Prefcio
1u333d
Ao
se terminar a leitura do Manual dos Inquisidores, a primeira reao
de perplexidade e de espanto: como possvel tanta desumanidade
dentro do cristianismo e em nome do cristianismo? Os sonhos
originais da proposta crist so de ilimitada generosidade: Deus
pai com caractersticas de me; todos so filhos e filhas de
Deus; o Verbo ilumina cada pessoa que vem a este mundo; a redeno
resgata toda a humanidade; e o arco-ris da benevolncia divina
cobre todas as cabeas e o universo inteiro. Como se a
deste sonho para o pesadelo da Inquisio?
No
vale chorar nem rir. Importa compreender. o que tentaremos
sucintamente.
1.
A pretenso da verdade absoluta leva intolerncia
Para
entender o comportamento da Igreja atravs da Inquisio, entre
outros elementos importantes, faz-se mister considerar a autoconscincia
que a prpria Igreja fez e, em setores de direo, ainda faz de
si mesma. Como ela constri religiosamente a realidade? Como se
representa a histria humana?
A
leitura comum, que se encontra nos catecismos clssicos, a
seguinte: a humanidade foi criada na graa de Deus. A criao
era um livro aberto que falava do Criador. Porm em Ado e em
Eva ela decaiu. Perdeu os dons sobrenaturais (a graa) e
mutilou os dons naturais (obscureceu a inteligncia e
enfraqueceu a vontade). As frases da criao se decompam em
palavras soltas e sem nexo. Os seres humanos no conseguiam mais
ler a vontade de Deus no alfabeto natural (revelao natural).
Deus se compadeceu e nos entregou um outro livro, escrito por
judeus e cristos, as Escrituras sagradas, que contm o alfabeto
sobrenatural (revelao sobrenatural). Mediante ele, podemos
refazer as frases da criao e assim ter o s verdades
divinas sobre o ser humano e o universo. Nas Escrituras, como num
depsito (depositum lidei), esto todas as verdades necessrias
para a salvao.
Mas
o livro pode ser lido de mil maneiras. Qual a leitura correta?
Deus, novamente, se apiedou da humanidade e criou o Magistrio:
o Papa e os bispos. Eles so os representantes de Deus e os vigrios
de Cristo. A misso do Magistrio guardar fielmente, defender
ciosamente e interpretar autenticamente o depsito das verdades
salvficas.
Mas
eles no so humanos, sujeitos a erros? Deus novamente se
apiedou da fragilidade humana e concedeu ao Papa e aos bispos
reunidos um privilgio nico. Em questes que interessam a
todos concernentes f e moral, visando salvao
eterna, seus pronunciamentos gozam de infalibilidade. Eles no
podem errar e por isso, na histria, nunca erraram.
Eis
o que reza a doutrina, uma verdadeira metafsica religiosa, quer
dizer, uma interpretao da histria a partir dessa determinada
tica religiosa.
As
pessoas agora podem ficar tranquilas e gozar de plena segurana.
Basta ouvir o que o Magistrio ensina, viv-lo coerentemente e j
esto em conformidade com a vontade de Deus. O efeito promissor:
nada menos que a vida eterna.
O
Magistrio, portanto, portador exclusivo de uma verdade
absoluta. A verdade no objeto de uma busca. Mas de uma posse
agradecida. Por mil formas esta verdade distribuda por parte
do Magistrio cada vez com graus diferentes de certeza, mas
sempre sob a assistncia divina no horizonte da infalibilidade:
pronunciamentos, oestaes, encclicas, declaraes dos snodos
e dos conclios, proclamao de dogmas de f etc.
Face
verdade absoluta, no cabem dvidas e indagaes da razo
ou do corao. Tudo j est respondido pela instncia suprema
e divina. Qualquer experincia ou dado que conflita com as
verdades reveladas s pode significar um equvoco ou um erro. A
Igreja detm o monoplio dos meios que abrem o caminho para a
eternidade.
Sendo
as coisas assim s existe um perigo fundamental: a heterodoxia,
a heresia e o herege. Em outras palavras, a grande oposio se d
entre o dogma e a heresia. Para essa compreenso, erro gravssimo
e radical no tanto a injustia, o assassinato, a espoliao
de povos e a opresso de classe, o genocdio e o ecocdio.
Esses so atos e atitudes morais perversos mas corrigveis; o
caminho da eternidade continua aberto pelo arrependimento e o
perdo; a f no negada, nem as verdades absolutas
questionadas. Erro radical a heresia ou a suspeio de
heresia. Aqui se negam as verdades necessrias e se fecha o
caminho para a eternidade. A perda total. O mal, absoluto. O herege
o arquiinimigo da f. O ser perigosssimo. Se o perigo mximo,
mximas devem ser a vigilncia e a represso.
Por
isso, nessa viso, o portador da verdade intolerante. Deve ser
intolerante e no tem outra opo. Caso contrrio a verdade no
absoluta. S os que no possuem a verdade podem ser
tolerantes. Consentir a dvida. Permitir a busca. Aceitar a
verdade de outros caminhos espirituais. O fiel, este
condenado intolerncia.
Os
inimigos da verdade e da reta doutrina (ortodoxia), os hereges
verdadeiros ou presumidos devem ser perseguidos l onde estiverem
e exterminados. Deve-se esquadrinhar suas mentes, identificar os
acenos do corao, desmascarar idias que possam levar
heresia. Contra o mal absoluto a heresia valem todos os
instrumentos e todas as armas. Pois se trata de salvaguardar o bem
absoluto a salvao eterna, apropriada pela adeso
irrestrita verdade absoluta como vem proposta, explicada e
difundida pela Igreja. Fora da Igreja no h salvao, porque
fora dela no existe revelao divina e por isso verdade
absoluta. Podem existir verdades fragmentadas, no sicut opponet
ad salutem consquendam (como devem ser para se conseguir a
salvao, como repetem os textos dos conclios), mas
incapazes de abrir caminho pelo matagal das confuses humanas e
aceder destinao eterna. Por isso a Igreja imprescindvel.
2.
