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D.Paulo Evaristo Arns
lanando o Livro
Brasil Nunca mais em Natal - RN 23/08/1985
Prefcio
do Cardeal-Arcebispo de So Paulo
Dom Paulo Evaristo Arns
TESTEMUNHO E APELO 2r1i2r
As
angstias e esperanas do Povo devem ser compartilhadas pela Igreja.
Confiamos que esse livro, composto por especialistas, nos confirme em
nossa crena no futuro.
Afinal,
o prprio Cristo, que ou pela Terra fazendo o bem, foi
perseguido, torturado e morto. Legou-nos a misso de trabalhar pelo
Reino de Deus, que consiste na justia, verdade, liberdade e amor.
As
experincias que desejo relatar no frontespcio desta obra pretendem
reforar a idia subjacente em todos os captulos, a saber, que a
tortura, alm de desumana, o meio mais inadequado para levar-nos a
descobrir a verdade e chegar paz.
1.
Durante os tempos da mais intensa busca dos assim chamados
subversivos, atendia eu na Cria Metropolitana, semanalmente, a
mais de vinte seno cinquenta pessoas. Todas em busca do paradeiro de
seus parentes.
Um
dia, ao abrir a porta do gabinete, vieram ao meu encontro duas senhoras,
uma jovem e outra de idade avanada.
A
primeira, ao assentar-se em minha frente, colocou de imediato um anel
sobre a mesa, dizendo: a aliana de meu marido, desaparecido h
dez dias. Encontrei-a, esta manh, na soleira da porta. Sr. padre, que
significa essa devoluo? sinal de que est morto ou um aviso
de que eu continue a procur-lo?
At
hoje, nem ela nem eu tivemos resposta a essa interrogao dilacerante.
A
senhora mais idosa me fez a pergunta que j vinha repetindo h meses:
O senhor tem alguma notcia do paradeiro de meu filho? Logo aps
o sequestro, ela vinha todas as semanas. Depois reaparecia de ms em ms.
Sua figura se parecia sempre mais com a de todas as mes de
desaparecidos. Durante mais de cinco anos, acompanhei a busca de seu
filho, atravs da Comisso Justia e Paz e mesmo do Chefe da Casa
Civil da Presidncia da Repblica. O corpo da me parecia diminuir,
de visita em visita. Um dia tambm ela desapareceu. Mas seu olhar
suplicante de me jamais se apagara de minha retina.
No
h ningum na Terra que consiga descrever a dor de quem viu um ente
querido desaparecer atrs das grades da cadeia, sem mesmo poder
adivinhar o que lhe aconteceu. O desaparecido transforma-se numa
sombra que ao escurecer-se vai encobrindo a ltima luminosidade da
existncia terrena.
Para
a esposa e a me, a Terra se enche de trevas, como por ocasio da
morte de Jesus.
2.
Numa noite singular, chegou minha residncia um juiz militar, que
estudara em colgio catlico e demonstrava compreenso para a ao
da Igreja de So Paulo, empenhada na defesa de presos polticos.
A
certa altura, a conversa toma rumo oposto. O magistrado, aparentemente
frio e objetivo, se comove. Acaba de receber dois documentos diz ele
provenientes de fontes diversas e assinados por pessoas
diferentes. Dois presos polticos afirmam terem assassinado a mesma
pessoa, em tempo e circunstncias totalmente inverossmeis. E ele,
juiz, a concluir: Imagine o senhor a situao psicolgica, e quem
sabe fsica, de quem chega ao ponto de declarar-se assassino, sem o
ser!
O
inqurito sob tortura, ou ameaa de tortura, no entanto, chega a
absurdo e inutilidade ainda maiores:
3.
O engenheiro, antes de prestar depoimento Comisso Justia e Paz,
me relata o seu drama.
Nada
tinha a temer, quando foi preso. Como, no entanto, ouvira que a tortura
era aplicada a quem no confessasse, ao menos, alguma coisa, foi
preparando a mente para contar minuciosamente tudo que pudesse, de
qualquer forma, ser interpretado como sendo contrrio ao regime. Diria
at mais do que numa confisso sacramental. No conseguiu.
Aps
tomarem seus dados pessoais, fizeram-no assentar-se, de imediato, na
cadeira do drago e, a partir desse momento, conta-me ele: Tudo se
embaralhou. No sabia mais o que fizera, nem mesmo o que desejava
contar ou at ampliar, para ter credibilidade. Confundi nomes, pessoas,
datas, pois j no era mais eu quem falava e sim os inquisidores que
me dominavam e me possuam no sentido mais total e absoluto do
termo.
Como
e quando h de recompor-se um homem inocente, assim aviltado?
4.
O que mais me impressionou, ao longo dos anos de viglia contra a
tortura, foi porm o seguinte: como se degradam os torturadores mesmos.
Esse livro, por sua prpria natureza, no pode dar resposta plena
questo. Da o meu testemunho:
Quando
foram presos os lderes da Ao Catlica Operaria, em fins de
janeiro de 1974, tive ocasio de ar quatro tardes inteiras, no
interior do DEOPS, na esperana de avistar-me com eles. Eu havia sido
chamado para tanto, de Curitiba, onde ava os dias com todos os irmos,
que confortavam a me em seus ltimos dias de vida.
Durante
a longa espera, nos corredores da cadeia, pude entreter-me com delegados
que presidiam a inquritos, semelhantes aos que viro descritos nesta
obra. Cinco deles me contaram de seus estudos em colgios catlicos e
um deles na Universidade Catlica de So Paulo. Cada qual com
problemas srios na famlia e na vida particular, que eles prprios
atribuam mo vingadora de Deus. Instados a abandonar esta terrvel
ocupao, respondiam: No d. O senhor sabe por qu!
Na
sexta-feira tardinha pude afinal avistar-me com dois dos nossos
agentes de pastoral, em situao lastimvel, na presena mesmo dos
delegados que encarei firmemente.
Um
deles, meses aps, me esperava, ao final da missa, sozinho, na igreja
da Aclimao. Abordou-me, num grito de desespero: Tem perdo para
mim?
S
onze anos depois, em maro de 1985, fiquei sabendo que, na manh de 12
de fevereiro de 1974, um delegado fizera subir os presos para
anunciar-lhes, com ar triunfante e cnico, que minha me havia morrido
no dia anterior. Os presos baixaram os olhos e nada disseram.
Lembrei-me
ento da advertncia de um general, alis contrario a toda tortura:
quem uma vez pratica a ao, se transtorna diante do efeito da
desmoralizao infligida. Quem repete a tortura quatro ou mais vezes
se bestializa, sente prazer fsico e psquico tamanho que capaz de
torturar at as pessoas mais delicadas da prpria famlia!
A
imagem de Deus, estampada na pessoa humana, e sempre nica. S ela
pode salvar e preservar a imagem do Brasil e do mundo.
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