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Discurso da
Servido Voluntria
Etienne de La Botie
Homero conta
que um dia, falando em pblico, Ulisses disse aos gregos: "No
bom ter vrios senhores, tenhamos um s".
Se tivesse dito
apenas: no bom ter vrios senhores, teria sido to
bom que nada poderia ser melhor. Mas em vez disso, e com mais razo,
deveria ter dito que a dominao de vrios no poderia ser
boa, j que o poderio de um s duro e revoltante quando este
toma o ttulo de senhor: ao contrrio, vai acrescentar: tenhamos
um s senhor.
Todavia,
preciso desculpar Ulisses por ter mantido esta linguagem - que lhe
serviu ento para apaziguar a revolta do exrcito - adaptando
seu discurso, creio eu, mais circunstncia que verdade. Mas
com toda conscincia, no uma extrema infelicidade estar-se
sujeito a um senhor de cuja bondade nunca possvel se
certificar, e que sempre tem o poder de ser mau quando quiser? E
obedecer a vrios senhores no ser tantas vezes extremamente
infeliz? No abordarei aqui esta questo tantas vezes agitada:
" a repblica ou no prefervel democracia?".
Se tivesse de discuti-la, antes mesmo de procurar a categoria que
a monarquia deve ocupar entre os diferentes modos de governar a
coisa pblica, gostaria de saber se se deve atribuir-lhe uma,
visto que bastante difcil acreditar que nela haja realmente
algo de pblico. Mas reservemos para um outro tempo essa questo
que exigiria um tratado parte e acarretaria por si mesma todas
as disputas polticas.
No momento,
gostaria apenas que me fizessem compreender como possvel que
tantos homens, tantas cidades, tantas naes s vezes em
tudo de um Tirano s, que tem apenas o poderia que lhe do, que
no tem o poder de prejudic-los seno enquanto aceitam -lo,
e que no poderia fazer-lhes mal algum se no preferissem, a
contradize-lo, ar tudo dele. Coisa realmente surpreendente
(e no entanto to comum que se deve mais gemer por ela do que
surpreender-se) ver milhes e milhes de homens
miseravelmente subjugados e, de cabea baixa, submissos a um jugo
deplorvel: no que a ele sejam obrigados por fora maior, mas
porque so fascinados e, por assim dizer, enfeitiados apenas
pelo nome de um que no deveriam temer, pois ele s,
nem amar, pois desumano e cruel para com todos eles. Tal
entretanto a fraqueza dos homens! Forados obedincia, forados
a contemporizar, divididos entre si, nem sempre podem ser os mais
fortes. Portanto, se uma nao, escravizada pela fora das
armas, submetida ao poder de um s (como foi a cidade de
Atenas dominao dos trinta tiranos), no de se espantar
que ela sirva, mas de se deplorar sua servido, ou melhor, nem
espantar-se nem lamentar-se: ar o infortnio com resignao
e reservar-se para uma ocasio melhor no futuro.
Somos feitos de
tal modo que os deveres comuns da amizade absorvem boa parte de
nossa vida. Amar a virtude, estimar belas aes, ser gratos
pelos benefcios recebidos, e, freqentemente at, reduzir
nosso prprio bem estar para aumentar a honra e a vantagem
daqueles que amamos e que merecem ser amados - tudo isso muito
natural. Se, portanto, os habitantes de um pas encontram entre
eles um desses homens raros, que lhes tenha dado provas reiteradas
de grande providncia para garanti-los, de grande audcia para
defend-los, de grande prudncia para govern-los; se
insensivelmente, habituam-se a obedec-lo, se at confiam nele a
ponto de atribuir-lhe uma certa supremacia, no sei se tir-lo
de onde fazia o bem para coloc-lo onde poder malfazer agir
com sabedoria; no entanto, parece muito natural e razovel ser
bom para com aquele que nos trouxe tantos bens e no temer que o
mal nos venha dele.
Mas, Deus!, o
que isso? Como chamaremos esse vcio, esse vcio horrvel? No
vergonhoso ver um nmero infinito de homens no s obedecer
mas rastejar, no serem governados mas tiranizados, no tendo
nem bens, nem parentes, nem crianas, nem sua prpria vida que
lhes pertenam? ando as rapinas, as extorses, as
crueldades, no de um exrcito, no de uma horda de brbaros,
contra os quais cada um deveria defender sua vida a custo
de todo o seu sangue, mas de um s: no de um Hrcules ou de um
Sanso, mas de um verdadeiro homenzinho, amide o mais
covarde, o mais vil, e o mais efeminado da nao, que nunca
cheirou a plvora das batalhas, quando muito pisou na areia dos
torneios; que incapaz no s de comandas os homens mas tambm
de satisfazer a menor mulherzinha! Nomearemos isso covardia?
Chamaremos de vis e covardes os homens submetidos a tal jugo? Se
dois, trs, quatro cedem a um, estranho, porm possvel:
talvez se pudesse dizer, com razo: falta de fibra. Mas se
cem, se mil deixam-se oprimir por um s dir-se-ia ainda que
covardia, que no ousam atac-lo, que por desprezo ou desdm
no querem resistir a ele? Enfim, se no se v que cem, mas cem
pases, mil cidades, um milho de homens no atacarem, no
esmagarem aquele que, sem prurido algum, trata-os todos como igual
nmero de servos e de escravos - como qualificaramos isso? Ser
covardia? Mas para todos os vcios h limites que no podem ser
superados. Dois homens e at dez bem podem temer um, mas que mil,
um milho, mil cidades no se defendam contra um s homem! Oh!
no s covardia, ela no chega a isso - assim como a
valentia no exige que um s homem escale uma fortaleza, ataque
um exrcito, conquiste um reino! Que vcio monstruoso ento
esse que a palavra covardia no pode representar, para o qual
toda expresso, que a natureza desaprova e a lngua se recusa a
nomear?...
Que se ponham de
um lado e outro cinqenta mil homens em armas; que sejam
alinhados em posio de combate; que em s vias de fato;
uns livres, combatendo por sua liberdade, ou os outros para roub-la
deles: com quem credes que a vitria ficar? Quais iro mais
corajosamente ao combate: aqueles cuja recompensa deve ser a
manuteno de sua liberdade, ou os que s esperam a servido
de outrem como salrio de golpes dos golpes que do e que
recebem? Uns tm sempre diante dos olhos a felicidade da
vida ada e a espera de alegria semelhante no futuro. Pensam
menos nas penas, nos sofrimentos momentneos da batalha do que
nos tormentos que, uma vez vencidos, devero ar para sempre
- eles, seus filhos e toda sua posterioridade. Os outros s tem
com aguilho uma pontinha de cupidez que de repente se embota
diante do perigo e cujo ardor factcio apaga-se, quase que
imediatamente, no sangue do seu primeiro ferimento. Nas to
famosas batalhas de Milcades, de Lenidas, de Temstocles, que
datam de dois mil anos e ainda hoje vivem to frescas nos livros
e nas memrias dos homens, como se tivessem ocorrido recentemente
na Grcia, para o bem da Grcia e exemplo para o mundo inteiro -
o que deu a um nmero to pequeno de Gregos no o poder, mas a
coragem para repelir essas frotas formidveis, cujo peso o mar
mal podia sustentar, para combater e vencer tantas e to
numerosas naes que, juntos, todos os soldados gregos no
teriam igualado em nmero os capites dos exrcitos inimigos?
Mas tambm, nessas gloriosas jornadas, tratava-se menos da
batalha dos Gregos contra os Persas que da vitria da liberdade
sobre a dominao, da libertao sobre a escravido.