Uma lgica frrea e irretorquvel
Ao
instaurar a Inquisio, a Igreja produz e habita esse discurso
totalitrio e intolerante. Quem quiser entender o presente Manual
dos Inquisidores dever imbuir-se dessa mentalidade e viso das
coisas. S assim far justia a seus autores. Ento tudo
aparece lgico e coerente. O inquisidor extremamente fiel e
imbudo da melhor das intenes. A arquitetnica de sua
argumentao irretorquvel. obra de mestre.
Assim
como quem quiser entender a represso e a tortura dos regimes
militares latino-americanos dever entender a leitura da sociedade
feita a partir da ideologia da segurana nacional e reada s
mentes dos torturadores e de seus mandantes. Da mesma forma as cmaras
de gs e a limpeza gentica perpetradas pelo nazifascismo. Ou,
num nvel maior, a cultura ocidental, que foi incapaz de acolher
a diferena e alteridade e que por isso, historicamente,
cometeu toda sorte de genocdios e excluses, ainda hoje, no
processo de sua mundializao. Em todos esses antifenmenos h
uma lgica irretorquvel. Em nome dela se excluem outros,
eventualmente at so mortos.
Uma
vez aceito o sistema de idias, tudo flui de forma frrea e
coerente. a verdade intra-sistmica. Evidentemente, cabe analisar
o sistema. A boa inteno dos torturadores certamente no
boa, pois produz a morte. O sistema sacrificialista, pois exige
mais e mais vtimas para se manter. Como pode, como pretende, ter
o aval divino? Mas isso j outra questo, no mais analtica,
mas tica e teolgica.
3.
Os autores do Manual dos Inquisidores
Trata-se
de dois dominicanos, um do sculo XIV e outro do sculo XVI,
peritos em jurisprudncia e teologia: Nicolau Eymerich e Francisco
Pea. A importncia deles reside no fato de ambos procederem a
uma grandiosa codificao das prticas e das justificativas
(teologias e ideologias) acerca do controle das doutrinas na
Igreja que culminaram na instituio da Inquisio.
Sabemos
que desde cedo a Igreja se viu s voltas com doutrinas
divergentes daquelas comumente estabelecidas pela tradio. O
problema dos hereges pera toda a histria da Igreja. O
herege aquele que se recusa a repetir o discurso da conscincia
coletiva. Ele cria novos discursos a partir de novas vises da
realidade religiosa. Por isso est mais voltado para a
criatividade e o futuro do que para a reproduo e o ado.
Com
efeito, refletindo bem, a verdade, por mais absoluta que se
apresente, no pode se fundir numa nica frmula. Uma coisa
a verdade nela mesma. Outra coisa so as suas vrias formulaes
histricas. A verdade, como se v nas vrias culturas,
permite vrias linguagens. E as vrias linguagens comunicam
novas significaes. Por isso a definio da verdade no pode
cair sob o domnio da posse exclusiva de algum, detentor de
algum cdigo. Mesmo participando da verdade e, de certa forma,
possuindo-a, o ser humano pode busc-la sempre de novo e sob mil
formas.
Mas
eis que emerge o conflito. Como sobrevivem aqueles que buscam a
verdade no meio daqueles que presumem hav-la encontrado?
Pergunta-se: buscar a verdade no significa que ela ainda no
foi encontrada? E se no a encontramos, estamos no erro e ento
no estamos em risco de perdio eterna? A conseqncia
previsvel: o rompimento da comunho entre um e outro. E a
comeam os processos de excluso.
Nos
primeiros sculos, os portadores de pensamento divergente eram
punidos com a excomunho, vale dizer, eram excludos da comunidade
eclesial. Portanto, era uma questo meramente intra-eclesial.
Mas, quando o cristianismo se transformou em religio oficial do
Imprio, a questo virou poltica. O cristianismo era
considerado o fator principal de coeso e unio poltica. Ento,
qualquer doutrina divergente colocava em risco a unidade poltica.
Os representantes das novas doutrinas eram tidos por hereges. A
punio era a excomunho, o confisco dos bens, o banimento e
mesmo a condenao morte.
A
perseguio aos divergentes j ocorreu nos sculos IV e V com
a crise do donatismo (os rigoristas no norte da frica que no
concediam o perdo aos que fraquejaram nas perseguies e no
reconheciam os sacramentos istrados por eles). O controle e
a represso das novas doutrinas ganharam fora no final do sculo
XII e inicio do sculo XIII com a ecloso do movimento popular
dos ctaros e valdenses no sul da Frana. Eram movimentos
rigoristas, de volta ao esprito simples dos Atos dos Apstolos,
com a pregao itinerante do evangelho na linguagem do povo,
levada a efeito, em sua grande maioria, por leigos.
A
Inquisio propriamente surgiu quando em 1232 o imperador
Frederico II lanou editos de perseguio aos hereges em todo o
Imprio pelo receio de divises internas. O Papa Gregrio IX,
temendo as ambies poltico-religiosas do imperador,
reivindicou para si essa tarefa e instituiu inquisidores papais.
Estes foram recrutados entre os membros da ordem dos dominicanos
(a partir de 1233), seja por sua rigorosa formao teolgica
(eram tomistas), seja tambm pelo fato de serem mendicantes e por
isso presumivelmente desapegados de interesses mundanos.
A
partir de ento se foi criando uma prtica de controle severo
das doutrinas, legitimadas com sucessivos documentos pontifcios
como a bula de Inocncia IV (Ad extirpanda) de 1252, que
permitia a tortura nos acusados para quebrar-lhes a resistncia.
At que em 1542 o Papa Paulo III estatuiu a Sagrada Congregao
da Inquisio Romana e Universal ou Santo Ofcio como corte
suprema de resoluo de todas as questes ligadas f e
moral.
O
mrito de Nicolau Eymerich foi elaborar o Directorium inquisitorum
(Diretrio dos inquisidores), um verdadeiro tratado sistemtico
em trs partes: (1) o que a f crist e seu enraizamento;
(2) a perversidade da heresia e dos hereges; (3) a prtica do ofcio
de inquisidor que importa perpetuar.
Trata-se
de um manual de como fazer, extremamente prtico e direto,
baseado em toda a documentao anterior e na prpria prtica
inquisitorial do autor Nicolau Eymerich. Pouca coisa do seu manual
obra de reflexo pessoal. Tudo remetido a textos bblicos,
pontifcios, conciliares, imperiais. A astcia teolgica (e os
inquisidores eram mestres nisso) vem sempre justificada pelos telogos
mais eminentes. Em casos controversos, expe todas as teses
correntes com seus prs e contras e suas convergncias e divergncias.
