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O Martelo das Feiticeiras Malleus Maleficarum 736c1e


Escrito em 1484 pelos inquisidores
Heinrich Kramer e James Sprenger

Breve Introduo Histrica
ROSE MARIE MURARO

Para compreendermos a importncia do Malleus preciso termos uma viso ao menos mnima da histria da mulher no interior da histria humana em geral.

Segundo a maioria dos antroplogos, o ser humano habita este planeta h mais de dois milhes de anos. Mais de trs quartos deste tempo a nossa espcie ou nas culturas de coleta e caa aos pequenos animais. Nessas sociedades no havia necessidade de fora fsica para a sobrevivncia, e nelas as mulheres possuam um lugar central.

Em nosso tempo ainda existem remanescentes dessas culturas, tais como os grupos mahoris (Indonsia), pigmeus e bosqumanos (frica Central). Estes so os grupos mais primitivos que existem e ainda sobrevivem da coleta dos frutos da terra e da pequena caa ou pesca. Nesses grupos, a mulher ainda considerada um ser sagrado, porque pode dar a vida e, portanto, ajudar a fertilidade da terra e dos animais. Nesses grupos, o princpio masculino e o feminino governam o mundo juntos. Havia diviso de trabalho entre os sexos, mas no havia desigualdade. A vida corria mansa e paradisaca.

Nas sociedades de caa aos grandes animais, que sucedem a essas mais primitivas, em que a fora fsica essencial, que se inicia a supremacia masculina. Mas nem nas sociedades de coleta nem nas de caa se conhecia funo masculina na procriao. Tambm nas sociedades de caa a mulher era considerada um ser sagrado, que possua o privilgio dado pelos deuses de reproduzir a espcie. Os homens se sentiam marginalizados nesse processo e invejavam as mulheres. Essa primitiva inveja do tero dos homens a anteada da moderna inveja do pnis que sentem as mulheres nas culturas patriarcais mais recentes.

A inveja do tero dava origem a dois ritos universalmente encontrados nas sociedades de caa pelos antroplogos e observados em partes opostas do mundo, como Brasil e Oceania. O primeiro o fenmeno da couvade, em que a mulher comea a trabalhar dois dias depois de parir e o homem fica de resguardo com o recm-nascido, recebendo visitas e presentes... O segundo a iniciao dos homens. Na adolescncia, a mulher tem sinais exteriores que marcam o limiar da sua entrada no mundo adulto. A menstruao a torna apta maternidade e representa um novo patamar em sua vida. Mas os adolescentes homens no possuem esse sinal to bvio. Por isso, na puberdade eles so arrancados pelos homens s suas mes, para serem iniciados na casa dos homens. Em quase todas essas iniciaes, o ritual semelhante: a imitao cerimonial do parto com objetos de madeira e instrumentos musicais. E nenhuma mulher ou criana pode se aproximar da casa dos homens, sob pena de morte. Desse dia em diante o homem pode parir ritualmente e, portanto, tomar seu lugar na cadeia das geraes...

Ao contrrio da mulher, que possua o poder biolgico, o homem foi desenvolvendo o poder cultural medida que a tecnologia foi avanando. Enquanto as sociedades eram de coleta, as mulheres mantinham uma espcie de poder, mas diferente das culturas patriarcais. Essas culturas primitivas tinham de ser cooperativas, para poder sobreviver em condies hostis, e portanto no havia coero ou centralizao, mas rodzio de lideranas, e as relaes entre homens e mulheres eram mais fluidas do que viriam a ser nas futuras sociedades patriarcais.

Nos grupos matricntricos, as formas de associao entre homens e mulheres no incluam nem a transmisso do poder nem a da herana, por isso a liberdade em termos sexuais era maior. Por outro lado, quase no existia guerra, pois no havia presso populacional pela conquista de novos territrios.