So
verdadeiramente miraculosos os relatos da bravura que a
liberdade pe no corao daqueles que a defendem! Mas o que faz
com que, em toda parte e todos os dias, um homem s oprima cem
mil cidades e as prive de liberdade? Quem poderia acreditar, se
isso fosse apenas um ouvir-dizer e no ocorresse a cada instante
sob nossos prprios olhos? Se esse fato ainda ocorresse em pases
longnquos, e nos viessem cont-lo, que de ns no o acharia
imaginado e inventado sem motivo? E, no entanto, no preciso
combater este tirano, s, nem mesmo dele defender-se: ele se
anula por si mesmo, desde que o pas no consinta a servido. No
se trata de lhe arrancar nada, mas apenas de nada lhe dar. Que uma
nao no faa esforo algum para sua liberdade, se quiser,
mas que ela prpria no trabalhe para sua runa. So os povos,
portanto, que se deixam, ou melhor, se fazem manietar, pois
quebrariam seus laos recusando-se apenas a servir. o povo que
se sujeita e se degola; que, podendo escolher entre ser sdito ou
ser livre rejeita a liberdade e aceita o jugo, que consente seu
mal, ou melhor, persegue-o. Eu no o exortaria, se recobrar sua
liberdade lhe custasse alguma coisa - se bem que recuperar seus
direitos naturais e, por assim dizer, de bicho voltar a ser homem,
seja realmente o que deve mais interess-lo. E, no entanto, no
exijo dele tamanha audcia; nem quero que ambicione no sei que
segurana de viver mais vontade. Mas, qu! Se para ter a
liberdade basta desej-la, se para tanto basta o querer, haver
nao no mundo que creia pag-la caro demais adquirindo-a com
uma simples aspirao? E que lamente sua vontade de recobrar um
bem que se deveria reaver a preo de sangue, e cuja simples perda
torna a vida amarga e a morte benfazeja para qualquer homem
honrado? Como o fogo de uma fagulha torna-se grande e sempre
aumenta, e quanto mais lenha encontra mais a devora, mas se
consuma e acaba, apagando-se por si mesma quando param de aliment-lo
- assim tambm, por certo, os tiranos, quanto mais pilham, mais
exigem; quanto mais arruinam e destroem, mais se lhes oferece,
mais o empanturram; eles se fortalecem na mesma medida e esto
cada vez mais dispostos a tudo aniquilar e destruir; mas se nada
se lhes d, se no se lhes obedece, sem combat-los, sem atac-los,
ficam nus e desfeitos - semelhantes arvore que, no recebendo
mais sumo e alimento de sua raiz, em breve apenas um galho seco
e morto.
Para adquirir o
bem que deseja, o homem empreendedor no teme nenhum perigo, o
trabalhador no repelido por nenhuma pena. S os covardes e
os embotados no sabem ar o mal nem recobrar o bem,
que limitam-se a cobiar. A energia para pretend-lo -lhes
roubada por sua prpria covardia; s lhes resta o desejo natural
de possu-lo. Esse desejo, essa vontade inata, comum aos sbios
e aos loucos, aos corajosos e aos covardes, os faz desejar todas
as coisas cuja posse os tornaria felizes e contentes. Uma s, no
sei por que, os homens no tm nem mesmo a fora de desejar.
a liberdade, bem to grande e to doce que, uma vez perdida,
todos os males se seguem, e sem elas todos os outros bens
inteiramente o gosto e o sabor, corrompidos pelo gosto e pela
servido. Parece-me que os homens desdenham unicamente a
liberdade, porque, se a desejassem, t-la iam; como se se
recusassem a fazer esta conquista preciosa porque ela demasiado
fcil.
Pobre gente r
miservel, povos insensatos, naes obstinadas em vosso mal e
cegas ao vosso bem, deixai roubar, sob vossos prprios olhos, o
mais belo e o mais claro de vossa renda, pilhar vossos campos,
devastar vossas casas e despoj-las dos velhos mveis de vossos
ancestrais! Viveis de tal modo que nada mais vosso.
Parece que doravante considerareis uma grande felicidade se vos
deixassem apenas a metade de vossos bens, de vossas famlias, de
vossas vidas. E todos esse estrago, esses infortnios, essa runa,
enfim, vos advm no dos inimigos, mas sim, por certo, do
inimigo, e daquele mesmo que fizestes como ele , por quem ides to
corajosamente guerras e para a vaidade de quem vossas pessoas
nela enfrentam a morte a cada instante. Esse senhor porm, s
tem dois olhos, duas mos, um corpo e nada alm do que tem o ltimo
habitante do nmero infinito de vossas cidades. O que tem
a mais do que vs so os meios que forneceis para destruir-vos.
De onde tira os inmeros argus que vos espiam, seno de vossas
fileiras? Como tem tantas mos para golpear-vos, se ele no as
empresta de vs? Os ps com que espezinha vossas cidades tambm
no so os vossos? Tem ele poder sobre vs seno por vs
mesmos? Como ousaria atacar-vos se no estivesse conivente
convosco? Que mal poderia fazer-vos se no fsseis receptadores
do ladro que vos pilha, cmplices do assassino que vos mata, e
traidores de vs mesmos? Semeias vossos campos para que ele os
devaste, mobiliais e encheis vossas casas para alimentar suas
ladroeiras; educai vossas filhas para que ele possa saciar sua luxria;
alimentai vossos filhos para que faa deles soldados (esses ainda
so felizes demais!), para que conduza-os carnificina,
torne-os ministros de suas cobias, executores de suas vinganas.
Consumi-vos no sofrimento para que ele possa mimar-se em suas delcias
e chafurdar nos prazeres sujos. Enfraquecei-vos para que ele seja
mais forte, mas duro, e que vos mantenha com a rdea curta; e de
tantas indignidades, que os prprios bichos no sentiriam ou no
ariam, podeis vos livrar at sem tentar faz-lo, apenas
tentando quer-lo. Decidi no mais servir e sereis livre. No
quero que o enfrenteis nem que o abaleis; somente no mais o
sustentai e o verei, como um grande colosso a quem subtraiu-se a
base, cair com seu prprio peso e quebrar-se.
Os mdicos
dizem que intil procurar curar as feridas incurveis e
talvez eu esteja errado em querer dar tais conselhos ao povo
que, h muito, parece ter perdido todo o sentimento do mal que o
aflige- o que bem mostra que sia doena mortal. Procure-mos no
entanto descobrir, se possvel, como enraizou-se to
profundamente esta obstinada vontade se servir, que, com efeito,
deixa crer que o prprio amor da liberdade no to natural.
Em primeiro
lugar creio no haver dvida de que, se vivssemos com que os
direitos que recebemos da natureza e segundo os preceitos que ela
ensina, seramos naturalmente submissos a nossos pais, sditos
da razo, mas escravos de ningum. Quanto a saber se em ns a
razo inata ou no (questo debatida a fundo nas academias e
longamente agitada nas escolas de filsofos), penso no errar,
ao acreditar que em nossa alma existe um germe de razo que,
reanimado pelos bons conselhos e bons exemplo, produz em ns a
virtude: ao contrrio, esse mesmo germe aborta abafado pelos vcios
que muitas vezes advm. Mas o que claro e evidente para todos,
que a natureza, primeiro agente de Deus, benfeitora dos homens,
criou-nos do mesmo modo e, de certa maneira, verteu-nos todos na
mesma frma, para mostrar-nos que somos iguais, ou melhor, todos
irmos. E se, na partilha que nos fez de seus dons, prodigou
algumas vantagens de corpo ou de esprito a uns mais que aos
outros, entretanto nunca pde querer colocar-nos neste mundo como
num campo cerrado e no mandou para c os mais fortes e os mais
hbeis como bandidos armados numa floresta, para atacar os mais
fracos. Antes, de se crer que, atribuindo assim as partes - a
uns maiores, aos outros as menores -, quis fazer nascer neles a
afeio fraternal e coloc-los em condies de pratic-la,
tendo uns o poderio de dar socorro e os outros necessidade de
receb-los. Em suma, posto que essa boa me deu-nos a todos a
terra inteira por morada, alojou-nos todos debaixo do mesmo
grande teto, e amassou-nos todos na mesma massa para que,
com num espelho, pudesse reconhecer-se em seu vizinho; se nos deu
a todos o belo presente da voz e da fala para que nos abordssemos
e confraternizssemos, e atravs da comunicao e da troca de
nossos pensamentos fssemos levados comunidade de idias e de
vontades; se procurou por todos os meios formar e estreitar o n
de nossas aliana, os vnculos de nossas sociedade; se, enfim,
mostrou em todas as coisas o desejo que fssemos no s unidos
mas, juntos, fizssemos por assim dizer um s ser - pode-se ento
duvidar um s instante de que sejamos todos iguais? e pode
entrar no esprito de algum que ela tenha querido alguns em
escravido, tendo nos postos todos na mesma companhia?
Mas em verdade no
vale a pena discutir para saber se a liberdade natural, pois
nenhum ser pode ser mantido em servido sem que ressinta um dano
grave, e no mundo nada mais contrrio natureza (cheia de
razo) que a injustia. O que dizer ainda? Que a liberdade
natural e que, em meu entender, no s nascemos com nossa
liberdade como tambm com a vontade de defend-la- E se por
acaso houver quem ainda duvide e esteja to abastardado a ponto
de desconhecer os bens e as afeies inatas que lhe so prprios,
preciso que lhe faa a honra que merece e, por assim dizer,
alce os bichos ao plpito para ensinar-lhe sua natureza a condio.