Numa palavra: nele encontra-se tudo, como ele mesmo reconhece, o
que necessrio para o bom exerccio da Inquisio.
Sua
importncia to grande que, depois da Bblia (o Livro dos
Salmos de 1457), foi um dos primeiros textos a serem impressos,
em 1503, em Barcelona. E quando o Vaticano quis reanimar a Inquisio
para fazer frente Reforma protestante mandou reeditar o livro
como manual para todos os inquisidores, primeiro em Roma, em 1578,
1585 e 1587, e depois em Veneza, em 1595 e 1607. Quem so os
autores?
Nicolau
Eymerich nasceu em 1320 em Gerona, no reino de Catalunha e Arago.
Fez-se dominicano, com excelente formao jurdica e teolgica.
Em 1357 j inquisidor-geral do reino at 1392, com duas
interrupes mais ou menos longas. Pelo excesso de zelo
inquisitorial, foi exilado dos territrios de Catalunha e Arago.
Mas foi compensado em 1371 com o convite para ser o capelo do
Papa Gregrio IX (o criador da Inquisio) quando ainda estava
no exlio em Avinho e depois em Roma. Em 1376, ainda em
Avinho,
escreveu o Manual que o tornou famoso. Morreu em Gerona em 1399.
Devido
ao surgimento de novas heresias no sculo XVI, fazia-se urgente
atualizar o manual de Nicolau Eymerich. Foi quando o comissrio
geral da Inquisio romana, Thoma Zobbio, em nome do Senado da
Inquisio Romana, solicitou a outro dominicano, o canonista
espanhol Francisco Pefia transcrever e completar o manual de
Eymerich com todos os textos, disposies, regulamentos e instrues
aparecidos depois de sua morte, em 1399. Pen redigiu uma obra
minuciosa de 744 pginas de texto com 240 outras de apndices,
publicada em 1585.
No
obstante as inquisies locais com suas singularidades e privilgios,
o autor fortalece o direito comum inquisitorial como norma
geral a ser seguida, o quanto possvel, por todos os inquisidores
em todas as partes. Sabemos que havia duas Inquisies oficiais,
a romana e a espanhola. Pea consegue uma sntese processual e
doutrinria tal que se transformou em referncia necessria e
comum para as duas e para todos os inquisidores.
A
obra de Pea uma transcrio e complementao de Eymerich.
Por isso, segue-lhe o mesmo esquema em trs partes, referidas
acima. No seria vivel nem legvel publicar tudo. Ascenderia a
quase mil pginas. Nesta edio, se aproveitou apenas a
terceira parte, que trata dos procedimentos do inquisidor. Como o
leitor ir perceber, somos informados, de sada, o que a
heresia, quem so os hereges e, depois sim, quem o inquisidor
e como trabalha.
A
obra retilnea e severa. No se perde em relatos circunstanciais
para no perder o rigor da argumentao. A prtica da Inquisio
est a com toda a sua inclemncia, O autor possui um sentido
prtico formidvel. No final da obra, faz um inventrio das 22
rubricas mais recorrentes que o inquisidor pode consultar
rapidamente como se fosse um fichrio. A esto as respostas
claras para serem aplicadas sem qualquer titubeio.
4.
Como funciona a lgica inquisitorial
Vejamos
rapidamente como funciona a lgica inquisitorial. Como j
consideramos, a centralidade est na verdade absoluta revelada
para nossa salvao, a ser sempre defendida a todo preo.
Hertica,
segundo o manual, toda proposio que se oponha:
(a)
a tudo o que esteja expressamente contido nas Escrituras; (b) a tudo
que decorra necessariamente do sentido das Escrituras; (c) ao contedo
das palavras de Cristo, transmitidas aos apstolos, que, por sua
vez, as transmitiram Igreja; (d) a tudo o que tenha sido objeto
de uma definio em algum dos conclios ecumnicos; (e) a tudo
o que a Igreja tenha proposto f dos fiis; (9 a tudo o que
tenha sido proclamado, por unanimidade, pelos Padres da Igreja,
no que diz respeito reputao da heresia; (g) a tudo o que
decorra, necessariamente, dos princpios estabelecidos nos itens
c, d, e, f (parte 1, A, 2).
Como
se depreende, nenhum desvio da doutrina era permitido.
A
Bblia e a doutrina tradicional somente podiam ser apresentadas
como verdade divina e Palavra de Deus, sob a condio de tudo
nelas ser verdadeiro. A concesso de algum erro, em alguma frase
da Bblia, ou em algum ensinamento da Igreja, seria fatal.
Destruiria a base da afirmao de que a Igreja seria a portadora
da verdade absoluta que se encontra na Bblia e na tradio.
Ela tem que afirmar como verdade, indistintamente, tudo, que o Sol
gira ao redor da Terra e a burra de Balao falou de verdade.
Assim, no sculo XIV, a Inquisio condenou o mdico e filsofo
Pietro dAbano e seu conterrneo Cecco dAscoli porque
afirmavam a existncia dos antpodas. Partiam da acepo de
que a Terra era uma esfera redonda; portanto, os que viviam do
outro lado dela eram antpodas. Os inquisidores argumentavam:
segundo
a Bblia, a Terra no uma bola redonda, mas uma chapa redonda
e chata. E a Bblia, porque Palavra de Deus, no pode ensinar
erros. Aceitar a Terra como uma esfera seria assumir a viso pag
e itir que a Bblia est errada e a Igreja no infalvel.
Ambos foram condenados fogueira, no por terem proferido uma
heresia ou negado alguma verdade de f, mas porque afirmavam uma
verdade fsica do mundo que, indiretamente, entrava em conflito
com a viso cosmolgica da Bblia.
Como
se depreende, praticamente tudo cai sob a suspeita de heresia.
Portanto, todos so condenados repetio do discurso
oficial.
o
imprio da monotonia do status quo. O congelamento da histria.