E s nas regies em que a coleta escassa, ou onde vo se esgotando os recursos naturais vegetais e os pequenos animais, que se inicia a caa sistemtica aos grandes animais. E a comeam a se instalar a supremacia masculina e a competitividade entre os grupos na busca de novos territrios. Agora, para sobreviver, as sociedades tm de competir entre si por um alimento escasso. As guerras se tornam constantes e am a ser mitificadas. Os homens mais valorizados so os heris guerreiros. Comea a se romper a harmonia que ligava a espcie humana natureza. Mas ainda no se instala definitivamente a lei do mais forte. O homem ainda no conhece com preciso a sua funo reprodutora e cr que a mulher fica grvida dos deuses. Por isso ela ainda conserva poder de deciso. Nas culturas que vivem da caa, j existe estratificao social e sexual, mas no completa como nas sociedades que se lhes seguem.

E no decorrer do neoltico que, em algum momento, o homem comea a dominar a sua funo biolgica reprodutora, e, podendo control-la, pode tambm controlar a sexualidade feminina. Aparece ento o casamento como o conhecemos hoje, em que a mulher propriedade do homem e a herana se transmite atravs da descendncia masculina. J acontece assim, por exemplo, nas sociedades pastoris descritas na Bblia. Nessa poca, o homem j tinha aprendido a fundir metais. Essa descoberta acontece por volta de 10000 ou 8000 a.C. E, medida que essa tecnologia se aperfeioa, comeam a ser fabricadas no s armas mais sofisticadas como tambm instrumentos que permitem cultivar melhor a terra (o arado, por ex.).

Hoje h consenso entre os antroplogos de que os primeiros humanos a descobrir os ciclos da natureza foram as mulheres, porque podiam compar-los com o ciclo do prprio corpo. Mulheres tambm devem ter sido as primeiras plantadoras e as primeiras ceramistas, mas foram os homens que, a partir da inveno do arado, sistematizaram as atividades agrcolas, iniciando uma nova era, a era agrria, e com ela a histria em que vivemos hoje.

Para poder arar a terra, os grupamentos humanos deixam de ser nmades. So obrigados a se tornar sedentrios. Dividem a terra e formam as primeiras plantaes. Comeam a se estabelecer as primeiras aldeias, depois as cidades, as cidades-estado, os primeiros Estados e os imprios, no sentido antigo do termo. As sociedades, ento, se tornam patriarcais, isto , os portadores dos valores e da sua transmisso so os homens. J no so mais os princpios feminino e masculino que governam juntos o mundo, mas, sim, a lei do mais forte. A comida era primeiro para o dono da terra, sua famlia, seus escravos e seus soldados. At ser escravo era privilgio. S os prias nmades, os sem-terra, que pereciam no primeiro inverno ou na primeira escassez.

Nesse contexto, quanto mais filhos, mais soldados e mais mo-de-obra barata para arar a terra. As mulheres tinham a sua sexualidade rigidamente controlada pelos homens. O casamento era monogmico e a mulher era obrigada a sair virgem das mos do pai para as mos do marido. Qualquer ruptura desta norma podia significar a morte. Assim tambm o adultrio: um filho de outro homem viria ameaar a transmisso da herana que se fazia atravs da descendncia da mulher. A mulher fica, ento, reduzida ao mbito domstico. Perde qualquer capacidade de deciso no domnio pblico, que fica inteiramente reservado ao homem. A dicotomia entre o privado e o pblico torna-se, ento, a origem da dependncia econmica da mulher, e esta dependncia, por sua vez, gera, no decorrer das geraes, uma submisso psicolgica que dura at hoje.

E nesse contexto que transcorre todo o perodo histrico at os dias de hoje. De matricntrica, a cultura humana a a patriarcal.

E o Verbo Veio Depois

No principio era a Me, o Verbo veio depois. l~ assim que Marilyn French, uma das maiores pensadoras feministas americanas, comea o seu livro Beyond Power (Summit Books, Nova York, 1985). E no sem razo, pois podemos retraar os caminhos da espcie atravs da sucesso dos seus mitos. Um mitlogo americano, em seu livro The Masks of God: Occidental Mythology (Nova York, 1970), citado por French, divide em quatro grupos todos os mitos conhecidos da criao. E, surpreendentemente, esses grupos correspondem s etapas cronolgicas da histria humana.

