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DOS DELITOS E DAS PENAS Cesare Beccaria 2g4e3f

APNDICE 3u3j5l

394i5k

APRESENTAO 3k6k1p

Nlson Jahr Garcia w2f5h

"Dos delitos e das penas" uma obra que se insere no movimento filosfico e humanitrio da segunda metade do sculo XVIII, ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros.
Na poca havia grassado a tese de que as penas constituam uma espcie de vingana coletiva; essa concepo havia induzido aplicao de punies de conseqncias muito superiores e mais terrveis que os males produzidos pelos delitos. Prodigalizara-se a prtica de torturas, penas de morte, prises desumanas, banimentos, acusaes secretas.
Foi contra essa situao que se insurgiu Beccaria. Sua obra foi elogiada por intelectuais, religiosos e nobres (inclusive Catarina da Rssia). As crticas foram poucas, geralmente resultantes de interesses egosticos de magistrados e clrigos. A humanidade encontrava novos caminhos para garantir a igualdade e a justia.
Estamos divulgando o texto por acreditarmos que deva ser lido de novo, especialmente no Brasil. A prtica de torturas, entre ns, tem sido cada vez mais freqente. A pena de morte, que vai sendo abolida em pases mais avanados, aqui tem sido proposta por inmeros polticos raivosos. Crianas ficam encarceradas sob condies cruis, s vezes brbaras. Juizes corruptos vivem no conforto de suas manses. Assassinos frios, por serem influentes, desfrutam de todas as mordomias.
Que o esprito de Beccaria nos ilumine.

BIOGRAFIA DO AUTOR 111j3d


CESARE BONESANA, marqus de Beccaria, nasceu em Milo no ano de 1738. Educado em Paris pelos jesutas, entregou-se com entusiasmo ao estudo da literatura e das matemticas. Muita influncia exerceu na formao do seu esprito a leitura das Lettres Persanes de Mostesquieu e de L'Esprit de Helvtius. Desde ento, todas as suas preocupaes se voltaram para o estudo da filosofia. Foi ele um dos fundadores da sociedade literria que se formou em Milo e que, inspirando-se no exemplo da de Helvtius, divulgou os novos princpios da filosofia sa. Alm disso, a fim de divulgar na Itlia as idias novas, Beccaria fez parte da redao do jornal II Caff, que apareceu de 1764 a 1765.

Foi mais ou menos por essa poca que, insurgindo-se contra as injustias dos processos criminais em voga, Beccaria principiou a agitar com os seus amigos, entre os quais se destacavam os irmos Pietro e Alessandro Verri, os complexos problemas relacionados com a matria. Assim teve origem o seu livro Dei Delitti e delle Pene. Receoso de perseguies, o autor mandou imprimir sua obra secretamente, em Livorno, e ainda assim velando muitos pensamentos com expresses vagas e indecisas.

O tratado Dos Delitos e das Penas a filosofia sa aplicada legislao penal: contra a tradio jurdica, invoca a razo e o sentimento; faz-se porta-voz dos protestos da conscincia pblica contra os julgamentos secretos, o juramento imposto aos acusados, a tortura, a confiscao, as penas infamantes, a desigualdade ante o castigo, a atrocidade dos suplcios; estabelece limites entre a justia divina e a justia humana, entre os pecados e os delitos; condena o direito de vingana e toma por base do direito de punir a utilidade social; declara a pena de morte intil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos, assim como a separao do poder judicirio e do poder legislativo. Nenhum livro fora to oportuno e o seu sucesso foi verdadeiramente extraordinrio, sobretudo entre os filsofos ses. O abade Morellet traduziu-o, Diderot anotou-o, Voltaire comentou-o. d'Alembert, Buffon, Hume, Helvtius, o baro d'Holbach, em suma, todos os grandes homens da Frana manifestaram desde logo a sua irao e seu entusiasmo. Em 1766, indo a Paris, Beccaria foi alvo das mais vivas demonstraes de simpatia. No entanto, tendo regressado a Milo, cidade que ele no mais abandonou, teve de sofrer uma campanha infamante por parte dos seus adversrios, que ainda se apegavam aos preconceitos e rotina para acus-lo de heresia. A denncia no teve conseqncias, mas Beccaria ressentiu-se de tal forma que o receio de novas perseguies levou-o a renunciar s dissertaes filosficas.

Em 1768, o governo austraco, sabedor de que ele recusara as ofertas de Catarina II, que procurara atra-lo para So Petersburgo, criou em seu favor uma ctedra de economia poltica.

Beccaria morreu em Milo, em 1794.

PREFCIO DO AUTOR 6r6d2s

A

I. INTRODUO 1st42

AS vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos os seus membros.

No entanto, entre os homens reunidos, nota-se a tendncia contnua de acumular no menor nmero os privilgios, o poder e a felicidade, para s deixar maioria misria e fraqueza.

S com boas leis podem impedir-se tais abusos. Mas, de ordinrio, os homens abandonam a leis provisrias e prudncia do momento o cuidado de regular os negcios mais importantes, quando no os confiam discrio daqueles mesmos cujo interesse oporem-se s melhores instituies e s leis mais sbias.

Alm disso, no seno depois de terem vagado por muito tempo no meio dos erros mais funestos, depois de terem exposto mil vezes a prpria liberdade e a prpria existncia, que, cansados de sofrer, reduzidos aos ltimos extremos, os homens se determinam a remediar os males que os afligem.

Ento, finalmente, abrem os olhos a essas verdades palpveis que, por sua simplicidade mesma, escapam aos espritos vulgares, incapazes de analisar os objetos e acostumados a receber sem exame e sobre palavra todas as impresses que se lhes queiram dar.

Abramos a histria, veremos que as leis, que deveriam ser convenes feitas livremente entre homens livres, no foram, o mais das vezes, seno o instrumento das paixes da minoria, ou o produto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha sabido dirigir todas as aes da sociedade com este nico fim: todo o bem-estar possvel para a maioria.

Felizes as naes (se h algumas) que no esperaram que revolues lentas e vicissitudes incertas fizessem do excesso do mal uma orientao para o bem, e que, mediante leis sbias. apressaram a agem de um para o outro. Como digno de todo o reconhecimento do gnero humano o filsofo (6) que, do fundo do seu retiro obscuro e desprezado, teve a coragem de lanar na sociedade as primeiras sementes por tanto tempo infrutferas das verdades teis!

As verdades filosficas, por toda parte divulgadas atravs da imprensa, revelaram enfim as verdadeiras relaes que unem os soberanos aos sditos e os povos entre si. O comrcio animou-se e entre as naes elevou-se uma guerra industrial, a nica digna dos homens sbios e dos povos policiados.

Mas, se as luzes do nosso sculo j produziram alguns resultados, longe esto de ter dissipado todos os preconceitos que tnhamos. Ningum se levantou, seno frouxamente, contra a barbrie das penas em uso nos nossos tribunais. Ningum se ocupou com reformar a irregularidade dos processos criminais, essa parte da legislao to importante quanto descurada em toda a Europa. Raramente se procurou destruir, em seus fundamentos, as sries de erros acumulados desde vrios sculos; e muito poucas pessoas tentaram reprimir, pela fora das verdades imutveis, os abusos de um poder sem limites, e fazer cessar os exemplos bem freqentes dessa fria atrocidade que os homens poderosos encaram como um dos seus direitos. Entretanto, os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado ignorncia cruel e aos opulentos covardes; os tormentos atrozes que a barbrie inflige por crimes sem provas, ou por delitos quimricos; o aspecto abominvel dos xadrezes e das masmorras, cujo horror ainda aumentado pelo suplcio mais invel para os infelizes, a incerteza; tantos mtodos odiosos, espalhados por toda parte, deveriam ter despertado a ateno dos filsofos, essa espcie de magistrados que dirigem as opinies humanas.

O imortal Montesquieu (7) s ocasionalmente pode abordar essas importantes matrias. Se eu segui as pegadas luminosas desse grande homem, que a verdade uma e a mesma em toda parte. Mas, os que sabem pensar (e somente para estes que escrevo) sabero distinguir meus os dos seus. Sentir-me-ei feliz se, como ele, puder ser objeto do vosso secreto reconhecimento, oh vs, discpulos obscuros e pacficos da razo! Sentir-me-ei feliz se puder excitar alguma vez esse frmito pelo qual as almas sensveis respondem . voz dos defensores da humanidade!

Seria este, talvez, o momento de examinar e distinguir as diferentes espcies de delitos e a maneira de puni-los; mas, o nmero e a variedade dos crimes, segundo as diversas circunstncias de tempo e de lugar, nos lanariam num atalho imenso e fatigante. Contentar-me-ei, pois, com indicar os princpios mais gerais, as faltas mais comuns e os erros mais funestos, evitando igualmente os excessos dos que, por um amor mal entendido da liberdade, procuram introduzir a desordem, e dos que desejariam submeter os homens regularidade. dos claustros.

Mas, qual a origem das penas, e qual o fundamento do direito de punir? Quais sero as punies aplicveis aos diferentes crimes? Ser a pena de morte verdadeiramente til, necessria, indispensvel para a segurana e a boa ordem da sociedade? Sero justos os tormentos e as torturas? Conduziro ao fim que as leis se propem? Quais os melhores meios de prevenir os delitos? Sero as mesmas penas igualmente teis em todos os tempos? Que influncia exercem sobre os costumes?

Todos esses problemas merecem que se procure resolv-los com essa preciso geomtrica que triunfa da destreza dos sofismas, das dvidas tmidas e das sedues da eloqncia.

Sentir-me-ia feliz se no tivesse outro mrito alm do de ter sido o primeiro que apresentou na Itlia, com maior clareza, o que outras naes ousaram escrever e comeam a praticar.

Mas, se, ao sustentar os direitos do gnero humano e da verdade invencvel, contribu para salvar da morte atroz algumas das trmulas vtimas da tirania ou da ignorncia igualmente funesta, as bnos e as lgrimas de um nico inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da felicidade consolar-me-iam do desprezo do resto dos homens.

II. ORIGEM DAS PENAS E DIREITO DE PUNIR 1q2v1t

A MORAL poltica no pode proporcionar sociedade nenhuma vantagem durvel, se no for fundada sobre sentimentos indelveis do corao do homem.

Toda lei que no for estabelecida sobre essa base encontrar sempre uma resistncia qual ser constrangida a ceder. Assim, a menor fora, continuamente aplicada, destri por fim um corpo que parea slido, porque lhe comunicou um movimento violento.

Consultemos, pois, o corao humano; acharemos nele os princpios fundamentais do direito de punir.

Ningum fez gratuitamente o sacrifcio de uma poro de sua liberdade visando unicamente ao bem pblico. Tais quimeras s se encontram nos romances. Cada homem s por seus interesses est ligado s diferentes combinaes polticas deste globo; e cada qual desejaria, se fosse possvel, no estar ligado pelas convenes que obrigam os outros homens. Sendo a multiplicao do gnero humano, embora lenta e pouco considervel, muito superior aos meios que apresentava a natureza estril e abandonada, para satisfazer necessidades que se tornavam cada dia mais numerosas e se cruzavam de mil maneiras, os primeiros homens, at ento selvagens, se viram forados a reunir-se. Formadas algumas sociedades, logo se estabeleceram novas, na necessidade em que se ficou de resistir s primeiras, e assim viveram essas hordas, como tinham feito os indivduos, num contnuo estado de guerra entre si. As leis foram as condies que reuniram os homens, a princpio independentes e isolados sobre a superfcie da terra.

Cansados de s viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conserv-la tornava intil, sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurana. A soma de todas essas pores de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania da nao; e aquele que foi encarregado pelas leis do depsito das liberdades e dos cuidados da istrao foi proclamado o soberano do povo.

No bastava, porm, ter formado esse depsito; era preciso proteg-lo contra as usurpaes de cada particular, pois tal a tendncia do homem para o despotismo, que ele procura sem cessar, no s retirar da massa comum sua poro de liberdade, mas ainda usurpar a dos outros.

Eram necessrios meios sensveis e bastante poderosos para comprimir esse esprito desptico, que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos. Esses meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis.

Disse eu que esses meios tiveram de ser sensveis, porque a experincia fez ver quanto a maioria est longe de adotar princpios estveis de conduta. Nota-se, em todas as partes do mundo fsico e moral, um princpio universal de dissoluo, cuja ao s pode ser obstada nos seus efeitos sobre a sociedade por meios que impressionam imediatamente os sentidos e que se fixam nos espritos, para contrabalanar por impresses vivas a fora das paixes particulares, quase sempre opostas ao bem geral. Qualquer outro meio seria insuficiente. Quando as paixes so vivamente abaladas pelos objetos presentes, os mais sbios discursos, a eloqncia mais arrebatadora, as verdades mais sublimes, no am, para elas, de um freio impotente que logo despedaam.

Por conseguinte, s a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; da resulta que cada um s consente em pr no depsito comum a menor poro possvel dela, isto , precisamente o que era preciso para empenhar os outros em mant-lo na posse do resto.

O conjunto de todas essas pequenas pores de liberdade o fundamento do direito de punir. Todo exerccio do poder que se afastar dessa base abuso e no justia; um poder de fato e no de direito (8); uma usurpao e no mais um poder legtimo.

As penas que ultraam a necessidade de conservar o depsito da salvao pblica so injustas por sua natureza; e tanto mais justas sero quanto mais sagrada e inviolvel for a segurana e maior a liberdade que o soberano conservar aos sditos.

III. CONSEQUNCIAS DESSES PRINCPIOS 193z53

A PRIMEIRA conseqncia desses princpios que s as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais no pode residir seno na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social.

Ora, o magistrado, que tambm faz parte da sociedade, no pode com justia infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que no seja estatuda pela lei; e, do momento em que o juiz mais severo do que a lei, ele injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que j est determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem pblico, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidado.

A segunda conseqncia que o soberano, que representa a prpria sociedade, s pode fazer leis gerais, s quais todos devem submeter-se; no lhe compete, porm, julgar se algum violou essas leis.

Com efeito, no caso de um delito, h duas partes: o soberano, que afirma que o contrato social foi violado, e o acusado, que nega essa violao. preciso, pois, que haja entre ambos um terceiro que decida a contestao. Esse terceiro o magistrado, cujas sentenas devem ser sem apelo e que deve simplesmente pronunciar se h um delito ou se no h.

Em terceiro lugar, mesmo que a atrocidade das mesmas no fosse reprovada pela filosofia, me das virtudes benficas e, por essa razo, esclarecida, que prefere governar homens felizes e livres a dominar covardemente um rebanho de tmidos escravos; mesmo que os castigos cruis no se opusessem diretamente ao bem pblico e ao fim que se lhes atribui, o de impedir os crimes, bastar provar que essa crueldade intil, para que se deva consider-la como odiosa, revoltante, contrria a toda justia e prpria natureza do contrato social.

IV. DA INTERPRETAO DAS LEIS 2n5s1u

RESULTA ainda, dos princpios estabelecidos precedentemente, que os juizes dos crimes no podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela razo mesma de que no so legisladores. Os juizes no receberam as leis como uma tradio domstica, ou como um testamento dos nossos anteados, que aos seus descendentes deixaria apenas a misso de obedecer. Recebem-nas da sociedade viva, ou do soberano, que representante dessa sociedade, como depositrio legtimo do resultado atual da vontade de todos.

No se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na obrigao de executar antigas convenes (9); essas velhas convenes so nulas, pois no puderam ligar vontades que no existiam. No se pode sem injustia exigir sua execuo; seria reduzir os homens a no ar de um vil rebanho sem vontade e sem direitos. As leis emprestam sua fora da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem geral e do juramento formal ou tcito que os cidados vivos voluntariamente fizeram ao rei.

Qual ser, pois o legtimo intrprete das leis? O soberano, isto , o depositrio das vontades atuais de todos; e no o juiz, cujo dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou no um ato contrrio s leis.

O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ao conforme ou no lei; a conseqncia, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocnio a mais, ou se o fizer por conta prpria, tudo se torna incerto e obscuro.

Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que preciso consultar o esprito da lei. Adotar tal axioma romper todos os diques e abandonar as leis torrente das opinies. Essa verdade me parece demonstrada, embora parea um. paradoxo aos espritos vulgares que se impressionam mais fortemente com uma pequena desordem atual do que com conseqncias distantes, mas mil vezes mais funestas, de um s princpio falso estabelecido numa nao.

Todos os nossos conhecimentos, todas as nossas idias se mantm. Quanto mais complicadas, tanto maiores so as suas relaes e resultados.

Cada homem tem sua maneira prpria de ver; e o mesmo homem, em diferentes pocas, v diversamente os mesmos objetos. O esprito de uma lei seria, pois, o resultado da boa ou m lgica de um juiz, de uma digesto fcil ou penosa, da fraqueza do acusado, da violncia das paixes do magistrado, de suas relaes com o ofendido, enfim, de todas as pequenas causas que mudam as aparncias e desnaturam os objetos no esprito inconstante do homem.

Veramos, assim, a sorte de um cidado mudar de face ao ar para outro tribunal, e a vida dos infelizes estaria merc de um falso raciocnio, ou do mau humor do juiz. Veramos o magistrado interpretar apressadamente as leis, segundo as idias vagas e confusas que se apresentassem ao seu esprito. Veramos os mesmos delitos punidos diferentemente, em diferentes tempos, pelo mesmo tribunal, porque, em lugar de escutar a voz constante e invarivel das leis, ele se entregaria instabilidade enganosa das interpretaes arbitrrias.

Podem essas irregularidades funestas ser postas em paralelo com os inconvenientes momentneos que s vezes produz a observao literal das leis?

Talvez esses inconvenientes ageiros obriguem o legislador a fazer, no texto equvoco de uma lei, correes necessrias e fceis. Mas, seguindo a letra da lei, no se ter ao menos que temer esses raciocnios perniciosos, nem essa licena envenenada de tudo explicar de maneira arbitrria e muitas vezes com inteno venal.

Quando as leis forem fixas e literais, quando s confiarem ao magistrado a misso de examinar os atos dos cidados, para decidir se tais atos so conformes ou contrrios lei escrita; quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instrudo, no for um motivo de controvrsia, mas simples questo de fato, ento no mais se vero os cidados submetidos ao jugo de uma multido de pequenos tiranos, tanto mais inveis quanto menor a distncia entre o opressor e o oprimido; tanto mais cruis quanto maior resistncia encontram, porque a crueldade dos tiranos proporcional, no s suas foras, mas aos obstculos que se lhes opem; tanto mais funestos quanto ningum pode livrar-se do seu jugo seno submetendo-se ao despotismo de um s.

Com leis penais executadas letra, cada cidado pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ao reprovvel; e isso til, porque tal conhecimento poder desvi-lo do crime. Gozar com segurana de sua liberdade e dos seus bens; e isso justo, porque esse o fim da reunio dos homens em sociedade. verdade, tambm, que os cidados adquiriro assim um certo esprito de independncia e sero menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude covardia, s fraquezas e s complacncias cegas; estaro, porm, menos submetidos s leis e autoridade dos magistrados.

Tais princpios desagradaro sem dvida aos dspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania que sustentam. Tudo eu poderia recear, se esses pequenos tiranos se lembrassem um dia de ler o meu livro e entend-lo; mas, os tiranos no lem.

V. DA OBSCURIDADE DAS LEIS 681l4h

SE a interpretao arbitrria das leis um mal, tambm o a sua obscuridade, pois precisam ser interpretadas. Esse inconveniente bem maior ainda quando as leis no so escritas em lngua vulgar (10).

Enquanto o texto das leis no for um livro familiar, uma espcie de catecismo, enquanto forem escritas numa lngua morta e ignorada do povo, e enquanto forem solenemente conservadas como misteriosos orculos, o cidado, que no puder julgar por si mesmo as conseqncias que devem ter os seus prprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus bens, ficar na dependncia de um pequeno nmero de homens depositrios e intrpretes das leis.

Colocai o texto sagrado das leis nas mos do povo, e, quanto mais homens houver que o lerem, tanto menos delitos haver; pois no se pode duvidar que no espirito daquele que medita um crime, o conhecimento e a certeza das penas ponham freio eloqncia das paixes.

Que pensar dos homens,, quando se reflete que as leis da maior parte das naes esto escritas em lnguas mortas e que esse costume brbaro ainda subsiste nos pases mais esclarecidos da Europa?

Dessas ltimas reflexes resulta que, sem um corpo de leis escritas, jamais uma sociedade poder tomar uma forma de governo fixo, em que a fora resida no corpo poltico e no nos membros desse corpo; em que as leis no possam alterar-se e destruir-se pelo choque dos interesses particulares, nem reformar-se seno pela vontade geral.

A razo e a experincia fizeram ver quantas tradies humanas se tornam mais duvidosas e mais contestadas, medida que a gente se afasta de sua fonte. Ora, se no existe um momento estvel do pacto social, como resistiro as leis ao movimento sempre vitorioso do tempo e das paixes?

V-se por a, igualmente, a utilidade da imprensa, que pode, s ela, tornar todo o pblico, e no alguns particulares, depositrio do cdigo sagrado das leis.

Foi a imprensa que dissipou esse tenebroso esprito de cabala e de intriga, que, no pode ar a luz e que finge desprezar as cincias somente porque secretamente as teme.

Se agora, na Europa, diminuem esses crimes atrozes que assombravam nossos pais, se samos enfim desse estado de barbrie que tornava nossos anteados ora escravos ora tiranos, imprensa que o devemos.

Os que conhecem a histria de dois ou trs sculos e do nosso podem ver a humanidade, a generosidade, a tolerncia mtua e as mais doces virtudes nasceram no seio do luxo e da indolncia. Quais foram, ao contrrio, as virtudes dessas pocas que, to sem propsitos, se chamam sculos da boa f e da simplicidade antiga?

A humanidade gemia sob o jugo da implacvel superstio; a avareza e a ambio de um pequeno nmero de homens poderosos inundavam de sangue humano os palcios dos grandes e os tronos dos reis. Eram traies secretas e morticnios pblicos. O povo s encontrava na nobreza opressores e tiranos; e os ministros do Evangelho, manchados na carnificina e as mos ainda sangrentas, ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus de misericrdia e de paz.

Os que se levantam contra a pretensa corrupo do grande sculo em que vivemos no acharo ao menos que esse quadro abominvel possa convir-lhe.

VI. DA PRISO 1o702i

OUTORGA-SE, em geral, aos magistrados encarregados de fazer as leis, um direito contrrio ao fim da sociedade, que a segurana pessoal; refiro-me ao direito de prender discricionariamente os cidados, de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frvolos, e, por conseguinte de deixar livres os que eles protegem, mau grado todos os indcios do delito.

Como se tornou to comum um erro to funesto? Embora a priso difira das outras penas, por dever necessariamente preceder a declarao jurdica do delito, nem por isto deixa de ter, como todos os outros gneros de castigos, o carter essencial de que s a lei deve determinar o caso em que preciso empreg-la.

Assim, a lei deve estabelecer, de maneira fixa, por que indcios de delito um acusado pode ser preso e submetido a interrogatrio.

O clamor pblico, a fuga, as confisses particulares, o depoimento de um cmplice do crime, as ameaas que o acusado pode fazer, seu dio inveterado ao ofendido, um corpo de delito existente, e outras presunes semelhantes, bastam para permitir a priso de um cidado. Tais indcios devem, porm, ser especificados de maneira estvel pela lei, e no pelo juiz, cujas sentenas se tornam um atentado liberdade pblica, quando no so simplesmente a aplicao particular de uma mxima geral emanada do cdigo das leis.

medida que as penas forem mais brandas, quando as prises j no forem a horrvel manso do desespero e da fome, quando a piedade e a humanidade penetrarem nas masmorras, quando enfim os executores impiedosos dos rigores da justia abrirem os coraes compaixo, as leis podero contentar-se com indcios mais fracos para ordenar a priso.