Os bichos (valha-me Deus!), se os homens quisessem compreend-los,
gritam-lhes: Viva liberdade! Vrios deles morrem logo que so
capturados. Como o peixe, que perde a vida quando o retiram da gua,
se deixam morrer para no sobreviverem sua liberdade natural
(se os animais tivessem entre si as categorias e preeminncias,
em meu entender. fariam da liberdade sua nobreza). Outros, dos
maiores aos menorzinhos, quando so capturados, resistem tanto
com as unhas, os chifres, os ps e o bico que por a demonstram
bastante seu apreo ao bem que lhes roubam. Uma vez capturados, do-nos
tantos sinais aparentes do sentimento de seu infortnio, que
bonito v-los desde ento languir em vez de viver, no se
comprazendo nunca na servido e lamentando continuamente a privao
de sua liberdade. Com efeito, o que significa a ao do elefante
-que tendo se defendido at o limite, sem esperana, na iminncia
de ser capturado, bate sua mandbula e quebra os dentes contra as
rvores - seno que, inspirado pelo grande desejo de permanecer
livre como por natureza, concebe a idia de negociar com os caadores
para ver se poder libertar-se a troco de seus dentes; se
deixando como resgate seu marfim, recobrar sua liberdade. E o
cavalo! desde que nasce o preparamos para que obedea; e no
entanto nossos cuidados e carinhos no impedem que morda o freio
quando queremos dom-lo, que escoicei quando o esporeamos;
naturalmente querendo indicar desta maneira (parece-me) que se
serve no de bom grado, mas por imposio. O que diremos
ainda?... Os prprios bois gemem sob o jugo, e os pssaros
choram na gaiola. Como disse outrora em rima, nos meus
instantes de lazer.
Em suma, se todo
ser que tem o sentimento de sua existncia sente o infortnio da
sujeio e procura a liberdade, se os bichos, at os criados
para o servio do homem, s podem se submeter depois de
protestarem um desejo contrrio -que vcio infeliz pode ento
desnaturar o homem, o nico que realmente nasceu para viver
livre, a ponto de faz-lo perder a lembrana de sua primeira
condio e o prprio desejo de retom-la?
H trs tipos
de tirano. Falo dos maus Prncipes. Uns possuem o Reino por eleio
do povo, outros pela fora das armas e outros por sucesso da raa.
Os que o adquiriram pelo direito de guerra comportam-se nele como
em uma terra conquistada, com se bem sabe e se diz, com razo.
Comumente, os que nascem reis no
so melhores; nascidos e criados no seio da tirania, sugam com o
leite o natural do tirano, consideram os povos a eles submetidos
como seus servos hereditrios; e segundo a tendncia a que esto
mais inclinados, avaros ou prdigos, se utilizam do Reino como de
sua prpria herana. Quanto quele cujo poder vem do povo,
parece que deveria ser mais vel, e creio que o seria,
desde que se visse a lugar to alto, acima do todos os outros,
lisonjeado por um no sei qu que chamam de grandeza, no
tomasse a firme resoluo de no descer mais. Quase sempre
considera o poderio que lhe foi confiado pelo povo como se devesse
ser transmitido a seus filhos. Ora, quando eles e ele conceberam
esta idia funesta, realmente estranho ver como superam todos
os outros tiranos em vcios de todo tipo e at em
crueldades. No encontram melhor maneira de consolidar sua nova
tirania seno aumentando a servido e afastando tanto as idias
de liberdade do esprito de seus sditos que, por mais recente
que seja a sua lembrana, logo ela se apaga inteiramente de sua
memria. Assim, para dizer a verdade, vejo bem alguma diferena
entre estes tiranos, mas no que se possa fazer uma escolha: pois
se chegam ao trono por caminhos diversos, sua maneira de reinar
quase sempre a mesma. Os escolhidos pelo podo tratam-no como um
touro a ser domado; os conquistadores, como uma presa sobre a qual
tem todos os direitos; os sucessores como um rebanho de escravos,
que naturalmente, lhes pertence.
A propsito,
perguntaria: se o acaso quisesse que hoje nascesse alguma gente
inteiramente nova, que no estivesse acostumada com a sujeio
nem atrada pela liberdade, que at os nomes de uma e de outra
ignorasse, e a quem oferecesse a opo entre ser sujeitos
ou viver livre, qual seria a sua escolha? Ningum duvida de que
prefeririam obedecer apenas sua razo em vez de servir a um
homem, a menos que fossem como os judeus de Israel que, sem
motivos nem coero alguma, deram a si mesmo um tirano, e cuja
histria nunca leio sem sentir uma extrema indignao que quase
me levaria a ser desumano para com eles, a rejubilar-me com todos
os males que depois lhes sucederam. Pois, para que os homens,
enquanto neles resta vestgios de homem, se deixem sujeitar,
preciso uma das duas coisas: que sejam forados ou iludidos; forados
pelas armas estrangeiras, como Esparta e Atenas o foram por
Alexandre: ou pelas faces, como quando, muito antes deste
tempo o governo de Atenas caiu nas mos de Pisstrato. Iludidos,
eles tambm perderam a liberdade; mas ento, menos freqentemente
pela seduo de outrem do que por sua prpria cegueira. Como o
povo de Siracusa (outrora capital de Siclia), que assediado de
todos os lados por inimigos, pensando apenas no perigo do momento
e no prevendo o futuro, elegeu Dionsio I e entregou-lhe o
comando geral do exrcito. O povo s percebeu que o tornara to
poderoso quando este hbil patife, retornando vitorioso
cidade, primeiro se fez capito rei, e em seguida tirano, como se
tivesse vencido seus concidados em vez de seus inimigos. No se
poderia imaginar at que ponto um povo, sujeitado assim
pela patifaria de um traidor, cai no aviltamento e, mesmo, em um
esquecimento to profundo de todos os seus direitos, que quase
impossvel acord-lo de seu torpor para reconquist-lo;
servindo to bem e de to bom grado, que, ao consider-lo,
dir-se-ia que no perdeu apenas sua liberdade, mas tambm sua prpria
servido, para se entorpecer na mais embrutecedora escravido.
verdadeiro dizer que no incio serve-se contra a vontade e
fora; mais tarde acostuma-se, e os que vem depois, nunca tendo
conhecido a liberdade, nem mesmo sabendo o que , servem sem
pesar e fazem voluntariamente o que seus pais s haviam feito por
imposio. Assim, os homens que nascem sob o jugo, alimentados e
criados na servido, sem olhar mais longe, contentam-se em viver
como nasceram; e como no pensam ter outros direitos nem outros
bens alm dos que encontram em sua entrada na vida, consideram
como sua condio natural a prpria condio de seu
nascimento. No entanto, por mais prdigo e despreocupado que
seja, no h herdeiro que um dia no ponha os olhos em seus
registros para ver se goza de todos os direitos de sua herana e
verificar se no usurparam os seus ou os de seus predecessores.
Entretanto, o hbito, que e todas as coisas exerce um imprio to
grande sobre todas as nossas aes, tem principalmente o poder
de ensinar-nos a servir: ele que, a longo prazo (como nos
contam de Mitridades, que acabou habituando-se ao veneno),
consegue fazer-nos engolir, sem repugnncia, a amarga peonha da
servido. No h dvida de que, inicialmente, a
natureza que nos dirige segundo as tendncias boas ou mas
que nos deu; mas tambm preciso concordar que ela tem ainda
menos poder sobre ns do que o hbito; pois, por melhor que
seja, o natural se perde se no cultivado, enquanto o hbito
nos conforma sua maneira, apesar de nossas tendncias
naturais. As sementes do bem que a natureza pe em ns so to
frgeis e finas que no podem resistir ao menos choque das paixes
nem influncia de uma educao que as contraria. No se
conservam bem, abastardam-se to facilmente e at degeneram,
como ocorre a essas rvores frutferas que, tendo sua prpria
espcie, conservam-se enquanto as deixam crescer naturalmente;
mas perdem-na para dar frutos completamente diferentes, logo que
as enxertaram. As ervas tambm tem, cada uma, sua propriedade,
seu natural, sua singularidade; mas no entanto, o frio, o tempo, o
terreno ou a mo do jardineiro sempre deterioram ou melhoram sua
qualidade; freqentemente a planta que se viu em um pas no
reconhecvel em um outro. Aquele que visse em sua terra os
Venezianos- punhado de gente que vive to livremente que o mais
infeliz dentre eles no almejaria ser rei, e todos nascidos
e criados desta forma, no conhecem outra ambio seno a de
vigiar ao mximo a manuteno de sua liberdade; de tal modo
ensinados e formados desde o bero que no trocariam uma migalha
de sua liberdade por todas as outras felicidades humanas - quem
visse, digo, esses homens e em seguida, deixando-os, fosse aos domnios
daquele que chamamos gro-senhor, ao encontrar ali pessoas que s
nasceram para servir e que dedicam a vida toda ao poderio dele,
pensaria que esses dois povos so da mesma natureza? Ou, em vez
disso, acreditaria que, tendo sado de uma cidade de homens,
entrou num parque de bichos? Contam que Licurgo, legislador de
Esparta, criara dois ces, ambos irmos, ambos amamentados com o
mesmo leite, e os habituara, um na cozinha domstica e o outro
correndo pelos campos, ao som da trompa e do cornetim. Querendo
mostrar aos Lacedemnios a influncia da educao sobre o
natural, exps os dois ces na praa pblica e colocou entre
eles uma sopa e uma lebre. Vede, disse ele, e no entanto so irmos!
