisso de Familiares, o executor substituto do convnio, Jos Eduardo Bueno Zappa, confirmou a eles (familiares) que a ossada de Flvio j estava identificada, mas que Palhares ainda no queria entregar famlia. Maria Amlia lembra que Zappa levou-os at uma sala no andar superior e l, dentro de um armrio baixo de madeira, o legista mostrou a ossada montada. Ivan confirma: Ns pressionamos e o Dr. Zappa falou: ns j identificamos. Gilberto Molina conta que em uma conversa telefnica com Badan Palhares o legista tambm deu evidncias de que Flvio j estava identificado. No incio dos trabalhos, em 1990, Gilberto mandou para Palhares um dente de Flvio que havia encontrado nas coisas do irmo, alm de uma ficha dentria. Segundo Gilberto, Palhares argumentou que, observando a ficha e a arcada da ossada, ele descobriu que aquele dente no era de Flvio. Ele sabia que aquela ossada que estava l, montada, completinha, como me relataram, era do Flvio, conclui. Em todas as tentativas, Badan Palhares no foi encontrado para comentar o caso.

Jos Eduardo Bueno Zappa trabalhou na Unicamp at 1997. Com a situao em que estavam as ossadas na universidade, os familiares exigiram que Palhares fosse afastado do caso. Em 31 de outubro de 1996, Zappa foi designado responsvel tcnico do Projeto Perus. Durante os seis meses em que esteve frente do caso, no houve avanos. Em abril do ano seguinte, o legista entregou reitoria da Unicamp um relatrio que encerrava as anlises nas ossadas de Perus. O documento, no entanto, no foi aprovado pelo Conselho Departamental do Departamento de Medicina Legal da universidade. Num ofcio enviado ao reitor, Ricardo Molina, que assumiu o Departamento em 1997, apresenta as deficincias do relatrio: no so expostos com clareza os procedimentos tcnicos empregados nos processos de identificao, impossibilitando uma avaliao objetiva do trabalho realizado; no so detalhadas as compras de equipamento e recursos financeiros eventualmente empregados em funo da existncia do convnio; o relator no explica outras questes importantes citadas no relatrio, tais como a drstica reduo da equipe envolvida no projeto Perus, que inicia com 50 integrantes e termina com apenas quatro; estranhamente, no h referncia a qualquer relatrio anterior, que, a princpio, deveria ter sido encaminhado pelo ex-coordenador do projeto (Prof. Dr. Fortunato Antonio Badan Palhares).

Neste relatrio, Zappa informa que duas ossadas, n 240 e 57, foram encaminhadas Universidade Federal de Minas Gerais para serem feitos exames de DNA. Sem especificar de quem cada ossada suspeita, o perito diz que uma pode pertencer a Flvio Carvalho Molina e outra a Dimas Antnio Casemiro. Alm dessas, foram enviadas UFMG trs ossadas tiradas de cada uma das sepulturas onde estavam Hiroaki Torigoe e Lus Jos da Cunha, ambos desaparecidos polticos.

Outro dado inexistente no relatrio a data em que foi enviado o material para a equipe de Minas Gerais. Segundo Gilberto Molina, em 1995 Palhares j havia mandado os ossos para a UFMG sem avisar a famlia e sem colher o sangue dos familiares, que serve de parmetro para o exame de DNA. S depois o legista comunicou a possibilidade de identificar pelo DNA e ento pediu amostras de sangue. Enquanto o resultado de um exame como esse costuma demorar cerca de trs meses, o de Flvio s ficou pronto dois anos depois. Segundo o prprio relatrio da professora Vnia Ferreira Prado, do Departamento de Bioqumica e Imunologia da UFMG, que confirma o envio do material universidade mineira em 1995, os atrasos considerveis foram resultado de fatores como obras na estrutura fsica do Laboratrio de Gentica e Bioqumica.

A anlise, no entanto, voltou a decepcionar a famlia Molina: as trs vrtebras e uma costela enviadas no pertenciam a Flvio e no correspondiam entre si. Foram mandadas amostras de ossadas diferentes e nenhuma delas pertencente a Molina, o que impossibilitou a identificao. A professora Vnia ainda observa que os ossos tambm pode ter sido contaminados durante a anlise, mas que essa possibilidade remota, uma vez que foram tomadas todas as precaues para evitar as contaminaes.