Todos se tornam suspeitos. Razo por que a Inquisio vem sendo
considerada uma instituio perene e os bispos, junto com o
poder pastoral, devem exercer, em sintonia com o inquisidor, o
poder inquisitorial de investigar, interrogar, convocar,
prender, torturar e sentenciar
Por
que o rigor da detectao da heresia? Pelas consequncias funestas
que ela comporta. Os autores, quase obsessivamente, elencam as
perniciosas: por causa da heresia, a verdade catlica se
enfraquece e se apaga nos coraes, os corpos e os bens
materiais se acabam, surgem tumultos e insurreies, h
perturbao da paz e da ordem pblica, de maneira que todo
povo, toda nao que deixa eclodir em seu interior a heresia,
que a alimenta, que no a elimina logo, corrompe-se, caminha para
a subverso e pode at desaparecer; a histria dos antigos
prova isso, e o presente tambm, mostrando-nos o exemplo de prsperas
regies e remos em franco desenvolvimento atingidos por grandes
calamidades por causa da heresia (parte 1, A, 1).
Em
razo desses malefcios se entende a severidade na represso do
pensamento divergente e da mais leve suspeita, perseguio dos
seguidores dos hereges, de quem os hospeda ou de qualquer forma
os favorea. Como se percebe, persiste a viso antiga (a partir
do sculo IV): a heresia tida como um crime poltico de
lesa-majestade.
Consoante
o Manual, em primeiro lugar, o inquisidor se apresenta com poder
apostlico, investido da autoridade papal; outras vezes se
apresenta como um enviado especial de Deus (parte II,A,I).
Em seguida mobiliza todas as foras eclesiais. Num determinado
domingo
na catedral, todos so obrigados a ouvir o sermo geral proferido
pelo inquisidor. AI ouve que se algum souber que algum
disse ou fez algo contra a f, que algum ite tal ou tal
erro, obrigado a revelar ao inquisidor, sob pena de excomunho.
Os delatores so animados a delatar, pois a delao os faz
obedientes f divina (parte II,B,6).
Mobiliza
tambm todas as autoridades civis para que prestem juramento,
sob pena de excomunho, caso no dem assistncia em tudo
ao inquisidor, aplicando todas as leis cannicas contra os
hereges, seus defensores, filhos e netos (parte II,A,2).
Comea
ai o trabalho de recepo das denncias a partir das delaes
ou da apresentao espontnea dos que se consideram em erro de
doutrina. H trs tipos de processo: por acusao, por denncia
(delao), por investigao. A mais longa e complicada cabe
aos interrogatrios dos hereges e das testemunhas.
Curiosssimos
so os dez truques dos hereges para responder sem confessar
e os dez truques do inquisidor para neutralizar os truques dos
hereges. A malcia da mente do inquisidor completa. A astcia,
refinadssima. Como faziam os interrogadores militares da represso
poltica, deve-se, diz o Manual, dar a impresso de que se sabe
de tudo: Confessa logo, porque, como ests vendo, sei de
tudo (parte II, E, 23, 4).
Os
acusados so submetidos a todo tipo de presso, so induzidos
confuso, os amigos so obrigados a pression-los, at a
dormir com eles na cela, para obrig-los a falar. Mas
colocam-se as testemunhas, alm do escrivo inquisitorial,
num bom lugar, na escuta, com a cumplicidade da escurido
(parte II,E,23,9). E ento so apanhados em confisso e
condenados. Tudo sem maiores escrpulos ticos. E, quando
surgem, vale a acribia da sofistica teolgica para justificar o
que, no bom senso, injustificvel.
Por
exemplo: o inquisidor no deve prometer perdoar o acusado de
heresia caso este confesse. O inquisidor sabe que no pode prometer
perdo, porque a heresia no conhece perdo. Perguntam-se os autores
do Manual: Isto no simplesmente uma desonestidade? A
resposta rabulstica: reduzindo, mesmo numa proporo mnima,
a pena atribuda a um delito (e rarssimo que o culpado no
tenha cometido vrios delitos), o inquisitor que tiver prometido
perdoar ter mantido sua palavra (parte II,E,23,1O).
Portanto, no desonestidade. O inquisidor mantm a boa
conscincia, porque, como se explica pouco antes no Manual,
tudo o que se fizer para a converso de hereges perdo;
e as penitncias so perdo e remdio (parte II,E,23,8).
Outro
exemplo clamoroso o processo contra mortos denunciados de
heresia. Para isso no h limite de tempo, diz o Manual. O
morto processado. Se condenado, lana-se o antema sobre sua
memria: os filhos dos hereges sero declarados infames e
inaptos a qualquer cargo pblico ou privilgio (parte
111,22). E a efgie do condenado j falecido queimada
publicamente. Outras vezes, como os prprios autores do Manual
contam, exumavam-se os cadveres e abriam-se os processos contra
eles. Sob o Papa Clemente VI (1342-1352), por exemplo, em Bziers,
foi exumado, por ordem deste papa beneditino, o cadver de frei
Pedro Joo, dos franciscanos menores. Acusado publicamente de
herege, o frade j morto foi condenado, quebraram-lhe os ossos e
os queimaram (parte 1, 12). Os autores justificam: Trata-se
de uma sentena perfeitamente de acordo com o Direito, se bem que
acabe, lamentavelmente, punindo quem no cometeu crime nenhum
(os filhos dos hereges).
Mas
continuam com escrpulos e perguntam-se a si mesmos: Como
proceder contra um morto? Uma questo difcil, porque ser que
se pode abrir um processo contra quem, por definio, no pode
comparecer? No seria melhor falar claramente de condenao
da memria de Fulano do que processo? Sim, em direito
civil. Mas evidente que no, em se tratando de um delito de
lesa-majestade divina (parte 111,22).
Em
vrios lugares do Manual os autores concedem que so mais
rigorosos que qualquer outro tribunal humano. Mas justificam: tratam
dos crimes mais hediondos e terrveis, aqueles que ameaam a salvao
eterna que so as heresias.
Lugar
parte ocupa o captulo das torturas. H precaues, pois os
autores tm conscincia dos abusos; nem o inquisidor sozinho
deve torturar; precisa da permisso do bispo local. Mas
praticamente todos os suspeitos e acusados avam por vrios
tipos de tortura. Tortura-se o acusado que vacilar nas
respostas; o suspeito que s tem uma testemunha contra ele
torturado (parte I1I,F,28), e por ai vai. A regra bsica
esta: bom lembrar, antes de proceder tortura, de que sua
finalidade menos provar um fato do que obrigar o suspeito a
confessar a culpa que cala...; a tortura serve apenas como
paliativo na falta de provas (parte III,F,28,7). Por isso, para
a Inquisio no h pessoas no-torturveis. Este um
direito que no conta nas questes de heresia: nenhuma das
pessoas isentas de tortura a propsito de qualquer delito no o
ser, tratando-se de heresia, embora, de fato, se prevejam
excees a membros da alta hierarquia e da nobreza superior.