A priso no deveria deixar nenhuma nota de infmia sobre o acusado cuja inocncia foi juridicamente reconhecida. Entre os romanos, quantos cidados no vemos, acusados anteriormente de crimes hediondos, mas em seguida reconhecidos inocentes, receberem da venerao do povo os primeiros cargos do Estado? Porque to diferente, em nossos dias, a sorte de um inocente preso?

porque o sistema atual da jurisprudncia criminal apresenta aos nossos espritos a idia da fora e do poder, em lugar da justia; porque se lanam, indistintamente, na mesma masmorra, o inocente suspeito e o criminoso convicto; porque a priso, entre ns, antes um suplcio que um meio de deter um acusado; porque, finalmente, as foras que defendem externamente o trono e os direitos da nao esto separadas das que mantm as leis no interior, quando deveriam estar estreitamente unidas.

Na opinio pblica, as prises militares desonram bem menos do que as prises civis. Se as tropas do Estado, reunidas sob a autoridade das leis comuns, sem contudo dependerem imediatamente dos magistrados, fossem encarregadas da guarda das prises, a mancha de infmia desapareceria ante o aparato e o fausto que acompanham os corpos militares; porque, em geral, a infmia, como tudo o que depende das opinies populares, se liga mais forma do que ao fundo.

Mas, como as leis e os costumes de um povo esto sempre atrasados de vrios sculos em relao s luzes atuais, conservamos ainda a barbrie e as idias ferozes dos caadores do norte, nossos selvagens anteados.

Os nossos costumes e as nossas leis retardatrias esto bem longe das luzes dos povos. Ainda estamos dominados pelos preconceitos brbaros que nos legaram os nossos avs, os brbaros caadores do norte.

VII. DOS INDCIOS DO DELITO E DA FORMA DOS JULGAMENTOS 5d5i1q

EIS um teorema geral, que pode ser muito til para calcular a certeza de um fato e, principalmente, o valor dos indcios de um delito:

Quando as provas de um fato se apoiam todas entre si, isto , quando os indcios do delito no se sustentam seno uns pelos outros, quando a fora de vrias provas depende da verdade de uma s, o nmero dessas provas nada acrescenta nem subtrai probabilidade do fato: merecem pouca considerao, porque, destruindo a nica prova que parece certa, derrubais todas as outras.

Mas, quando as provas so independentes, isto quando cada indcio se prova parte, quanto mais numerosos forem esses indcios, tanto mais provvel ser o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes.

No se irem de ver-me empregar a palavra probabilidade ao tratar de crimes que, para merecerem um castigo, devem ser certos; porque, a rigor, toda certeza moral apenas uma probabilidade, que merece, contudo, ser considerada como uma certeza, quando todo homem de bom senso forado a dar-lhe o seu assentimento, por uma espcie de hbito natural que resulta da necessidade de agir que anterior a toda especulao.

A certeza que se exige para convencer um culpado , pois, a mesma que determina todos os homens nos seus mais importantes negcios.

As provas de um delito podem distinguir-se em provas perfeitas e provas imperfeitas. As provas perfeitas so as que demonstram positivamente que impossvel que o acusado seja inocente. As provas so imperfeitas quando no excluem a possibilidade da inocncia do acusado.

Uma nica prova perfeita suficiente para autorizar a condenao; se se quiser, porm, condenar sobre provas imperfeitas, como cada uma dessas provas no estabelece a impossibilidade da inocncia do acusado, preciso que sejam em nmero muito grande para valerem uma prova perfeita, isto , para provarem todas juntas que impossvel que o acusado no seja culpado.

Acrescentarei ainda que as provas imperfeitas, s quais o acusado nada responde de satisfatrio, embora deva, se inocente, ter meios de justificar-se, se tornam por isso mesmo provas perfeitas.

, todavia, mais fcil sentir essa certeza moral de um delito do que defini-la exatamente. Eis o que me faz encarar como sbia a lei que, em algumas naes, d ao juiz principal assessores que o magistrado no escolheu, mas que a sorte designou livremente; porque ento a ignorncia, que julga por sentimento, est menos sujeita ao erro do que homem instrudo que decide segundo a incerta opinio.

Quando as leis so claras e precisas, o dever do juiz limita-se constatao do fato. Se so necessrias destreza e habilidade na investigao das provas de um delito, se se requerem clareza e preciso na maneira de apresentar o seu resultado, para julgar segundo esse mesmo resultado, basta o simples bom-senso: guia menos enganador do que todo o saber de um juiz acostumado a s procurar culpados por toda parte e levar tudo ao sistema que adotou segundo os seus estudos.

Felizes as naes entre as quais o conhecimento das leis no uma cincia.

Lei sbia e cujos efeitos so sempre felizes a que prescreve que cada um seja julgado por seus iguais; porque, quando se trata da fortuna e da liberdade de um cidado, todos os sentimentos inspirados pela desigualdade devem silenciar. Ora, o desprezo com o qual o homem poderoso olha para a vitima do infortnio, e a indignao que experimenta o homem de condio medocre ao ver o culpado que est acima dele por sua condio, so sentimentos perigosos que no existem nos julgamentos de que falo.

Quando o culpado e o ofendido esto em condies desiguais, os juizes devem ser escolhidos, metade entre os iguais do acusado e metade entre os do ofendido, para contrabalanar assim os interesses pessoais, que modificam, mau grado nosso, as aparncias dos objetos, e para s deixar falar a verdade e as leis.

Igualmente justo que o culpado possa recusar um certo nmero dos juizes que lhe forem suspeitos, e, se o acusado gozar constantemente desse direito, exerc-lo- com reserva; porque de outro modo pareceria condenar-se a si mesmo.

Sejam pblicos os julgamentos; sejam-no tambm as provas do crime: e a opinio, que talvez o nico lao das sociedades, por freio violncia e s paixes. O povo dir: No somos escravos, mas protegidos pelas leis. Esse sentimento de segurana, que inspira a coragem, eqivale a um tributo para o soberano que compreende os seus verdadeiros interesses.

No entrarei em outros pormenores sobre as precaues que exige o estabelecimento dessas espcies de instituies. Para aqueles aos quais necessrio tudo dizer, tudo eu diria inutilmente.

VIII. DAS TESTEMUNHAS 4h2758

IMPORTANTE, em toda boa legislao, determinar de maneira exata o grau de confiana que se deve dar s testemunhas e a natureza das provas necessrias para constatar o delito.

Todo homem razovel, isto , todo homem que p ligao em suas idias e que experimentar as mesmas sensaes que os outros homens, poder ser recebido em testemunho. Mas, a confiana que se lhe der deve medir-se pelo interesse que ele tem de dizer ou no dizer a verdade.

, pois, por motivos frvolos e absurdos que as leis no item em testemunho nem as mulheres, por causa de sua franqueza, nem os condenados, porque estes morreram civilmente, nem as pessoas com nota de infmia, porque, em todos esses casos, uma testemunha pode dizer a verdade, quando no tem nenhum interesse em mentir.

Entre os abusos de palavras que tiveram certa influncia sobre os negcios deste mundo, um dos mais notveis o que faz considerar como nulo o depoimento de um culpado j condenado. Graves jurisconsultos fazem este raciocnio Este homem foi atingido por morte civil; ora, um morto j no capaz de nada... Muitas vtimas se sacrificaram a essa v metfora: e muitas vezes se tem contestado seriamente verdade santa o direito de preferncia sobre as formas judicirias.

Sem dvida, preciso que os depoimentos de um culpado j condenado no possam retardar o curso da justia; mas porque, aps a sentena, no conceder aos interesses da verdade e terrvel situao do culpado alguns instantes ainda, para justificar, se possvel, ou aos seus cmplices ou a si prprio, com depoimentos novos que mudam a natureza do fato?

As formalidades e criteriosas procrastinaes so necessrias nos processos criminais, ou porque no deixam nada arbitrariedade do juiz, ou porque fazem compreender ao povo que os julgamentos so feitos com solenidade e segundo as regras, e no precipitadamente ditados polo interesse; ou, finalmente, porque a maior parte dos homens, escravos do hbito, e mais inclinados a sentir do que raciocinar, fazem assim uma idia mais augusta das funes do magistrado.

A verdade, muitas vezes demasiado simples ou demasiado complicada, tem necessidade de certa pompa exterior para merecer o respeito do povo.

As formalidades, porm, devem ser fixadas, por leis, nos limites em que no possam prejudicar a verdade. De outro modo, seria uma nova fonte de inconvenientes funestos.

Disse eu que se podia itir em testemunho toda pessoa que no tem nenhum interesse em mentir. Deve, pois, conceder-se testemunha mais ou menos confiana, propores do dio ou da amizade que ela tem ao acusado e de outras relaes mais ou menos estreitas que ambos mantenham.

Uma s testemunha no basta porque, negando o acusado o que a testemunha afirma, no h nada de certo e a justia deve ento respeitar o direito que cada um tem de ser julgado inocente (11).

Deve dar-se s testemunhas um crdito tanto mais circunspecto quanto mais atrozes so os crimes e mais inverosmeis as circunstncias. Tais so, por exemplo, as acusaes de magia e as aes gratuitamente cruis. No primeiro caso, melhor acreditar que as testemunhas mentem, porque mais comum ver vrios homens caluniarem de concerto, por dio ou por ignorncia, do que ver um s homem exercer um poder que Deus recusou a todo ser criado.

Da mesma forma, no se deve itir com precipitao a acusao de uma crueldade sem motivos, porque o homem s cruel por interesse, por dio ou por temor. O corao humano incapaz de um sentimento intil; todos os seus sentimentos so o resultado das impresses que os objetos causaram sobre os sentidos.

Deve, igualmente, dar-se menos crdito a um homem que membro de uma ordem, ou de uma casta, ou de uma sociedade particular, cujos costumes e mximas so em geral desconhecidos, ou diferem dos usos comuns, porque, alm de suas prprias paixes, esse homem tem ainda as paixes da sociedade da qual faz parte.

Enfim, os depoimentos das testemunhas devem ser quase nulos, quando se trata de algumas palavras das quais se quer fazer um crime; porque o tom, os gestos e tudo o que precede ou segue as diferentes idias que os homens ligam a suas palavras, alteram e modificam de tal modo os discursos que quase impossvel repeti-los com exatido.

As aes violentas, que constituem os verdadeiros delitos, deixam traos notveis na maioria das circunstncias que as acompanham e efeitos que das mesmas derivam; mas, as palavras no deixam vestgio e s subsistem na memria, quase sempre infiel e muitas vezes influenciadas, dos que as ouviram.

, pois, infinitamente mais fcil fundar uma calnia sobre discursos do que sobre aes, pois o nmero das circunstncias que se alegam para provar as aes fornece ao acusado mais recursos para justificar-se; ao o que um delito de palavras no apresenta, de ordinrio, nenhum meio de justificao.

IX. DAS ACUSAES SECRETAS 2tz5g

AS acusaes secretas so um abuso manifesto, mas consagrado e tornado necessrio em vrios governos, pela fraqueza de sua constituio. Tal uso torna os homens falsos e prfidos. Aquele que suspeita um delator no seu concidado v nele logo um inimigo. Costumam, ento, mascarar-se os prprios sentimentos; e o hbito de ocult-los a outrem faz que cedo sejam dissimulados a si mesmo.

Como os homens que chegaram a esse ponto funesto so dignos de piedade! Desorientados, sem guia e sem princpios estveis, vagam ao acaso no vasto mar da incerteza, preocupados exclusivamente em escapar aos monstros que os ameaam. Um futuro cheio de mil perigos envenena para eles os momentos presentes. Os prazeres durveis da tranqilidade e da segurana lhes so desconhecidos. Se gozaram., apressadamente e na confuso, de alguns instantes de felicidade espalhados aqui e ali sobre o triste curso de sua desgraada vida, bastaro para consol-los de ter vivido?

Ser entre tais homens que encontraremos soldados intrpidos, defensores da ptria e do trono? Acharemos entre eles magistrados incorruptveis, que saibam sustentar e desenvolver os verdadeiros interesses do soberano, com uma eloqncia livre e patritica, que deponham ao mesmo tempo aos ps do monarca os tributos e as bnos de todos os cidados, que levem ao palcio dos grandes e ao humilde teto do pobre a segurana, a paz, a confiana, e que dem ao trabalho e indstria a esperana de uma sorte cada vez mais doce?... sobretudo este ltimo sentimento que reanima os Estados e lhes d uma vida nova.

Quem poder defender-se da calnia, quando esta se arma com o escudo mais slido da tirania: o sigilo?...

Miservel governo aquele em que o soberano suspeita um inimigo em cada sdito e se v forado, para garantir a tranqilidade pblica, a perturbar a de cada cidado!

Quais so, pois, os motivos sobre os quais se apoiam os que justificam as acusaes e as penas secretas? A tranqilidade pblica? A segurana e a manuteno da forma de governo? mister confessar que estranha constituio aquela em que o governo, que tem por si a fora e a opinio, ainda mais poderosa do que a fora, parece todavia temer cada cidado!

Receia-se que o acusador no esteja em segurana? As leis so, ento, insuficientes para defend-lo, e os sditos so mais poderosos do que o soberano e as leis.

Desejar-se-ia salvar o delator da infmia a que se expe? Seria, ento, confessar que se autorizam as calnias secretas, mas que se punem as calnias pblicas.

Apoiar-se-o na natureza do delito? Se o governo for bastante infeliz para considerar como crimes certos atos indiferentes ou mesmo teis ao pblico, ter razo: as acusaes e os julgamentos, nesse caso, jamais seriam bastante secretos.

Pode haver, porm, um delito, isto , uma ofensa sociedade, que no seja do interesse de todos punir publicamente? Respeito todos os governos; no falo de nenhum em particular e sei que h circunstncias em que os abusos parecem de tal modo inerentes constituio de um Estado, que no parece possvel desarraig-los sem destruir o corpo poltico. Mas, se eu tivesse de ditar novas leis em algum canto isolado do universo, minha mo trmula se recusaria a autorizar as acusaes secretas: julgaria ver toda a posteridade responsabilizar-me pelos males atrozes que elas acarretam.

J o disse Montesquieu: as acusaes pblicas so conformes ao esprito do governo republicano, no qual o zelo do bem geral deve ser a primeira paixo dos cidados. Nas monarquias, em que o amor da ptria muito fraco, pela prpria natureza do governo, sbia a instituio de magistrados encarregados de acusar, em nome do pblico, os infratores das leis. Mas, todo governo, republicano ou monrquico, deve infligir ao caluniador a pena que o acusado sofreu, se ele for culpado.

X. DOS INTERROGATRIOS SUGESTIVOS c2r65

NOSSAS leis probem os interrogatrios sugestivos, isto , os que se fazem sobre o fato mesmo do delito; porque, segundo os nossos jurisconsultos, s se deve interrogar sobre a maneira pela qual o crime foi cometido e sobre as circunstncias que o acompanham.

Um juiz no pode, contudo, permitir as questes diretas, que sugiram ao acusado uma resposta imediata. O juiz que interroga, dizem os criminalistas, s deve ir ao fato indiretamente, e nunca em linha reta.

Se se estabeleceu esse mtodo para evitar sugerir ao acusado uma resposta que o salve, ou por que foi considerada coisa monstruosa e contra a natureza um homem acusar-se a si mesmo, qualquer que tenha sido o fim visado com a proibio dos interrogatrios sugestivos, fez-se cair as leis numa contradio bem notria, pois que ao mesmo tempo se autorizou a tortura.

Haver, com efeito, interrogatrio mais sugestivo do que a dor? O celerado robusto, que pode evitar uma pena longa e rigorosa, sofrendo com fora tormentos de um instante, guarda um silncio obstinado e se v absolvido. Mas, a questo arranca ao homem fraco uma confisso pela qual ele se livra da dor presente, que o afeta mais fortemente do que todos os males futuros.

E, se um interrogatrio especial contrrio natureza, obrigando o acusado a acusar-se a si mesmo, no ser ele constrangido a isso mais violentamente pelos tormentos e as convulses da dor? Os homens, porm, se ocupam muito mais, em sua norma de conduta, com a diferena das palavras do que com a das coisas.

Observemos, finalmente, que aquele que se obstina a no responder ao interrogatrio a que submetido merece sofrer uma pena que deve ser fixada pelas leis.

mister que essa pena seja muito pesada; porque o silncio de um criminoso, perante o juiz que o interroga, para a sociedade um escndalo e a justia uma ofensa que cumpre prevenir tanto quanto possvel.

Mas, essa pena particular j no necessria quando o crime j foi constatado e o criminoso convencido, pois nesse caso o interrogatrio se torna intil. Semelhantemente, as confisses do acusado no so necessrias quando provas suficientes demonstraram que ele evidentemente culpado do crime de que se trata. Este ltimo caso o mais ordinrio; e a experincia mostra que, na maior parte dos processos criminais, os culpados negam tudo.

XI. DOS JURAMENTOS 4v264d

OUTRA contradio entre as leis e os sentimentos naturais exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em cal-la. Como se o homem pudesse jurar de boa f que vai contribuir para sua prpria destruio! Como se, o mais das vezes, a voz do interesse no abafasse no corao humano a da religio!

A histria de todos os sculos prova que esse dom sagrado do cu a coisa de que mais se abusa. E como a respeitaro os celerados, se ela diariamente ultrajada pelos homens considerados mais sbios e mais virtuosos?

Os motivos que a religio ope ao temor dos tormentos e ao amor vida so quase sempre fracos demais, porque no impressionam os sentidos. As coisas do cu esto submetidas a leis inteiramente diversas das da terra. Porque comprometer essas leis umas com as outras? Porque colocar o homem na atroz alternativa de ofender a Deus, ou perder-se? E no deixar ao acusado seno a escolha de ser mau cristo ou mrtir do juramento. Destri-se dessa forma toda a fora dos sentimentos religiosos, nico apoio da honestidade no corao da maior parte dos homens; e pouco a pouco os juramentos no so mais do que uma simples formalidade sem conseqncias.

Consulte-se a experincia e se reconhecer que os juramentos so inteis, pois no h juiz que no convenha que jamais o juramento faz o acusado dizer a verdade.

A razo faz ver que assim deve ser, porque todas as leis opostas aos sentimentos naturais do homem so vs e conseguintemente funestas.

Tais leis podem ser comparadas a um dique que se elevasse diretamente no meio das guas de um rio para interromper-lhe o curso: ou o dique imediatamente derrubado pela torrente que o leva, ou se forma debaixo dele um abismo que o mina e o destri insensivelmente.

XII. DA QUESTO OU TORTURA 515s3r

uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele a confisso do crime, quer para esclarecer as contradies em que caiu, quer para descobrir os cmplices ou outros crimes de que no acusado, mas do qual poderia ser culpado, quer enfim porque sofistas incompreensveis pretenderam que a tortura purgava a infmia.

Um homem no pode ser considerado culpado antes da sentena do juiz; e a sociedade s lhe pode retirar a proteo pblica depois que ele se convenceu de ter violado as condies com as quais estivera de acordo. O direito da fora s pode, pois, autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidado quando ainda se duvida se ele inocente ou culpado.

Eis uma proposio bem simples: ou o delito certo, ou incerto. Se certo, s deve ser punido com a pena fixada pela lei, e a tortura intil, pois j no se tem necessidade das confisses do acusado. Se o delito incerto, no hediondo atormentar um inocente? Com efeito, perante as leis, inocente aquele cujo delito no se provou.

Qual o fim poltico dos castigos? o terror que imprimem nos coraes inclinados ao crime.

Mas, que se deve pensar das torturas, esses suplcios secretos que a tirania emprega na obscuridade das prises e que se reservam tanto ao inocente como ao culpado?

Importa que nenhum delito conhecido fique impune; mas, nem sempre til descobrir o autor de um delito encoberto nas trevas da incerteza.

Um crime j cometido, para o qual j no h remdio, s pode ser punido pela sociedade poltica para impedir que os outros homens cometam outros semelhantes pela esperana da impunidade. Se verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo temor ou pela virtude, se provvel que um cidado prefira segui-las a viol-las, o juiz que ordena a tortura expe-se constantemente a atormentar inocentes.

Direi ainda que monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade residisse nos msculos e nas fibras do infeliz! A lei que autoriza a tortura uma lei que diz: "Homens, resisti dor. A natureza vos deu um amor invencvel ao vosso ser, e o direito inalienvel de vos defenderdes; mas, eu quero criar em vs um sentimento inteiramente contrrio; quero inspirar-vos um dio de vs mesmos; ordeno-vos que vos tomeis vossos prprios acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que vos quebraro os ossos e vos dilacerao os msculos... "

Esse meio infame de descobrir a verdade um monumento da brbara legislao dos nossos anteados, que honravam com o nome de julgamentos de Deus as provas de fogo, as da gua fervendo e a sorte incerta dos combates. Como se os elos dessa corrente eterna, cuja origem est no seio da Divindade, pudessem desunir-se ou romper-se a cada instante, ao sabor dos caprichos e das frvolas instituies dos homens!

A nica diferena existente entre a tortura e as provas de fogo que a tortura s prova o crime quando o acusado quer confessar, ao o que as provas queimantes deixavam uma marca exterior, considerada como prova do crime.

Todavia, essa diferena mais aparente do que real. O acusado to capaz de no confessar o que se exige dele quanto o era outrora de impedir, sem fraude, os efeitos do fogo e da gua fervendo.

Todos os atos da nossa vontade so proporcionais fora das impresses sensveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem limitada. Ora, se a impresso da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma, ela no deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que exercer seno tomar, no momento, a via mais curta para evitar os tormentos atuais.

Dessa forma, o acusado j no pode deixar de responder, pois no poderia escapar s impresses do fogo e da gua.

O inocente exclamar, ento, que culpado, para fazer cessar torturas que j no pode ar; e o mesmo meio empregado para distinguir o inocente do criminoso far desaparecer toda diferena entre ambos.

A tortura muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado robusto. esse, de ordinrio, o resultado terrvel dessa barbrie que se julga capaz de produzir a verdade, desse uso digno dos canibais, e que os romanos, mau grado a dureza dos seus costumes, reservavam exclusivamente aos escravos, vtimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado.

De dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados, aquele que for mais corajoso e mais robusto ser absolvido; o mais fraco, porm, ser condenado em virtude deste raciocnio: "Eu, juiz, preciso encontrar um culpado. Tu, que s vigoroso, soubeste resistir dor, e por isso eu te absolvo. Tu, que s fraco, cedeste fora dos tormentos; portanto, eu te condeno. Bem sei que uma confisso arrancada pela violncia da tortura no tem valor algum; mais, se no confirmares agora o que confessaste, far-te-ei atormentar de novo".

O resultado da questo depende, pois, de temperamento e de clculo, que varia em cada homem na proporo de sua fora e sensibilidade; de maneira que, para prever o resultado da tortura, bastaria resolver o problema seguinte, mais digno de um matemtico do que de um juiz: "Conhecidas a fora dos msculos e a sensibilidade das fibras de um acusado, achar o grau de dor que o obrigar a confessar-se culpado de determinado crime".

Interrogam um acusado para conhecer a verdade; mas, se to dificilmente a distinguem no ar, nos gestos e na fisionomia de um homem tranqilo, como a descobriro nos traos descompostos pelas convulses da dor, quando todos os sinais, que traem s vezes a verdade na fronte dos culpados, estiverem alterados e confundidos?

Toda ao violenta faz desaparecer as pequenas diferenas dos movimentos pelos quais se distingue, s vezes, a verdade da mentira.

Resulta ainda do uso das torturas uma conseqncia bastante notvel: que o inocente se acha numa posio pior que a do culpado. Com efeito, o inocente submetido questo tem tudo contra si: ou ser condenado, se confessar o crime que no cometeu, ou ser absolvido, mas depois de sofrer tormentos que no mereceu.

O culpado, ao contrrio, tem por si um conjunto favorvel: ser absolvido se ar a tortura com firmeza, e evitar os suplcios de que foi ameaado, sofrendo uma pena muito mais leve. Assim, o inocente tem tudo que perder, o culpado s pode ganhar.

Essas verdades so sentidas, afinal, embora confusamente, pelos prprios legisladores; mas, nem por isso suprimiram a tortura. Limitam-se a achar que as confisses do acusado pelos tormentos so nulas se no forem em seguida confirmadas pelo juramento. Se, porm, recusar-se a confirm-las, ser torturado de novo.