Um aspecto que se destaca nesta questo que as ossadas suspeitas de serem de Flvio e Dimas, segundo o relatrio de Zappa, pertenciam aos grupos I e II, que, divididos pelo prprio legista, eram ossadas com crnio, o que aumentava muito a chance de identificao. Mas os crnios dessas duas ossadas no foram enviados UFMG. Num artigo escrito logo depois do resultado final da UFMG, Gilberto Molina questiona: Ser que Badan Palhares montou um esqueleto a partir de quatro outros? Se isso for verdade, falhou a Unicamp num assunto que deveria dominar. Se for mentira, falhou a UFMG, que no consegue extrair DNA de ossos. Alm de Flvio, Dimas, Hiroaki e Lus Jos tambm no foram identificados pela equipe da Universidade Federal de Minas Gerais. A famlia de Hiroaki, por exemplo, sequer teve notcias da realizao de fato do exame. Ns no ficamos sabendo se os exames aconteceram mesmo. No nos foi dada nenhuma satisfao, comenta Shuniti Torigoe, irmo de Hiroaki.

Jos Eduardo Bueno Zappa entregou o relatrio que encerrava as anlises nas ossadas de Perus um ms antes da chegada do relatrio final de DNA nos ossos que seriam de Flvio. Depois disso, o legista se afastou da Unicamp e se restringe a dizer que tudo o que tinha para falar j o fez no relatrio. Nessa poca, o reitor da Unicamp era Jos Martins Filho. Zappa continuou trabalhando com Badan Palhares em seu laboratrio particular.

Para Nelson Massini, Palhares sequestrou as ossadas: Atravs desse sequestro ele j conseguiu a ampliao do prdio, viagens, status. Sequestrou e a cada dia ele pede um resgate. E completa: A Unicamp que tem de ser responsabilizada. Ela assumiu um compromisso publicamente. Esse compromisso precisa ser levado at o fim, custe o que custar. As famlias dos que esto l no tm nada a ver com a histria. A Unicamp que tem de dar uma soluo para isso. Perguntado sobre as condies das ossadas, Massini explica que o abandono a que foram submetidos os ossos uma irresponsabilidade. Isso prejudica demais a identificao porque, com o tempo, vai criando fungos e s aumenta o prejuzo e a dificuldade cientfica de conseguir resolver. Os ossos tm de ser guardados em caixas ventiladas, diz o legista.

A famlia de Flvio no espera de braos cruzados que a Unicamp seja responsabilizada. Seu irmo Gilberto conta que h quase dez anos esto movendo uma ao contra o Estado, pedindo a identificao, uma indenizao e a histria verdadeira, e responsabilizando a Unio pelo assassinato de Flvio e ocultamento de cadver. Baseado em uma entrevista que Massini concedeu revista Caros Amigos em maro do ano ado, na qual o legista afirma que parece haver interesse em que as ossadas degenerem e se torne definitivamente impossvel continuar, Gilberto entrou com uma medida cautelar incidental com pedido de concesso de liminar, pedindo providncias imediatas. A ao cautelar pressupe uma urgncia mxima. Mas as resolues tomadas pelo juzo da 17 Vara Federal do Rio de Janeiro no tiveram um resultado concreto quanto identificao.

Em maio de 1999, a juza Mrcia Maria Nunes de Barros solicitou ao reitor da Unicamp informaes sobre a situao das ossadas, se a Unicamp tinha condies tcnico-cientficas para identificar Flvio e, em caso negativo, quem ou qual instituio estaria capacitada para fazer o exame. Duas respostas foram encaminhadas juza. Uma, do chefe do Departamento de Medicina Legal, Ricardo Molina, no dia 17 de junho do mesmo ano, que dizia que as ossadas continuam depositadas em rea reservada do Departamento, individualmente ensacadas e separadas em grupos, e que no mbito no Departamento no h condies tcnicas para a realizao de novos exames de identificao, mas que estaria encaminhando solicitao ao diretor da Faculdade de Cincias Mdicas para saber da possibilidade de realizar exames com tcnicas de Biologia Molecular nos centros da Faculdade. A resposta da reitoria, em 6 de julho, foi assinada pelo chefe de gabinete do reitor, Raul Vinhas Ribeiro, e informava que as ossadas estavam disposio da Secretaria de Justia do Estado desde 15 de maio de 1998 aguardando remoo e que, no tendo condies tcnico-cientficas de prosseguir os trabalhos periciais, a Unicamp permanecia aguardando a deciso das Secretarias de Justia e da Segurana Pblica quanto ao destino dos ossos.