Nem escapam os velhos e as crianas: Pode-se tortur-los, mas
com uma certa moderao; devem apanhar com pauladas ou, ento,
com chicotadas (parte II,H).
A
confisso tudo na Inquisio, no as provas, contrariamente
ao senso do direito universal, pois, sabemos, a confisso pode
ser extorquida sob coao. Os autores do Manual dos
Inquisidores, num outro lugar, esclarecem: Diante do tribunal
da Inquisio basta a confisso do ru para conden-lo. O
crime de heresia concebido no crebro e fica escondido na
alma: portanto, evidente que nada prova mais do que a confisso
do ru. Eymerich tem razo (glosa do compilador e atualizador
Pea) quando fala da total inutilidade da defesa (parte
lI,G,31).
Com
efeito, a defesa tem uma funo meramente nominal, diria at
perversa, pois no trata de defender o ru, mas de agilizar a
sua condenao. O Manual ensina que o papel do advogado
fazer o ru confessar logo e se arrepender, alm de pedir a pena
para o crime cometido (parte II,G,3 1). O estatuto do
defensor no assegurado, como em qualquer legislao de
Hamurabi (sculo XV a.C.) a Stalin ou Hitler. O lugar do defensor
no capitulo sobre obstculos rapidez de um processo.
Os autores comeam o captulo acerca da isso de um
defensor com esta sentena: O fato de dar direito de defesa
ao ru tambm motivo de lentido no processo e de atraso na
proclamao da sentena; essa concesso algumas vezes
necessria (no sentido de agilizar a sentena, porque o acusado
no confessa: aclarao minha), outras no (quando
confessa: parte II,F,31).
Ademais,
o inquisidor deve ter o campo totalmente aberto sua ao. Por
isso pode punir quem coloque entraves ao exerccio da Inquisio;
deve excomungar qualquer leigo que publicamente ou no discuta
questes teolgicas; proceder (abrir processo) contra
qualquer advogado ou escrivo que der assistncia a um
herege (parte 111,18). Como, em condies dessas, haver lugar
para um advogado de defesa?
O
medo da heresia era tanto que implicava violao das comezinhas
regras do sentido do direito universal e tambm a estupidificao
dos leigos, que jamais podiam se ocupar com a teologia. A f
devia ser aceita, jamais pensada. A reflexo religiosa era monoplio
exclusivo da hierarquia. Quem pensasse a f, e pensar a f
significa discutir questes teolgicas, era j suspeito de
heresia, portanto, objeto da represso. No pensavam assim os
agentes da represso militar em regime de segurana nacional:
quem discutir publicamente poltica j suspeito de subverso
e, logo, de sequestro, de tortura e de crcere? Mudem os sinais,
mas no a lgica de um sistema totalitrio e por isso
repressivo de toda e qualquer diferena.
As
punies variavam consoante o grau de adeso do acusado s
doutrinas consideradas herticas ou suspeitas de heresia, que vo
desde a simples abjurao, expiao cannica, pagamento de
multas, expropriao dos bens, excomunho, prises e a
fogueira pelo brao secular. Os leitores vero a severidade das
penas e tambm os processos psicolgicos para demover os
hereges convictos de suas doutrinas. Vo dos flagelos das prises
escuras, das torturas, das humilhaes, tudo para acordar a
inteligncia e desdizer o que diz (parte II,H). Se este mtodo
no funcionar, ento se utiliza a bondade, a presena da esposa
e dos filhos. Se nada adiantar, ser entregue ao brao secular
e ir para o auto-de-f. O Manual claro ao subordinar o bem
individual ao bem da Igreja: preciso lembrar que a finalidade
mais importante do processo e da condenao morte no
salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e aterrorizar os
outros (ut alii terreantur); ora, o bem comum deve estar acima de
quaisquer outras consideraes sobre a caridade visando ao bem
de um indivduo (parte 11,22,10).
Efetivamente,
o mundo da Inquisio marcado de medos, sermes
aterradores dos inquisidores, delaes, suspeitas, vinditas, perseguies
e sobretudo autos-de-f macabros, com condenados fogueira in
conspectu omnium. Que sobrou aqui do cristianismo como boa e
alvissareira notcia de libertao, de fraternidade e
sororidade universais, de amor ilimitado?
5.
O que tornou possvel a Inquisio e a continuao de seu esprito
A
Inquisio foi possvel na Igreja romano-catlica com processos
de excluso, torturas e condenaes porque nas relaes
internas dela existem violncias. A Inquisio ponto de
cristalizao de uma violncia anterior. A violncia interna
da Igreja romano-catlica se d na forma como o poder sagrado
distribudo. Ele sofre uma profunda dissimetria. Um pequeno grupo
( menos que 0,3% de toda a Igreja), a hierarquia (papa, bispos e
padres), detm todos os meios de produo simblica de forma
excludente. Os demais no participam, no devem nem podem
participar. So dependentes e meros beneficirios desses
portadores exclusivos de poder.
No
cabe aqui detalhar essa questo, feita por ns em outras obras
(Igreja, carisma e poder; E a Igreja se fez povo; Leigos e ministrios).
Basta a indicao de algumas pistas.
Inicialmente
o cristianismo era uma comunidade fraternal e sororal. A
comunidade inteira se sentia herdeira de Jesus e portadora de seu
poder. Este poder se diversificava em vrios servios e ministrios,
consoante as necessidades da comunidade. Mais que ministrios
institucionalizados e institucionais, havia ministros, pessoas
geralmente com caractersticas carismticas. A autoridade era
moral, portanto, autoridade no sentido originrio da palavra
(aquilo que faz crescer os outros e que refora e no tira o
poder dos outros) e quase nada jurdica, embora essa dimenso
estivesse tambm presente como em todas as comunidades que
buscam certa ordem e funcionamento de sua vida interna. Mas o jurdico
de forma alguma era hegemnico e era vivido dentro do esprito
evanglico do poder como servio desinteressado comunidade. A
Igreja se definia como comunidade dos seguidores de Jesus; a rede
de comunicaes formava o novo povo de Deus, em solidariedade
com os demais povos.