Na primeira etapa, o mundo criado por uma deusa me sem auxlio de ningum. Na segunda, ele criado por um deus andrgino ou um casal criador. Na terceira, um deus macho ou toma o poder da deusa ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Finalmente, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho.

Essas quatro etapas que se sucedem tambm cronologicamente so testemunhas eternas da transio da etapa matricntrica da humanidade para sua fase patriarcal, e esta sucesso que d veracidade frase j citada de Marilyn French.

Alguns exemplos nos faro entender as diversas etapas e a frase de French. O primeiro e mais importante exemplo da primeira etapa em que a Grande Me cria o universo sozinha o prprio mito grego. Nele a criadora primria Gia, a Me Terra. Dela nascem todos as protodeuses: Urano, osTits e as protodeusas, entre as quais Ria, que vir a ser a me do futuro dominador do Olimpo, Zeus. H tambm o caso do mito Nag, que vem dar origem ao candombl. Neste mito africano, Nan Buruqu que d luz todos os orixs, sem auxlio de ningum.

Exemplos do segundo caso so o deus andrgino que gera todos os deuses, no hindusmo, e o yin e o yang, o principio feminino e o masculino que governam juntos na mitologia chinesa.

Exemplos do terceiro caso so as mitologias nas quais reinam em primeiro lugar deusas mulheres, que so, depois, destronadas por deuses masculinos. Entre essas mitologias est a sumeriana, em que primitivamente a deusa Siduri reinava num jardim de delcias e cujo poder foi usurpado por um deus solar. Mais tarde, na epopia de Gilgamesh, ela descrita como simples serva. Ainda, os mitos primitivos dos astecas falam de um mundo perdido, de um jardim paradisaco governado por Xoxiquetzl, a Me Terra. Dela nasceram os Huitzuhuahua, que so os Tits e os Quatrocentos Habitantes do Sul (as estrelas). Mais tarde, seus filhos se revoltam contra ela e ela d luz o deus que iria governar a todos, Huitzilopochtli.

A partir do segundo milnio a.C., contudo, raramente se registram mitos em que a divindade primria seja mulher. Em muitos deles, estas so substitudas por um deus macho que cria o mundo a partir de si mesmo, tais como os mitos persa, meda e, principalmente e acima de todos, o nosso mito cristo, que o que ser enfocado aqui.

Jav deus nico todo-poderoso, onipresente, e controla todos os seres humanos em todos os momentos da sua vida. Cria sozinho o mundo em sete dias e, no final, cria o homem. E s depois cria a mulher, assim mesmo a partir do homem. E coloca ambos no Jardim das Delcias onde o alimento abundante e colhido sem trabalho. Mas, graas seduo da mulher, o homem cede tentao da serpente e o casal expulso do paraso.

Antes de prosseguir, procuremos analisar o que j se tem at aqui em relao mulher. Em primeiro lugar, ao contrrio das culturas primitivas, Jav deus nico, centralizador, dita rgidas regras de comportamento cuja transgresso sempre punida. Nas primitivas mitologias, ao contrrio, a Grande Me permissiva, amorosa e no coercitiva. E como todos os mitos fundantes das grandes culturas tendem a sacralizar os seus principais valores, Jav representa bem a transformao do matricentrismo em patriarcado.

O Jardim das Delcias a lembrana arquetpica da antiga harmonia entre o ser humano e a natureza. Nas culturas de coleta no se trabalhava sistematicamente. Por isso os controles eram frouxos e podia se viver mais prazerosamente. Quando o homem comea a dominar a natureza, ele comea a se separar dessa mesma natureza em que at ento vivia imerso.