Em alguns pases e segundo certos jurisconsultos, essas odiosas violncias no so permitidas mais do que trs vezes; em outros, porm, e segundo outros doutores, o direito de torturar fica inteiramente discrio do juiz.

E intil fundamentar essas reflexes com os inumerveis exemplos de inocentes que se confessaram culpados no meio de torturas. No h povo, no h sculo que no possa citar os seus.

Os homens so sempre os mesmos: vem as coisas presentes sem preocupar-se com as conseqncias. No h homem que, elevando suas idias alm das primeiras necessidades da vida, no tenha ouvido a voz interior da natureza cham-lo a si e no tenha sido tentado a se lanar de novo nos braos dela. Mas, o uso, esse tirano das almas vulgares, o comprime e o retm no erro.

O segundo motivo, pelo qual se submete questo um homem que se supe culpado, a esperana de esclarecer as contradies em que ele caiu nos interrogatrios que o fizeram sofrer. Mas, o medo do suplcio, a incerteza do julgamento que vai ser pronunciado, a solenidade dos processos, a majestade do juiz, a prpria ignorncia, igualmente comum maior parte dos acusados inocentes ou culpados, so outras tantas razes para fazer cair em contradio, no s a inocncia que treme como o crime que procura ocultar-se.

Poder-se-ia crer que as contradies, to ordinrias no homem, ainda mesmo quando este tem o esprito tranqilo, no se multiplicaro nesses momentos de perturbao, nos quais a idia de escapar a um perigo iminente absorve toda a alma?

Em terceiro lugar, submeter um acusado tortura, para descobrir se ele culpado de outros crimes alm daquele de que acusado, fazer este odioso raciocnio: "Tu s culpado de um delito; , pois, possvel que tenhas cometido cem outros. Essa suspeita me preocupa; quero certificar-me; vou empregar minha prova de verdade. As leis te faro sofrer pelos crimes que cometeste, pelos que poderias cometer e por aqueles dos quais eu quero considerar-te culpado".

Aplica-se igualmente a questo a um acusado para descobrir os seus cmplices. Mas, se est provado que a tortura no nada menos do que um meio certo de descobrir a verdade, como far ela conhecer os cmplices, quando esse conhecimento uma das verdades que se procuram?

E certo que aquele que se acusa a si mesmo mais facilmente acusar a outrem.

Alm disso, ser justo atormentar um homem pelos crimes de outro homem? No podem descobrir-se os cmplices pelos interrogatrios do acusado e das testemunhas, pelo exame das provas e do corpo de delito, em suma, por todos os meios empregados para constatar o delito?

Os cmplices fogem quase sempre, logo que o companheiro preso. S a incerteza da sorte que os espera condena-os ao exlio e livra a sociedade dos novos atentados que poderia recear deles; ao o que o suplcio do culpado que ela tem nas mos amedronta os outros homens e os desvia do crime, sendo esse o nico fim dos castigos.

A pretensa necessidade de purgar a infmia ainda um dos absurdos motivos do uso das torturas. Um homem declarado infame pelas leis se torna puro porque confessa o crime enquanto lhe quebram os ossos? Poder a dor, que uma sensao, destruir a infmia, que uma combinao moral? Ser a tortura um cadinho e a infmia um corpo misto que deponha nele tudo o que tem de impuro?

Em verdade, abusos to ridculos no deveriam ser tolerados no sculo XVIII.

A infmia no um sentimento sujeito s leis ou regulado pela razo. obra exclusiva da opinio. Ora, como a tortura torna infame aquele que a sofre, absurdo que se queira lavar desse modo a infmia com a prpria infmia.

No difcil remontar a origem dessa lei estranha, porque os absurdos adotados por uma nao inteira se apoiam sempre em outras idias estabelecidas e respeitadas nessa mesma nao. O uso de purgar a infmia pela tortura parece ter sua fonte nas prticas da religio, que tanta influncia exerce sobre o esprito dos homens de todos os pases e de todos os tempos. A f nos ensina que as ndoas contradas pela fraqueza humana, quando no mereceram a clera eterna do Ser supremo, so purificadas em outro mundo por um fogo incompreensvel. Ora, a infmia uma ndoa civil; e, uma vez que a dor e o fogo do purgatrio apagam as manchas espirituais, porque os tormentos da questo no tirariam a ndoa civil da infmia?

Creio que se pode dar uma origem mais ou menos semelhante ao uso que observam certos tribunais de exigir as confisses do culpado como essenciais para sua condenao. Tal uso parece tirado do misterioso tribunal da penitncia, no qual a confisso dos pecados parte necessria dos sacramentos.

E dessa forma que os homens abusam das luzes da revelao; e, como essas luzes so as nicas que iluminam os sculos da ignorncia, a elas que a dcil humanidade recorreu em todas as ocasies, mas para fazer as aplicaes mais falsas e mais infelizes.

A solidez dos princpios que expusemos neste captulo era conhecida dos legisladores romanos, que s submetiam tortura os escravos, espcie de homens sem direito algum e sem nenhuma parte nas vantagens da sociedade civil. Esses princpios foram adotados na Inglaterra, nao que prova a excelncia de suas leis pelos seus progressos nas cincias, pela superioridade do seu comrcio, pela extenso de suas riquezas, por seu poder e por freqentes exemplos de coragem e de virtude poltica.

A Sucia, igualmente convencida da injustia da tortura, j no permite o seu uso. Esse infame costume foi abolido por um dos mais sbios monarcas da Europa (12), que elevou a filosofia ao trono e que, legislador benvolo, amigo dos sditos, os tornou iguais e livres sob a dependncia das leis; nica liberdade que homens razoveis podem esperar da sociedade; nica igualdade que esta pode itir.

Enfim, as leis militares no itiram a tortura; e, se esta pudesse existir em alguma parte, seria sem dvida nos exrcitos, compostos em grande parte da escria das naes.

Coisa espantosa para quem no refletiu sobre a tirania do uso! So homens endurecidos nos morticnios e familiarizados com o sangue que do aos legisladores de um povo em paz o exemplo de julgar os homens com mais humanidade!

XIII. DA DURAO DO PROCESSO E DA PRESCRIO

QUANDO o delito constatado e as provas so certas, justo conceder ao acusado o tempo e os meios de justificar-se, se lhe for possvel; preciso, porm, que esse tempo seja bastante curto para no retardar demais o castigo que deve seguir de perto o crime, se se quiser que o mesmo seja um freio til contra os celerados.

Um mal entendido amor da humanidade poder condenar logo essa presteza, a qual, porm, ser aprovada pelos que tiverem refletido sobre os perigos mltiplos que as extremas procrastinaes da legislao fazem correr inocncia.

Cabe exclusivamente s leis fixar o espao de tempo que se deve empregar para a investigao das provas do delito, e o que se deve conceder ao acusado para sua defesa. Se o juiz tivesse esse direito, estaria exercendo as funes do legislador.

Quando se trata desses crimes atrozes cuja memria subsiste por muito tempo entre os homens, se os mesmos forem provados, no deve haver nenhuma prescrio em favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga. No esse, todavia, o caso dos delitos ignorados e pouco considerveis: mister fixar um tempo aps o qual o acusado, bastante punido pelo exlio voluntrio, possa reaparecer sem recear novos castigos.

Com efeito, a obscuridade que envolveu por muito tempo o delito diminui muito a necessidade do exemplo, e permite devolver ao cidado sua condio e seus direitos com o poder de torn-lo melhor.

S posso indicar aqui princpios gerais. Para fazer sua aplicao precisa, mister considerar a legislao existente, os usos do pas, as circunstncias. Limito-me a acrescentar que, para um povo que reconhecesse as vantagens das penas moderadas, se as leis abreviassem ou prolongassem a durao dos processos e o tempo da prescrio segundo a gravidade do delito, se a priso provisria e o exlio voluntrio fossem contados como uma parte da pena merecida pelo culpado, chegar-se-ia a estabelecer assim uma justa progresso de castigos suaves para um grande nmero de delitos.

Mas, o tempo que se emprega na investigao das provas e o que fixa a prescrio no devem ser prolongados em razo da gravidade do crime que se persegue, porque, enquanto um crime no est provado, quanto mais atroz, menos verossmil ele. Ser preciso, pois, s vezes, reduzir o tempo dos processos e aumentar o que se exige para a prescrio.

Esse princpio parece, primeira vista, contraditrio em relao ao que estabeleci mais acima, e segundo o qual podem aplicar-se penas iguais para crimes diferentes, considerando como partes do castigo o exlio voluntrio ou a priso que precedeu a sentena. Procurarei explicar-me com mais clareza.

Podem distinguir-se duas espcies de delitos. A primeira a dos crimes atrozes, que comea pelo homicdio e que compreende toda a progresso dos mais horrveis assassnios. Incluiremos na segunda espcie os delitos menos hediondos do que o homicdio.

Essa distino tirada da natureza. A segurana das pessoas um direito natural; a segurana dos bens um direito da sociedade. H bem poucos motivos capazes de levar o homem a abafar no corao o sentimento natural da compaixo que o desvia do assassnio. Mas, como cada um vido de buscar o seu bem-estar, como o direito de propriedade no est gravado nos coraes, sendo simples obra das convenes sociais, h uma poro de motivos que induzem os homens a violar tais convenes.

Se se quiser estabelecer regras de probabilidade para essas duas espcies de delitos, preciso coloc-las sobre bases diferentes. Nos grandes crimes, pela razo mesma de que so mais raros, deve diminuir-se a durao da instruo e do processo, porque a inocncia do acusado mais provvel do que o crime. Deve-se, porm, prolongar o tempo da prescrio.

Por esse meio, que acelera a sentena definitiva, tira-se aos maus a esperana de uma impunidade tanto mais perigosa quanto maiores so os crimes.

Ao contrrio, nos delitos menos considerveis e mais comuns, preciso prolongar o tempo dos processos, porque a inocncia do acusado menos provvel, e diminuir o tempo fixado para a prescrio, porque a impunidade menos perigosa.

mister, igualmente, notar que, se no se atender a isso, essa diferena de processo entre as duas espcies de delitos pode dar ao criminoso a esperana da impunidade, esperana tanto mais fundada quanto o crime for mais hediondo e, portanto, mais verossmil. Observemos, porm, que um acusado solto por falta de provas no nem absolvido nem condenado; que pode ser preso de novo pelo mesmo crime e submetido a novo exame, se se descobrirem novos indcios do seu delito antes de terminar o tempo fixado para a prescrio, segundo o crime cometido.

Tal , pelo menos ao meu ver, o critrio que se poderia seguir para preservar ao mesmo tempo a segurana dos cidados e a sua liberdade, sem favorecer uma em detrimento da outra. Esses dois bens so igualmente patrimnio inalienvel de todos os cidados; e ambos esto cercados de perigos quando a segurana individual abandonada ao capricho de um dspota e quando a liberdade protegida pela desordem tumultuosa.

Cometem-se na sociedade certos crimes que so ao mesmo tempo comuns e difceis de constatar. Desde ento, pois quase impossvel provar tais crimes, a inocncia provvel perante a lei. E, como a esperana da impunidade contribui pouco para multiplicar essas espcies de delitos, que tm todos causas diferentes, a impunidade raramente perigosa. Nesse caso, podem, pois, diminuir-se igualmente o tempo dos processos e o da prescrio.

Mas, segundo os princpios aceitos, principalmente para os crimes difceis de provar, como o adultrio, a pederastia, que se item arbitrariamente as presunes, as conjecturas, as semiprovas, como se um homem pudesse ser semi-inocente ou semi-culpado, e merecer ser semi-absolvido ou semi-punido!

sobretudo nesse gnero de delitos que se exercem as crueldades da tortura sobre o acusado, sobre as testemunhas, sobre a famlia inteira do infeliz de quem se suspeita, segundo as odiosas lies de alguns criminalistas, que escreveram, com fria barbrie, compilaes de iniqidades que ousam apresentar como regras aos magistrados e como leis s naes.

Quando se reflete sobre todas essas coisas, -se forado a reconhecer com amargura que a razo quase nunca tem sido consultada nas leis que se deram aos povos. Os crimes mais hediondos, os delitos mais obscuros e mais quimricos, e portanto os mais inverossmeis, so precisamente os que se consideram constatados sobre simples conjecturas e indcios menos slidos e mais equvocos. Dizer-se-ia que as leis e o magistrado s tm interesse em descobrir um crime, e no em procurar a verdade; e que o legislador no v que se expe constantemente ao risco de condenar um inocente, pronunciando-se sobre crimes inverossmeis ou mal provados.

maioria dos homens falta essa energia que produz igualmente as grandes aes e os grandes crimes, e que traz quase sempre juntas as virtudes magnnimas e os crimes monstruosos, nos Estados que s se mantm pela atividade do governo, pelo orgulho nacional e pelo concurso das paixes pelo bem pblico.

Quanto s naes cujo poderio consolidado e constantemente sustentado por boas leis, as paixes enfraquecidas parecem mais capazes de manter a forma de governo estabelecida do que de melhor-la. Da resulta uma conseqncia importante: que os grandes crimes nem sempre so a prova da decadncia de um povo.

XIV. DOS CRIMES COMEADOS; DOS CMPLICES; DA IMPUNIDADE

SE BEM que as leis no possam punir a inteno, no menos verdadeira que uma ao que seja o comeo de um delito e que prova a vontade de comet-lo, merece um castigo, mas menos grande do que o que seria aplicado se o crime tivesse sido cometido.

Esse castigo necessrio, porque importante prevenir mesmo as primeiras tentativas dos crimes. Mas, como pode haver um intervalo entre a tentativa de um delito e a sua execuo, justo reservar uma pena maior ao crime consumado, para deixar quele que apenas comeou o crime alguns motivos que o impeam de acab-lo.

Deve seguir-se a mesma gradao nas penas, em relao aos cmplices, se estes no foram todos executantes imediatos.

Quando vrios homens se unem para enfrentar um perigo comum, quanto maior o perigo, tanto mais procuraro torn-lo igual para todos. Se as leis punissem mais severamente os executantes do crime do que os simples cmplices, seria mais difcil aos que meditam um atentado encontrar entre eles um homem que quisesse execut-lo, porque o risco seria maior, em virtude da diferena das penas. H, contudo, um caso em que a gente deve afastar-se da regra que formulamos, e quando o executante do crime recebeu dos cmplices uma recompensa particular; como a diferena do risco foi compensada pela diferena das vantagens, o castigo deve ser igual.

Se tais reflexes parecerem um tanto rebuscadas, reflita-se que importantssimo que as leis deixem aos cmplices da m ao o mnimo de meios possvel para que se ponham de acordo.

Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cmplice de um grande crime que trair os seus companheiros. Esse expediente apresenta certas vantagens; mas, no est isento de perigos, de vez que a sociedade autoriza desse modo a traio, que repugna aos prprios celerados. Ela introduz os crimes de covardia, bem mais funestos do que os crimes de energia e de coragem, porque a coragem pouco comum e espera apenas uma fora benfazeja que a dirija para o bem pblico, ao o que a covardia, muito mais geral, um contgio que infecta rapidamente todas as almas.

O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra que se pode encobrir esse crime, pois que ele no o conhece; e as leis descobrem-lhe a fraqueza, implorando o socorro do prprio celerado que as violou.

Por outro lado, a esperana da impunidade, para o cmplice que trai, pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando v crimes cometidos sem conhecer os culpados.

Esse uso mostra ainda aos cidados que aquele que infringe as leis, isto , as convenes pblicas, j no fiel s convenes particulares.

Parece-me que uma lei geral, que prometesse a impunidade a todo cmplice que revela um crime, seria prefervel a uma declarao especial num caso particular: preveniria a unio dos maus, pelo temor recproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos perigos; e os tribunais j no veriam os celerados encorajados pela idia de que h casos em que se pode ter necessidade deles. De resto, seria preciso acrescentar aos dispositivos dessa lei que a impunidade traria consigo o banimento do delator.

, porm, em vo que procuro abafar os remorsos que me afligem, quando autorizo as santas leis, fiadoras sagradas da confiana pblica, base respeitvel dos costumes, a proteger a perfdia, a legitimar a traio. E que oprbrio para uma nao, se os seus magistrados, tornados infiis, faltassem promessa que fizeram e se apoiassem vergonhosamente em vs sutilezas, para levar ao suplcio aquele que respondeu ao convite das leis!...

Esses monstruosos exemplos no so raros; eis porque tanta gente s v na sociedade poltica uma mquina complicada, na qual os mais hbeis ou os mais poderosos governam as molas ao seu capricho.

Eis tambm o que multiplica esses homens frios, insensveis a tudo o que encanta as almas ternas, que s experimentam sensaes calculadas e que, todavia, sabem excitar nos outros os sentimentos mais caros e as paixes mais fortes, quando estas so teis aos seus projetos; semelhantes ao msico hbil que, sem nada sentir ele prprio, tira do instrumento que domina sons tocantes. ou terrveis.

XV. DA MODERAO DAS PENAS 86452

AS VERDADES at aqui expostas demonstram evidncia que o fim das penas no pode ser atormentar um ser sensvel, nem fazer que um crime no cometido seja cometido.

Como pode um corpo poltico, que, longe de se entregar s paixes, deve ocupar-se exclusivamente com pr um freio nos particulares, exercer crueldades inteis e empregar o instrumento do furor, do fanatismo e da covardia dos tiranos? Podero os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do ado, que no volta mais, uma ao j cometida? No. Os castigos tm por fim nico impedir o culpado de ser nocivo futuramente sociedade e desviar seus concidados da senda do crime.

Entre as penas, e na maneira de aplic-las proporcionalmente aos delitos, mister, pois, escolher os meios que devem causar no esprito pblico a impresso mais eficaz e mais durvel, e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado.

Quem no estremece de horror ao ver na histria tantos tormentos atrozes e inteis, inventados e empregados friamente por monstros que se davam o nome de sbios? Quem poderia deixar de tremer at ao fundo da alma, ao ver os milhares de infelizes que o desespero fora a retomar a vida selvagem, para escapar a males inveis causados ou tolerados por essas leis injustas que sempre acorrentaram e ultrajaram a multido, para favorecer unicamente um pequeno nmero de homens privilegiados?

Mas, a superstio e a tirania os perseguem; acusam-nos de crimes impossveis ou imaginrios; ou ento so culpados, mas somente de terem sido fiis s leis da natureza. No importa! Homens dotados dos mesmos sentidos e sujeitos s mesmas paixes se comprazem em julg-los criminosos, tm prazer em seus tormentos, dilaceram-nos com solenidade, aplicam-lhes torturas e os entregam ao espetculo de uma multido fantica que goza lentamente com suas dores.

Quanto mais atrozes forem os castigos, tanto mais audacioso ser o culpado para evit-los. Acumular os crimes, para subtrair-se pena merecida pelo primeiro.

Os pases e os sculos em que os suplcios mais atrozes foram postos em prtica, so tambm aqueles em que se viram os crimes mais horrveis. O mesmo esprito de ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador, punha o punhal nas mos do assassino e do parricida. Do alto do trono, o soberano dominava com uma verga de ferro; e os escravos s imolavam os tiranos para possurem novos.

medida que os suplcios se tornam mais cruis, a alma, semelhante aos fluidos que se pem sempre ao nvel dos objetos que os cercam, endurece-se pelo espetculo renovado da barbrie. A gente se habitua aos suplcios horrveis; e, depois de cem anos de crueldades multiplicadas, as paixes, sempre ativas, so menos refreadas pela roda e pela fora do que antes o eram pela priso.

Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar, basta que o mal que causa ultrae o bem que o culpado retirou do crime. Devem contar-se ainda como parte do castigo os terrores que precedem a execuo e a perda das vantagens que o crime devia produzir. Toda severidade que ultrae os limites se torna suprflua e, por conseguinte, tirnica.

Os males que os homens conhecem por funesta experincia regularo melhor a sua conduta do que aqueles que eles ignoram. Suponde duas naes entre aquelas em que as penas so proporcionais aos delitos. Sendo a escravido perptua o maior castigo em uma, e o suplcio o maior em outra, certo que essas duas penas inspiraro em cada uma igual terror.

E, se houvesse uma razo para transportar para o primeiro povo os castigos mais rigorosos estabelecidos no segundo, a mesma razo conduziria a aumentar para este a crueldade dos suplcios, ando insensivelmente do uso da roda para tormentos mais lentos e mais requintados, em suma, para o ltimo refinamento da cincia dos tiranos.

A crueldade das penas produz ainda dois resultados funestos, contrrios ao fim do seu estabelecimento, que prevenir o crime.

Em primeiro lugar, muito difcil estabelecer uma justa proporo entre os delitos e as penas; porque, embora uma crueldade industriosa tenha. multiplicado as espcies de tormentos, nenhum suplcio pode ultraar o ltimo grau da fora humana, limitada pela sensibilidade e a organizao do corpo do homem. Alm desses limites, se surgirem crimes mais hediondos, onde se encontraro penas bastante cruis?

Em segundo lugar, os suplcios mais horrveis podem acarretar s vezes a impunidade. A energia da natureza humana circunscrita no mal como no bem. Espetculos demasiado brbaros s podem ser o resultado dos furores ageiros de um tirano, e no ser sustentados por um sistema constante de legislao. Se as leis so cruis, ou logo sero modificadas, ou no mais podero vigorar e deixaro o crime impune.

Termino por esta reflexo: que o rigor das penas deve ser relativo ao estado atual da nao. So necessrias impresses fortes e sensveis para impressionar o esprito grosseiro de um povo que sai do estado selvagem. Para abater o leo furioso, necessrio o raio, cujo rudo s faz irrit-lo. Mas, medida que as almas se abrandam no estado de sociedade, o homem se torna mais sensvel; e, se se quiser conservar as mesmas relaes entre o objeto e a sensao, as penas devem ser menos rigorosas.

XVI. DA PENA DE MORTE 725e57

ANTE o espetculo dessa profuso de suplcios que jamais tornaram os homens melhores, eu quero examinar se a pena de morte verdadeiramente til e se justa num governo sbio.

Quem poderia ter dado a homens o direito de degolar seus semelhantes? Esse direito no tem certamente a mesma origem que as leis que protegem.

A soberania e as leis no so mais do que a soma das pequenas pores de liberdade que cada um cedeu sociedade. Representam a vontade geral, resultado da unio das vontades particulares. Mas, quem j pensou em dar a outros homens o direito de tirar-lhe a vida? Ser o caso de supor que, no sacrifcio que faz de uma pequena parte de sua liberdade, tenha cada indivduo querido arriscar a prpria existncia, o mais precioso de todos os bens?

Se assim fosse, como conciliar esse princpio com a mxima que probe o suicdio? Ou o homem tem o direito de se matar, ou no pode ceder esse direito a outrem nem sociedade inteira. A pena de morte no se apoia, assim, em nenhum direito. uma guerra declarada a um cidado pela nao, que julga a destruio desse cidado necessria ou til. Se eu provar, porm, que a morte no til nem necessria, terei ganho a causa da humanidade.

A morte de um cidado s pode ser encarada como necessria por dois motivos: nos momentos de confuso em que uma nao fica na alternativa de recuperar ou de perder sua liberdade, nas pocas de confuso, em que as leis so substitudas pela desordem, e quando um cidado, embora privado de sua liberdade, pode ainda, por suas relaes e seu crdito, atentar contra a segurana pblica, podendo sua existncia produzir uma revoluo perigosa no governo estabelecido.

Mas, sob o reino tranqilo das leis, sob uma forma de governo aprovada pela nao inteira, num Estado bem defendido no exterior e sustentado no interior pela fora e pela opinio talvez mais poderosa do que a prpria fora, num pas em que a autoridade exercida pelo prprio soberano, em que as riquezas s podem, proporcionar prazeres e no poder, no pode haver nenhuma necessidade de tirar a vida a um cidado, a menos que a morte seja o nico freio capaz de impedir novos crimes.

A experincia de todos os sculos prova que a pena de morte nunca deteve celerados determinados a fazer mal. Essa verdade se apoia no exemplo dos romanos e nos vinte anos do reinado da imperatriz da Rssia, a benfeitora Izabel (13), que deu aos chefes dos povos uma lio mais ilustre do que todas as brilhantes conquistas que a ptria s alcana ao preo do sangue dos seus filhos.