Gilberto entrou com um pedido para que as ossadas supostamente pertencentes a Flvio fossem encaminhadas ao Instituto Oscar Freire, departamento da Universidade de So Paulo que a Comisso indicou para trabalhar com as ossadas agora que a Unicamp no estava mais atuando. A juza Regina Coeli de Carvalho Peixoto da 18 Vara, substituindo a juza da 17 Vara, solicitou reitoria da USP informaes sobre as condies tcnico-cientficas do Instituto Oscar Freire para identificar os restos mortais de Flvio Molina. Na mesma data, 3 de agosto, a juza enviou ofcio aos secretrios de Justia e da Segurana Pblica, comunicando o envio da solicitao ao Instituto Oscar Freire. Como resposta, em 16 de setembro, o professor Daniel Ribeiro Muoz, do Instituto Oscar Freire, destaca que, como trata-se de mais de mil ossadas, o trabalho demoraria vrios meses para ser executado e acarretaria gastos altos. Alm disso, Muoz informou que seria necessria uma equipe multidisciplinar, que implicaria em despesas elevadas, principalmente se tiverem que fazer testes de DNA. E conclui: para a realizao deste trabalho ser necessrio fazer um convnio entre a Secretaria de Segurana Pblica de So Paulo e a Faculdade de Medicina da USP.

A juza, por outro lado, solicita ser informada pelo Instituto Oscar Freire logo que for feito o convnio.

Novamente, a advogada da famlia Molina, Ana Mller, envia um ofcio juza destacando que o objetivo identificar apenas as ossadas n 240 e 57 e que, portanto, no necessrio realizar mais um convnio. Ana Mller tambm destaca que por se tratar de uma medida cautelar, isto , de extrema urgncia, no se pode aguardar possveis convnios sob o risco de deteriorao das ossadas. A famlia Molina tambm indicou os legistas Anthenor Chicarino e Luis Fondebrier, da Equipe Argentina de Antropologia Forense, como peritos de confiana dos familiares.

De acordo com Nelson Massini, a identificao das ossadas de Flvio, Dimas, Francisco e Grenaldo no complicada. Quem conhece o material l sabe que a maioria das peas de indigentes, que j deveriam ter sido sepultados. A identificao principalmente dentria, que j leva a 100% de possibilidade. Mas se a dificuldade continuar, manda fazer DNA. E fala sobre a percia para identificar os quatro desaparecidos polticos: Para esses quatro, se a gente consegue reduzir isso a dez crnios suspeitos, teramos que pagar cerca de 20 exames de DNA. O custo, segundo o legista, tambm no seria alto. Massini informa que mandar fazer um exame de DNA hoje na Argentina custa, no mximo, R$ 1.500. Agora s questo de organizao, pontua o perito.

Desde setembro do ano ado, o caso est sob os cuidados do Ministrio Pblico Federal de So Paulo e as ossadas foram transferidas, em maio de 2001, da Unicamp para o Cemitrio do Ara, na capital paulista. AS percias esto a cargo do legista Daniel Muoz.

Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Joo Carlos Kfouri Quartim de Moraes, professor titular do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Unicamp, falou da responsabilidade e do descaso da Universidade no chamado Projeto Perus. O Brasil precisa parar de varrer crimes para baixo do tapete. E a Unicamp, infelizmente, varreu as ossadas para baixo do tapete. pena, mas ns estamos aqui propondo alguns elementos de anlise que so os mais evidentes. O que de melhor se pode fazer reconhecer que, por vrias razes, no fizemos o que poderamos fazer. Estamos sendo honestos, sinceros, e com a firme convico de que este assunto no pode parar a. Acho que assumindo honestamente que foi omissa, a Unicamp faz o melhor que pode fazer depois do mal que foi feito.