Como o trabalho penoso, necessita agora de poder central que imponha controles mais rgidos e punio para a transgresso. preciso usar a coero e a violncia para que os homens sejam obrigados a trabalhar, e essa coero localizada no corpo, na represso da sexualidade e do prazer. Por isso o pecado original, a culpa mxima, na Bblia, colocado no ato sexual ( assim que, desde milnios, popularmente se interpreta a transgresso dos primeiros humanos).

E por isso que a rvore do conhecimento tambm a rvore do bem e do mal. O progresso do conhecimento gera o trabalho e por isso o corpo tem de ser amaldioado, porque o trabalho bom. Mas interessante notar que o homem s consegue conhecimento do bem e do mal transgredindo a lei do Pai. O sexo (o prazer) doravante mau e, portanto, proibido. Pratic-lo transgredir a lei. Ele , portanto, limitado apenas s funes procriativas, e mesmo assim uma culpa.

Da a diviso entre sexo e afeto, entre corpo e alma, apangio das civilizaes agrrias e fonte de todas as divises e fragmentaes do homem e da mulher, da razo e da emoo, das classes...

Tomam ai sentido as punies de Jav. Uma vez adquirido o conhecimento, o homem tem que sofrer, O trabalho o escraviza. E por isso o homem escraviza a mulher. A relao homem-mulher-natureza no mais de integrao e, sim, de dominao. O desejo dominante agora o do homem. O desejo da mulher ser para sempre carncia, e esta paixo que ser o seu castigo. Da em diante, ela ser definida por sua sexualidade, e o homem, pelo seu trabalho.

Mas o interessante que os primeiros captulos do Gnesis podem ser mais bem entendidos luz das modernas teorias psicolgicas, especialmente a psicanlise. Em cada menino nascido no sistema patriarcal repete-se, em nvel simblico, a tragdia primordial. Nos primeiros tempos de sua vida, eles esto imersos no Jardim das Delcias, em que todos os seus desejos so satisfeitos. E isto lhes faz buscar o prazer que lhes d o contato com a me, a nica mulher a que tm o. Mas a lei do pai probe ao menino a posse da me. E o menino expulso do mundo do amor, para assumir a sua autonomia e, com ela, a sua maturidade. Principalmente, a sua nudez, a sua fraqueza, os seus limites. E medida que o homem se cinde do Jardim das Delcias proporcionadas pela mulher-me que ele assume a sua condio masculina.

E para que possa se tornar homem em termos simblicos, ele precisa ar pela punio maior que a ameaa de morte pelo pai. Como Ado, o menino quer matar o pai e este o pune, deixando-o s.

Assim, aquilo que se verifica no decorrer dos sculos, isto , a transio das culturas de coleta para a civilizao agrria mais avanada, relembrado simbolicamente na vida de cada um dos homens do mundo de hoje. Mas duas observaes devem ser feitas. A primeira que o piv das duas tragdias, a individual e a coletiva, a mulher; e a segunda, que o conhecimento condenado no o conhecimento dissociado e abstrato que da por diante ser o conhecimento dominante, mas sim o conhecimento do bem e do mal, que vem da experincia concreta do prazer e da sexualidade, o conhecimento totalizante que integra inteligncia e emoo, corpo e alma, enfim, aquele conhecimento que , especificamente na cultura patriarcal, o conhecimento feminino por excelncia.

Freud dizia que a natureza tinha sido madrasta para a mulher porque ela no era capaz de simbolizar to perfeitamente como o homem. De fato, para podermos entender a misoginia que da por diante caracterizar a cultura patriarcal, preciso analisar a maneira como as cincias psicolgicas mais atuais apontam para uma estrutura psquica feminina bem diferente da masculina.