Se os homens, a quem a linguagem da razo sempre suspeita e que s se rendem autoridade dos antigos usos, se recusam evidncia dessas verdades, bastar-lhes- interrogar a natureza e consultar o prprio corao para testemunhar os princpios que acabam de ser estabelecidos.

O rigor do castigo causa menos efeito sobre o esprito humano do que a durao da pena, porque a nossa sensibilidade mais fcil e mais constantemente afetada por uma impresso ligeira, mas freqente, do que por um abalo violento, mas ageiro. Todo ser sensvel est submetido ao imprio do hbito; e, como este que ensina o homem a falar, a andar, a satisfazer suas necessidades, tambm ele que grava no corao do homem as idias de moral por impresses repetidas.

O espetculo atroz, mas momentneo, da morte de um celerado para o crime um freio menos poderoso do que o longo e contnuo exemplo de um homem privado de sua liberdade, tornado at certo ponto uma besta de carga e que repara com trabalhos penosos o dano que causou sociedade. Essa volta freqente do espectador a si mesmo: "Se eu cometesse um crime, estaria reduzido toda a minha vida a essa miservel condio", - essa idia terrvel assombraria mais fortemente os espritos do que o medo da morte, que se v apenas um instante numa obscura distncia que lhe enfraquece o horror.

A impresso produzida pela viso dos suplcios no pode resistir ao do tempo e das paixes, que logo apagam da memria dos homens as coisas mais essenciais.

Por via de regra, as paixes violentas surpreendem vivamente, mas o seu efeito no dura. Produziro uma dessas revolues sbitas que fazem de repente de um homem comum um romano ou um espartano. Mas, num governo tranqilo e livre, so necessrias menos paixes violentas do que impresses durveis.

Para a maioria dos que assistem execuo de um criminoso, o suplcio deste apenas um espetculo; para a minoria, um objeto de piedade mesclado de indignao. Esses dois sentimentos ocupam a alma do espectador, bem mais do que o terror salutar que o fim da pena de morte. Mas, as penas moderadas e contnuas s produzem nos espectadores o sentimento do medo.

No primeiro caso, sucede ao espectador do suplcio o mesmo que ao espectador do drama; e, assim como o avaro retorna ao seu cofre, o homem violento e injusto retorna s suas injustias.

O legislador deve, por conseguinte, pr limites ao rigor das penas, quando o suplcio no se torna mais do que um espetculo e parece ordenado mais para ocupar a fora do que para punir o crime.

Para que uma pena seja justa, deve ter apenas o grau de rigor bastante para desviar os homens do crime. Ora, no h homem que possa vacilar entre o crime, mau grado a vantagem que este prometa, e o risco de perder para sempre a liberdade.

Assim, pois, a escravido perptua, substituindo a pena de morte, tem todo o rigor necessrio para afastar do crime o esprito mais determinado. Digo mais: encara-se muitas vezes a morte de modo tranqilo e firme, uns por fanatismo, outros por essa vaidade que nos acompanha mesmo alm do tmulo. Alguns, desesperados, fatigados da vida, vem na morte um meio de se livrar da misria. Mas, o fanatismo e a vaidade desaparecem nas cadeias, sob os golpes, em meio s barras de ferro. O desespero no lhes pe fim aos males, mas os comea.

Nossa alma resiste mais violncia das dores extremas, apenas ageiras, do que ao tempo e continuidade do desgosto. Todas as foras da alma, reunindo-se contra males ageiros, podem enfraquecer-lhes a ao; mas, todas as suas molas acabam por ceder a penas longas e constantes.

Numa nao em que a pena de morte empregada, foroso, para cada exemplo que se d, um novo crime; ao o que a escravido perptua de um nico culpado pe sob os olhos do povo um exemplo que subsiste sempre, e se repete.

Se mister que os homens tenham sempre sob os olhos os efeitos do poder das leis, preciso que os suplcios sejam freqentes, e desde ento preciso tambm que os crimes se multipliquem; o que provar que a pena de morte no causa toda a impresso que deveria produzir, e que intil quando julgada necessria.

Dir-se- que a escravido perptua tambm uma pena rigorosa e, por conseguinte, to cruel quanto a morte. Responderei que, reunindo num ponto todos os momentos infelizes da vida de um escravo, sua vida seria talvez mais horrvel do que os suplcios mais atrozes; mas, esses momentos ficam espalhados por todo o curso da vida, ao o que a pena de morte exerce todas as suas foras num s instante.

A vantagem da pena da escravido para a sociedade que amedronta mais aquele que a testemunha do que quem a sofre, porque o primeiro considera a soma de todos os momentos infelizes, ao o que o segundo se alheia de suas penas futuras, pelo sentimento da infelicidade presente.

A imaginao aumenta todos os males. Aquele que sofre encontra em sua alma, endurecida pelo hbito da desgraa, consolaes e recursos que as testemunhas dos seus males no conhecem, porque julgam segundo sua sensibilidade do momento.

somente por uma boa educao que se aprende a desenvolver e a dirigir os sentimentos do prprio corao. Mas, embora os celerados no possam perceber os seus princpios, nem por isso deixam de agir segundo um certo raciocnio. Ora, eis mais ou menos, como raciocina um assassino ou um ladro, que s se afasta do crime pelo medo do poder ou da roda:

"Quais so, afinal, as leis que devo respeitar e que deixam to grande intervalo entre mim e o rico? O homem opulento recusa-me com dureza a pequena esmola que lhe peo e me manda para o trabalho, que eu jamais conheci. Quem fez essas leis? Homens ricos e poderosos, que jamais se dignaram de visitar a miservel choupana do pobre, que no viram repartir um po grosseiro aos seus pobres filhos famintos e sua me desolada. Rompamos as convenes, vantajosas somente para alguns tiranos covardes, mas funestas para a maioria. Ataquemos a injustia em sua fonte. Sim retornarei ao meu estado de independncia natural, viverei livre, provarei por algum tempo os frutos felizes da minha astcia e da minha coragem. frente de alguns homens determinados como eu, corrigirei os enganos da fortuna e verei meus tiranos tremer e empalidecer quando virem aquele que o seu fausto insolente punha abaixo dos cavalos e dos ces. Talvez venha uma poca de dor e de arrependimento, mas essa poca ser curta; e por um dia de sofrimento, terei gozado vrios anos de liberdade e de prazeres".

Se a religio se apresentar ento ao esprito desse infeliz, no o intimidar; diminuir mesmo aos seus olhos o horror do ltimo suplcio, oferecendo-lhe a esperana de um arrependimento fcil e da felicidade eterna que seu fruto. Mas aquele que tem diante dos olhos um grande nmero de anos, ou mesmo a vida inteira que ar na escravido e na dor, exposto ao desprezo dos seus concidados, dos quais fora um igual, escravo dessas leis pelas quais era protegido, faz uma comparao til de todos os males, do xito incerto do crime e do pouco tempo que ter para gozar.

O exemplo sempre presente dos infelizes que ele v vtimas da imprudncia impressiona-o muito mais do que os suplcios, que podem endurec-lo, mas no corrigi-lo.

A pena de morte ainda funesta sociedade, pelos exemplos de crueldade que d aos homens.

Se as paixes ou a necessidade da guerra ensinam a espalhar o sangue humano, as leis, cujo fim suavizar os costumes, deveriam multiplicar essa barbaria, tanto mais horrvel quanto d a morte com mais aparato e formalidades?

No absurdo que as leis, que so a expresso da vontade geral, que detestam e punem o homicdio, ordenem um morticnio pblico, para desviar os cidados do assassnio?

Quais so as leis mais justas e mais teis? So as que todos proporiam e desejariam observar, nesses momentos em que o interesse particular se cala ou se identifica com o interesse pblico.

Qual o sentimento geral sobre a pena de morte? Est traado em caracteres indelveis nesses movimentos de indignao e de desprezo que nos inspira a simples viso do carrasco, que no contudo seno o executor inocente da vontade pblica, um cidado honesto que contribui para o bem geral e que defende a segurana do Estado no interior, como o soldado, a defende no exterior.

Qual , pois, a origem dessa contradio? E porque esse sentimento de horror resiste a todos os esforos da razo? que, numa parte recndita da nossa alma, na qual os princpios naturais ainda no foram alterados, descobrimos um sentimento que nos grita que um homem no tem nenhum direito legtimo sobre a vida de outro homem, e que s a necessidade, que estende por toda parte o seu cetro de ferro, pode dispor da nossa existncia.

Que se deve pensar ao ver o sbio magistrado e os ministros sagrados da justia fazer arrastar um culpado morte, com cerimnia, com tranqilidade, com indiferena? E, enquanto o infeliz espera o golpe fatal, por entre convulses e angstias, o juiz que acaba de o condenar deixa friamente o tribunal para ir provar em paz as douras e os prazeres da vida, e talvez louvar-se, com secreta complacncia, pela autoridade que acaba de exercer. No ser o caso de dizer que essas leis so apenas a mscara da tirania, que essas formalidades cruis e refletidas da justia so simplesmente um pretexto para imolar-nos com mais confiana, como vtimas sacrificadas ao despotismo insacivel?

O assassnio, que nos aparece como um crime horrvel, ns o vemos cometer friamente e sem remorso. No poderemos autorizar-nos com esse exemplo? Pintavam-nos a morte violenta como uma cena terrvel, e apenas questo de um momento. Ser menos ainda para aquele que tiver coragem de ir-lhe ao encontro e de poupar-se desse modo tudo o que ela tem de doloroso. Tais so os tristes e funestos raciocnios que perdem uma cabea j disposta ao crime, um esprito mais capaz de se deixar conduzir pelos abusos da religio do que pela religio mesma.

A histria dos homens um imenso oceano de erros, no qual se v sobrenadar uma ou outra verdade mal conhecida. No me oponham, pois, o exemplo da maior parte das naes, que, em quase todos os tempos, aplicaram a pena de morte contra certos crimes; esses exemplos nenhuma fora tm contra a verdade que sempre tempo de reconhecer. Nesse caso, aprovar-se-iam os sacrifcios humanos, porque estiveram geralmente em uso entre todos os povos primitivos.

Mas, se descubro alguns povos que se abstiveram, mesmo durante um curto espao de tempo do emprego da pena de morte, posso prevalecer-me disso com razo; pois o destino das grandes verdades no brilhar seno com a durao do relmpago, no meio da longa noite de trevas que envolve o gnero humano.

Ainda no chegaram os dias felizes em que a verdade eliminar o erro e se tornar apangio de maioria, em que o gnero humano no ser iluminado somente pelas verdades reveladas.

Sinto quanto a voz fraca de um filsofo ser facilmente abafada pelos gritos tumultuosos dos fanticos escravos do preconceito. Mas, o pequeno nmero de sbios espalhados pela superfcie da terra saber entender-me; seu corao aprovar meus esforos; e se, mau grado todos os obstculos que a afastam do trono, a verdade pudesse penetrar at aos ouvidos dos prncipes, saibam eles que essa verdade lhes leva os votos secretos da humanidade inteira; saibam que, se protegerem a verdade santa, sua glria ofuscar a dos mais famosos conquistadores e a eqitativa posteridade colocar seus nomes acima dos Titos (14), dos Antoninos (15) e dos Trajanos (16).

Feliz o gnero humano, se, pela primeira vez, recebesse leis! Hoje, que vemos elevados nos tronos da Europa prncipes benfeitores, amigos das virtudes pacficas, protetores das cincias e das artes, pais dos seus povos, e cidados coroados; quando esses prncipes, consolidando sua autoridades, trabalham para a felicidade dos seus sditos, quando destroem esse despotismo intermedirio, tanto mais cruel quanto menos solidamente estabelecido, quando comprimem os tiranos subalternos que interceptam os votos do povo e os impedem de chegar at ao trono, onde seriam escutados; quando se considera que, se tais prncipes deixam subsistir leis defeituosas, porque so premidos pela extrema dificuldade de destruir erros acreditados por uma longa srie de sculos e protegidos por um certo nmero de homens interessados que punem: todo cidado esclarecido deve desejar com ardor que o poder desses soberanos ainda aumente e se torne bastante grande para permitir-lhes a reforma de uma legislao funesta.

XVII. DO BANIMENTO E DAS CONFISCAES 3i6u5n

AQUELE que perturba a tranqilidade pblica, que no obedece s leis, que viola as condies sob as quais os homens se sustentam e se defendem mutuamente, esse deve ser excludo da sociedade, isto , banido.

Parece-me que se poderiam banir aqueles que, acusados de um crime atroz, so suspeitos de culpa com maior verossimilhana, mas sem estar plenamente convencidos do crime.

Em casos semelhantes, seria mister que uma lei, a menos arbitrria e a mais precisa possvel, condenasse ao banimento aquele que pusesse a nao na fatal alternativa de fazer uma injustia ou de temer um acusado. Seria mister, igualmente, que essa lei deixasse ao banido o direito sagrado de poder a todo instante provar sua inocncia e recuperar os seus direitos. Seria mister, enfim, que houvesse razes mais fortes para banir um cidado acusado pela primeira vez do que para condenar a essa pena um estrangeiro ou um homem que j tivesse sido chamado justia.

Mas, deve aquele que se bane, que se exclui para sempre da sociedade de que fazia parte, ser ao mesmo tempo privado dos seus bens? Essa questo pode ser encarada sob diferentes aspectos.

A perda dos bens uma pena maior que a do banimento. Deve, pois, haver casos em que, para proporcionar a pena ao crime, se confiscaro todos os bens do banido. Em outras circunstncias, s ser despojado de uma parte de sua fortuna; e, para certos delitos, o banimento no ser acompanhado de nenhuma confiscao. O culpado poder perder todos os seus bens, se a lei que pronuncia o banimento declara rompidos todos os laos que o ligavam sociedade; porque desde ento o cidado est morto, resta somente o homem; e, perante a sociedade, a morte poltica de um cidado deve ter as mesmas conseqncias que a morte natural.

Segundo essa mxima, dir-se- talvez que evidente que os bens do culpado deveriam reverter para os herdeiros legtimos, e no para o prncipe; no nisso, porm, que me apoiarei para desaprovar as confiscaes.

Se alguns jurisconsultos sustentaram que as confiscaes punham um freio s vinganas dos particulares banidos, tirando-lhes o poder de ser nocivos, que no refletiram que no basta uma pena produzir algum bem para ser justa. Uma pena s justa quando necessria. Um legislador no autorizar nunca uma injustia til, se quer prevenir as invases da tirania, que vela sem cessar, que seduz e abusa pelo pretexto falaz de algumas vantagens momentneas, e que faz deperecer em pranto e na misria um povo cuja runa prepara, para espalhar a abundncia e a felicidade sobre uma minoria de homens privilegiados.

O uso das confiscaes pe continuamente a prmio a cabea do infeliz sem defesa, e faz o inocente sofrer os castigos reservados aos culpados. Pior ainda, as confiscaes podem fazer do homem de bem um criminoso, pois o levam ao crime, reduzindo-o indigncia e ao desespero.

E, alm disso, no h espetculo mais hediondo que o de uma famlia inteira coberta de infmia, mergulhada nos horrores da misria pelo crime do seu chefe, crime que essa famlia, submetida autoridade do culpado, no poderia prevenir, mesmo que tivesse os meios para tanto.

XVIII. DA INFMIA 4q1r72

A INFMIA um sinal da improbao pblica, que priva o culpado da considerao, da confiana que a sociedade tinha nele e dessa espcie de fraternidade que une os cidados de um mesmo pas.

Como os efeitos da infmia no dependem absolutamente das leis, mister que a vergonha que a lei inflige se baseie na moral, ou na opinio pblica. Se se tentasse manchar de infmia uma ao que a opinio no julga infame, ou a lei deixaria de ser respeitada, ou as idias aceitas de probidade e de morai desapareceriam, mau grado todas as declamaes dos moralistas, sempre impotentes contra a fora do exemplo.

Declarar infames aes indiferentes em si mesmas, diminuir a infmia das que efetivamente merecem ser designadas desse modo.

Bem necessrio evitar que se punam com penas corporais e dolorosas certos delitos fundados no orgulho e que fazem dos castigos uma glria. Tal o fanatismo, que s pode ser reprimido pelo ridculo e pela vergonha.

Se se humilhar orgulhosa vaidade dos fanticos perante uma grande multido de espectadores, devem esperar-se felizes efeitos dessa pena, pois que a prpria verdade tem necessidade dos maiores esforos para se defender, quando atacada pela arma do ridculo.

Opondo assim a fora fora e a opinio opinio, um legislador esclarecido dissipa no esprito do povo a irao que lhe causa um falso princpio, cujo absurdo lhe foi dissimulado com raciocnios especiosos.

As penas infamantes devem ser raras, porque o emprego demasiado freqente do poder da opinio enfraquece a fora da prpria opinio. A infmia no deve cair to pouco sobre um grande nmero de pessoas ao mesmo tempo, porque a infmia de um grande nmero no mais, em breve, a infmia de ningum.

Tais so os meios de harmonizar as relaes invariveis das coisas e de atender natureza, que, sempre ativa e jamais sujeita aos limites do tempo, destri e revoga todas as leis que se afastam dela. No s nas belas-artes que preciso seguir fielmente a natureza: as instituies polticas, ao menos aquelas que tm um carter de sabedoria e elementos de durao, se fundam na natureza; e a verdadeira poltica no outra coisa seno a arte de dirigir para o mesmo fim de utilidade os sentimentos imutveis do homem.

XIX. DA PUBLICIDADE E DA PRESTEZA DAS PENAS 42r3g

QUANTO mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito, tanto mais justa e til ela ser. Mais justa. porque poupar ao acusado os cruis tormentos da, incerteza, tormentos suprfluos, cujo horror aumenta para ele na razo da fora de imaginao e do sentimento de fraqueza.

A presteza do julgamento justa ainda porque, a perda da liberdade sendo j uma pena, esta s deve preceder a condenao na estrita medida que a necessidade o exige.

Se a priso apenas um meio de deter um cidado at que ele seja julgado culpado, como esse meio aflitivo e cruel, deve-se, tanto quanto possvel, suavizar-lhe o rigor e a durao. Um cidado detido s deve ficar na priso o tempo necessrio para a instruo do processo; e os mais antigos detidos tm direito de ser julgados em primeiro lugar.

O acusado no deve ser encerrado seno na medida em que for necessrio para o impedir de fugir ou de ocultar as provas do crime. O processo mesmo deve ser conduzido sem protelaes. Que contraste hediondo entre a indolncia de um juiz e a angstia de um acusado! De um lado, um magistrado insensvel, que a os dias no bem-estar e nos prazeres, e de outro um infeliz que definha, a chorar no fundo de uma masmorra abominvel.

Os efeitos do castigo que se segue ao crime devem ser em geral impressionantes e sensveis para os que o testemunharam; haver, porm, necessidade de que esse castigo seja to cruel para quem o sofre? Quando os homens se reuniram em sociedade, foi para s se sujeitarem aos mnimos males possveis; e no h pas que possa negar esse princpio incontestvel.

Eu disse que a presteza da pena til; e certo que, quanto menos tempo decorrer entre o delito e a pena, tanto mais os espritos ficaro compenetrados da idia de que no h crimes sem castigo; tanto mais se habituaro a considerar o crime como a causa da qual o castigo o efeito necessrio e inseparvel.

a ligao das idias que sustenta todo o edifcio do entendimento humano. Sem ela, o prazer e a dor seriam sentimentos isolados, sem efeito, to cedo esquecidos quanto sentidos. Os homens sem idias gerais e princpios universais, isto , os homens ignorantes e embrutecidos, no agem seno segundo as idias mais vizinhas e mais imediatamente unidas. Negligenciam as relaes distantes, e essas idias complicadas, que s se apresentam ao homem fortemente apaixonado por um objeto, ou aos espritos esclarecidos. A luz da ateno dissipa no homem apaixonado as trevas que cercam o vulgar. O homem instrudo, acostumado a percorrer e a comparar rapidamente um grande nmero de idias e de sentimentos opostos, tira do contraste um resultado que constitui a base de sua conduta, desde ento menos incerta e menos perigosa.

, pois, da maior importncia punir prontamente um crime cometido, se se quiser que, no esprito grosseiro do vulgo, a pintura sedutora das vantagens de uma ao criminosa desperte imediatamente a idia de um castigo inevitvel. Uma pena por demais retardada torna menos estreita a unio dessas duas idias: crime e castigo. Se o suplcio de um acusado causa ento alguma impresso, e somente como espetculo, pois s se apresenta ao espectador quando o horror do crime, que contribui para fortificar o horror da pena, j est enfraquecido nos espritos.

Poder-se-ia ainda estreitar mais a ligao das idias de crime e de castigo, dando pena toda a conformidade possvel com a natureza do delito, a fim de que o receio de um castigo especial afaste o esprito do caminho a que conduzia a perspectiva de um crime vantajoso. preciso que a idia do suplcio esteja sempre presente no corao do homem fraco e domine o sentimento que o leva ao crime.

Entre vrios povos, punem-se os crimes pouco considerveis com a priso ou com a escravido num pas distante, isto , manda-se o culpado levar um exemplo intil a uma sociedade que ele no ofendeu.

Como os homens no se entregam, a princpio, aos maiores crimes, a maior parte dos que assistem ao suplcio de um celerado, acusado de algum crime monstruoso, no experimentam nenhum sentimento de terror ao verem um castigo que jamais imaginam poder merecer. Ao contrrio, a punio pblica dos pequenos delitos mais comuns causar-lhe- na alma uma impresso salutar que os afastar de grandes crimes, desviando-os primeiro dos que o so menos.

XX. QUE O CASTIGO DEVE SER INEVITVEL. - DAS GRAAS 1d5i5d

NO o rigor do suplcio que previne os crimes com mais segurana, mas a certeza do castigo, o zelo vigilante do magistrado e essa severidade inflexvel que s uma virtude no juiz quando as leis so brandas. A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitvel causar sempre uma forte impresso mais forte do que o vago temor de um suplcio terrvel, em relao ao qual se apresenta alguma esperana de impunidade.

O homem treme idia dos menores males, quando v a impossibilidade de evit-los; ao o que a esperana, doce filha do cu, que tantas vezes nos proporciona todos os bens, afasta sempre a idia dos tormentos mais cruis, por pouco que ela seja sustentada pelo exemplo da impunidade, que a fraqueza ou o amor do ouro to freqentemente concede.

As vezes, a gente se abstm de punir um delito pouco importante, quando o ofendido perdoa. um ato de benevolncia, mas um ato contrrio ao bem pblico. Um particular pode bem no exigir a reparao do mal que se lhe fez; mas, o perdo que ele concede no pode destruir a necessidade do exemplo.

O direito de punir no pertence a nenhum cidado em particular; pertence s leis, que so o rgo da vontade de todos. Um cidado ofendido pode renunciar sua poro desse direito, mas no tem nenhum poder sobre a dos outros.

Quando as penas se tiverem tornado menos cruis, a demncia e o perdo sero menos necessrios. Feliz a nao que no mais lhes desse o nome de virtudes! A demncia, que se tem visto em alguns soberanos substituir outras qualidades que lhes faltavam para cumprir os deveres do trono, deveria ser banida de uma legislao sbia na qual as penas fossem brandas e a justia feita com formas prontas e regulares.

Essa verdade parecer dura apenas aos que vivem submetidos aos abusos de uma jurisprudncia criminal que concede a graa e o perdo necessrios em razo mesmo da atrocidade das penas e do absurdo das leis.

O direito de conceder graa sem dvida a mais bela prerrogativa do trono; o mais precioso atributo do poder soberano; mas, ao mesmo tempo, uma improbao tcita das leis existentes. O soberano que se ocupa com a felicidade pblica e que julga contribuir para ela exercendo o direito de conceder graa, eleva-se ento contra o cdigo criminal, consagrado, mau grado seus vcios, pelos preconceitos antigos, pelo calhamao impostor dos comentadores, pelo grave aparelho das velhas formalidades, enfim, pelo sufrgio dos semi-sbios, sempre mais insinuantes e mais escutados do que os verdadeiros sbios.