A vala

A reabertura da vala clandestina do Cemitrio Dom Bosco, em Perus, no dia 4 de setembro de 1990, desenterrou no s 1.500 ossadas, mas tambm um ado que os militares e os governos que respaldaram a ditadura quiseram ocultar. O cemitrio foi construdo pela Prefeitura de So Paulo em 1970 e desde que foi criado esteve a servio da represso.

Em 1990, o reprter Caco Barcelos estava fazendo um estudo sobre a violncia policial, que resultou na publicao do livro Rota 66, e suas investigaes revelaram que o destino das vtimas da polcia era o mesmo dos mortos por motivos polticos. Ele descobriu que nos documentos do IML, ao lado de alguns nomes, aparecia registrada a letra T, significando que se tratava de um terrorista, como os militares consideravam os oponentes do regime. A letra era o diferencial entre a vtima comum e a poltica. Mas o caminho era o mesmo: ocultamento de cadver.

A prefeita Luiza Erundina determinou a abertura da vala e uma completa investigao sobre o caso. A Cmara Municipal criou uma Comisso Parlamentar de Inqurito (I) para apurar a origem e responsabilidade pelas ossadas e a utilizao dos demais cemitrios de So Paulo para ocultamento de corpos das vtimas da represso no pas.

Embora a informao da existncia da vala de Perus s tenha se tornado pblica em 1990, o fato era do conhecimento da Comisso de Familiares de Desaparecidos Polticos desde 1975. Ns sabamos dessa informao e guardamos porque no tnhamos para quem falar, no confivamos em ningum, diz Ivan Seixas, membro da Comisso e filho de Joaquim Seixas, o primeiro preso poltico a ser enterrado no cemitrio. Ele conta que seu pai foi assassinado e enterrado um ms depois de o cemitrio ser inaugurado pelo prefeito Paulo Maluf, em 1971. A me e as duas irms de Ivan, que estiveram presas durante o ano de 1971 e foram libertadas em setembro do ano seguinte, aram a visitar o tmulo de Joaquim. As idas ao cemitrio renderam uma maior aproximao com os coveiros, que falavam sobre os presos polticos que ali eram enterrados. Segundo Ivan, os funcionrios anunciavam: Eles vo abrir uma vala comum e vo jogar todos para no serem identificados. Se vocs querem continuar visitando o tmulo de seu pai, levem para outro lugar, seno vocs vo perder.

Em 1975, duas quadras do Cemitrio de Perus foram exumadas e os ossos colocados em sacos plsticos. A idia era mandar as ossadas para um crematrio que deveria ser construdo no prprio cemitrio. A I constatou que havia uma planta para sua criao desde 1969 e que um forno fra encomendado empresa inglesa Dowson & Mason. A construo do crematrio em um cemitrio destinado sepultamentos de indigentes era ilegal e levantou suspeitas. A Dowson & Mason emitiu um relatrio no qual apontava inadequaes na planta: Parece no haver hall de cerimnia nesse projeto e algumas coisas francamente no entendemos, mesmo considerando estarmos associados e trabalhando h 15 anos em projetos de crematrio em todo o mundo. Com esses impedimentos, decidiram executar o projeto no Cemitrio de Vila Nova Cachoeirinha. L tambm no foi possvel e o crematrio foi ento construdo no Cemitrio de Vila Alpina. A inteno de cremar os ossos da qual, segundo o relatrio da I da Cmara, s se tem notcia pela memria dos funcionrios j que no existe documentao a respeito foi descartada em 1976 quando a vala clandestina foi aberta. Meio metro de largura, 3 metros de profundidade e mais de 35 metros de extenso. Essas so as medidas do buraco para onde foram os restos mortais de cerca de 1.500 pessoas. At ento, as ossadas tinham ficado amontoadas em uma sala da istrao do cemitrio.

Tanto a exumao quanto a reinumao aconteceram em desobedincia aos procedimentos legais do servio funerrio municipal. De acordo com as investigaes da I a vala se manteve em carter de clandestinidade sob vrios aspectos: no houve registro de sua criao, foi aberta em rea destinada construo de uma capela, no foi demarcada posteriormente como local de sepultamento, no foi includa na planta do cemitrio, foi construda de forma irregular, sem alvenaria e outros requisitos, no houve registro da transferncia dos corpos exumados para a vala.