A mesma idade em que o menino conhece a tragdia da castrao imaginria, a menina resolve de outra maneira o conflito que a conduzir maturidade. Porque j vem castrada, isto , porque no tem pnis (o smbolo do poder e do prazer, no patriarcado), quando seu desejo a leva para o pai ela no entra em conflito com a me de maneira to trgica e aguda como o menino entra com o pai por causa da me. Porque j vem castrada, no tem nada a perder. E a sua identificao com a me se resolve sem grandes traumas. Ela no se desliga inteiramente das fontes arcaicas do prazer (o corpo da me). Por isso, tambm, no se divide de si mesma como se divide o homem, nem de suas emoes. Para o resto da sua vida, conhecimento e prazer, emoo e inteligncia so mais integrados na mulher do que no homem e, por isso, so perigosos e desestabilizadores de um sistema que repousa inteiramente no controle, no poder e, portanto, no conhecimento dissociado da emoo e, por isso mesmo, abstrato.

De agora em diante, poder, competitividade, conhecimento, controle, manipulao, abstrao e violncia vem juntos. O amor, a integrao com o meio ambiente e com as prprias emoes so os elementos mais desestabilizadores da ordem vigente. Por isso preciso precaver-se de todas as maneiras contra a mulher, impedi-la de interferir nos processos decisrios, fazer com que ela introjete uma ideologia que a convena de sua prpria inferioridade em relao ao homem.

E no espanta que na prpria Bblia encontremos o primeiro indcio desta desigualdade entre homens e mulheres. Quando Deus cria o homem, Ele o cria s e apenas depois tira a companheira da costela deste. Em outras palavras: o primeiro homem d luz (pare) a primeira mulher. Esse fenmeno psicolgico de deslocamento um mecanismo de defesa conhecido por todos aqueles que lidam com a psique humana e serve para revelar escondendo. Tirar da costela menos violento do que tirar do prprio ventre, mas, em outras palavras, aponta para a mesma direo. Agora, parir ato que no est mais ligado ao sagrado e , antes, uma vulnerabilidade do que uma fora. A mulher se inferioriza pelo prprio fato de parir, que outrora lhe assegurava a grandeza. A grandeza agora pertence ao homem, que trabalha e domina a natureza.

J no mais o homem que inveja a mulher. Agora a mulher que inveja o homem e dependente dele. Carente, vulnervel, seu desejo o centro da sua punio. Ela a a se ver com os olhos do homem, isto , sua identidade no est mais nela mesma e sim em outro. O homem autnomo e a mulher reflexa. Daqui em diante, como o pobre se v com os olhos do rico, a mulher se v pelo homem.

Da poca em que foi escrito o Gnesis at os nossos dias, isto , de alguns milnios para c, essa narrativa bsica da nossa cultura patriarcal tem servido ininterruptamente para manter a mulher em seu devido lugar. E, alis, com muita eficincia. A partir desse texto, a mulher vista como a tentadora do homem, aquela que perturba a sua relao com a transcendncia e tambm aquela que conflitua as relaes entre os homens. Ela ligada natureza, carne, ao sexo e ao prazer, domnios que tm de ser rigorosamente normatizados: a serpente, que nas eras matricntricas era o smbolo da fertilidade e tida na mais alta estima como smbolo mximo da sabedoria, se transforma no demnio, no tentador, na fonte de todo pecado. E ao demnio alocado o pecado por excelncia, o pecado da carne. Coloca-se no sexo o pecado supremo e, assim, o poder fica imune crtica. Apenas nos tempos modernos est se tentando deslocar o pecado da sexualidade para o poder. Isto , at hoje no s o homem como as classes dominantes tiveram seu status sacralizado porque a mulher e a sexualidade foram penalizadas como causa mxima da degradao humana.

O Malleus como Continuao do Gnesis

Enquanto se escrevia o Gnesis no Oriente Mdio, as grandes culturas patriarcais iam se sucedendo. Na Grcia, o status da mulher foi extremamente degradado. O homossexualismo era prtica comum entre os homens e as mulheres ficavam exclusivamente reduzidas s suas funes de me, prostituta ou cortes. Em Roma, embora durante certo perodo tivessem bastante liberdade sexual, jamais chegaram a ter poder de deciso no Imprio. Quando o Cristianismo se torna a religio oficial dos romanos no sculo IV, tem incio a Idade Mdia. Algo novo acontece. E aqui nos deteremos porque o perodo que mais nos interessa.