O legislador soube dar to boa educao aos Lacedemnios, que
cada um deles teria preferido sofrer mil mortes a submeter-se a um
senhor ou reconhecer outras instituies que as de Esparta.
Sinto certo prazer ao lembrar aqui
um dito dos favoritos de Xerxes, o grande rei da Prsia, a
respeito dos Espartanos: quando Xerxes fazia seus preparativos de
guerra para dominar a Grcia inteira, enviou seus embaixadores a
vrias cidades do pas pedindo gua e terra (frmula simblica
que os Persas empregavam para intimar as cidades a se renderem),
mas evitou mand-los a Esparta e Atenas, porque os Espartanos e
os Atenienses - aos quais seu pai Dario j havia mandado fazer
pedido semelhante - os tinham lanado uns nos fossos, outros em
um poo, dizendo-lhes: "Pegai valentemente a gua e
terra e levai ao vosso prncipe". Com efeito,
esses orgulhosos republicanos no podiam itir que se atentasse
contra sua liberdade, nem mesmo atravs da fala. Entretanto, por
terem agido deste modo, os Espartanos reconheceram que haviam
ofendido seus deuses e sobretudo Taltbio, deus dos arautos.
Resolveram ento, para apazigu-los, enviar a Xerxes dois de
seus concidados para que, dispondo deles vontade, pudesse
vingar em suas pessoas a morte dos embaixadores de seus pais. Dois
Espartanos, um chamado Esprtias e o outro Blis, se ofereceram
como vtimas voluntrias. Partiram. Chegando ao palcio de um
Persa chamado Hidarnes, comandante do rei para todas as cidades da
sia que se situavam beira-mar; este os recebeu com honrarias,
e depois de vrios outros discursos, perguntou-lhes porque
rejeitavam to orgulhosamente a amizade do Grande rei.
"Vede, por meu exemplo, acrescentou, como o Rei sabe
recompensar os que merecem, e acreditai que, se estivsseis a seu
servio e se ele vos tivesse conhecido, sereis ambos
governantes de alguma cidade grega". "Quanto a isso,
Hidarnes, no poderia dar-nos bom conselho - responderam os dois
Lacedemnios; pois se provaste a felicidade que nos prometes,
ignoras inteiramente a de que gozamos. Conheceste o favor de um
rei mas no sabes como doce a liberdade, nada sabes da alegria
que ela proporciona. Oh! se tivesses apenas uma idias,
aconselhar-nos-ia a defend-la, no s com a lana e com o
escudo, mas com as unhas e os dentes." S os Espartanos
diziam a verdade; mas aqui cada um falava conforme a educao
que havia recebido. Pois era impossvel que o Persa lamentasse a
liberdade de que jamais gozara e os Lacedemnios, ao contrrio,
tendo saboreado a doce liberdade, nem mesmo concebiam que se
pudesse viver na escravido.
Cato de tica,
ainda criana e sob a frula do mestre, ia com freqncia
visitar o ditador Sila, em casa de quem entrava livremente, tanto
por causa da posio de sua famlia quanto dos laos de
parentesco que os uniam. Nessas visitas, era sempre acompanho por
seu preceptor, como era costume em Roma para os filhos dos nobres
daquele tempo. Um dia viu que na prpria casa de Sila, em sua
presena ou por ordem sua, prendiam-se uns, condenavam-se outros;
um era banido, o outro estrangulado; um propunha o confisco dos
bens de um cidado, o outro pedia sua cabea. Em suma, tudo se
ava ali como se fosse no a casa de um magistrado da cidade,
mas a de um tirano do povo; e era muito menos o santurio que uma
caverna de tirania. A nobre criana disse ao seu preceptor:
"Por que no me dais um punhal? Eu o esconderei sob
minha toga. Entro com freqncia no quarto de Sila antes dele se
levantar.. .tenho o brao bastante forte para livrar a repblica
dele." Eis a realmente o pensamento de um Cato; esse ra,
com efeito, o incio de uma vida to digna de sua morte. E, no
entanto, calai o nome e o pas, contai o fato somente como
-ele fala por si mesmo - e imediatamente dir-se-: essa criana
era Romana, nascida em Roma, na Roma verdadeira, e quando ela era
livre. Por que digo isso? Por certo no pretendo que o pas e o
solo aperfeioem nada, pois em toda parte e em todos os lugares a
escravido odiosa para os homens e a liberdade lhes cara;
mas porque parece-me que se deve deve ter compaixo por aqueles
que, ao nascerem, j sem encontram sob o jugo; que se deve
desculp-los ou perdo-los se no ressentem o infortnio de
serem escravos, pois jamais viram a prpria sombra da liberdade e
nunca ouviram falar dela. Com efeito (como diz Homero dos Cimrios),
se h pases onde o sol se mostra de modo inteiramente diferente
do que a ns e depois de t-los iluminados durante seis meses
consecutivos deixa-os na escurido nos outros seis meses, seria
espantoso que os que nascessem na longa noite, se no tivessem
ouvido falar na claridade nem jamais visto o dia, se
acostumassem s trevas em que nasceram e no desejassem a luz?
Jamais se lamenta o que nunca se teve; o desgosto s vem depois
do prazer e ao conhecimento do bem somente se junta a lembrana
de alguma alegria ada. da natureza do homem ser livre e
querer s-lo; mas muito facilmente toma uma outra feio,
quando dada pela educao.
Digamos, ento,
que se todas as coisas que o homem se acostuma e se molda
tornam-se naturais, entretanto, s ele permanece em sua natureza,
que se habitua apenas s coisas simples e inalteradas; assim a
primeira razo da servido voluntria o hbito; como
ocorre com os mais bravos cortauds, que de incio mordem o
freio e depois descuram; que h pouco escoiceavam sob a sela e
agora se apresentam por si mesmo sob os arreios brilhantes e,
soberbos, empertigam-se e se empavoneiam sob a armadura que os
cobre. Eles dizem que sempre foram sujeitos, que seus pais viveram
assim. Pensam que so obrigados a ar o freio, convencem-se
com exemplos, e atravs do tempo eles mesmos consolidam a posse
dos que o tiranizam. Mas os anos do o direito de malfazer?
E a injria prolongada no uma injria maior? Sempre h
alguns que, mais orgulhosos e inspirados que outros, sentem o peso
do jugo e no podem se impedir de sacudi-lo; que jamais se
submetem sujeio e que sempre e incessantemente (como
Ulisses, por terra e mar procurando rever a fumaa de sua casa)
pretendem no esquecer seus direitos naturais, e esforam-se
por reinvidic-los a cada oportunidade. Esses, tendo entendimento
ntido e esprito clarividente, no se contentam, como os
ignorantes empedernidos, em ver o que est a seus ps sem olhar
para trs e para frente; ao contrrio, lembram as coisas
adas para julgar mais sadiamente o presente e prever o futuro.
So esses que, tendo o esprito por si mesmos correto, ainda o
retificaram atravs do estudo e do saber. Estes, mesmo que a
liberdade estivesse inteiramente perdida e banida deste mundo,
reconduzi-lo-iam a ela; pois, sentindo-a vivamente, tendo-a
saboreado e conservando-lhe o germe em seu esprito, jamais a
servido poderia seduzi-los, por mais que estivesse vestida.