Sendo a clemncia virtude do legislador e no do executor das leis, devendo manifestar-se no Cdigo e no em julgamentos particulares, se se deixar ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo nem sempre a sua conseqncia necessria, nutre-se neles a esperana da impunidade; faz-se com que aceitem os suplcios no como atos de justia, mas como atos de violncia.

Quando o soberano concede graa a um criminoso, no ser o caso de dizer que sacrifica a segurana pblica de um particular e que, por um ato de cega benevolncia, pronuncia um decreto geral de impunidade?

Sejam, pois, as leis inexorveis, sejam os executores das leis inflexveis; seja, porm, o legislador indulgente e humano. Arquiteto prudente, d por base ao seu edifcio o amor que todo homem tem ao prprio bem-estar, e saiba fazer resultar o bem geral do concurso dos interesses particulares; no se ver, assim, constrangido a recorrer a leis imperfeitas, a meios pouco refletidos que separam a cada instante os interesses da sociedade dos cidados; no ser forado a elevar sobre o medo e a desconfiana o simulacro da felicidade pblica. Filsofo profundo e sensvel, ter deixado aos seus irmos o gozo pacfico da pequena poro de felicidade que o Ser supremo lhes concedeu nesta terra, que no mais do que um ponto no meio de todos os mundos.

XXI. DOS ASILOS 64416r

SERO justos os asilos? E ser til o uso estabelecido entre as naes de permutarem entre si os criminosos?

Em toda a extenso de um Estado poltico, no deve haver nenhum lugar fora da dependncia das leis. A fora destas deve seguir o cidado por toda a parte, como a sombra segue o corpo.

H pouca diferena entre a impunidade e os asilos; e, como o melhor meio de impedir o crime a perspectiva de um castigo certo e inevitvel, os asilos, que representam um abrigo contra a ao das leis, convidam mais ao crime do que as penas o evitam, do momento em que se tem a esperana de evit-los.

Multiplicar os asilos formar pequenas soberanias, porque, quando as leis no tm poder, novas potncias se formam de ordem comum, estabelece-se um esprito oposto ao do corpo inteiro da sociedade.

V-se, na histria de todos os povos, que os asilos foram a fonte de grandes revolues nos Estados e nas opinies humanas.

Pretenderam alguns que, cometido um crime num lugar, isto , um ato contrrio s leis, teriam estas em toda parte o direito de punir. Ser a qualidade de sdito, nesse caso, um carter indelvel? Ser o nome de sdito pior que o de escravo? E itir-se- que um homem habite um pas e seja submetido s leis de outro pas? que suas aes fiquem ao mesmo tempo subordinadas a dois soberanos e a duas legislaes muitas vezes contraditrias?

Ousou-se dizer, assim, que um crime cometido em Constantinopla podia ser punido em Paris, porque aquele que ofende uma sociedade humana merece ter todos os homens por inimigos e deve ser objeto da execrao universal. No entanto, os juizes no so vingadores do gnero humano em geral; so os defensores das convenes particulares que ligam entre si um certo nmero de homens. Um crime s deve ser punido no pas onde foi cometido, porque somente a, e no em outra parte, que os homens so forados a reparar, pelo exemplo da pena, os funestos efeitos que o exemplo do crime pode produzir.

Um celerado, cujos crimes precedentes no puderam violar as leis de uma sociedade da qual no era membro, pode bem ser temido e expulso dessa sociedade; mas, as leis no podem infligir-lhe outra pena, pois so feitas somente para punir o mal que lhe feito, e no o crime que no as ofende.

Ser, pois, til que as naes permutem reciprocamente entre si os criminosos? Certamente, a persuaso de no encontrar nenhum lugar na terra em que o crime possa ficar impune seria um meio bem eficaz de preveni-lo. No ousarei, porm, decidir essa questo, at que as leis, tornando-se mais conformes aos sentimentos naturais do homem, com penas mais brandas, impedindo o arbtrio dos juizes e da opinio, assegurem a inocncia e preservem a virtude das perseguies da inveja; at que a tirania, relegada ao Oriente, tenha deixado a Europa sob o doce imprio da razo, dessa razo eterna que une com um lao indissolvel os interesses dos soberanos aos interesses dos povos.

XXII. DO USO DE PR A CABEA A PRMIO 5t1f5r

SER vantajoso para a sociedade pr a prmio a cabea de um criminoso, armar cada cidado de um punhal e fazer assim outros tantos carrascos?

Ou o criminoso saiu do pas, ou ainda est nele. No primeiro caso, excitam-se os cidados a cometer um assassnio, a atingir talvez um inocente, a merecer suplcios. Faz-se uma injria nao estrangeira, espezinha-se-lhe a autoridade, autoriza-se que se faam semelhantes usurpaes entre os prprios vizinhos.

Se o criminoso ainda est no pas cujas leis violou, o governo que pe sua cabea a prmio revela fraqueza. Quando a gente tem fora para defender-se no compra o socorro de outrem.

Alm disso, o uso de pr a prmio a cabea de um cidado anula todas as idias de moral e de virtude, to fracas e to abaladas no esprito humano. De um lado, as leis punem a traio; de outro, autorizam-na. O legislador aperta com uma das mos os laos de sangue e de amizade, e com a outra recompensa aquele que os quebra. Sempre em contradio consigo mesmo, ora procura espalhar a confiana e animar os que duvidam, ora semeia a desconfiana em todos os coraes. Para prevenir um crime, faz nascer cem.

Semelhantes usos s convm s naes fracas, cujas leis s servem para sustentar por um momento um edifcio de runas que todo se esboroa.

Mas, medida que as luzes de uma nao se difundem, a boa f e a confiana recproca se tornam necessrias, e a poltica , enfim, constrangida a iti-las. Ento, desmancham-se e previnem-se mais facilmente as cabalas, os artifcios, as manobras obscuras e indiretas. Ento, tambm, o interesse geral sai sempre vencedor dos interesses particulares.

Os povos esclarecidos poderiam buscar lies em alguns sculos de ignorncia, nos quais a moral particular era sustentada pela moral pblica.

As naes s sero felizes quando a s moral estiver estreitamente ligada poltica. Mas, leis que recompensam a traio, que acendem entre os cidados uma guerra clandestina, que excitam suspeitas recprocas, opor-se-o sempre a essa unio to necessria da poltica e da moral; unio que daria aos homens segurana e paz, que lhes aliviaria a misria e que traria s naes mais, longos intervalos de repouso e concrdia do que aqueles de que at ao presente gozaram.

XXIII. QUE AS PENAS DEVEM SER PROPORCIONADAS AOS DELITOS 341d4r

O INTERESSE de todos no somente que se cometam poucos crimes, mais ainda que os delitos mais funestos sociedade sejam os mais raros. Os meios que a legislao emprega para impedir os crimes devem, pois, ser mais fortes medida que o delito mais contrrio ao bem pblico e pode tornar-se mais comum. Deve. pois, haver uma proporo entre os delitos e as penas.

Se o prazer e a dor so os dois grandes motores dos seres sensveis; se, entre os motivos que determinam os homens em todas as suas aes, o supremo Legislador colocou como os mais poderosos as recompensas e as penas; se dois crimes que atingem desigualmente a sociedade recebem o mesmo castigo, o homem inclinado ao crime, no tendo que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso, decidir-se- mais facilmente pelo delito que lhe seja mais vantajosos; e a distribuio desigual das penas produzir a contradio, to notria quando freqente, de que as leis tero de punir os crimes que tiveram feito nascer.

Se se estabelece um mesmo castigo, a pena de morte por exemplo, para quem mata um faiso e para quem mata um homem ou falsifica um escrito importante, em breve no se far mais nenhuma diferena entre esses delitos; destruir-se-o no corao do homem os sentimentos morais, obra de muitos sculos, cimentada por ondas de sangue, estabelecida com lentido atravs mil obstculos, edifcio que s se pode elevar com o socorro dos mais sublimes motivos e o aparato das mais solenes formalidades.

Seria em vo que se tentaria prevenir todos os abusos que se originam da fermentao contnua das paixes humanas; esses abusos crescem em razo da populao e do choque dos interesses particulares, que impossvel dirigir em linha reta para o bem pblico. No se pode provar essa assero com toda a exatido matemtica; pode-se, porm, apoi-la com exemplos notveis.

Lanai os olhos sobre a histria, e vereis crescerem os abusos medida que os imprios aumentam. Ora, como o esprito nacional se enfraquece na mesma proporo, o pendor para o crime crescer em razo da vantagem que cada um descobre no abuso mesmo; e a necessidade de agravar as penas seguir necessariamente igual progresso.

Semelhante gravitao dos corpos, uma fora secreta impele-nos sempre para o nosso bem estar. Essa impulso s enfraquecida pelos obstculos que as leis lhe opem. Todos os diversos atos do homem so efeitos dessa tendncia interior. As penas so os obstculos polticos que impedem os funestos efeitos do choque dos interesses pessoais, sem destruir-lhes a causa, que o amor de si mesmo, inseparvel da humanidade.

O legislador deve ser um arquiteto hbil, que saiba ao mesmo tempo empregar todas as foras que podem contribuir para consolidar o edifcio e enfraquecer todas as que possam arruin-lo.

Supondo-se a necessidade da reunio dos homens em sociedade, mediante convenes estabelecidas pelos interesses opostos de cada particular, achar-se- um progresso de crimes, dos quais o maior ser aquele que tende destruio da prpria sociedade. Os menores delitos sero as pequenas ofensas feitas aos particulares. Entre esses dois extremos estaro compreendidos todos os atos opostos ao bem pblico, desde o mais criminoso at ao menos vel de culpa.

Se os clculos exatos pudessem aplicar-se a todas as combinaes obscuras que fazem os homens agir, seria mister procurar e fixar uma progresso de penas correspondente progresso dos crimes. O quadro dessas duas progresses seria a medida da liberdade ou da escravido da humanidade ou da maldade de cada nao.

Bastar, contudo, que o legislador sbio estabelea divises principais na distribuio das penas proporcionadas aos delitos e que, sobretudo, no aplique os menores castigos aos maiores crimes.

XXIV. DA MEDIDA DOS DELITOS 2l5w

J observamos que a verdadeira medida dos delitos o dano causado sociedade. Eis a uma dessas verdades que, embora evidentes para o esprito menos perspicaz, mas ocultas por um concurso singular de circunstncias, s so conhecidas de um pequeno nmero de pensadores em todos os pases e em todos os sculos cujas leis conhecemos.

As opinies espalhadas pelos dspotas e as paixes dos tiranos abafaram as noes simples e as idias naturais que constituam sem dvida a filosofia das sociedades primitivas. Mas, se a tirania comprimiu a natureza por uma ao insensvel, ou por impresses violentas sobre os espritos da multido, hoje, enfim, as luzes do nosso sculo dissipam os tenebrosos projetos do despotismo, reconduzindo-nos aos princpios da filosofia e mostrando-no-los com mais certeza.

Esperemos que a funesta experincia dos sculos ados no seja perdida e que os princpios naturais reapaream entre os homens, mau grado todos os obstculos que se lhes opem.

A grandeza do crime no depende da inteno de quem o comete, como erroneamente o julgaram alguns: porque a inteno do acusado depende das impresses causadas pelos objetos presentes e das disposies precedentes da alma. Esses sentimentos variam em todos os homens e no mesmo indivduo, com a rpida sucesso das idias, das paixes e das circunstncias.

Se se punisse a inteno, seria preciso ter no s um Cdigo particular para cada cidado, mas uma nova lei penal para cada crime.

Muitas vezes, com a melhor das intenes, um cidado faz sociedade os maiores males, ao o que um outro lhe presta grandes servios com a vontade de prejudicar.

Outros jurisconsultos medem a gravidade do crime pela dignidade da pessoa ofendida, de preferncia ao mal que possa causar sociedade. Se esse mtodo fosse aceito, uma pequena irreverncia para com o Ser supremo mereceria uma pena bem mais severa do que o assassnio de um monarca, pois a superioridade da natureza divina compensaria infinitamente a diferena da ofensa.

Outros, finalmente, julgaram o delito tanto mais grave quanto maior a ofensa, Divindade. Sentir-se- facilmente quanto essa opinio falsa, se se examinarem com sangue-frio as verdadeiras relaes que unem os homens entre si e as que existem entre o homem e Deus.

As primeiras so relaes de igualdade. S a necessidade faz nascer; do choque das paixes e da posio dos interesses particulares, a idia da unidade comum, base da justia humana. Ao contrrio, as relaes que existem entre o homem e Deus so relaes de dependncia, que nos submetem a um ser perfeito e criador de todas as coisas, a um senhor soberano que somente a si reservou o direito de ser ao mesmo tempo legislador e juiz, somente ele pode ser a um tempo uma e outra coisa.

Se ele estabeleceu penas eternas para aquele que infringiu suas leis, qual ser o inseto bastante temerrio que ousar vir em socorro de sua justia divina, para empreender vingar o ser que se basta a si mesmo, que os crimes no podem entristecer, que os castigos no podem alegrar e que o nico na natureza a agir de maneira constante?

A grandeza do pecado ou da ofensa para com Deus depende da maldade do corao; e, para que os homens pudessem sondar esse abismo, ser-lhes-ia preciso o socorro da revelao. Como poderiam eles determinar as penas dos diferentes crimes, sobre princpios cuja base lhes desconhecida? Seria arriscado punir quando Deus perdoa e perdoar quando Deus pune.

Se os homens ofendem a Deus com o pecado, muitas vezes o ofendem mais ainda encarregando-se do cuidado de ving-lo.

XXV. DIVISO DOS DELITOS 6n4o69

H crimes que tendem diretamente destruio da sociedade ou dos que a representam. Outros atingem o cidado em sua vida, nos seus bens ou em sua honra. Outros, finalmente, so atos contrrios ao que a lei prescreve ou probe, tendo em vista o bem pblico.

Todo ato no compreendido numa dessas classes no pode ser considerado como crime, nem punido como tal, seno pelos que descobrem nisso o seu interesse particular.

Por no se ter sabido guardar esses limites que se v em todas as naes uma oposio entre as leis e a moral, e muitas vezes uma oposio entre aquelas mesmas. O homem de bem est exposto s penas mais severas. As palavras vcio e virtude no am de sons vagos. A existncia do cidado envolve-se de incerteza; e os corpos polticos caem numa letargia funesta, que os conduz insensivelmente runa.

Cada cidado pode fazer tudo o que no contrrio s leis, sem temer outros inconvenientes alm dos que podem resultar de sua ao em si mesma. Esse dogma poltico deveria ser gravado no esprito dos povos, proclamado pelos magistrados supremos e protegido pelas leis. Sem esse dogma sagrado, toda sociedade legtima no pode subsistir por muito tempo, porque ele a justa recompensa do sacrifcio que os homens fizeram de sua independncia e de sua liberdade.

essa opinio que torna as almas fortes e generosas, que eleva o esprito, que inspira aos homens uma virtude superior ao medo e os faz desprezar essa miservel maleabilidade que tudo aprova e que a nica virtude dos homens bastante fracos para ar constantemente uma existncia precria e incerta.

Percorram-se, com viso filosfica, as leis e a histria das naes, e se vero quase sempre os nomes de vcio e virtude, de bom e mau cidado, mudarem de valor segundo o tempo e as circunstncias. No so, porm, as reformas operadas no Estado ou nos negcios pblicos que causaro essa revoluo das idias; esta ser a conseqncia dos erros e dos interesses ageiros dos diferente legisladores.

Muitas vezes se vero as paixes de um sculo servir de base moral dos sculos seguintes, e formar toda a poltica dos que presidem s leis. Mas, as paixes fortes, filhas do fanatismo e do entusiasmo, obrigam a pouco e pouco, fora de excessos, o legislador prudncia, e podem tornar-se um instrumento til nas mos da astcia ou do poder, quando o tempo as tiver enfraquecido.

Foi do enfraquecimento das paixes fortes que nasceram entre os homens as noes obscuras de honra e virtude; e essa obscuridade subsistir sempre, porque as idias mudam com o tempo, que deixa sobreviver os nomes s coisas, que variam segundo os lugares e os climas; que a moral esta submetida, como os imprios, a limites geogrficos.

XXVI. DOS CRIMES DE LESA-MAJESTADE 523d2i

OS crimes de lesa-majestade foram postos na classe dos grandes crimes, porque so funestos sociedade. Mas, a tirania e a ignorncia, que confundem as palavras e as idias mais claras, deram esse nome a uma multido de delitos de natureza inteiramente diversa. Aplicaram-se as penas mais graves a faltas leves; e, nessa ocasio como em mil outras, o homem muitas vezes vtima de uma palavra.

Toda espcie de delito nociva sociedade; mas, nem todos os delitos tendem imediatamente a destruir. preciso julgar as aes morais por seus efeitos positivos e ter em conta o tempo e o lugar. S a arte das interpretaes odiosas, que ordinariamente a cincia dos escravos, pode confundir coisas que a verdade eterna separou por limites imutveis.

XXVII. DOS ATENTADOS CONTRA A SEGURANA DOS PARTICULARES E, PRINCIPALMENTE, DAS VIOLNCIAS 4t105r

DEPOIS dos crimes que atingem a sociedade, ou o soberano que a representa, vm os atentados contra a segurana dos particulares.

Como essa segurana o fim de todas as sociedades humanas, no se pode deixar de punir com as penas mais graves aquele que a atinge.

Entre esses crimes, uns so atentados contra a vida, outros contra a honra, e outros contra os bens. Falaremos antes dos primeiros, que devem ser punidos com penas corporais.

Os atentados contra a vida e a liberdade dos cidados esto no nmero dos grandes crimes. Compreendem-se, nessa classe, no somente os assassnios e os assaltos cometidos por homens do povo, mas, igualmente as violncias da mesma natureza exercidas pelos grandes e pelos magistrados: crimes tanto mais graves quanto as aes dos homens elevados agem sobre a multido com muito mais influncia e os seus excessos destroem no esprito dos cidados as idias de justia e de dever, para substituir as do direito do mais forte: direito igualmente perigoso para quem dele abusa e para quem o sofre.

Se os grandes e os ricos podem escapar a preo de dinheiro s penas que merecem os atentados contra a segurana do fraco e do pobre, as riquezas, que, sob a proteo das leis, so a recompensa da indstria, tornar-se-o alimento da tirania e das iniqidades.

No mais existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em certas circunstncias um cidado deixe de ser um homem para tornar-se uma coisa que se possa pr a prmio. V-se, ento, a astcia dos homens poderosos ocupada completamente com o aumento de sua fora e dos seus privilgios, aproveitando todas as combinaes que a lei lhes torna favorveis. Eis o mgico segredo que transformou a massa dos cidados em bestas de carga; foi assim que os grandes acorrentaram escravos. por isso que certos governos, que tm todas as aparncias de liberdade, gemem sob uma tirania oculta. pelos privilgios dos grandes que os usos tirnicos se fortificam insensivelmente, depois de se terem introduzido na constituio, por vias que o legislador negligenciou fechar.

Os homens sabem opor diques bastante fortes tirania declarada; mas, muitas vezes, no vem o inseto imperceptvel que mina sua obra e que abre por fim, torrente devastadora, uma estrada tanto mais segura quanto mais oculta.

Quais sero, pois, as penas reservadas aos crimes dos nobres, cujos privilgios ocupam to grande lugar na legislao da. maior parte dos povos? No examinarei se essa distino hereditria entre plebeus e nobres til ao governo, ou necessria s monarquias; nem se verdade que a nobreza um poder intermedirio prprio para conter em justos limites o povo e o soberano; nem se essa ordem isolada da sociedade no tem o inconveniente de reunir num crculo estreito todas as vantagens da indstria, todas as esperanas e toda a felicidade: como essas ilhotas encantadoras e frteis que se encontram no meio dos desertos terrveis da Arbia.

Quando fosse verdade que a desigualdade inevitvel e mesmo til na sociedade, certo que s deveria existir entre os indivduos e em virtude das dignidades e do mrito, mas no entre as ordens do Estado; que as distines no devem permanecer. num s lugar, mas circular em todas as partes do corpo poltico; que as desigualdades sociais devem nascer e desaparecer a cada instante, mas no perpetuar-se nas famlias.

Seja qual for a concluso de todas essas questes, limitar-me-ei, a dizer que as penas das pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as do ltimo dos cidados. A igualdade civil anterior a todas as distines de honras, e de riquezas. Se todos os cidados no dependerem igualmente das mesmas leis, as distines deixaro de ser legtimas.

Deve supor-se que os homens, renunciando liberdade desptica que receberam da natureza, para se reunirem em sociedade, disseram entre si: "Aquele que for mais industrioso obter as maiores honras, a glria do seu nome ar aos seus descendentes; mas, no obstante as honras e as riquezas, no recear menos do que o ltimo dos cidados a violao, das leis que o elevaram acima dos outros".

E verdade que no h assemblia geral do gnero humano em que se tenha aprovado semelhante decreto; este se funda, porm, na natureza imutvel dos sentimentos do homem.

A igualdade perante as leis no destri as vantagens que os prncipes julgam retirar da nobreza: apenas impede os inconvenientes das distines e torna as leis respeitveis, tirando toda esperana de impunidade.

Dir-se-, talvez, que a mesma pena, aplicada contra o nobre e contra o plebeu, torna-se completamente diversa e mais grave para o primeiro, por causa da educao que recebeu, e da infmia que se espalha sobre uma famlia ilustre. Responderei no entanto, que o castigo se mede pelo dano causado sociedade, e no pela sensibilidade do culpado. Ora, o exemplo do crime tanto mais funesto quanto dado por um cidado de condio mais elevada.

Acrescentarei que a igualdade da pena s pode ser exterior, e no pode ser proporcionada ao grau de sensibilidade, que diferente em cada indivduo.

Quanto infmia que cobre uma famlia inocente, o soberano pode facilmente apag-la com demonstraes pblicas de benevolncia. Sabe-se que tais demonstraes de favor tm foros de razo no povo crdulo e irador.

XXVIII. DAS INJRIAS 2a6jy

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XXIX. DOS DUELOS 6jjd

A HONRA, que no seno a necessidade dos sufrgios pblicos, deu nascimento aos combates singulares, que s puderam estabelecer-se na desordem das ms leis.

Se os duelos no estiveram em uso na antigidade, como algumas pessoas o crem, que os antigos no se reuniam armados com um ar de desconfiana, nos templos, no teatro e entre os amigos. Talvez tambm, sendo o duelo um espetculo muito comum que vis escravos davam ao povo, os homens livres tivessem receio de que os combates singulares no bastassem para que eles fossem considerados homens honrados.

Seja como for, em vo que se experimentou entre os modernos impedir os duelos com pena de morte. Essas leis severas no puderam destruir um costume fundado numa espcie de honra, mais cara aos homens do que a prpria vida. O cidado que recusa um duelo v-se presa do desprezo dos seus concidados; forado a levar uma vida solitria, a renunciar aos encantos da sociedade, ou a expor-se constantemente aos insultos e vergonha, cujos repetidos golpes o afetam de maneira mais cruel do que a idia do suplcio.

Por que motivo sero os duelos menos freqentes entre os homens do povo do que entre os grandes? somente porque o povo no traz espada, porque tem menos necessidade de sufrgios pblicos do que os homens de condio mais elevada, que se observam entre si com mais desconfiana e inveja.

No intil repetir aqui o que j se disse certa vez: que o melhor meio de impedir o duelo punir o agressor, isto , aquele que deu lugar querela, a declarar inocente aquele que, sem procurar tirar a espada, se viu constrangido a defender a prpria honra, isto , a opinio, que as leis no protegem suficientemente, e mostrar aos seus concidados que pode respeitar as leis, mas que no teme os homens.

XXX. DO ROUBO 4i471a

UM roubo cometido sem violncia s deveria ser punido com uma pena pecuniria. justo que quem rouba o bem de outrem seja despojado do seu.

Mas, se o roubo ordinariamente o crime da misria e do desespero, se esse delito s cometido por essa classe de homens infortunados, a quem o direito de propriedade (direito terrvel e talvez desnecessrio) s deixou a existncia como nico bem, as penas pecunirias contribuiro simplesmente para multiplicar os roubos, aumentando o nmero dos indigentes, arrancando o po a uma famlia inocente, para d-lo a um rico talvez criminoso.