Do terceiro ao dcimo sculos, alonga-se um perodo em que o Cristianismo se sedimenta entre as tribos brbaras da Europa. Nesse perodo de conflito de valores, muito confusa a situao da mulher. Contudo, ela tende a ocupar lugar de destaque no mundo das decises, porque os homens se ausentavam muito e morriam nos perodos de guerra. Em poucas palavras: as mulheres eram jogadas para o domnio pblico quando havia escassez de homens e voltavam para o domnio privado quando os homens reassumiam o seu lugar na cultura.

Na alta Idade Mdia, a condio das mulheres floresce. Elas tm o s artes, s cincias, literatura. Uma monja, por exemplo, Hrosvitha de Gandersheim, foi o nico poeta da Europa durante cinco sculos. Isso acontece durante as cruzadas, perodo em que no s a Igreja alcana seu maior poder temporal como, tambm, o mundo se prepara para as grandes transformaes que viriam sculos mais tarde, com a Renascena.

E logo depois dessa poca, no perodo que vai do fim do sculo XIV at meados do sculo XV III que aconteceu o fenmeno generalizado em toda a Europa: a represso sistemtica do feminino. Estamos nos referindo aos quatro sculos de caa s bruxas.

Deirdre English e Barbara Ehrenreich, em seu livro Witches, Nurses and Midwives (The Feminist Press, 1973), nos do estatsticas aterradoras do que foi a queima de mulheres feiticeiras em fogueiras durante esses quatro sculos. A extenso da caa s bruxas espantosa. No fim do sculo XV e no comeo do sculo XVI, houve milhares e milhares de execues - usualmente eram queimadas vivas na fogueira - na Alemanha, na Itlia e em outros pases. A partir de meados do sculo XVI, o terror se espalhou por toda a Europa, comeando pela Frana e pela Inglaterra. Um escritor estimou o nmero de execues em seiscentas por ano para certas cidades, uma mdia de duas por dia, exceto aos domingos. Novecentas bruxas foram executadas num nico ano na rea de Wertzberg, e cerca de mil na diocese de Como. Em Toulouse, quatrocentas foram assassinadas num nico dia; no arcebispado de Trier, em 1585, duas aldeias foram deixadas apenas com duas mulheres moradoras cada uma. Muitos escritores estimaram que o nmero total de mulheres executadas subia casa dos milhes, e as mulheres constituam 85~Vo de todos os bruxos e bruxas que foram executados.

Outros clculos levantados por Marilyn French, em seu j citado livro, mostram que o nmero mnimo de mulheres queimadas vivas de cem mil.

Desde a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares, as parteiras, enfim, detinham saber prprio, que lhes era transmitido de gerao em gerao. Em muitas tribos primitivas eram elas as xams. Na Idade Mdia, seu saber se intensifica e aprofunda. As mulheres camponesas pobres no tinham como cuidar da sade, a no ser com outras mulheres to camponesas e to pobres quanto elas. Elas (as curadoras) eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a sade, e eram tambm as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia, e as mdicas populares para todas as doenas.

Mais tarde elas vieram a representar uma ameaa. Em primeiro lugar, ao poder mdico, que vinha tomando corpo atravs das universidades no interior do sistema feudal. Em segundo, porque formavam organizaes pontuais (comunidades) que, ao se juntarem, formavam vastas confrarias, as quais trocavam entre si os segredos da cura do corpo e muitas vezes da alma. Mais tarde, ainda, essas mulheres vieram a participar das revoltas camponesas que precederam a centralizao dos feudos, os quais, posteriormente, dariam origem s futuras naes.