O Gro-Turco
deu-se conta de que os livres e a doutrina s inspiram nos
homens, mais que qualquer coisa, o sentimento de sua dignidade e o
dio da tirania. Alm disso, li que no pas que governa no h
mais sbios, que ele no quer. E em todos os outros lugares, por
maior que seja o nmero dos fiis liberdade, seu zelo e a
afeio que lhe tm ficam sem efeito porque no sabem se
entender. Os tiranos lhe roubam toda a liberdade de fazer, de
falar e quase de pensar, e eles permanecem totalmente isolados em
sua vontade a favor do bem. Portanto, com razo que Momo
censurava o homem forjado por Vulcano porque no tinha no corao
uma janelinha por onde se pudesse ver seus pensamentos mais
secretos. Contaram que, na ocasio de sua empresa para a libertao
de Roma, ou melhor, do mundo inteiro, Bruto e Cssio no
quiseram que Ccero - esse grande e belo declamador, se j
houvesse algum - particie dela, julgando seu corao fraco
demais para feito to elevado. Acreditavam muito em sua boa
vontade, mas no em sua coragem. E, todavia, quem quiser se
lembrar dos tempos ados e compulsar os anais antigos de quase
todos aqueles que, ao verem seus pas maltratado e em ms mos,
tiveram o propsito de libert-lo, conseguiram facilmente -
pois, por conta prpria, a liberdade sempre vem ajud-los; como
Harmdio, Aristogito, Trasbulo, Bruto, o velho, Valrio e
Dion, que conceberam um projeto to virtuoso e executaram-no com
xito. Para tais faanhas quase sempre o firme querer garantiu
sucesso. Cssio e Marco Bruto foram bem sucedidos ao ferirem Csar
para libertar seus pas da escravido; verdade que pereceram
quando tentaram reconduzi-lo liberdade - mas gloriosamente,
pois quem ousaria encontrar algo reprovvel em sua vida e sua
morte? Ao contrrio, esta foi um grande infortnio e causou a runa
total da repblica que, parece-me, foi enterrado com eles. As
outras tentativas feitas mais tarde contra os imperadores romanos
no aram de conjuraes de alguns ambiciosos, cujo
insucesso e fracasso no devem ser lamentados, pois evidente
que desejavam no derrubar o trono, mas apenas aviltar a coroa,
visando somente a expulsar o tirano e conservar sua tirania.
Quanto a estes, ficaria muito aborrecido que tivessem xito, e
estou contente de que, atravs de seu exemplo, tenham mostrado
que no se deve abusar do santo nome da liberdade para realizar m
inteno.
Mas voltando ao
meu assunto, que quase perdera de vista: a primeira razo pela
qual os homens servem voluntariamente que nascem servos e
so criados na servido. Desta ocorre naturalmente esta outra:
sob os tiranos, os homens nascem necessariamente covardes e
efeminados, como, em meu entender, chamou a ateno bastante
judiciosamente o grande Hipcrates, pai da medicina, num de seus
livros intitulado Das Doenas. Esse homem, digno por
certo, tinha bom corao e bem o mostrou quando o rei da Prsia
quis atrai-lo para junto de si, fora de ofertas e grandes
presentes; pois respondeu-lhe francamente que teria problemas de
conscincia ao ocupar-se em curar os Brbaros que queria
destruir os Gregos e fazer algo que pudesse ser til quele que
queria subjugar a Grcia, sua ptria. A carta que lhe escreveu a
esse respeito encontra-se entre as outras obras, e testemunhar
para sempre seu bom corao e seu belo carter. Portanto,
certo que com a liberdade se perde imediatamente a valentia. Os
escravos no tem ardor nem constncia no combate. S vo a ele
como que obrigados, por assim dizer, embotados, livrando-se de um
dever com dificuldade: no sente queimar em seu corao o fogo
sagrado da liberdade, que faz enfrentar todos os perigos e desejar
uma bela e gloriosa morte que nos honra para sempre junto aos
nossos semelhantes. Entre os homens livres, ao contrrio, a
porfia, cada qual melhor, todos por um e cada um por todos: sabem
que colhero uma parte igual no infortnio da derrota ou na
felicidade da vitria; mas os escravos, inteiramente sem coragem
e vivacidade, tem o corao baixo e mole, e so incapazes de
qualquer grande ao. Disso bem sabem os tiranos; assim, fazem
todo o possvel para torn-los sempre mais fracos e covardes.
O historiador
Xenofonte, um dos mais dignos e estimados entre os Gregos, fez um
livro pouco volumoso onde se encontra um dilogo entre Simnides
e Hiero, rei da Siracusa, a respeito das misrias do tirano. O
livro cheio de advertncias boas e graves que, em meu
entender, tem tambm uma graa infinita. Prouvera Deus que todos
os tiranos que j o tivessem colocados diante de si como espelho.
Certamente, nele teriam reconhecido seus prprios vcios e
enrubescido de vergonha. O tratado fala do pesar sentido pelos
tiranos que, ao prejudicarem a todos, so obrigados a temer todo
mundo. Entre outras coisas, diz que os maus reis empregam tropas
estrangeiras a seu servio, pois no ousam mais pr armas nas mos
de seus sditos; e para atingirem tal objetivo no consideravam
a despesa que a manuteno exigia. Essa tambm era a opinio
de Cipio (o grande Africano, creio eu), que dizia preferir ter
salvo a vida de um cidado a ter derrotado cem inimigos. Mas o
que h mesmo de positivo que o tirano jamais acredita
assegurado o seu poderio se no chegou a ponto de s ter como sditos
homens sem valor nenhum. Poder-se-ia dizer-lhe com razo o que,
segundo Terncio, Traso dizia ao senhor dos elefantes:
"Acreditai-vos corajoso porque havei domado bichos?".
Porm, essa
artimanha dos tiranos - bestializar seus sditos - nunca foi to
evidente quanto na conduta de Ciro para com os Ldios, depois que
se apoderou de Sardes, capital da Ldia, e que capturou e levou
cativo Creso, esse rei to rico, que se rendera e se entregara
sua descrio. Trouxeram-lhe a notcia de que os habitantes de
Sardes tinham se revoltado. Prontamente ele os teria reduzido
obedincia. Mas, no querendo saquear uma cidade to bela em
ser sempre obrigado a nela manter um exrcito para domin-la,
descobriu um expediente extraordinrio para assegurar sua posse:
estabeleceu casas de devassido e prostituio, tavernas e
jogos pblicos, e emitiu uma ordem que levava os cidados a se
entregarem a todos esses vcios. Ficou to satisfeito cm este
tipo de guarnio que depois no precisou mais puxar da espada
contra os Ldios. Essa gente miservel divertiu-se inventando
todo tipo de jogo, de tal modo que os latinos formaram uma palavra
com seu prprio nome, atravs da qual designavam o que chamamos
atempo e que eles nomeavam Ludi, corruptela de Lidi.
Todos os tiranos no declaram to expressamente que
queriam efeminar seus sditos; mas, de fato, o que aquele ordenou
to formalmente, a maioria o fez veladamente. Na verdade, essa
a tendncia bastante natural da poro ignorante do povo que,
comumente, a mais numerosa das cidades: desconfiada para com
aquele que a ama e a ela se dedica, mas confiante para com aquele
que lhe engana e trai. No penseis que pssaro algum melhor caia
no lao, nem que peixe algum, por gulodice, morda mais cedo e se
aferre mais depressa ao anzol, qual todos estes povos que se
deixam seduzir prontamente e levar para servido pela menor
doura que lhe dizem ou que lhe fazem provar. realmente
maravilhoso que cedam to rpido - basta que lhes faam ccegas.
Os teatros, os jogos, as farsas, os espetculos, os gladiadores,
os bichos curiosos, as medalhas, os quadros e outras drogas desse
tipo eram para os povos antigos a isca da servido, a compensao
por sua liberdade roubada, os instrumentos da tirania. Esse
sistema, essa prtica, esses atrativos eram os meios que os
tiranos antigos empregavam para adormecer seus sditos na servido.
Assim, achando bonitos todos esses atempos, entretidos por um
prazer vo que lhes ofuscava, os povos embrutecidos habituavam-se
a servir to tolamente e at pior do que criancinhas aprendendo
a ler com imagens de iluminuras. Os tiranos romanos ainda foram
mais longe com esses meios, festejando freqentemente os homens
das decrias, empanturrando essa gente embrutecida e adulando-a
por onde mais fcil de prender, pelo prazer da boca. Por isso,
o mais instrudo dentre eles no teria largado sua tigela de
sopa para recobrar a liberdade da Repblica de Plato. Os
tiranos prodigalizavam amplamente o quarto do trigo, o sesteiro de
vinho, o sestrcio, e ento dava pena ouvir gritar: Viva o
rei! Os broncos no percebiam que, recebendo tudo isso,
apenas recobravam uma parte de seu prprio bem, e que o tirano no
teria podido dar-lhes a prpria poro que recobravam se antes
no a tivesse tirado deles mesmos:. O que hoje apanhava o sestrcio,
o que se empanturrava no festim pblico abenoando Tibrio e
Nero por sua liberalidade, no dia seguinte, ao ser obrigado a
abandonar seus bens cobia, seus filhos luxria, sua prpria
condio crueldade desses magnficos imperadores, ficava
mudo como uma pedra e imvel como um tronco. O povo ignorante e
embrutecido sempre foi assim. Ao prazer que no pode receber
honestamente disponvel e dissoluto; ao erro e dor que no
pode ar razoavelmente, de todo insensvel. Agora, no vejo
ningum que apenas ouvindo falar de Nero no trema simples
meno a esse monstro execrado, esse bicho feroz, ignbil, e
imundo; e no entanto preciso dizer que aps sua morte, to
nojenta quanto sua vida, o decantado povo romano sentiu tanto
desgosto (lembrando de seus jogos e festins) que esteve a ponto de
pr luto. Pelo menos o que nos afirma Cornlio Tcito, autor
excelente, historiador dos mais verdicos e que merece todo o crdito.