A pena mais natural do roubo ser, pois, essa espcie de escravido, que a nica que se pode chamar justa, isto , a escravido temporria, que torna a sociedade senhora absoluta da pessoa e do trabalho do culpado, para faz-lo expiar, por essa dependncia, o dano que causou e a violao do pacto social.

Se, porm, o roubo acompanhado de violncia, justo ajuntar servido as penas corporais.

Outros escritores mostraram, antes de mim, os inconvenientes graves que resultam do uso de aplicar as mesmas penas contra os roubos cometidos com violncia e contra aqueles em que o ladro s empregou a astcia. Fez-se ver quanto absurdo pr na mesma balana uma certa soma de dinheiro e a vida de um homem. O roubo com violncia e o roubo de astcia so delitos absolutamente diferentes; e a s poltica deve itir, ainda mais do que as matemticas, o axioma certo de que entre dois objetos heterogneos, h uma distncia infinita.

Essas coisas foram ditas; mas, sempre til repetir verdades que jamais se pam em prtica. Os corpos polticos conservam por muito tempo o movimento recebido; , porm, moroso e difcil imprimir-lhes um novo movimento.

XXXI. DO CONTRABANDO s2em

O CONTRABANDO um verdadeiro delito, que ofende o soberano e a nao, mas cuja pena no deveria ser infamante, porque a opinio pblica no empresta nenhuma infmia a essa espcie de delito.

Porque, pois, o contrabando, que um roubo feito ao prncipe, e por conseguinte nao, no acarreta a infmia sobre aquele que o exerce? E que os delitos que os homens no consideram nocivos aos seus interesses no afetam bastante para excitar a indignao pblica. Tal o contrabando. Os homens, sobre os quais as conseqncias remotas de um ato s produzem impresses fracas, no vem o dano que o contrabando pode causar-lhes. Chegam mesmo, s vezes, a retirar dele vantagens momentneas. No vem seno o mal causado ao prncipe, e, para recusarem estima ao culpado, s tm uma razo premente contra o ladro, o falsrio e alguns outros criminosos que podem prejudic-los pessoalmente.

Essa maneira de sentir conseqncia do princpio incontestvel de que todo ser sensvel s se interessa pelos males que conhece.

O contrabando um delito gerado pelas prprias leis, porque, quanto mais se aumentam os direitos, tanto maior a vantagem do contrabando; a tentao de exerc-lo tambm to forte quanto mais fcil cometer essa espcie de delito, sobretudo se os objetos proibidos so de pequeno volume, e se so interditos numa to grande circunferncia de territrio que a extenso deste torne difcil guard-lo.

O confisco das mercadorias proibidas, e mesmo de tudo o que se acha apreendido com objetos de contrabando, uma pena justssima. Para torn-lo mais eficaz, seria preciso que os direitos fossem pouco considerveis; pois os homens s se arriscam na proporo do lucro que o xito possa proporcionar-lhes.

Ser, porm, o caso de deixar impune o culpado que no tem nada que perder? No. Os impostos so parte to essencial e to difcil numa boa legislao, e esto de tal modo comprometidos em certas espcies de contrabando, que tal delito merece uma pena considervel, como a priso e mesmo a servido, mas uma priso e uma servido anlogas natureza do delito.

Por exemplo, a priso de um contrabandista de fumo no deve ser a do assassino ou a do ladro; e, sem dvida, o castigo mais conveniente ao gnero do delito seria aplicar utilidade do fisco a servido e o trabalho daquele que pretendeu fraudar-lhe os direitos.

XXXII. DAS FALNCIAS 4h2a1i

O LEGISLADOR que percebe o preo da boa f nos contratos, e que quer proteger a segurana do comrcio, deve dar recurso aos credores sobre a pessoa mesma dos seus devedores, quando estes abrem falncia. Importa, porm, no confundir o falido fraudulento com o que de boa f. O primeiro deveria ser punido como o so os moedeiros falsos, porque no maior o crime de falsificar o metal amoedado, que constitui a garantia dos homens entre si, do que falsificar essas obrigaes mesmas.

Mas, o falido de boa f, o infeliz que pode provar evidentemente aos seus juizes que a infidelidade de outrem, as perdas dos seus correspondentes, ou enfim contratempos que a prudncia humana no poderia evitar, o despojaram dos seus bens, deve ser tratado com menos rigor. Por que motivos brbaros ousar-se- mergulh-lo nas masmorras, priv-lo do nico bem que lhe resta na misria, a liberdade, e confundi-lo com os criminosos e for-lo a arrepender-se de ter sido honesto? Vivia tranqilo, ao abrigo de sua probidade, e contava com a proteo das leis. Se as violou, que no estava em seu poder conformar-se exatamente a essas leis severas, que o poder e a avidez insensvel impam e que o pobre aceitou seduzido pela esperana que subsiste sempre no corao do homem e que o faz acreditar que todos os acontecimentos felizes sero para ele e todas as desgraas para os outros.

O medo de ser ofendido predomina geralmente na alma sobre a vontade de prejudicar; e os homens, entregando-se s suas primeiras impresses, amam as leis cruis, se bem que seja do seu interesse viver sob leis brandas, pois eles prprios esto submetidos a elas.

Mas, voltemos ao falido de boa f: no o desobriguem de sua dvida seno depois que ele a tiver pago inteiramente; recusem-lhe o direito de subtrair-se aos credores sem o consentimento destes, e a liberdade de levar adiante sua indstria; forcem-no a empregar seu trabalho e seus talentos no pagamento do que deve, proporcionalmente aos seus lucros. Mas, sob nenhum pretexto legtimo, no se poder faz-lo sofrer uma priso injusta e intil aos credores.

Dir-se-, talvez, que os horrores da priso obrigaro o falido a revelar as trapaas que ocasionaram uma falncia suspeita de fraude. bem raro, porm, que essa espcie de tortura seja necessria, se se fizer um exame rigoroso da conduta e dos negcios do acusado.

Se a fraude do falido for muito duvidosa, ser melhor optar por sua inocncia. H uma mxima geralmente certa em legislao, segundo a qual a impunidade de um culpado tem graves inconvenientes; mas, a impunidade pouco perigosa quando o delito difcil de constatar-se.

Alegar-se- tambm a necessidade de proteger os interesses do comrcio, assim como o direito de propriedade, que deve ser sagrado. Mas, o comrcio e o direito de propriedade no so o fim do pacto social, so apenas meios que podem conduzir a esse fim.

Se se submeterem todos os membros da sociedade a leis cruis, para preserv-los dos inconvenientes que so as conseqncias naturais do estado social, isso ser faltar ao fim procurando atingi-lo; e esse o erro funesto que perde o esprito humano em todas as cincias, mas sobretudo na poltica (17).

Poder-se-ia distinguir a fraude do delito grave, mas menos odioso, e fazer uma diferena entre o delito grave e a pequena falta, que seria preciso separar tambm da perfeita inocncia.

No primeiro caso, aplicar-se-iam ao culpado as penas aplicveis ao crime de falsrio. O segundo delito seria punido com penas menores, com a perda da liberdade. Deixar-se-ia ao falido inteiramente inocente a escolha dos meios que desejasse empregar para estabelecer os seus negcios; e, no caso de um delito leve, dar-se-ia aos credores o direito de prescrever esses meios.

Mas, a distino entre faltas graves e leves deve ser obra da lei, que a nica imparcial; seria perigoso abandon-la prudncia arbitrria de um juiz. E to necessrio fixar limites na poltica quanto nas cincias matemticas, porque o bem pblico se mede como os espaos e a extenso.

Seria fcil ao legislador previdente impedir a maior parte das falncias fraudulentas e remediar a desgraa do homem laborioso, que falta aos seus compromissos sem ser culpado. Possam todos os cidados consultar a cada instante os registros pblicos, nos quais se ter uma nota exata de todos os contratos; e que contribuies sabiamente repartidas entre os comerciantes felizes formem um banco, do qual se tirem somas convenientes para socorrer a indstria infeliz. Tais estabelecimentos s podero ter vantagens numerosas, sem inconvenientes real.

Mas essas leis fceis, a um tempo to simples e to sublimes; essas leis que esperam apenas o sinal do legislador para espalhar sobre as naes a abundncia e a fora; essas leis que seriam motivo de reconhecimento eterno de todas as geraes, so desconhecidas ou rejeitadas. Um esprito de hesitao, idias estreitas, a tmida prudncia do momento, uma rotina obstinada, que teme as inovaes mais teis: tais so os mveis ordinrios dos legisladores que regulam o destino da fraca humanidade.

XXXIII. DOS DELITOS QUE PERTURBAM A TRANQUILIDADE PBLICA u6h2m

A TERCEIRA espcie de delitos que distinguimos compreende os que perturbam particularmente o repouso e a tranqilidade pblica: as querelas e o tumulto de pessoas que se batem na via pblica, destinada ao comrcio e agem dos cidados, e os discursos fanticos que excitam facilmente as paixes de uma populaa curiosa e que emprestam grande fora da multido dos auditores e sobretudo um certo entusiasmo obscuro e misterioso, com poder bem maior sobre o esprito do povo do que a tranqila razo, cuja linguagem a multido no entende.

Iluminar as cidades durante a noite custa do pblico; colocar guardas de segurana nos diversos bairros das cidades; reservar ao silncio e tranqilidade sagrada dos templos, protegidos pelo governo, os discursos de moral religiosa, e as arengas destinadas a sustentar os interesses particulares e pblicos s assemblias da nao, aos parlamentos aos lugares, enfim, onde reside a majestade soberana: tais so as medidas prprias para prevenir a perigosa fermentao das paixes populares; e so esses os principais objetos que devem ocupar a vigilncia do magistrado de polcia.

Mas, se esse magistrado no age segundo leis conhecidas e familiares a todos os cidados; se pode, ao contrrio, fazer ao seu capricho leis que julga serem necessrias, abre assim a porta tirania, que ronda sem cessar em torno das barreiras que a liberdade pblica lhe fixou e que s procura transp-las.

Creio no haver exceo regra geral de que os cidados devem saber o que precisam fazer para serem culpados, e o que precisam evitar para serem inocentes.

Um governo que tem necessidade de censores, ou de qualquer outra espcie de magistrados arbitrrios, prova que mal organizado e que sua constituio no tem fora. Num pas em que o destino dos cidados est entregue incerteza, a tirania oculta imola mais vtimas do que o tirano mais cruel que age abertamente. Este ultimo revolta, mas no avilta.

O verdadeiro tirano comea sempre reinando sobre a opinio; quando senhor dela, apressa-se a comprimir as almas corajosas, das quais tem tudo que temer, porque s se apresentam com o archote da verdade, quer no fogo das paixes, quer na ignorncia dos perigos.

XXXIV. DA OCIOSIDADE 6x4lb

OS governos sbios no sofrem, no seio do trabalho e da indstria, uma espcie de ociosidade que contrria ao fim poltico do estado social: quero falar de certas pessoas ociosas e inteis que no do sociedade nem trabalho nem riquezas, que acumulam sempre sem jamais perder, que o vulgo respeita com uma irao estpida e que so aos olhos do sbio um objeto de desprezo. Quero falar de certas pessoas que no conhecem necessidade de istrar ou aumentar as comodidades da vida, nico motivo capaz de excitar a atividade humana, e que indiferentes prosperidade do Estado, s se inflamam com paixo por opinies que lhes agradam, mas que podem ser perigosas.

Austeros declamadores confundiram essa espcie de ociosidade com a que fruto das riquezas adquiridas pela indstria. Cabe exclusivamente s leis, e no virtude rgida (mas fechada em idias estreitas) de alguns censores, definir a espcie de ociosidade punvel.

No se pode encarar como ociosidade funesta em poltica aquela que, gozando do fruto dos vcios ou das virtudes de alguns anteados, d contudo po e existncia pobreza industriosa, da troca dos prazeres atuais que recebe desta e que pe o pobre na contingncia de travar a guerra pacfica que a indstria sustenta contra a opulncia e que sucedeu aos combates sangrentos e incertos da fora contra a fora.

Essa espcie de ociosidade pode mesmo tornar-se vantajosa, medida que a sociedade aumenta e que o governo deixa aos cidados mais liberdade.

XXXV. DO SUICDIO 1v163o

O SUICDIO um delito que parece no poder ser submetido a nenhuma pena propriamente dita; pois essa pena s poderia recair sobre um corpo insensvel e sem vida, ou sobre inocentes. Ora, o castigo que se aplicasse contra os restos inanimados do culpado no poderia produzir outra impresso sobre os espectadores seno a que estes experimentariam ao verem fustigar uma esttua.

Se a pena aplicada famlia inocente, ela odiosa e tirnica, porque j no h liberdade quando as penas no so puramente pessoais.

Os homens amam demasiado a vida; esto ligados a ela por todos os objetos que os cercam; a imagem sedutora do prazer e a doce esperana, amvel feiticeira que mistura algumas gotas de felicidade ao licor envenenado dos males que ingerimos a grandes tragos, encantam muito fortemente os coraes dos mortais, para que se possa temer que a impunidade contribua para tornar o suicdio mais comum.

Se se obedece s leis pelo temor de um suplcio doloroso, aquele que se mata nada tem que temer, pois a morte destri toda sensibilidade. No , pois, esse motivo que poder deter a mo desesperada do suicida.

Mas, aquele que se mata faz menos mal sociedade do que aquele que renuncia para sempre sua ptria. O primeiro deixa tudo ao seu pas, ao o que o outro lhe rouba sua pessoa e uma parte dos seus bens.

Direi mais. Como a fora de uma nao consiste no nmero dos cidados, aquele que abandona o seu pas para entregar-se a outro causa sociedade o dobro do prejuzo que lhe pode causar o suicida.

A questo reduz-se, pois, a saber se til ou perigoso sociedade deixar a cada um dos membros que a compem uma liberdade perptua de afastar-se dela.

Toda lei que no forte por si mesma, toda lei cuja execuo pode ser impedida em certas circunstncias, jamais deveria ser promulgada. A opinio, que governa os espritos, obedece s impresses lentas e indiretas que o legislador sabe dar-lhe; resiste, porm, aos seus esforos, quando so violentos e diretos; e as leis inteis, que logo so desprezadas, comunicam seu aviltamento s leis mais salutares, que costumam ser vistas antes como obstculos a vencer do que como a salvaguarda da tranqilidade pblica.

Ora, como a energia dos nossos sentimentos limitada, se se quiser obrigar os homens a respeitar objetos estranhos ao bem da sociedade, eles tero menos venerao pelas leis verdadeiramente teis.

No me deterei no desenvolvimento das conseqncias vantajosas que um sbio dispensador da felicidade pblica poder tirar desse princpio; procurarei apenas provar que no necessrio fazer do Estado uma priso.

Uma lei que tentasse tirar aos cidados a liberdade de abandonar seu pas, seria uma lei intil; porque, a menos que rochedos inveis ou mares impraticveis separem esse pas de todos os outros, como guardar todos os pontos de sua circunferncia? Como guardar os prprios guardas?

O imigrante que leva tudo o que possui no deixa nada sobre que as leis possam fazer cair a pena com que o ameaam. Seu delito j no pode ser punido, desde que foi cometido; e infligir-lhe um castigo antes que ele seja consumado, punir a inteno e no o fato, exercer um poder tirano sobre o pensamento, sempre livre e sempre independente das leis humanas.

Tentar-se- punir o fugitivo com o confisco dos bens que ele deixa? Mas a concluso, que no se pode impedir por pouco que se respeitem os contratos dos cidados entre si, tornaria esse meio ilusrio. Alm disso, semelhante lei destruiria todo comrcio entre as naes; e, se se punisse o emigrado, no caso dele regressar aos pas, isso significaria impedi-lo de reparar o prejuzo que causou sociedade e banir para sempre aquele que uma vez se tivesse afastado da ptria.

Enfim, a proibio de sair de um pas s faz aumentar, em quem o habita, o desejo de abandon-lo, ao o que desvia os estrangeiros de nele se estabelecerem. Que se deve, pois, pensar de um governo que no tem outro meio seno o temor, para reter os homens em sua ptria, qual eles esto naturalmente ligados pelas primeiras impresses da infncia?

A maneira mais certa de fixar os homens em sua ptria aumentar o bem-estar respectivo de cada cidado. Do mesmo modo que todo governo deve empregar os maiores esforos para fazer pender a seu favor a balana do comrcio, assim tambm o maior interesse do soberano e da nao que a soma de felicidade seja a maior do que entre os povos vizinhos.

Os prazeres do luxo no so os principais elementos dessa felicidade: embora impedindo as riquezas de se reunirem numa s mo, eles se tornam um remdio necessrio desigualdade, que toma mais fora medida que a sociedade faz mais progressos (18).

Mas, os prazeres do luxo so a base da felicidade pblica, num pas em que a segurana dos bens e a liberdade das pessoas dependem exclusivamente das leis, porque ento esses prazeres favorecem a populao; ao o que se tornam um instrumento de tirania para um povo cujos direitos no so garantidos. Assim como os animais mais generosos e os livres habitantes dos ares preferem as solides inveis e as florestas longnquas, onde sua liberdade no corre risco, aos campos alegres e frteis, que o homem, seu inimigo, semeou de armadilhas, assim tambm os homens evitam o prprio prazer, quando este lhes oferecido pela mo dos tiranos (19).

Est, pois, demonstrado que a lei que prende os cidados ao seu pas intil e injusta; e o mesmo juzo deve ser feito sobre a que pune o suicdio.

Trata-se de um crime que Deus pune aps a morte do culpado, e somente Deus pode punir depois da morte.

No , porm, um crime perante os homens, porque o castigo recai sobre a famlia inocente e no sobre o culpado.

Se me objetarem que o medo desse castigo pode, contudo, deter a mo do infeliz determinado a morrer, responderei que quem renuncia tranqilamente doura de viver e odeia bastante a existncia terrena para preferir-lhe uma eternidade talvez infeliz, no se comover decerto com a considerao remota e menos forte da vergonha que o crime atrair sobre sua famlia.

XXXVI. DE CERTOS DELITOS DIFCEIS DE CONSTATAR s4m3p

COMETEM-SE na sociedade certos delitos que so bastante freqentes, mas que difcil provar. Tais so o adultrio, a pederastia, o infanticdio.

O adultrio um crime que, considerado sob o ponto de vista poltico, s to freqente porque as leis no so fixas e porque os dois sexos so naturalmente atrados um pelo outro (20).

Se eu falasse a povos ainda privados das luzes da religio, diria que h uma grande diferena entre esse delito e todos os outros. O adultrio produzido pelo abuso de uma necessidade constante, comum a todos os mortais, anterior sociedade; ao o que os outros delitos, que tendem mais ou menos destruio do pacto social, so antes o efeito das paixes do momento do que das necessidades da natureza.

Os que leram a histria e estudaram os homens podem reconhecer que o nmero dos delitos produzidos pela tendncia de um sexo para outro , no mesmo clima, sempre igual a uma quantidade constante. Se assim , toda lei, todo costume cujo fim fosse diminuir a soma total dos efeitos dessa paixo, seria intil e at funesta, porque o efeito dessa lei seria sobrecarregar uma poro da sociedade com suas prprias necessidades e com as dos outros. O partido mais sbio seria, pois, seguir at certo ponto o declive do rio das paixes e dividir-lhe o curso num nmero de regatos suficientes para impedir em toda parte dois excessos contrrios, a seca e as enchentes.

A fidelidade conjugal sempre mais segura proporo que os casamentos so mais numerosos e mais livres. Se os preconceitos hereditrios os conciliam, se o poder paterno os forma e os impede ao seu capricho, a galanteria quebra-lhes secretamente os laos, mau grado as declamaes dos moralistas vulgares, sempre ocupados em gritar contra os efeitos, omitindo as causas.

Mas, essas reflexes so inteis para aqueles que os motivos sublimes da religio mantm nos limites do dever, que o pendor da natureza os leva a transpor.

O adultrio um delito de um instante; envolve-se de mistrio; cobre-se de um vu que as prprias leis se empenham em conservar, vu necessrio, mas de tal modo transparente que s faz aumentar os encantos do objeto que oculta. As ocasies so to fceis, as conseqncias to duvidosas, que bem mais fcil ao legislador preveni-lo quando no foi cometido do que reprimi-lo quando j se estabeleceu.

Regra geral: em todo delito que, por sua natureza, deve quase sempre ficar impune, a pena um aguilho a mais. Nossa imaginao mais vivamente excitada e se empenha com mais ardor em perseguir o objeto dos seus desejos, quando as dificuldades que se apresentam no so insuperveis e quando no tm um aspecto bastante desencorajador, relativamente ao grau de atividade que se tem no esprito. Os obstculos se tornam, por assim dizer, tantas barreiras que impedem nossa imaginao caprichosa de afastar-se delas, e que continuamente a foram a pensar nas conseqncias da ao que medita. Ento a alma se apega bem mais fortemente aos lados agradveis que a seduzem do que s conseqncias perigosas cuja idia se esfora por afastar.

A pederastia, que as leis punem com tanta severidade e contra a qual se empregam to facilmente essas torturas atrozes que triunfam da prpria inocncia, menos o efeito das necessidades do homem isolado e livre do que o desvio das paixes do homem escravo que vive em sociedade. Se s vezes ela produzida pela sociedade dos prazeres, bem freqentemente o efeito dessa educao que, para tornar os homens teis aos outros, comea por torn-los inteis a si mesmos, nessas casas em que uma juventude numerosa, viva, ardente, mas separada por obstculos intransponveis do sexo, do qual a natureza lhe pinta fortemente todos os encantos, prepara para si uma velhice antecipada, consumindo de antemo, inutilmente para a humanidade, um vigor apenas desenvolvido.

O infanticdio ainda o resultado quase inevitvel da cruel alternativa em que se acha uma infeliz, que s cedeu por fraqueza, ou que sucumbiu sob os esforos da violncia. De um lado a infmia, de outro a morte de um ser incapaz de sentir a perda da vida: como no havia de preferir esse ltimo partido, que a rouba vergonha, misria, juntamente com o desgraado filhinho'

O melhor meio de prevenir essa espcie de delito seria proteger com leis eficazes a fraqueza e a infelicidade contra essa espcie de tirania, que s se levanta contra os vcios que no se podem cobrir com o manto da virtude.

No pretendo enfraquecer o justo horror que devem inspirar os crimes de que acabamos de falar. Eu quis indicar suas fontes e penso que me ser permitido tirar da a conseqncia geral de que no se pode chamar precisamente justa ou necessria (o que a mesma coisa) a punio de um delito que as leis no procuraram prevenir com os melhores meios possveis e segundo as circunstncias em que se encontra uma nao.

XXXVII. DE UMA ESPCIE PARTICULAR DE DELITO 4s431f

OS QUE lerem esta obra se apercebero sem dvida de que no falei de uma espcie de delito cuja punio inundou a Europa de sangue humano.

No descrevi esses espetculos espantosos em que o fanatismo elevava constantemente fogueiras, em que homens vivos serviam de alimento s chamas, em a que multido feroz se comprazia em ouvir os gemidos abafados dos infelizes, em que cidados corriam, como a um espetculo agradvel, a contemplar a morte dos seus irmos, no meio dos turbilhes de negra fumaa, em que os lugares pblicos ficavam cobertos de destroos palpitantes e de cinzas humanas.

Os homens esclarecidos vero que o pas onde habito, o sculo em que vivo e a matria de que trato no me permitiram examinar a natureza desse delito. Seria, alis, empresa demasiado longa e que me desviaria muito do meu assunto, querer provar, contra o exemplo de vrias naes, a necessidade de uma inteira conformidade de opinio num Estado poltico; procurar demonstrar como certas crenas religiosas, entre as quais s podem achar-se diferenas sutis, obscuras e muito acima da capacidade humana, podem contudo perturbar a tranqilidade pblica, a menos que somente uma seja autorizada e todas as outras proscritas.

Seria preciso fazer ver ainda como algumas dessas crenas, tornando-se mais claras pela fermentaes dos espritos, podem fazer nascer do choque das opinies a verdade, que ento sobrenada depois de ter aniquilado o erro, ao o que outras seitas, pouco firmes em suas bases; tm necessidade, para manter-se, de se apoiarem na fora.