O poder disperso e frouxo do sistema feudal para sobreviver obrigado, a partir do fim do sculo XIII, a centralizar, a hierarquizar e a se organizar com mtodos polticos e ideolgicos mais modernos. A noo de ptria aparece, mesmo nessa poca (Klausevitz).

A religio catlica e, mais tarde, a protestante contribuem de maneira decisiva para essa centralizao do poder. E o fizeram atravs dos tribunais da Inquisio que varreram a Europa de norte a sul, leste e oeste, torturando e assassinando em massa aqueles que eram julgados herticos ou bruxos.

Este expurgo visava recolocar dentro de regras de comportamento dominante as massas camponesas submetidas muitas vezes aos mais ferozes excessos dos seus senhores, expostas fome, peste e guerra e que se rebelavam. E principalmente as mulheres.

Era essencial para o sistema capitalista que estava sendo forjado no seio mesmo do feudalismo um controle estrito sobre o corpo e a sexualidade, conforme constata a obra de Michel Foucault, Histria da Sexualidade. Comea a se construir ali o corpo dcil do futuro trabalhador que vai ser alienado do seu trabalho e no se rebelar. A partir do sculo XVII, os controles atingem profundidade e obsessividade tais que 05 menores, os mnimos detalhes e gestos so normatizados.

Todos, homens e mulheres, am a ser, ento, os prprios controladores de si mesmos a partir do mais ntimo de suas mentes. E assim que se instala o puritanismo, do qual se origina, segundo Tawnwy e Max Weber, o capitalismo avanado anglo-saxo. Mas at chegar a esse ponto foi preciso usar de muita violncia. At meados da Idade Mdia, as regras morais do Cristianismo ainda no tinham penetrado a fundo nas massas populares. Ainda existiam muitos ncleos de paganismo e, mesmo entre os cristos, os controles eram frouxos.

As regras convencionais s eram vlidas para as mulheres e homens das classes dominantes atravs dos quais se transmitiam o poder e a herana. Assim, os quatro sculos de perseguio s bruxas e aos herticos nada tinham de histeria coletiva, mas, ao contrrio, foram uma perseguio muito bem calculada e planejada pelas classes dominantes, para chegar a maior centralizao e poder.

Num mundo teocrtico, a transgresso da f era tambm transgresso poltica. Mais ainda, a transgresso sexual que grassava solta entre as massas populares. Assim, os inquisidores tiveram a sabedoria de ligar a transgresso sexual transgresso da f. E punir as mulheres por tudo isso. As grandes teses que permitiram esse expurgo do feminino e que so as teses centrais do Malleus Maleficarum so as seguintes:

1) O demnio, com a permisso de Deus, procura fazer o mximo de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior nmero possvel de almas.

2) E este mal feito prioritariamente atravs do corpo, nico lugar onde o demnio pode entrar, pois o esprito [do homem] governado por Deus, a vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas (Parte 1, Questo 1). E porque as estrelas so inferiores aos espritos e o demnio um esprito superior, s lhe resta o corpo para dominar.

3) E este domnio lhe vem atravs do controle e da manipulao dos atos sexuais. Pela sexualidade o demnio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade o ponto mais vulnervel de todos os homens.

4) E como as mulheres esto essencialmente ligadas sexualidade, elas se tornam as agentes por excelncia do demnio (as feiticeiras). E as mulheres tm mais conivncia com o demnio porque Eva nasceu de uma costela torta de Ado, portanto nenhuma mulher pode ser reta (1,6).

5) A primeira e maior caracterstica, aquela que d todo o poder s feiticeiras, copular com o demnio. Sat , portanto, o senhor do prazer.

6) Uma vez obtida a intimidade com o demnio, as feiticeiras so capazes de desencadear todos os males, especialmente a impotncia masculina, a impossibilidade de livrar-se de paixes desordenadas, abortos, oferendas de crianas a Satans, estrago das colheitas, doenas nos animais etc.