O que no de se estranhar, se se considera o que esse mesmo
povo fizera na morte de Jlio Csar, que espezinhou todas as
leis e subjugou a liberdade romana. Parece-me que o que se
exaltava principalmente neste personagem era sua humanidade que,
embora, to propalada, foi mais funesta ao seu pas do que a
maior crueldade do mais selvagem dos tiranos; pois, com efeito,
foi essa falsa bondade, essa doura envenenada que edulcorou a poo
da servido para o povo romano. Tambm aps sua morte esse
povo, que ainda tinha na boca o gosto de seus banquetes e no esprito
a lembrana das suas prodigalidades, amontoou os bancos da praa
pblica para homenage-lo com uma grande fogueira e
reduziu seu corpo a cinzas; mais tarde ergue-lhe uma coluna como
ao Pai da ptria (assim diz o capitel) e finalmente
prestou-lhe homenagem pstuma maior do que deveria a homem do
mundo, exceto queles que o tinham matado. Os imperadores romanos
nunca esqueciam de tomar o ttulo de tribuno do povo, tanto
porque esse ofcio era considerado santo e sagrado, como porque
era estabelecido para defesa e proteo do povo, sendo o mais
cotado no estado. Por esse meio garantiam que o povo confiaria
mais neles, como se lhe bastasse ouvir o nome da magistratura
sem sentir seus defeitos.
Mas no so
muito melhores do que hoje, antes de cometerem seus crimes, at
os mais revoltantes, sempre fazem, com que sejam precedidos por
alguns belos discursos sobre o bem geral, a ordem pblica e o
consolo dos infelizes. Conheceis muito bem o formulrio que
usaram to freqente e perfidamente. Pois bem: em alguns deles
nem h mais lugar para a finura, tamanho o seu despudor. Os
reis da Assria, e, depois deles, os reis Medos, s
apareciam em pblico o mais tardiamente possvel para que o povo
supusesse que neles havia algo sobre-humano e para deixar nesse
devaneio a gente que constri a imaginao sobre coisas que
ainda no viu. Assim, tantas naes, que durante muito tempo
foram dominadas por esses reis misteriosos, habituaram-se a
servi-los, e os serviam de to bom grado por ignorarem qual era o
seu senhor, ou at se tinham um; de modo que, portanto, viviam no
temor de um ser que ningum tinha visto.
Os primeiros
reis do Egito s se mostravam portando ora um ramo, ora fogo
sobre a cabea: mascaravam-se assim e se transformavam-se em mgicos.
Isso, para atravs dessas formas estranhas, inspirar respeito e
irao em seus sditos, que s deveriam zombar e rir deles
se no tivessem sido to estpidos ou to aviltados.
realmente lastimvel ouvir falar de tudo o que faziam os tiranos
do ado para fundar sua tirania; de quantas mesquinharias se
serviam para isso, encontrando sempre essa multido ignorante, to
disposta que lhes bastava inventar uma armadilha para sua
credulidade e ela caa; alm disso, jamais tiveram tanta
facilidade em engan-la e jamais a sujeitaram melhor do que
quando mais zombavam dela.
O que direi de
uma outra bobagem que os povos antigos tomaram por verdade
comprovada? Acreditavam piamente que o artelho de Pirro, rei de
Epiro, fazia milagres e curava doenas das vsceras. Enfeitaram
ainda mais esse conto, acrescentando que, quando o cadver do rei
foi queimado, o artelho achava-se entre as cinzas, intacto, e no
atingido pelo fogo. Assim o prprio povo sempre fabricou
tolamente contos mentirosos, para depois pr neles uma f incrvel.
Muitos autores os escreveram e repetiram, mas de tal modo, que
fcil ver que os colheram nas ruas e encruzilhadas. Eles dizem
que Vespasiano, voltando da Assria e ando por Alexandria
para ir a Roma apoderar-se do Imprio, fez coisas milagrosas.
Endireitava os coxos, tornava clarividentes os cegos, e ml outras
coisas nas quais, em meu entender, s poderiam acreditar imbecis
mais cegos que aqueles que pretendiam curar. Os prprios tiranos
achavam extraordinrio que os homens assem que um outro os
maltratasse. De bom grado cobriam-se com o manto da religio e s
vezes se fantasiavam com os atributos da divindade, para dar mais
autoridade s suas ms aes. Entre outros, Salmoneu, que, por
ter zombado do povo querendo que ele acreditasse que era Jpiter,
se encontra agora no fundo do inferno, onde (segundo a sibila de
Virglio que o viu l) expia seu audacioso sacrilgio:
Vi de gigante corpo os dos
Aloidas
Que, o cu mesmo escalando, acometeram
Derrubar do seu trono o rei supremo.
Vi Salmoneu penando, que o sonido
E os fuzis do tonante arremedara:
Tocha a brandir, em carro de dois tiros,
Por Elide ia avante, e fora os povos
O adoravam por deus; com o estrupido
Dos cornpedes nscio em rea ponte
Troves fingia e o fogo inimitvel:
Jpiter, fachos no, no fmeas rdeas,
Sim contorce um corisco dentre as nuvens
E em turbilho sulfreo o precipita.
Se
este que no ava de um tolo orgulhoso est sendo to bem
tratado l embaixo, creio que esses miserveis que abusaram da
religio para fazer o mal sero mais justamente punidos, segundo
o que fizeram.
Os nossos
tiranos tambm semearam na Frana no sei qu: sapos,
flores de lis, a mabula, a auriflama. Coisas que, de minha
parte, e como si acontecer, ainda no quero que sejam apenas
verdadeiras infantilidades, pois nossos anteados acreditavam
nelas e em nossas poca no tivemos nenhuma ocasio para
suspeitar delas como tais, tendo tido alguns reis to bons na paz
e to intrpidos na guerra que, embora tenham nascido reis
parece que a natureza no os fez como os outros, e que Deus os
escolheu antes mesmo de seu nascimento para confiar-lhes o governo
e a guarda deste reino. Ainda que tais excees no existissem,
no gostaria de entrar na discusso para debater a verdade de
nossas histrias nem descasc-las livremente demais para no
roubar esse belo tema, onde podero esgrimir-se bem aqueles de
nossos autores que se ocupam de nossa poesia sa, no s
melhorada, mas, por assim dizer, renovada por nossos poetas
Ronsard, Baif, e du Bellay, fazendo nossa lngua progredir tanto
nesse aspecto que, ouso esperar, em breve no deixaremos nada a
desejar aos Gregos e aos Latinos, exceto o direito de
primogenitura. E com certeza eu prejudicaria muito nosso ritmo
(com prazer uso essas palavras que me agradam), pois embora vrios
o tivessem tornado puramente mecnico, vejo contudo muitos
autores capazes de enobrec-lo e restituir-lhe seu primeiro
lustro - digo: eu o prejudicaria muito se lhe roubasse os belos
contos do rei Clvis, nos quais parece-me, se exerce com tanto
encanto e facilidade a verve do nosso Ronsard em seu Franciade.
Pressinto seu alcance, conheo seu esprito fino e a graa de
seu estilo. Ele usar a auriflama como os Romanos suas ancilas e os
escudos atirados do cu, de que fala Virglio. De nossa mbula
tirar to bom partido quanto os Atenienses da corbelha de
Erisictnio. Ainda falaro de nossas armas na torre de Minerva.
Eu seria bastante temerrio em desmentir nossos livros fabulosos
e endurecer assim o terreno de nossos poetas. Mas voltando ao meu
assunto, do qual no sei bem como me distanciei tanto:
evidentemente, no a fim de se consolidarem que os tiranos
esforaram-se continuamente para que o povo se habituasse no s
obedincia e servido, mas tambm a uma espcie de devoo
para com eles? Tudo o que disse aqui at sobre os meios
empregados pelos tiranos para sujeitar s por eles utilizado
na parcela ignorante e grosseira do povo.