Seria demasiado longo, igualmente, mostrar que, para reunir todos os cidados de um Estado numa perfeita conformidade de opinies religiosas, preciso tiranizar os espritos e constrang-los a vergar sob o jugo da fora, embora essa violncia se oponha razo e autoridade que mais respeitamos (21), que nos recomenda a doura e o amor dos nossos irmos, embora seja evidente que a fora s faz hipcritas e, portanto, almas vis.

Deve-se crer que todas essas coisas estaro demonstradas e conformes aos interesses da humanidade, se houver em alguma parte uma autoridade legtima e reconhecida que as ponha em prtica.

Quanto a mim, s falo aqui dos crimes que pertencem ao homem natural e que violam o contrato social; devo silenciar, porm, sobre os pecados cuja punio mesmo temporal deve ser determinada segundo outras regras que no as da filosofia.

XXXVIII. DE ALGUMAS FONTES GERAIS DE ERROS E DE INJUSTIAS NA LEGISLAO 5i4b2u

E, em primeiro lugar, das falsas idias de utilidade 424k3o
AS FALSAS idias que os legisladores fizeram da utilidade so uma das fontes mais fecundas de erros e injustias.

ter falsas idias de utilidade ocupar-se mais com inconvenientes particulares do que com inconvenientes gerais; querer comprimir os sentimentos naturais em lugar de procurar excit-los; impor silncio razo e dizer ao pensamento: "S escravo".

ter ainda falsas idias de utilidade sacrificar mil vantagens reais ao temor de uma desvantagem imaginria ou pouco importante.

No teria certamente idias justas quem desejasse tirar aos homens o fogo e a gua, porque esses dois elementos causam incndios e inundaes, e quem s soubesse impedir o mal pela destruio.

Podem considerar-se igualmente como contrrias ao fim de utilidade as leis que probem o porte de armas, pois s desarmam o cidado pacfico, ao o que deixam o ferro nas mos do celerado, bastante acostumado a violar as convenes mais sagradas para respeitar as que so apenas arbitrrias.

Alm disso, essas convenes so pouco importantes; h pouco perigo em infringi-las e, por outro lado, se as leis que desarmam fossem executadas com rigor, destruiriam a liberdade pessoal, to preciosa ao homem to respeitvel aos olhos do legislador esclarecido; submeteriam a inocncia a todas as investigaes, a todos os vexames arbitrrios que s devem ser reservados aos criminosos.

Tais leis s servem para multiplicar os assassnios, entregam o cidado sem defesa aos golpes do celerado, que fere com mais audcia um homem desarmado; favorecem o bandido que ataca, em detrimento do homem honesto que atacado.

Essas leis so simplesmente o rudo das impresses tumultuosas que produzem certos fatos particulares; no podem ser o resultado de combinaes sbias que pesam numa mesma balana os males e os bens; no para prevenir os delitos, mas pelo vil sentimento do medo, que se fazem tais leis.

por uma falsa idia de utilidade que se procura submeter uma multido de seres sensveis regularidade simtrica que pode receber uma matria bruta e inanimada; que se negligenciam os motivos presentes, nicos capazes de impressionar o esprito humano de maneira forte e durvel, para empregar motivos remotos, cuja impresso fraca e ageira, a menos que uma grande fora de imaginao, que s se se encontra num pequeno nmero de homens, supra o afastamento do objeto, mantendo-o sob relaes que o aumentam e o aproximam.

Enfim, tambm podem chamar-se falsas idias de utilidade as que separam o bem geral dos interesses particulares, sacrificando as coisas s palavras.

H, entre o estado de sociedade e o estado de natureza, a diferena de que o homem selvagem s faz mal a outrem quando nisso descobre alguma vantagem para si, ao o que o homem social s vezes levado, por leis viciosas, a prejudicar sem nenhum proveito.

O dspota espalha o medo e o abatimento na alma dos seus escravos, mas esse medo e esse abatimento voltam-se contra ele prprio, logo lhe enchem o corao e o tornam presa de males maiores do que os que ele causa.

Aquele que se compraz em inspirar o terror corre poucos riscos, se teme apenas a prpria famlia e as pessoas que o cercam. Mas, quando o terror geral, quando fere uma grande multido de homens, o tirano deve tremer. Receie a temeridade, o desespero; receie sobretudo o homem audacioso, mas prudente, que souber com habilidade sublevar contra ele os descontentes, tanto mais fceis de serem seduzidos quando se despertarem em suas almas as mais caras esperanas e quando se tiver o cuidado de mostrar-lhes os perigos da empresa repartidos entre um grande nmero de cmplices. Juntai a isso que os infelizes do menos valor sua existncia na proporo dos males que os afligem.

Eis, sem dvida, porque as ofensas so quase sempre seguidas de ofensas novas. A tirania e o dio so sentimentos durveis, que se sustentam e tomam novas foras medida que se exercem; ao o que, em nossos coraes corruptos, o amor e os sentimentos ternos se enfraquecem e se extinguem na ociosidade.

XXXIX. DO ESPRITO DE FAMLIA 4c2g4x

O ESPIRTO da famlia outra fonte geral de injustias na legislao.

Se as disposies cruis e os outros vcios das leis penais foram aprovados pelos legisladores mais esclarecidos, nas repblicas mais livres, que se considerou o Estado antes como uma sociedade de famlias do que como a associao de um certo nmero de homens.

Suponha-se uma nao composta de cem mil homens, distribudos em vinte mil famlias de cinco pessoas cada uma, inclusive o chefe que a representa; se a associao feita por famlias, haveria vinte mil cidados e oitenta mil escravos; se feita por indivduos, haveria cem mil cidados livres.

No primeiro caso, seria uma repblica composta de vinte mil pequenas monarquias; no segundo, tudo respirar o esprito de liberdade, que animar os cidados, no somente nas praas pblicas e nas assemblias nacionais, mas ainda sob o teto domstico, onde residem os principais elementos de felicidade e de misria.

Se a associao feita por famlias, as leis e os costumes, que so sempre o resultado dos sentimentos habituais dos membros da sociedade poltica, sero obra dos chefes dessas famlias; ver-se- em breve o esprito monrquico introduzir-se aos poucos na prpria repblica, e os seus efeitos s encontraro obstculos na oposio dos interesses particulares, porque os sentimentos naturais de liberdade e de igualdade j tero deixado de viver nos coraes.

O esprito de famlia um espirito de mincia limitado pelos mais insignificantes pormenores; ao o que o esprito pblico, ligado aos princpios gerais, v os fatos com viso segura, coordena-os nos lugares respectivos e sabe tirar deles conseqncias teis ao bem da maioria.

Nas sociedades compostas de famlias, as crianas ficam sob a autoridade do chefe e so obrigadas a esperar que a morte lhes d uma existncia que s depende das leis. Habituadas a obedecer e a tremer, na idade da fora, quando as paixes no so ainda refreadas pela moderao, espcie de temor prudente que o fruto da experincia e da idade, como resistiro elas aos obstculos que o vcio ope constantemente aos esforos da virtude, quando a velhice decrpita e medrosa tirar-lhes a coragem de tentar reformas ousadas, que alis as seduzem pouco, porque no tm a esperana de recolher-lhes os frutos?

Nas repblicas, em que todo homem cidado, a subordinao nas famlias no efeito da fora, mas de um contrato; e os filhos, uma vez sados da idade em que a fraqueza e a necessidade de educao os mantm sob a dependncia natural dos pais, tornam-se desde ento membros livres da sociedade: se ainda se submetem ao chefe da famlia, apenas para participar das vantagens que esta lhes oferece, do mesmo modo que os cidados se sujeitam, sem perder a liberdade, ao chefe da grande sociedade poltica.

Nas repblicas compostas de famlias, os jovens, isto , a parte mais considervel e mais til da nao, ficam discrio dos pais. Nas repblicas de homens livres, os nicos laos que submetem os filhos ao pai so os sentimentos sagrados e inviolveis da natureza, que convidam os homens a ajudar-se mutuamente em suas necessidades recprocas e que lhes inspiram o reconhecimento pelos benefcios recebidos.

Esses santos deveres so muito mais alterados pelo vcio das leis, que prescrevem uma submisso cega e obrigatria, do que pela maldade do corao humano. Essa oposio entre as leis fundamentais dos Estados polticos e as leis de famlia, fonte de muitas outras contradies entre a moral pblica e a moral particular, que se combatem continuamente no esprito de cada homem.

A moral particular s inspira a submisso e o medo, ao o que a moral pblica anima a coragem e o esprito da liberdade.

Guiado pela primeira, o homem limita seu bem-estar ao crculo estreito de um pequeno nmero de pessoas que ele nem mesmo escolheu. Inspirado pela outra, procura estender a felicidade sobre todas as classes da humanidade.

A moral particular exige que cada qual se sacrifique continuamente a um falso dolo que se chama o bem da famlia e que muitas vezes no o bem real de nenhum dos indivduos que a compem. A moral pblica ensina a procurar o bem-estar sem ferir as leis; e, se s vezes excita um cidado a imolar-se pela ptria, recompensa-o pelo entusiasmo que lhe inspira antes do sacrifcio e pela glria que lhe promete.

Tantas contradies fazem que os homens desdenhem de praticar a virtude, que no podem reconhecer no meio das trevas de que a cercaram e que lhes parece distante, porque est envolta nessa obscuridade que oculta aos nossos olhos os objetos morais como os objetos fsicos.

Quantas vezes o cidado que reflete sobre suas aes adas no se ter irado de achar-se um mau homem?

A medida que a sociedade cresce, cada um dos seus membros torna-se uma parte menor do todo, e o amor do bem pblico se enfraquece na mesma proporo, se as leis deixam de fortific-lo. As sociedades polticas tm, como o corpo humano, um crescimento limitado; no poderiam estender-se alm de certos limites, sem que sua economia fosse perturbada.

Parece que a grandeza de um Estado deve estar na razo inversa do grau de atividade dos indivduos que a compem. Se essa atividade crescesse ao mesmo tempo que a populao, as boas leis achariam um obstculo, para prevenir os delitos, no prprio bem que tivessem podido fazer.

Uma repblica muito vasta s pode escapar ao despotismo subdividindo-se num certo nmero de pequenos Estados confederados. Mas, para formar essa unio, seria preciso um ditador poderoso, que tivesse a coragem de Sila (22), com tanto gnio para fundar quanto Sila o teve para destruir.

Se tal homem for ambicioso, poder esperar uma glria imortal. Se for filsofo, as bnos dos seus concidados o consolaro da perda de sua autoridade, mesmo sem pedir-lhes reconhecimento.

Quando os sentimentos que nos unem nao principiam a enfraquecer-se, os que nos ligam aos objetos que nos cercam adquirem novas foras. Assim, sob o despotismo feroz, os laos da amizade so mais durveis; e as virtudes de famlia (virtudes sempre fracas) se tornam, ento, as mais comuns, ou antes, so as nicas que ainda se praticam.

Aps todas essas observaes, pode julgar-se quanto foram curtas e limitadas as opinies da maioria dos nossos legisladores.

XL. DO ESPRITO DO FISCO 5v6p33

HOUVE um tempo em que todas as penas eram pecunirias. Os crimes dos sditos eram para o prncipe uma espcie de patrimnio. Os atentados contra a segurana pblica eram objeto de lucro, sobre o qual se sabia especular. O soberano e os magistrados achavam seu interesse nos delitos que deveriam prevenir. Os julgamentos no eram, ento, nada menos do que um processo entre o fisco que percebia o preo do crime, e o culpado que devia pag-lo. Fazia-se disso um negcio civil, contencioso, como se se tratasse de uma querela particular, e no do bem pblico. Parecia que o fisco tinha outros direitos que exercer alm da proteo da tranqilidade pblica, e o culpado outras penas que sofrer alm das que a necessidade do exemplo o exigia. O juiz, estabelecido para apurar a verdade com nimo imparcial, no era mais do que o advogado do fisco; e aquele que se chamava o protetor e o ministro das leis era apenas o exator dos dinheiros do prncipe.

Nesse sistema, quem se confessasse culpado se reconhecia, pela prpria confisso, devedor do fisco; e, como era esse o fim de todos os processos criminais, toda a arte do juiz consistia em obter essa confisso da maneira mais favorvel aos interesses do fisco.

ainda para esse mesmo fim fiscal que tende hoje toda a jurisprudncia criminal, pois os efeitos permanecem por muito tempo depois de cessadas as causas.

O acusado que recusa confessar-se culpado, embora convencido por provas certas, sofrer uma pena mais leve do que se tivesse confessado; no lhe ser aplicada a tortura pelos outros crimes que poderia ter cometido, precisamente porque no confessou o crime principal de que est convencido. Mas, se o crime confessado, o juiz apodera-se do corpo do culpado; dilacera-o metodicamente; e faz dele,. por assim dizer, um fundo do qual tira todo o proveito possvel.

Uma vez reconhecida a existncia do delito, a confisso do acusado se torna prova convincente. Acredita-se tornar essa prova menos suspeita, arrancando a confisso do crime pelos tormentos e pelo desespero; e se estabeleceu que a confisso no basta para condenar o culpado, se esse culpado calmo, se fala desembaraadamente, se no est cercado das formalidades judicirias e do aparato aterrador dos suplcios.

Excluem-se cuidadosamente da instruo de um processo as investigaes e as provas que, esclarecendo o fato de maneira a favorecer o acusado, poderiam prejudicar as pretenses do fisco; e, se s vezes se poupam alguns tormentos ao culpado, no nem por piedade para com a desgraa, nem por indulgncia para com a fraqueza, mas porque as confisses obtidas so suficientes para os direitos do fisco, esse dolo que j no a de uma quimera e que a mudana das circunstncias nos torna inconcebvel.

O juiz, quando exerce suas funes, no mais do que o inimigo do culpado, isto , de um infeliz curvado ao peso das cadeias, minado pelo sofrimento, que os tormentos esperam e que o futuro mais terrvel cerca de horror e de assombro. No a verdade o que ele procura; quer descobrir no acusado um culpado; prepara-lhe armadilhas, parece que tem tudo que perder e que teme, se no puder convencer o acusado, diminuir a infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas.

O juiz tem o poder de determinar por que indcios se pode encarcerar um cidado. E declarar que esse cidado culpado, antes de poder provar que inocente. No se parecer tal informao com um procedimento ofensivo? E eis, todavia, a marcha da jurisprudncia criminal, em quase toda a Europa, no sculo XVIII, em plena luz. Mal se conhece nos tribunais o verdadeiro processo das informaes, isto , a investigao imparcial do fato, prescrita pela razo, seguida nas leis militares, empregada mesmo por esses dspotas da sia, nos assuntos que s interessam os particulares.

Nossos descendentes, sem dvida mais felizes do que ns, tero dificuldade em conceber essa complicao torturosa dos mais estranhos absurdos, e esse sistema de iniqidades incrveis, que s o filsofo poder julgar possvel, estudando a natureza do corao humano.

XLI. DOS MEIOS DE PREVENIR CRIMES 1h2942

MELHOR prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sbio deve procurar antes impedir o mal do que repar-lo, pois uma boa legislao no seno a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possvel e preserv-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o clculo dos bens e dos males desta vida.

Mas, os meios que at hoje se empregam so em geral insuficientes ou contrrios ao fim que se propem. No possvel submeter a atividade tumultuosa de uma massa de cidados a uma ordem geomtrica, que no apresente nem irregularidade nem confuso. Embora as leis da natureza sejam sempre simples e sempre constantes, no impedem que os planetas se desviem s vezes dos movimentos habituais. Como poderiam, pois, as leis humanas, em meio ao choque das paixes e dos sentimentos opostos da dor e do prazer, impedir que no haja alguma perturbao e algum desarranjo na sociedade? essa, porm, a quimera dos homens limitados, quando tm algum poder.

Se se probem aos cidados uma poro de atos indiferentes, no tendo tais atos nada de nocivo, no se previnem os crimes: ao contrrio, faz-se que surjam novos, porque se mudam arbitrariamente as idias ordinrias de vcio e virtude, que todavia se proclamam eternas e imutveis.

Alm disso, a que ficaria o homem reduzido, se fosse preciso interdizer-lhe tudo o que pode ser para ele uma ocasio de praticar o mal? Seria preciso comear por tirar-lhe o uso dos sentidos.

Para um motivo que leva os homens a cometer um crime, h mil outros que os levam a aes indiferentes, que s so delitos perante as ms leis. Ora, quanto mais se estender a esfera dos crimes, tanto mais se far que sejam cometidos. porque se vero os delitos multiplicar-se medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem mais numerosos, sobretudo se a maioria dessas leis no arem de privilgios, isto , de um pequeno nmero de senhores.

Quereis prevenir os crimes? Fazeis leis simples e claras; fazei-as amar; e esteja a nao inteira pronta a armar-se para defend-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destru-las.

No favoream elas nenhuma classe particular; protejam igualmente cada membro da sociedade; receie-as o cidado e trema somente diante delas. O temor que as leis inspiram salutar, o temor que os homens inspiram uma fonte funesta de crimes.

Os homens escravos so sempre mais debochados, mais covardes, mais cruis do que os homens livres. Estes investigam as cincias; ocupam-se com os interesses da nao; vem os objetos sob um ponto de vista elevado, e fazem grandes coisas. Mas, os escravos, satisfeitos com os prazeres do momento, procuram no rudo do deboche uma distrao para o aniquilamento em que se vem mergulhados. Toda sua vida est cercada de incertezas, e, como para eles os delitos no esto determinados, no sabem quais sero suas conseqncias: e isso empresta nova fora paixo que os leva a pratic-los.

Num povo que o clima torna indolente, a incerteza das leis entretm e aumenta a inao e a estupidez.

Numa nao voluptuosa, mas ativa, as leis incertas fazem que a atividade dos cidados se limite a pequenas cabalas e intrigas, surdas, que semeiam a desconfiana. Ento, o homem mais prudente aquele que sabe melhor dissimular e trair.

Num povo forte e corajoso, a incerteza das leis forada por fim e substituir-se por uma legislao precisa; isso, porm, s acontece depois de revolues freqentes, que conduziram esse povo, alternativamente, da liberdade escravido e da escravido liberdade.

Quereis prevenir os crimes? Marche a liberdade acompanhada das luzes. Se as cincias produzem alguns males, quando esto pouco difundidas; mas, medida que se estendem, as vantagens que trazem se tornam maiores.

Um impostor ousado (que no pode ser um homem vulgar) faz-se adorar por um povo ignorante e s objeto de desprezo para uma nao esclarecida.

O homem instrudo sabe comparar os objetos, consider-los sob diversos pontos-de-vista e modificar os prprios sentimentos pelos dos outros, porque v nos seus semelhantes os mesmos desejos e as mesmas averses que agem sobre o seu corao.

Se prodigalizardes luzes ao povo, a ignorncia e a calnia desaparecero diante delas, a autoridade injusta tremer, s as leis permanecero inabalveis, todo-poderosas; e o homem esclarecido amar uma constituio cujas vantagens so evidentes, uma vez conhecidos seus dispositivos, e que d bases slidas segurana pblica. Poder ele lamentar essa intil partcula de liberdade de que se privou, se a comparar com a soma de todas as outras liberdades que os seus concidados lhe sacrificaram, e se pensar que, sem as leis, estes ltimos poderiam armar-se e unir-se contra ele?

Dotado de uma alma sensvel, verifica-se que, sob boas leis, o homem s perdeu a funesta liberdade de praticar o mal, forado a bendizer o trono e o soberano que s o ocupa para proteger.

No verdade que as cincias sejam nocivas humanidade. Se s vezes deram maus resultados, que o mal era inevitvel. Multiplicando-se os homens sobre a superfcie da terra, viram-se nascer a guerra, algumas artes grosseiras, e as primeiras leis, que no eram seno convenes momentneas e que pereciam com a necessidade ageira que as produziria. Foi ento que a filosofia comeou a aparecer; seus primeiros princpios foram pouco numerosos e sabiamente escolhidos, porque a preguia e a pouca sagacidade dos primeiros homens os preservam de muitos erros.

Mas, multiplicadas as necessidades juntamente com a espcie humana, foram necessrias impresses mais fortes e mais durveis para impedir as voltas freqentes, e cada dia mais funestas ao estado selvagem. Foram, pois, um grande bem para a humanidade (digo um grande bem sob o aspecto poltico) os primeiros erros religiosos que povoaram o universo de falsas divindades e que inventaram um mundo invisvel de espritos encarregados de governar a terra.

Foram benfeitores do gnero humano esses homens audaciosos que ousaram enganar seus semelhantes para servi-los e que arrastaram a ignorncia temerosa ao p dos altares. Apresentando aos homens objetos fora do alcance dos sentidos, interessaram-nos na investigao desses objetos, que fugiam diante deles medida que os julgavam mais prximos; foraram-nos a respeitar o que no conheciam bem e souberam concentrar para esse nico fim, que os impressionava fortemente, todas as paixes que os agitavam.

Tal foi a sorte de todas as naes que se formaram da reunio de diferentes povoaes selvagens. Foi a poca da formao das grandes sociedades; e as idias religiosas foram sem dvida o nico lao que pode obrigar os homens a viverem constantemente sob leis.

No falo desse povo que Deus escolheu. Os milagres mais extraordinrios e os favores mais assinalados que o cu lhe prodigalizou substituram a poltica humana.

Mas, como os erros podem subdividir-se ao infinito, as falsas cincias que tais erros produziram fizeram dos homens uma multido fantica de cegos, perdidos no labirinto em que se encerraram e prestes a chocar-se a cada o. Ento, alguns filsofos sensveis lamentaram o antigo estado selvagem; e foi nessa primeira poca que os conhecimentos, ou antes, as opinies, tornaram-se funestos humanidade.

Pode considerar-se como uma poca mais ou menos semelhante o momento terrvel em que preciso ar do erro verdade, das trevas luz. O choque terrvel dos preconceitos teis a um pequeno nmero de homens poderosos contra as verdades vantajosas para a multido fraca, e a fermentao de todas as paixes sublevadas, causam males infinitos aos infelizes humanos.

Percorrendo a histria, cujos principais acontecimentos, aps certos intervalos, se reproduzem quase sempre, detenhamo-nos na agem perigosa, mas indispensvel, da ignorncia filosofia, e portanto da escravido liberdade; e veremos quantas vezes uma gerao inteira sacrificada felicidade da que deve suceder-lhe.

Quando, porm, a calma est restabelecida, quando j est extinto o incndio cujas flamas purificaram a nao, livrando-a dos males que a oprimiam, a verdade, que primeiro se arrastava com lentido, precipita os os, senta-se nos tronos ao lado dos monarcas e, por fim, nas assemblias das naes, sobretudo nas repblicas, obtm culto e altares.

Poder-se- acreditar, ento, que as luzes que esclarecem a multido so mais perigosas do que as trevas? E que filsofo se persuadir de que o conhecimento exato das relaes que unem os objetos entre si possa ser funesto humanidade?

Se o semi-saber mais perigoso do que a ignorncia cega, porque aos males que produz a ignorncia acrescenta ainda os erros inumerveis que resultam inevitavelmente de uma viso limitada aqum dos limites da verdade, sem dvida o dom mais precioso que um soberano pode conceder nao e a si mesmo confiar o depsito sagrado das leis a um homem esclarecido. Acostumado a ver a verdade sem tem-la, acima dessa necessidade geral dos sufrgios pblicos, necessidade que nunca est satisfeita e que to freqentemente faz sucumbir a virtude; habituado a tudo considerar sob os pontos de vista mais elevados, ele v a nao como uma famlia, os seus concidados como irmos; e a distncia que separa os grandes do povo lhe parece tanto menor quanto sabe envolver com o olhar maior massa de homens.

O sbio tem necessidades e interesses que o vulgo desconhece; para ele uma necessidade no desmentir, em sua conduta pblica, os princpios que estabeleceu nos seus escritos e o hbito que adquiriu de amar a verdade por si mesma.

Tais homens fariam a felicidade de uma nao; mas, para tornar essa felicidade durvel, preciso que boas leis aumentem de tal forma o nmero dos sbios que quase j no seja possvel fazer uma escolha errnea.