Com
a transformao do cristianismo em religio do Imprio (sculos
IV e V), novas responsabilidades tiveram que ser assumidas pelos
cristos (eram menos que 1/6 dos habitantes). Estes sentiram a
necessidade de organizar-se e institucionalizar certas funes.
Foi ento que o aspecto jurdico ganhou corpo, assimilando a
da tradio jurdica romana, que sempre foi fascinante. Surgiu
o corpo clerical, distinto do corpo laical. Emergiu um corpo de
peritos do sagrado que acumulou toda a responsabilidade pelo espao
da f: produziu o discurso, o ethos e o rito. E articulou o
poder religioso com o poder poltico dominante. O que se criou
foi considerado oficial. Lentamente se imps produo mais
espontnea das expresses da f, das celebraes e dos
costumes cristos, feitos pelos fiis, homens e mulheres, no
quotidiano de suas vidas.
O
conceito dominante de Igreja agora de hierarquia, o grupo dos
consagrados pelo sacramento da ordem e que detm o poder sagrado
na comunidade. De tal forma que a Igreja ficou sendo simplesmente
sinnimo de hierarquia, presente ainda hoje na compreenso comum.
Quando se diz: que pensa a Igreja, que diz ela sobre a famlia, o
socialismo e o mercado mundial, se pensa: que diz o Papa, que ensinam
os bispos acerca dessas questes?
A
partir do sculo X, se configurou de forma severa a diviso na
Igreja entre o corpo clerical e o corpo laical. A primeira
codificao jurdica da Igreja, o Cdigo de Graciano (sculo
XII), consagra definitivamente essa viso como direito divino.
E isso veio pelos sculos afora. No ira que, na crise do
pensamento cristo em confronto com a modernidade, o Papa Gregrio
XVI (1831-1846) tenha reafirmado para toda a Igreja: Ningum
pode desconhecer que a Igreja uma sociedade desigual, na qual
Deus destinou a uns como governantes, a outros como servidores.
Estes so os leigos, aqueles so os clrigos. Pio X, em
1904, o repete de forma quase grosseira: Somente o colgio
dos pastores tem o direito e a autoridade de dirigir e governar. A
massa no tem direito algum, a no ser o de deixar-se governar
qual rebanho obediente que segue seu Pastor.
Por
mais que a teologia posterior e o Conclio Vaticano II
(1962-1965) tenham enfatizado a natureza comunitria da Igreja,
prevalece ainda na doutrina e na mente do Magistrio e dos fiis
(e em textos importantes do prprio Vaticano II) a noo de que
Igreja fundamentalmente a Hierarquia. O direito cannico de
1983 reafirma de novo que de instituio divina a existncia
entre os fiis dos que so clrigos e os outros tambm
denominados leigos (cnon 207).
Ora,
essa diviso traz desigualdades. E as desigualdades so sempre
odiosas, porque implicam relaes tensas e, de certa forma,
injustas. Por que o leigo, por mais inteligente e sbio que
seja na sociedade civil, na sua vida profissional de reconhecido
cientista, notvel escritor, notrio jurista, deva crer, pelo
fato de ser leigo, que no interior da Igreja-comunidade pouco ou
nada vale, que tenha que estar sempre e inapelavelmente submetido
a um grupo que alega um poder recebido de cima e por isso infenso
a qualquer crtica e correo?
Essa
diviso entre os clrigos que tudo tm e os leigos despojados
de tudo criou incontveis polmicas, rebelies e rupturas do
corpo eclesial, primeiramente entre Igreja grega ortodoxa e
Igreja romano-catlica, depois as Igrejas da Reforma com suas
sequelas at os dias de hoje, e em seguida o enfrentamento cada
vez mais rgido e tenso entre os cristos e os portadores de
poder sagrado, na medida em que universalmente cresce o esprito
de participao, de co-responsabilidade, de maturidade e
autonomia de cada pessoa humana com seus direitos e deveres
pessoais e sociais.
Para
fazer frente a essa crise, j h sculos, os clrigos criaram
um discurso de legitimao. Dogmatizaram-no. Atriburam origem
divina ao seu poder. Elaboraram uma viso do mundo, da revelao
de Deus, em que eles constituem o piv de todas as questes.
Eles so decisivos para a salvao da humanidade. A leitura
da histria que referimos no incio destas reflexes
constitui a pea de legitimao do corpo clerical e de seus
poderes. um discurso ideolgico, porque todo discurso ideolgico
um discurso do interesse real ou escuso do ator custa do
interesse dos outros. Este discurso apresentado como intocvel
e inquestionvel porque de origem divina. Todos os professantes
da f crist devem aceit-lo humildemente e jamais coloc-lo
sob qualquer dvida. Na verdade, trata-se de um discurso
humano, demasiadamente humano, legitimador dos direitos, privilgios
e interesses histricos dos detentores de poder na Igreja.
Hoje
ele j se fez um discurso inconsciente, tal o nvel de imposio
e internalizao da maioria dos cristos e nos prprios
portadores de poder.
A
caracterstica desse sistema de poder o autoritarismo. Autoritrio
um sistema quando os portadores de poder no necessitam do
reconhecimento livre e espontneo dos membros da comunidade para
se constituir e exercer. Por isso temos a ver com um sistema de
dominao. Quando h aceitao livre e espontnea de uma
pessoa ou instituio de direo por parte dos membros da
comunidade, ento estamos diante da legitima autoridade. Separada
desse reconhecimento, a autoridade decai para autoritarismo.
o que vigorou e vigora na Igreja romano-catlica j h sculos.
Para
se entender no nvel estrutural um fenmeno como este da dominao
clerical, no se deve partir daquilo que os clrigos pensam e
dizem de si mesmos (a origem divina de seu poder etc), mas daquilo
que eles efetivamente fazem no seu processo real de vida eclesial.