Agora chego a um
ponto que, segundo creio, o segredo e a fora da dominao,
o apoio e o fundamento de toda tirania. Muito se enganaria aquele
que pensasse que as alabardas dos guardas e o estabelecimento de
sentinelas garantem os tiranos. Em vez disso, acredito que se
servem deles por forma e como espantalho, que no confiam neles.
Os arqueiros barram a entrada dos palcios aos menos espertos, queles
que no tem nenhum meio para incomodar, mas no aos audaciosos e
bem armados que podem tentar alguma empresa. Certamente, fcil
contar que, entre os imperadores romanos, os que escaparam do
perigo graas a seus arqueiros foram bem menos do que os mortos
por seus prprios guardas. No so os bandos de gente a cavalo,
as companhias de gente a p - em uma palavra, no so as armas
que defendem um tirano (inicialmente, haver alguma dificuldade
em acreditar nisso, embora seja pura verdade), mas sempre quatro
ou cinco homens que o apiam e que para ele sujeitam o pas
inteiro. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do
tirano e por si mesmos dele se aproximaram ou, ento, por ele
foram chamados para serem os cmplices de suas crueldades, os
companheiros de seus prazeres, os complacentes para com suas volpias
sujas e os scios de suas rapinas. To bem esses seis domam seu
chefe que este se torna mau para com a sociedade, no s com
suas prprias maldades, mas tambm com as deles. Esses seis tem
seiscentos que debaixo deles domam e corrompem, como corromperam o
tirano. esses seiscentos mantm sob sua dependncia seis mil,
que dignificam, aos quais fazem dar o governo das provncias ou o
manejo dos dinheiros pblicos, para que favoream sua avareza e
crueldade, que as mantenham ou exeram no momento oportuno, alis,
faam tanto mal que s possam se manter sob sua prpria tutela
e isentar-se das leis e de suas penas atravs de sua proteo.
Grande a srie dos que vm depois deles. E quem quiser seguir
o rastro no ver os seis mil, mas cem mil, milhes que por
essa via se agarram ao tirano, formando uma corrente ininterrupta
que sobe at ele. Como Homero diz de Jpiter, que se gaba de
trazer a si todos os deuses ao puxar corrente semelhante. Da
procedia o aumento do poder do senado sob Jlio Csar, o
estabelecimento de novas funes, a escolha para os cargos -
considerando bem, certamente no para reorganizar a justia, mas
sim para dar novos sustentculos tirania. Em suma, pelos
ganhos e parcelas de ganhos que se obtm com os tiranos chega-se
ao ponto em que, afinal, aqueles a quem a tirania proveitosa so
em nmero quase to grande quanto aqueles para quem a liberdade
seria til. Como dizem os mdicos, embora nada parea estragado
em nosso corpo, logo que algum tumor se manifesta, todos os
humores se dirigem para a parte bichada; do mesmo modo, quando um
rei declarou-se tirano, tudo o que ruim, toda a escria do
reino - no falo de um monte de gatunosinhos e de velhacos de m
reputao que no podem fazer mal nem bem em um pas, mas dos
que, possudos por ambio ardente e avareza notvel, renem-se
sua volta e o apiam para terem parte da presa e serem eles
mesmo tiranetes sob o grande tirano. Assim so os grande ladres
e os famosos corsrios: uns desnudam o pas, os outros perseguem
os viajantes; uns fazem emboscadas, os outros esto espreita;
uns massacram, os outros esfolam; e embora existam categorias e
preeminncias entre eles, e uns sejam apenas criados e os outros
chefes de bando, no final no h nenhum que no lucre, seno
com o esplio principal, ao menos com o resultado da busca. Dizem
que os piratas Cicilianos no s reuniram-se em to grande nmero
que foi preciso enviar o grande Pompeu contra eles, mas que, alm
disso, atraram para uma aliana vrias belas cidades e grandes
centros, em cujos portos punham-se a salvo ao voltarem de suas
incurses, dando em troca, a essas cidades, parte das pilhagens
que haviam receptado.
Assim o tirano subjuga os sditos uns atravs
dos outros. guardado por aqueles de quem deveria se guardar, se
no estivessem aviltados; mas, como bem se disse, para rachar
lenhas faz-se cunhas da prpria lenha. Assim so seus arqueiros,
seus guardas, seus alabardeiros. No que eles mesmos freqentemente
no sofram com sua opresso, mas esses miserveis, amaldioados
por Deus e pelos homens, contentam-se em ar o mal para faz-lo,
no quele que lhe malfaz, mas aos que, como eles, o am e
nada podem fazer. E. no entanto, quando penso nessa gente que
adula o tirano com baixeza para explorar ao mesmo tempo sua
tirania e a servido do povo, surpreendo-me quase tanto com sua
estupidez quanto com sua maldade. Pois, em verdade o que
aproximar-se do tirano seno distanciar-se da liberdade e, por
assim dizer, abraar a apertar com as duas mos a servido? Que
por um momento ponham de lado sua ambio, que se livre um pouco
de sua srdida avareza, e depois, que se olhem, que
considerem-se a si mesmos: vero claramente que os aldees, ou
camponeses que espezinham e tratam como forados ou escravos, vero,
digo, que esses, assim maltratados, so mais felizes e de certo
modo mais livres do que eles. O lavrador e o arteso, por mais
subjugados que sejam, ficam quites ao obedecer; mas o tirano v
os que o cercam trapaceando e mendigando seu favor. No s
preciso que faam o que ordena mas tambm que pensem o que
quer e, amide, para satisfaz-lo, que tambm antecipem seus prprios
desejos. No basta obedec-lo, preciso aguard-lo,
preciso que se arrebentem, se atormentem, se matem dedicando-se
aos negcios dele; e j que s se aprazem com o prazer dele,
que sacrifiquem o seu gosto pelo dele, forcem seu temperamento e o
dispam de seu natural. preciso que estejam incessantemente
atentos s palavras dele, voz dele, aos olhares dele, aos mnimos
gestos dele: que seus olhos, seus ps, suas mos estejam
incessantemente ocupados seguindo ou imitando todos os seus
movimentos, espiando e adivinhando suas vontades e descobrindo
seus mais secretos pensamentos. Isso viver feliz? Isso mesmo
viver? H no mundo algo mais invel que essa condio, no
digo para todo homem bem nascido, mas apenas para aquele que tem
grande bom senso ou mesmo figura de homem? Que condio mais
miservel que a de viver assim, nada tendo de seu e recebendo de
um outro sua satisfao, sua liberdade, seu corpo e sua vida!!
Mas eles querem
servir para amealhar bens: como se nada pudessem gerar que fosse
deles, pois no podem dizer que se pertencem. E, como se algum
pudesse ter algo de seu sob um tirano, querem poder se dizer
possuidores de bens e esquecem que so eles que do, a ele, a
fora para roubar tudo de todos e no deixar nada de que se
possa dizer que seja de algum. No entanto, sabem que os bens
tornam os homens mais dependentes de sua crueldade; que para ele e
segundo ele nenhum homem crime mais digno de morte que a
independncia ou a fortuna; que s ama as riquezas e
ataca de preferncia os ricos, que, entretanto, vm se
apresentar a ele como carneiros diante de um aougueiro. cheios e
fartos, como que para excitar sua voracidade. esses favoritos no
deveriam se lembrar tanto dos que ganharam muito em torno dos
tiranos, mas dos que, tendo se enchido de ouro durante algum
tempo, ali se perderam pouco depois os bens e a vida. No devera
ar-lhes tanto pela cabea quantos ali adquiriram
riquezas mas, em vez disso, quo poucos as conservaram. Que se
percorram todas as histrias antigas, que se considerem as que
esto em nossas lembrana, e ver-se- perfeitamente como
grande o nmero daqueles que, tendo chegado at o ouvido dos prncipes
por meios indignos, adulando suas tendncias ms ou abusando de
sua simplicidade, acabaram sendo esmagados por esses mesmos prncipes,
que tanto haviam proporcionado facilidade para elev-los quanto
foram inconstantes para conserv-los. Certamente, entre os muitos
que se acharam prximos dos maus reis, poucos ou quase nenhum
firam os que algumas vezes no experimentaram em si mesmos a
crueldade do tirano, que antes haviam atiados contra os outros,
e que, tendo freqentemente enriquecido com os despojos de outrem
sombra de seu favoritismo, no tenham eles prprios
enriquecido os outros com seus prprios despojos.