7) E esses pecados eram mais hediondos ao que os prprios pecados de Lcifer quando da rebelio dos anjos e dos primeiros pais por ocasio da queda, porque agora as bruxas pecam contra Deus e o Redentor (Cristo), e portanto este crime imperdovel e por isso s pode ser resgatado com a tortura e a morte.

Vemos assim que na mesma poca em que o mundo est entrando na Renascena, que vir a dar na Idade das Luzes, processa-se a mais delirante perseguio s mulheres e ao prazer. Tudo aquilo que j estava em embrio no Segundo Captulo do Gnesis torna-se agora sinistramente concreto. Se nas culturas de coleta as mulheres eram quase sagradas por poderem ser frteis e, portanto, eram as grandes estimuladoras da fecundidade da natureza, agora elas so, por sua capacidade orgstica, as causadoras de todos os flagelos a essa mesma natureza. Sim, porque as feiticeiras se encontram apenas entre as mulheres orgsticas e ambiciosas (1, 6), isto , aquelas que no tinham a sexualidade ainda normatizada e procuravam impor-se no domnio pblico, exclusivo dos homens.

Assim, o Malleus Maleficarum, por ser a continuao popular do Segundo Captulo do Gnesis, torna-se a testemunha mais importante da estrutura do patriarcado e de como esta estrutura funciona concretamente sobre a represso da mulher e do prazer.

De doadora da vida, smbolo da fertilidade para as colheitas e os animais, agora a situao se inverte: a mulher a primeira e a maior pecadora, a origem de todas as aes nocivas ao homem, natureza e aos animais.

Durante trs sculos o Malleus foi a bblia dos Inquisidores e esteve na banca de todos os julgamentos. Quando cessou a caa s bruxas, no sculo XVIII, houve grande transformao na condio feminina. A sexualidade se normatiza e as mulheres se tornam frgidas, pois orgasmo era coisa do diabo e, portanto, vel de punio. Reduzem se exclusivamente ao mbito domstico, pois sua ambio tambm era vel de castigo. O saber feminino popular cai na clandestinidade, quando no assimilado como prprio pelo poder mdico masculino j solidificado. As mulheres no tm mais o ao estudo como na Idade Mdia e am a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais j ento totalmente introjetados por elas.

com a caa s bruxas que se normatiza o comportamento de homens e mulheres europeus, tanto na rea pblica como no domnio do privado.

E assim se am os sculos.

A sociedade de classes que j est construda nos fins do sculo XVIII composta de trabalhadores dceis que no questionam o sistema.

As Bruxas do Sculo XX

Agora, mais de dois sculos aps o trmino da caa s bruxas, que podemos ter uma noo das suas dimenses. Neste final de sculo e de milnio, o que se nos apresenta como avaliao da sociedade industrial? Dois teros da humanidade am fome para o tero restante superalimentar-se; alm disto h a possibilidade concreta da destruio instantnea do planeta pelo arsenal nuclear j colocado e, principalmente, a destruio lenta mas contnua do meio ambiente, j chegando ao ponto do no-retorno. A acelerao tecnolgica mostra-se, portanto, muito mais louca dos inquisidores.

Ainda neste fim de sculo outro fenmeno est acontecendo: na mesma jovem rompem-se dois tabus que causaram a morte das feiticeiras: a insero no mundo pblico e a procura do prazer sem represso. A mulher jovem hoje liberta-se porque o controle da sexualidade e a recluso ao domnio privado formam tambm os dois pilares da opresso feminina.

Assim, hoje as bruxas so legio no sculo XX. E so bruxas que no podem ser queimadas vivas, pois so elas que esto trazendo pela primeira vez na histria do patriarcado, para o mundo masculino, os valores femininos. Esta reinsero do feminino na histria, resgatando o prazer, a solidariedade, a no-competio, a unio com a natureza, talvez seja a nica chance que a nossa espcie tenha de continuar viva.

Creio que com isso as nossas bruxinhas da Idade Mdia podem se considerar vingadas!

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