O que eles fazem manifesto: conservam em suas mos, de forma
corporativo-privada, os meios de produo simblica, controlam
sua distribuio, hierarquizam as formas de participao
subordinada (mas em nenhum caso em termos de deciso; esta
reservada somente aos clrigos. As mulheres, que constituem mais
da metade da Igreja e so mes ou irms da outra metade, vm
excludas, e os leigos, atrelados), limitam as formas de consumo
religioso-simblico. Fundamentalmente se d esse dualismo,
reforado enormemente sob o Pontificado de Joo Paulo II: de um
lado est o ordenado, homem, celibatrio que pode produzir,
celebrar, fazer o discurso oficial, decidir; do outro est o no-ordenado
que assiste e convidado a se associar ao projeto e viso do
ordenado, devendo sempre obedecer. Dessa forma, toda a capacidade
de criar, de produzir, de decidir dos no-ordenados, dos leigos,
deixa de ser aproveitada, ou o de forma atrelada. O corpo
eclesial aparece depauperado, formalizado, marcadamente machista,
enrijecido e mandonista. A dimenso da anima, pela excluso das
mulheres e pelo recalque da dimenso feminina nos homens de
poder, subtrai ao corpo clerical de qualquer irradiao
benfazeja e humanizadora. O excesso de poder mostra dimenses
necrfilas em quase tudo o que pensa, diz e faz. No h um
interesse real e ousado pelos problemas dos homens e das mulheres,
mas uma preocupao quase neurtica pelos interesses da
Igreja-hierarquia, de sua identidade, de sua preservao, de
sua imagem.
A
leitura doutrinria da revelao de verdades absolutas mascara
o real conflito subjacente Igreja: o poder de uns sobre outros.
Alguns detm o poder de decidir sobre a verdade, dar-lhe uma
formulao nica, de definir qual o caminho necessrio
para a eternidade. Decretam que a sua verdade absoluta. E a impem
aos outros. Por isso o discurso do outro um discurso impossvel.
Deve ser silenciado, perseguido, estrangulado. Da se entende o
rigor da Inquisio. O que est em jogo, realmente, o poder
do corpo clerical, que no tolera nenhum concorrente ou nenhum
confronto. Ele quer se manter como o nico. ele que se entende
como absoluto e terminal. No a verdade e a revelao, pois
estas, por serem realidades divinas, so sempre abertas e veis
de novas achegas e novas leituras, sem jamais esgotar sua riqueza
interior.
O
esprito que fez surgir a Inquisio perdura na Igreja
romano-catlica, pois persiste a predominncia do corpo clerical
sobre toda a comunidade e a viso piramidal de Igreja, centrada
no poder sagrado. Enquanto perdurar esse tipo de prtica com a
sua correspondente teologia (ideologia), haver sempre condies
psicolgicas, espirituais e materiais para a ativao do esprito
inquisitorial e dos instrumentos de sua implementao (controle,
represso, silenciamento, condenaes etc.).
Ele
continua na mentalidade e nos mtodos da atual Congregao para
a Doutrina da F. As modificaes histricas, ao nvel
estrutural, so praticamente nulas. Evidentemente, no se
condena mais morte fsica, mas claramente no se evita a
morte psicolgica. Pressiona os acusados at o limite da
abilidade psicolgica. So desmoralizados, faz-se perder
a confiana em sua pessoa e palavra; por isso probe-se que
sejam convidados para conferncias, assessorias e retiros espirituais;
muitos so transferidos para outros pases, so forados a
tomar anos sabticos eufemisticamente, quer dizer, devem
deixar as ctedras; pressionam-se as editoras a no publicar
seus escritos e probem-se as livrarias religiosas de expor e de
vender seus escritos. Praticamente a maioria das vtimas da
ex-Inquisio, para poderem sobreviver humanamente, se v
obrigada a abandonar suas atividades ministeriais e teolgicas.
Mas sejamos sensatos: porm, mais vale um herege vivo e feliz em
sua f, que um telogo ortodoxo infeliz, castrado e recastrado
pelo ex-Santo Ofcio.
Ainda
perdura o processo de delao, a negao ao o s atas
dos processos, a inexistncia de um advogado e a impossibilidade
de apelao. A mesma instncia acusa, julga e pune. Isso uma
perversidade jurdica em qualquer Estado de direito, pago,
ateu ou cristo. No h a salvaguarda suficiente do direito de
defesa.
As
punies impostas so ainda compreendidas como benevolncia
e misericrdia da Igreja. Aps a punio que o autor desta
introduo recebeu da ex-Inquisio em 1984 (deposio como
editor da Editora Vozes, deposio de redator da Revista
Eclesistica Brasileira, proibio de dar aulas, de falar
publicamente, de dar entrevistas, de publicar qualquer texto e
por fim a imposio de um silncio obsequioso por tempo
indeterminado, portanto punies nada banais para um intelectual
cujo nico instrumento e arma a palavra falada e escrita), o
atual Pontfice, atravs de seu Secretrio de Estado, Cardeal
Agostino Casaroli, me escreveu com data de 29 de julho de 1985:
Aquilo
que, efetivamente, requerido ao Rev. Padre, ou seja, ater-se a
algumas limitaes, entre as quais o obsequjosum silentium, visa
como finalidade ajud-lo a ter um perodo de pausa para repensar
diante de Deus problemas que so de grande importncia para um
telogo e para refletir nas suas responsabilidades diante dos
irmos de f (cf. Roma locuta: documentos sobre o livro
Igreja: Carisma e Poder, CDDH, Petrpolis 1985, p.l52).
A
subjetividade das pessoas que sentem, que desenvolveram um sentido
de justia e de equidade dentro da Igreja, que militam, com
riscos pessoais, at de ameaa de morte, na defesa e promoo
dos direitos humanos pisoteados nas sociedades autoritrias do
Terceiro Mundo, nada conta. Conta a objetividade da doutrina
(fruto da subjetividade coletiva do corpo clerical que a impe
como objetiva aos Outros), que deve ser salvaguardada a preo do
escndalo dos mais simples, daqueles que sofrem a contradio
de uma Igreja que se compromete na observncia dos direitos
humanos na sociedade e no consegue fazer val-los nas relaes
internas dela mesma.
No
cabe refutar a lgica do sistema. Mas questionar o sistema mesmo.