A prefeitura criou uma comisso para decidir o que fazer com as ossadas. O Governo do Estado e entidades ligadas aos direitos humanos foram convocadas para discutir sobre o assunto. A Comisso de Familiares de Desaparecidos Polticos recusou de imediato a proposta de enviar as ossadas para o Instituto Mdico Legal de So Paulo (IML). O IML no podia ser porque o diretor, Antnio de Melo, assinou o laudo falso do Manoel Fiel Filho, um operrio metalrgico assassinado em janeiro de 1976, afirma Maria Amlia Almeida Teles, membro da Comisso.

Durante trs meses, antes de serem trasladados para Campinas, uma equipe composta por mais de 50 profissionais entre professores, mdicos, dentistas, alunos e funcionrios da Unicamp e de outras instituies fizeram os processos preliminares da investigao dentro do prprio cemitrio. Trs caminhes lotados seguiram para a Unicamp com as ossadas selecionadas, limpas e identificadas com uma chapa de metal numerada. Um convnio entre a universidade, o governo do Estado e a prefeitura garantiria os recursos para o trabalho de identificao.

O trabalho em Campinas contou com a colaborao da Comisso de Familiares de Desaparecidos Polticos. Ns fizemos um levantamento dos desaparecidos polticos e colhemos um grande nmero de informaes que possibilitou a elaborao de uma ficha antropomtrica de cada desaparecido, lembra Amlia. As ossadas foram divididas em quatro grupos com caractersticas especficas visando facilitar a identificao. Durante dois anos os trabalhos correram a todo o vapor.

A descoberta da vala clandestina de Perus reacendeu a esperana de identificao de outros desaparecidos polticos que tiveram seus corpos enterrados em covas regulares no s no cemitrio Dom Bosco mas em outros. Com a lei da anistia, em 1979, muitos exilados que se encontravam fora do pas voltaram para o Brasil e comearam a trocar informaes sobre seus companheiros que estavam desaparecidos. Foi a partir dessa comunicao que Suzana Lisboa conseguiu localizar, no Cemitrio de Perus, a vala regular onde seu marido, Luiz Eurico Tejera Lisboa, foi enterrado.

Em 1996, a guerrilheira Maria Lcia Petit foi identificada e seus restos mortais entregues sua famlia. Quando a sua ossada foi exumada no cemitrio de Xambio, Tocantins, em 1991, ainda havia resqucios das roupas, calados e rios que Maria Lcia usava quando foi presa. Ela vestia uma blusa de gola rol, feita de material sinttico, usava botas, cinto de couro e calcinha de nylon, utilizada pelas guerrilheiras quando estavam menstruadas para facilitar a higiene pessoal. A Comisso tomou conhecimento desses dados atravs de uma carta de despedida escrita por uma companheira de guerrilha, na qual tudo foi descrito. Todas essas informaes coincidiam com os resqucios encontrados junto aos restos mortais exumados em Xambio. Amlia recorda-se que Badan Palhares, em entrevistas concedidas no local da exumao, declarou que a ossada deveria ser de Maria Lcia. Ela diz que o legista chegou a mencionar que o corpo foi enterrado com um pra-quedas do Exrcito. Quando chegou em So Paulo, Palhares negou as declaraes anteriores e descartou a possibilidade de ser a guerrilheira, afirmando que se tratava de uma prostituta. Os integrantes da Comisso no tinham dvida que aqueles restos mortais pertenciam a Maria Lcia e diversas vezes procuraram Badan para cobrar a identificao. Apresentaram, inclusive, a sua ficha odontolgica para facilitar a investigao. Eles diziam para o legista que Maria Lcia pertencia a uma famlia de classe mdia e que um tratamento dentrio, naquela poca, era muito caro e dificilmente uma prostituta teria condies financeiras para faz-lo. Todos os argumentos e cobranas foram desconsideradas por Badan Palhares. Somente em 1996, aps uma matria do jornal O Globo, que ele reconhece a ossada como pertencente a Maria Lcia.

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