As prprias pessoas de bem - se que s
vezes existe uma nica amada pelo tirano- , por mais que sejam os
primeiros em suas boas graas, por mais que nelas sejam
brilhantes a virtude e a integridade, a ponto de, ao serem vistas
de perto, sempre inspirarem algum respeito at aos maus, as
pessoas de bem, digo, no poderiam sustentar-se junto do tirano;
preciso que tambm compartilhem do mal comum e que s suas
custas sintam o que a tirania. Pode-se citar alguns, como Sneca,
Burrus Trseas, esta trade de pessoas de bem, da qual as
duas primeiras tiveram o infortnio de se aproximar de um tirano
que confiou-lhes a conduo de seus negcios - ambos por ele
estimados e queridos, um dos quais o havia educado e tinha como
garantia de sua amizade os cuidados que lhe dera na infncia -
mas s esses trs, cuja morte foi to cruel, no so exemplo
suficientes da pouca confiana que se deve ter nos maus senhores?
E, na verdade, que amizade esperar daquele que tem o corao
duro o bastante para odiar um reino que s faz obedec-lo, e de
um ser que, no sabendo amar, empobrece a si mesmo e destri seu
prprio imprio?
Ora, se se quer
dizer que Sneca, Burrus e Trseas s sofreram esse infortnio
por serem gente de bem em demasia, que se procure francamente em
torno do prprio Nero e ver-se- que todos os que caram em sua
graa e nelas se mantiveram por suas maldades no tiveram
fim melhor. Quem jamais ouviu falar de um amor to
desenfreado, de uma afeio to persistente, quem jamais viu
homem to obstinadamente ligado a uma mulher quanto ele a Ppea?
Pois bem. No foi ela envenenada por ele mesmo? Agripina, sua me,
para coloc-lo no trono no tinha matado seu prprio marido, Cludio,
feito tudo para favorec-lo e at cometido todo tipo de crimes?
E no entanto seu prprio filho, sua cria, aquele mesmo que ela
havia feito imperador com sua prpria mo, depois de t-la
humilhado, tirou-lhe a vida; ningum negou que ela bem mereceu a
punio, que geralmente seria aplaudida se tivesse sido
infligida por outrem. Quem j foi mais fcil de manipular, mais
simples - melhor dizendo, mais estpido que o imperador Cludio?
Quem j foi mais trado pela mulher, do que ele por Messalina?
No entanto, entregou-a ao carrasco. Os tiranos tolos so sempre
tolos quando se trata de fazer o bem, mas no sei como, no fim
por menos que tenham esprito, este acorda neles para usar de
crueldade at contra aqueles que lhe so prximos. bastante
conhecido o dito atroz daquele que, vendo descoberta a garganta de
sua mulher, daquela a que mais amava. sem a qual parecia que no
teria podido viver, dirigiu-lhe um belo galanteio: "Se
eu ordenar, esse belo pescoo ser cortada daqui a pouco".
Eis por que, em sua maior parte, quase todos os tiranos antigos
foram mortos por seus favoritos que, tendo conhecido a natureza da
tirania, no estavam muito seguros da vontade do tirano, e
continuamente desconfiavam de seu poderio. Assim do morto
Domiciano por Estfano; Cmodo por uma de suas amantes; Caracala
pelo centurio marcial, instigado por Macrino, como quase todos
os outros.
Certamente, o
tirano nunca ama nem amado. A amizade um nome sagrado, uma
coisa santa: s pode existir entre pessoas de bem, nasce da mtua
estima e se mantm no tanto atravs de benefcios como atravs
da boa vida e costumes. O que torna um amigo seguro do outro o
conhecimento de sua integridade. Como garantias, tem seu bom
natural, sua f, sua constncia; no pode haver amizade
onde se encontram a crueldade, a injustia. Entre os maus quando
se juntam, h uma conspirao, no uma sociedade. Eles no se
entreapiam mas se entretemem. No so amigos, mas cmplices.
Ora, mesmo
quando tal impedimento no existisse, seria difcil encontrar
uma amizade slida em um tirano, pois estando acima de todos e no
tendo par, j se encontra alm dos limites da amizade, cuja sede
s existe na mais eqidade, suja marcha sempre igual e onde
nada claudificante. Eis por que, dizem, h uma espcie de boa
f entre ladres durante a partilha do roubo - pois so todos
pares e companheiros, e se no se amar, ao menos temem entre si e
no querem, desunindo-se, diminuir sua fora. Mas os favoritos
de um tirano nunca podem se garantir contra a sua opresso,
porque eles mesmos ensinaram-lhe que ele tudo pode, que no h
direito nem dever que o obrigue, que est habituado a s ter
como razo a sua vontade, que no tem igual e senhor de
todos. No extremamente deplorvel que, apensar de tantos
exemplos fulgurantes e de um perigo to real, ningum queira se
aproveitar dessas tristes experincias, que tanta gente ainda se
aproxime de to bom grado dos tiranos e que no haja um s que
tenha a coragem e a ousadia de dizer-lhes o que diz (na fbula) a
raposa ao leo, que se fingia de doente: "De bom grado iria
te ver em tua cova; vejo muitas pegadas de bichos que vo a ti,
mas no vejo uma s das que voltam para trs."?
Esses miserveis
vem reluzir os tesouros do tirano; espantados, iram o brilho
de sua magnificncia, e, seduzidos por tal esplendor, se
aproximam to sem perceber que se jogam num fogo que no pode
deixar de devor-los. Assim o stiro indiscreto, como diz a fbula,
que, ao ver brilhar o fogo roubado pelo ponderado Prometeu,
achou-o to belo que foi beij-lo e se queimou. Assim a
borboleta que, esperando gozar de algum prazer, se joga na luz
porque a v brilhando, e logo sente que ela tambm tem a virtude
de queimar, como diz Lucano. Mas suponhamos ainda que esses mignons
escapem das mos daquela a quem servem; nunca se salvam das do
rei que o sucede. Se mau e semelhante ao seu antigo senhor, no
pode deixar de ter tambm favoritos que, em geral, no
contentes em roubar o lugar dos outros, ainda lhes arrancam os
bens e a vida. Como pode ento haver algum que, diante de
perigos to grandes e com to pouca segurana, queira tomar uma
posio to difcil, to infeliz, e servir com tantos perigos
a um senhor to perigoso? Que sofrimento, que martrio, Deus do
cu! estar noite e dia querendo agradar um homem e, no entanto,
desconfiar dele mais do que qualquer outro do mundo; ter o olho
sempre espreita, a orelha escuta, para espiar de onde vir
o golpe para descobrir as emboscadas, para desvendar as tramias
de suas correntes, para denunciar quem trai o senhor; rir para
cada um, temer a todos sempre, no ter inimigo reconhecido nem
amigo certo; mostrar sempre um rosto sorridente e ter o corao
transido: no poder ser alegre e no ousar triste.
Mas realmente
curioso considerar o que lhes sobra de todo esse grande tormento e
o bem que podem esperar de seu sofrimento e dessa vida miservel.
Geralmente, no o tirano que o povo acusa do mal que sofre,
mas aqueles que governam o tirano. Desses, o povo, as naes,
todo mundo porfria, at os camponeses, os lavradores, sabem
os nomes, descobrem os vcios, a esses cumulam de mil ultrajes,
mil injrias, mil maldies. Todas as imprecaes. todos os
votos so voltados contra eles. Todos os infortnios, todas as
pestes. todas as fomes so a eles imputados pelos que
chamam de sujeitos; e se s vezes aparentemente lhes
prestam algumas homenagens, no mesmo momento os amaldioam no
fundo da alma, e os abominam mais que aos bichos ferozes. Eis a glria,
eia a homenagem que colhem por seu servio, aos olhos dessa
gente, a qual (parece-me), ainda no estaria satisfeita, nem
mesmo meio consolada, com seus sofrimentos, se cada uma pudesse
ter um pedao de seu corpo. E , mesmo quando esses tiranos no
existem mais, os escritores que vm depois deles no deixam de
enegrecer de mil maneiras a memria desses comedores de povos.
Sua reputao despedaada em mil palavras, seus prprios
ossos so, por assim dizer, arrastados na lama pela posteridade,
e tudo isso como que para puni-los, ainda aps sua morte, por sua
vida vil.
Aprendemos pois,
enfim, aprendamos a fazer o bem. Levantamos os olhos para o cu e
para nossa honra, para o prprio amor da virtude. dirijamo-nos a
Deus todo-poderoso, testemunha de todos os nossos altos e juiz de
nossas almas. De minha parte, creio- e acredito no estar
enganado- que ele sem dvida reserva para os tiranos e seus cmplices
um castigo terrvel no fundo do inferno, pois nada mais contrrio
a Deus, soberanamente justo e bom, que a tirania.
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