Dispensamo-nos desta tarefa, pois transcende o sentido da introduo
deste Manual dos Inquisidores. Mas no ser difcil o prprio
leitor faz-lo, pois:
a)
A Inquisio contradiz o bom senso das pessoas. Como se pode,
em nome da verdade e ainda mais da verdade religiosa, perseguir,
torturar, matar tanto e de forma to obsessiva? Importa enfatizar
que, mediante a Inquisio, a Igreja hierrquica introduziu os
sacrifcios humanos. O auge do sacrificialismo furibundo da
Inquisio no sculo XVI na Europa corresponde aos sacrifcios
humanos perpetrados pelos colonizadores espanhis chegados ao
nosso Continente contra as culturas originrias dos astecas,
maias, incas, chibchas e outras. Quando Hernn Cortez penetrou em
1519 no planalto de Anahuac no Mxico, havia no Imprio asteca
25.200.000 habitantes. Menos de 80 anos, em 1595, s restaram
1.375.000 habitantes. A dizimao global, por guerras, doenas,
excesso de trabalho-escravo na encomiendas, desestruturao
cultural, nos dois primeiros sculos da colonizao-invaso,
foi da ordem de 25 por 1. Quem oferecia mais sacrifcios humanos:
os astecas, que faziam sacrifcios rituais ao deus Sol para que
sempre voltasse a nascer e assim garantisse a vida para todos os
povos e para o universo, ou os espanhis, que sacrificavam ao
deus Mamona para serem ricos e fidalgos na Espanha? E sobre isso
os bispos reunidos no Conclio de Trento (1545-1563), contemporneo
a todos esses fatos, no dizem sequer uma palavra. Estavam
ocupados com questes internas da Instituio em confronto
com a Reforma de Lutero.
A
verdade possui, em si, uma dimenso de libertao e humanizao.
Na Inquisio ela afogada. Repugna inteligncia assumir
uma pretensa verdade fora do terror.
b)
A Inquisio contradiz o sentido da verdade religiosa, da verdade
simplesmente e a natureza da religio. A verdade como o sol.
Ele ilumina a todos e a todos se d. Pode dizer a montanha
planta que est ao seu p: por que sou mais alta e sou a
primeira a ser bafejada pelo sol, voc, plantazinha ao meu p,
no tem direito de receber sol nenhum? E a luz que tens no
luz e no vem do sol? Seria absurdo o discurso da montanha. E
seria menos absurdo o discurso da teologia (ideologia) da
verdade absoluta que subjaz aos rgos de controle e represso
das doutrinas na Igreja romano-catlica que nega verdade s
outras religies e a outras confisses crists?
Todos
estamos em algum nvel da verdade. Como tambm todos estamos a
caminho de uma verdade mais plena. A verdade no est apenas nas
frases verdadeiras. Ela est fundamentalmente na vida, na
profundidade do corao, nas relaes entre as pessoas, no
curso da histria. Ela pode ser expressa de mil formas, num
poema, numa msica, numa catedral, numa parbola e num
discurso.
Na
histria, nossas formulaes exprimem a verdade absoluta que
est em todos, mas no logram exprimir todo o absoluto da
Verdade. No dito fica sempre o no-dito. E todo ponto de vista
sempre a vista de um ponto. Por isso haver sempre possibilidade
de se dizer a verdade e a f em doutrinas expressas em marcos
inteligveis de uma outra cultura, de uma outra tradio
espiritual e, por que no diz-lo tambm, no cdigo de uma
outra classe social. A Inquisio contra a natureza da religio.
Esta trabalha o sagrado que est na profundidade de cada
pessoa, na histria e no cosmos. O efeito da prtica religiosa
a potenciao do sentido da vida, do sentimento de salvao,
da formulao de uma esperana contra toda esperana e do apreo
e salvaguarda da vida e do menor sinal de vida. Uma religio
que produz morte e exige sacrifcios humanos desnatura a religio
e se transforma num aparelho de controle social.
c)
A Inquisio nada tem a ver com Cristo, nem com o seu Evangelho.
Se tem a ver, contra eles. O prprio Cristo foi vitima da
inquisio judaica de seu tempo. Como em seu nome instaurar
uma inquisio? No esqueamos que o Grande Inquisidor de
Dostoievski acabou condenando Jesus Cristo. Nem tem a ver com a
Igreja em sua compreenso maior, teolgica e sacramental. Pois a
Igreja como comunidade dos professantes procura manter viva a
memria de Jesus, do seu sonho, da irradiao do seu Esprito,
na profunda alegria de sermos todos filhos e filhas de Deus e por
isso irmos e irms de toda humana criatura e de cada ser do
universo. A Inquisio tem a ver sim com a patologia como distoro
dessa convico, e com o pecado como negao prtica dessa
proposta, carregada de promessa e de utopia. Mas sejamos
realistas: quem so pode ficar doente. E quem est na graa
pode pecar.
A
Santa Inquisio expresso de um componente neurtico-obsessivo
do corpo clerical e cristaliza a dimenso de pecado que existe
nas relaes internas da Igreja. Pois, a prpria
Igreja-comunidade de fiis se confessa santa e pecadora. Se assim
ento aqui o pecado Institucional que ganha a cena e a
ocupa durante sculos. Seu esprito vaga assustador at os dias
de hoje. E devemos nos precaver contra ele. Antes, ajudar a prpria
instituio eclesial a ser fiel sua utopia originria e a
ser um lugar de exerccio de liberdade e de experimentao da
graa humanitria de Deus. E isso se far na medida em que os
professantes da f romano-catlica se reapropriarem daquilo de
que foram historicamente despojados: sua capacidade de
experimentar o sonho de Jesus, de diz-lo de forma criativa e
responsvel no interior da comunidade, de confront-lo
solidariamente com outras experincias do evangelho de Deus na
histria e articul-lo com o curso do mundo, onde se revela
tambm e principalmente o desgnio de benquerena e de amor de
Deus.
A
comunidade crist viveu sculos sem a Inquisio. Isto
significa que no precisou dela para viver e sobreviver.
Portanto, ela suprflua. Sua existncia mantm o mesmo escndalo,
denota uma patologia e concretiza um pecado. Nunca teve direito
a existir. No deve mais existir. Por amor a Deus, por fidelidade
a Jesus Cristo e por respeito s opinies religiosas diferentes
nas sociedades humanas.
LEONARDO
BOFF
Prof.
de tica e Teologia na UERJ
Rio
de Janeiro, Sexta-feira Santa da Paixo de 1993.
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