Outro meio de prevenir os delitos afastar do santurio das leis a prpria sombra da corrupo, interessando os magistrados em conservar em toda a sua pureza o depsito que a nao lhes confia.

Quanto mais numerosos forem os tribunais, tanto menos se poder temer que violem as leis, porque, entre vrios homens que se observam mutuamente, a vantagem de aumentar a autoridade comum tanto menor quanto menor a parcela de autoridade de cada um e muito pouco considervel para contrabalanar os perigos da empresa.

Se o soberano d muito aparato, pompa e autoridade magistratura; se ao mesmo tempo fecha todo o aos lamentos justos ou mal fundados do fraco, que se julga oprimido; se acostuma os sditos a temer os magistrados mais do que as leis, aumentar sem dvida o poder dos juizes, mas somente custa da segurana pblica e particular.

Podem ainda prevenir-se os crimes recompensando a virtude; e pode-se observar que as leis atuais de todas as naes guardam a esse respeito um profundo silncio.

Se os prmios propostos pelas academias aos autores das descobertas teis alargaram os conhecimentos e aumentaram o nmero dos bons livros, imagine-se que recompensas concedidas por um monarca benfeitor no multiplicariam tambm as aes virtuosas. A moeda da honra, distribuda com sabedoria, jamais se esgota e produz sempre bons frutos.

Afim, o meio mais seguro, mas ao mesmo tempo mais difcil de tornar os homens menos inclinados a praticar o mal, aperfeioar a educao.

O assunto vasto demais para entrar nos limites que me prescrevi. Ouso, porm, dizer que est to estreitamente ligado com a natureza do governo que ser apenas um campo estril e cultivado somente por um pequeno nmero de sbios, at chegarem os sculos ainda distantes em que as leis no tero outro fim seno a felicidade pblica.

Um grande homem, que esclarece os seus semelhantes e que por estes perseguido, desenvolveu as mximas principais de uma educao verdadeiramente til (23). Fez ver que ela consistia bem menos na multido confusa dos objetos que se apresentam s crianas do que na escolha e na preciso com as quais se lhes expem.

Provou que preciso substituir as cpias pelos originais nos fenmenos morais ou fsicos que o acaso ou a habilidade do mestre oferece ao esprito do aluno.

Ensinou a conduzir as crianas virtude, pela estrada fcil do sentimento, a afast-las do mal pela fora invencvel de necessidade e dos inconvenientes que seguem a m ao.

Demostrou que o mtodo incerto da autoridade imperiosa deveria ser abandonado, pois s produz uma obedincia hipcrita e ageira.

XLII. CONCLUSO 2k5ck

DE tudo o que acaba de ser exposto, pode deduzir-se um teorema geral utilssimo, mas conforme ao uso, que o legislador ordinrio das naes:

que, para no ser um ato de violncia contra o cidado, a pena deve ser essencialmente pblica, pronta, necessria, a menor das penas aplicveis nas circunstncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.

APNDICE 3u3j5l

RESPOSTAS S "NOTAS E OBSERVAES" DE UM FRADE DOMINICANO SOBRE O LIVRO "DOS DELITOS E DAS PENAS" 303z3v

ESSAS Notas e Observaes no am de uma coleo de injrias contra o autor do livro Dos Delitos e Das Penas, que chamado fantico, impostor, escritor falso e perigoso, satrico desenfreado, sedutor do pblico. acusado de distilar o fel mais amargo, de juntar a contradies vergonhosas os traos prfidos e ocultos da dissimulao e de ser obscuro por perversidade. O crtico pode estar certo de que no responderei s personalidades.

Representa ele o meu livro como uma obra horrvel, virulenta e de uma licena venenosa, infame, mpia. Encontra nele blasfmias impudentes, insolentes ironias, pilhrias indecentes, sutilezas perigosas, motejos escandalosos, calnias grosseiras.

A religio e o respeito devido aos soberanos so o pretexto para duas das mais graves acusaes que se acham nessas Notas e Observaes. Sero estas as nicas s quais me julgarei obrigado a responder. Comecemos pela primeira.

I - Acusao de impiedade 652n2j


1. - "O autor do livro Doa Delitos e das Penas no conhece essa justia que tem origem no legislador eterno, que tudo v e prev".

Eis mais ou menos o silogismo do autor das Notas.

"O autor do livro Dos Delitos no aprova que a interpretao da lei dependa da vontade e do capricho de um juiz. - Ora, aquele que no quer confiar a interpretao da lei vontade e aos caprichos de um juiz no cr numa justia emanada de Deus. - O autor no ite, pois, uma justia puramente divina... "

2. - "Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas, a Escritura santa s contm imposturas".

Em toda a obra Dos Delitos e das Penas, s se trata da Escritura santa uma nica vez; quando, a propsito dos erros religiosos, no captulo XLI. eu disse que no falava desse povo eleito de Deus, para o qual os milagres mais extraordinrios e as graas mais assinaladas substituram a poltica humana.

3. - "Toda a gente sensata encontrou no autor do livro Dos Delitos e das Penas um inimigo do cristianismo, um mau homem e um mau filsofo".

Pouco me importa parecer ao meu crtico bom ou mau filsofo; os que me conhecem asseguram que no sou mau homem.

Serei, ento, inimigo do cristianismo, quando insisto para que a tranqilidade dos templos seja assegurada sob a proteo do governo, e quando digo, ao falar da sorte das grandes verdades, que a revelao a nica que se conservou em sua pureza, em meio s nuvens tenebrosas com que o erro envolveu o universo durante tantos sculos?

4. - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas fala da religio como se se tratasse de uma simples mxima poltica".

O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama religio "um dom sagrado do cu". Ser provvel que ele trate como simples mxima poltica o que lhe parece um dom sagrado do cu?

5. - "O autor inimigo declarado do Ser supremo".

Peo de todo meu corao que esse Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem.

6. - "Se o cristianismo causou algumas desgraas e alguns morticnios, ele exagera-os e silencia sobre os bens e as vantagens que a luz do Evangelho espalhou sobre todo o gnero humano".

No se encontrar um nico lugar no meu livro que faa meno aos males causados pelo Evangelho; no citei mesmo um s fato que com isso se relacione.

7. - "O autor profere uma blasfmia contra os ministros da religio, ao dizer que suas mos sujaram-se de sangue humano".

Todos os que escreveram a histria, desde Carlos Magno (24) at Oto-o-Grande (25), e mesmo depois desse prncipe, proferiram muitas vezes a mesma blasfmia. Ignorar-se- que, durante trs sculos, o clero, os abades e. os bispos no tiveram escrpulo algum em marchar para a guerra? E no ser o caso de dizer, sem blasfemar, que os eclesisticos que se achavam no meio das batalhas e que participaram da carnificina sujavam as mos de sangue humano?

8. - "Os prelados da Igreja catlica, to recomendveis por sua doura e sua humanidade, am, no livro Dos Delitos e das Penas, por ser os autores de suplcios to brbaros quanto inteis".

No tenho culpa de ser obrigado a repetir mais de uma vez a mesma coisa. No se citar na minha obra uma s frase que diga que os prelados inventaram suplcios.

9. - "A heresia no pode chamar-se crime de lesa-majestade divina, segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas".

No h em todo o meu livro uma palavra que possa dar lugar a tal imputao. Propus-me apenas tratar Dos Delitos e das Penas, e no dos pecados.

Eu disse, falando do crime de lesa-majestade, que somente a ignorncia e a tirania, que confundem as palavras e as idias mais claras, podem chamar por esse nome e punir como tais, com o ltimo suplcio, delitos de natureza diferente. O crtico talvez ignore quanto se abusa da palavra lesa-majestade nos tempos de tirania e de ignorncia, aplicando-a a delitos de gnero inteiramente diverso, pois no conduziam imediatamente destruio da sociedade. Consulte a lei dos imperadores Graciano (26), Valentiniano (27) e Teodsio (28); observe como so considerados criminosos de lesa-majestade aqueles que ousam duvidar da bondade da escolha do imperador, quando este conferia algum emprego. Uma outra lei de Valentiniano, de Teodsio e de Arccio (29) ensinar-lhe- que os moedeiros falsos tambm eram criminosos de lesa-majestade. Era preciso um decreto do Senado para livrar da acusao de lesa-majestade aquele que tivesse fundido esttuas dos imperadores, embora velhas e mutiladas. Somente depois de um edito dos imperadores Severo (30) e Antonino que se deixou de intentar a ao de lesa-majestade contra os que vendiam as esttuas dos imperadores; e esses prncipes baixaram um decreto que proibia a perseguio por esse crime daqueles que acaso tivessem lanado uma pedra contra a esttua de um imperador. Domiciano (31) condenou morte uma dama romana, por se ter despido diante de sua esttua. Tibrio (32) mandou matar, como criminoso de lesa-majestade, um cidado que vendera uma casa em que se achava a esttua do imperador.

Em sculos menos distantes do nosso, ver Henrique VIII (33) abusar de tal modo das leis que fez perecer por um suplcio infame o duque de Norfolk, sob o pretexto de crime de lesa-majestade, porque ele juntara as armas da Inglaterra s de sua famlia. Esse monarca chegou a declarar culpado do mesmo crime quem quer que ousasse prever a morte do prncipe; da resultou que, na sua ltima molstia, os seus mdicos recusaram adverti-lo do perigo em que se achava.

10. - "Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas, os hereges anatematizados pela Igreja e proscritos pelos prncipes so vtimas de uma palavra".

Todas essas interpretaes so foradas. Limitei-me a falar do crime de lesa-majestade humana; e a palavra lesa-majestade serviu muitas vezes de pretexto tirania, sobretudo ao tempo dos imperadores romanos. Toda ao que tivesse a desgraa de desagradar-lhes tornava-se logo um crime de lesa-majestade. Suetnio (34) diz que o crime de lesa-majestade era o delito dos que no tinham cometido delito algum. Se eu disse que a ignorncia e a tirania deram esse nome a delitos de natureza diferente e tornaram os homens vtimas de uma palavra, no fiz seno falar segundo a histria.

11. - "No ser uma horrvel blasfmia sustentar, com o autor do livro Dos Delitos e das Penas, que a eloqncia, a declamao e as mais sublimes verdades so um freio demasiado fraco para reter por muito tempo as paixes humanas?"

No penso que a acusao de blasfmia recaia sobre o que eu disse da eloqncia e da declamao. O acusador quis, de certo, referir-se insuficincia que eu atribuo s mais sublimes verdades. Pergunto-lhe se julga que na Itlia se conhecem essas sublimes verdades, isto , as da f. Sem dvida, responder-me- que sim. Mas serviram tais verdades de freio s paixes humanas na Itlia? Todos os oradores sacros, todos os juizes, todos os homens, numa palavra, assegurar-me-o o contrrio. um fato, pois, que as sublimes verdades so, para as paixes humanas, um freio que as no refreia ou que logo se parte; e, enquanto houver num pas catlico, juizes criminosos, prises e castigos, estar provada a insuficincia das sublimes verdades.

12. - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas escreve imposturas sacrlegas contra a Inquisio".

Meu livro no faz nenhuma meno, nem direta, nem indireta, da Inquisio. Pergunto, porm, ao meu acusador se lhe parece bem conforme ao esprito da Igreja a condenao de homens morte nas fogueiras. No do seio mesmo de Roma, sob os olhos do vigrio de Jesus Cristo, na capital da religio catlica, que se cumprem hoje, para com protestantes de qualquer nao, todos os deveres de humanidade e hospitalidade? Os ltimos papas, e sobretudo o atual, receberam e recebem com a maior bondade os ingleses, os holandeses e os russos; esses povos, de seitas e religies diferentes, tm em Roma toda a liberdade vel, e ningum est mais certo do que eles de gozar ali da proteo das leis e do governo.

13. - O autor do livro Dos Delitos e das Penas representa, sob cores odiosas, as ordens religiosas e sobretudo os frades".

Seria difcil citar um s lugar do meu livro que faa meno de ordens religiosas ou de frades, a menos que se interprete arbitrariamente o capitulo em que falo da ociosidade.

14. - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas um desses escritores mpios, para os quais os eclesisticos no am de charlates, os monarcas de tiranos, os santos de fanticos, a religio de impostura, e que nem mesmo respeitam a majestade do Criador, contra o qual vomitam blasfmias hediondas".

emos s acusaes de sedio.

II - Acusaes de sedio 1y5a4y


1. - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas considera todos os prncipes e todos os soberanos do sculo como tiranos cruis".

S uma vez falei no meu livro dos soberanos e dos prncipes que reinam atualmente na Europa; e eis o que digo: "Feliz o gnero humano, se, pela primeira vez, recebesse leis! Hoje, que vemos elevados nos tronos da Europa, etc. (Ver o fim do cap. XVI).

2. - "No podem deixar de espantar a confiana e a liberdade com que o autor do livro Dos Delitos e das Penas se volta furioso contra os soberanos e os eclesisticos".

A confiana e a liberdade no so um mal. Qui ambulat simpliciter, ambulat confidenter; qui autem depravat vias suas, manifestus erit (35).

Se aprovei nos sditos certo esprito de independncia, foi na medida que se submetessem s leis e fossem respeitosos para com os primeiros magistrados. Desejo mesmo que os homens, no tendo que temer a escravido, mas gozando de sua liberdade sob a proteo das leis, se tornem soldados intrpidos, defensores da ptria e do trono, cidados virtuosos e magistrados incorruptveis, que levem ao p do trono os tributos e o amor de todas as ordens da nao e que espalhem nas cabanas a segurana e. a esperana de uma sorte cada vez mais doce. J no estamos nos sculos de Calgula (36), de Nero (37), de Heliogbalo (38); e o crtico faz muito pouca justia aos prncipes reinantes acreditando que os meus princpios possam ofend-los.

3. - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas sustenta que o interesse do particular supera o de toda a sociedade em geral ou dos que a representam".

Se houvesse tal absurdo no livro Dos Delitos e das Penas, no creio que o meu adversrio tivesse feito um livro de 191 pginas para refut-lo.

4. - "O autor do livro Dos Delitos e das Penas contesta aos soberanos o direito de punir com a morte".

Como no se trata aqui nem de religio nem de governo, mas somente da justeza de um raciocnio, meu acusador tem toda a liberdade de julgar o que quiser. Reduzo o meu silogismo desta forma:

No se deve infligir a pena de morte, se esta no verdadeiramente til e necessria;

Mas, a pena de morte no necessria nem verdadeiramente til;

No deve, pois, infligir-se a pena de morte.

No este o lugar para uma dissertao sobre os direitos dos soberanos. O crtico no querer, certamente, sustentar que se deva infligir a pena de morte, mesmo quando ela no verdadeiramente til, nem necessria. Proposta to cruel e escandalosa no pode sair da boca de um cristo. Se a segunda parte do silogismo no exata, tratar-se- de um crime de lesa-lgica e nunca de lesa-majestade. Podem, alis, escusar-se os meus pretensos erros; assemelham-se eles queles em que incidiram tantos cristos zelosos da primitiva Igreja (39); assemelham-se queles em que incorreram os frades da poca de Teodsio-o-Grande, no fim do IV sculo. Nos seus Anais da Itlia, diz Muratori (40) que, no ano 389, "Teodsio fez uma lei pela qual ordenava aos frades que permanecessem nos conventos, porque levavam a caridade pelo prximo ao ponto de arrancar os criminosos das mos da justia, no querendo que se mandasse matar ningum". Minha caridade no vai to longe e convirei de bom grado que a daquele tempo se conduzia por falsos princpios. Uma ao violenta contra a autoridade pblica sempre criminosa.

Restam-me ainda duas palavras que dizer. Haver no mundo uma lei que proba dizer-se ou escrever-se que um Estado pode existir e conservar a paz interna sem empregar a pena de morte contra qualquer culpado? Conta Deodoro (41) (liv. I, cap. LXV) que Sabaco, rei do Egito, fez-se irar como modelo de demncia, porque comutou as penas capitais nas da escravido e porque deu um emprego feliz sua autoridade condenando os culpados aos trabalhos pblicos. Estrabo (42) (liv. XI) informa-nos que havia, perto do Cucaso, algumas naes que no conheciam a pena de morte, mesmo quando o delito merecia os maiores suplcios, nemini mortem irrogare, quamvis pessima merito (43). Essa verdade consignada na histria romana, na poca da lei Prcia, que probe que se tire a vida de um cidado romano, se a sentena de morte no for revestida do consenso geral de todo o povo. Tito Lvio (44) fala dessa lei (liv. X, cap. IX). Finalmente, o exemplo recente de um reinado de vinte anos, no mais vasto imprio do mundo, a Rssia, atesta ainda essa verdade: a imperatriz Isabel, morta h alguns anos, jurou, ao subir ao trono dos czares, que no faria morrer nenhum culpado sob o seu reinado. Essa augusta princesa nunca deixou de cumprir o feliz compromisso que assumira, sem interromper o curso da justia criminal e sem prejudicar a tranqilidade pblica. Se esses fatos so incontestveis, ser, ento verdade dizer que um Estado pode subsistir e ser feliz sem punir de morte nenhum criminoso.

EXTRATO DA CORRESPONDNCIA DE BECCARIA E DE MORELLET SOBRE O LIVRO "DOS DELITOS E DAS PENAS" 6242y



De Morellet (45) a Beccaria 4w1k2v


Paris, fevereiro de 1766.

Senhor:

Sem ter a honra de conhecer-vos, julgo-me no direito de enderear-vos um exemplar da traduo que fiz de vossa obra Dei Delitti e delle Pene. Os homens de letras so cosmopolitas e de todas as naes; esto ligados por laos mais estreitos do que os que unem os cidados de um mesmo pas, os habitantes de uma mesma cidade e os membros de uma mesma famlia. Julgo, pois, poder entrar convosco num comrcio de idias e de sentimentos que me ser bastante agradvel, se no vos recusardes ao entusiasmo de um homem que vos estima sem conhecer-vos pessoalmente, mas que adquiriu esses sentimentos por vs na leitura do vosso excelente trabalho.

Foi o sr. de Malesherbes (46), com quem tenho a honra de conviver, que me empenhou em fazer ar vosso livro para a nossa lngua. Eu no tinha necessidade, para tanto, de esforar-me muito. Era-me uma ocupao agradvel tornar-me, para minha nao e para o pas em que nossa lngua est difundida, o intrprete e o rgo das idias fortes e grandes e dos sentimentos de benevolncia de que vossa obra est cheia. Parecia-me que me associaria ao bem que fazeis aos homens e que poderia igualmente pretender certo reconhecimento da parte dos coraes sensveis, aos quais so caros os interesses da humanidade.

Faz hoje oito dias que minha traduo apareceu. Eu no quis escrever-vos mais cedo, porque julguei dever esperar que pudesse instruir-vos sobre a impresso causada por vossa obra. Ouso, pois, assegurar-vos, Senhor, que o xito universal e que, alm da ateno despertada pelo livro, se formaram pelo autor sentimentos que podem lisonjear-vos ainda mais, isto , a estima, o reconhecimento, o interesse, a amizade. Estou particularmente encarregado de apresentar-vos os agradecimentos e os cumprimentos do sr. Diderot (47), do Sr. Helvtius (48), do Sr. de Buffon (49). J conversamos muito com o sr. Diderot sobre vossa obra, que bem capaz de pr fogo a uma cabea to quente como a dele. Terei algumas observaes que vos comunicar, que so o resultado das nossas conversas. O sr. de Buffon serviu-se das expresses mais fortes para testemunhar-me o prazer que vosso livro lhe causou; e pede-vos aceiteis os seus cumprimentos. Levei tambm vosso livro ao Sr. Rousseau (50), que est em Paris de viagem para a Inglaterra, aonde vai estabelecer-se, e que parte por estes dias. Ainda no posso dizer-vos sua impresso, porque no tornei a v-lo. Talvez possa conhec-la hoje por intermdio do Sr. Hume (51), com quem irei jantar; estou, porm, certo da impresso que ele ter. O sr. Hume, que vive h tempos conosco, encarregou-me, igualmente, de dizer-vos mil coisas de sua parte.

A essas pessoas, que conheceis por sua reputao, acrescento um homem infinitamente estimvel que as rene em sua casa, o Sr. baro d'Holbach (52), autor de excelentes trabalhos impressos, de qumica e de histria natural, e de muitos outros que no foram publicados; filsofo profundo, juiz esclarecidssimo de todos os gneros de conhecimentos, alma sensvel e aberta amizade. No posso exprimir-vos a impresso que vosso livro lhe causou, nem quanto ele ama e estima a obra, e o autor. Como amos a vida em casa dele, seria preciso que o conhecsseis primeiro, porque, se pudermos ter a honra de atrair-vos a Paris, esta casa ser a vossa. Envio-vos, pois, igualmente, os seus agradecimentos e as suas saudaes. No vos falo do Sr. d'Alembert (53), que vos escreveu e me disse que queria juntar ainda uma palavra minha carta. Deveis conhecer sua opinio sobre vossa obra. Quanto traduo, compete-lhe dizer-vos se ficou satisfeito...

No vos ocultarei a mais forte razo que me determinou a tratar de vos dar alguma boa opinio de mim: a esperana de que me perdoareis mais facilmente a liberdade que tomei de fazer algumas modificaes na disposio de algumas partes do vosso trabalho. Apresentei no prefcio as razes gerais que me justificam: convosco, porm, devo alongar-me um pouco a esse respeito. Para o esprito filosfico que se torna senhor da matria, nada mais fcil do que apreender o conjunto de vosso tratado, cujas partes se ligam estreitamente e dependem todas do mesmo princpio. Mas, para os leitores vulgares e menos instrudos, e sobretudo para os leitores ses, julgo ter seguido um caminho mais regular e em tudo mais conforme ao gnio de minha nao e feio dos nossos livros.

A nica objeo que posso temer a censura de ter diminudo a fora e o calor do original, pelo restabelecimento mesmo dessa ordem. Eis minhas respostas: Sei que a verdade tem a maior necessidade da eloqncia e do sentimento. Seria absurdo pensar o contrrio, e sobretudo no seria convosco que se poderia avanar to estranho paradoxo. Mas, se no preciso sacrificar o calor ordem, creio no ser preciso to pouco sacrificar a ordem ao calor; e tudo ir bem se se puderem conciliar essas duas coisas a um tempo. Resta, pois, examinar, se me sa bem nessa conciliao.

Se minha traduo tem menos calor do que o original, seria preciso atribuir essa falha a muitas outras causas, e no diferena da ordem. Seria ou a fraqueza do estilo do tradutor, ou a natureza mesma de toda traduo, que deve ficar abaixo do original, sobretudo nas coisas de sentimento.

No devo dissimular-vos outra objeo que me fizeram. Disseram-me que um autor poderia chocar-se ao ver em sua obra modificaes mesmo teis. Mas, Senhor, essa maneira de ver no poderia ser a vossa. Assim pelo menos o julguei. Um homem de gnio, que fez uma obra irvel, cheia de idias novas e fortes, e excelente pelo fundo, deve poder ouvir dizer friamente que o seu livro no tem toda a ordem de que era suscetvel. Deve ir mesmo at adoo das modificaes feitas, se forem teis e baseadas em boas razes. Eis Senhor, a coragem que espero de vs. Rejeitai, dentre as modificaes feitas por mim, aquelas que vos parecem mal-entendidas; conservai as que estiverem bem, e acreditai que s tereis feito aumentar vossa reputao. Sois digno de que eu use para convosco dessa confiana, e me lisonjeio de que o aproveis.

Terminarei minha justificativa citando-vos grandes autoridades que aplaudiram a liberdade por mim tomada. O sr. d'Alembert permite-me que vos diga ser essa a sua opinio. O sr. Hume, que leu com muito cuidado o original e a traduo, do mesmo parecer. Eu poderia citar-vos ainda numerosas pessoas instrudas que assim tambm o julgaram.

A avidez com a qual o pblico recebeu aqui vossa obra faz-me acreditar que a nossa primeira edio breve estar esgotada e que, antes de um ms, ser preciso fazer outra. Se, na disposio que apresentei, separei idias que devam estar ligadas, ou fiz aproximaes que vos paream prejudicar o sentido, peo-vos que a respeito me participeis vossas observaes, e, numa nova edio, no deixarei de conformar-me com vossas opinies...

Termino, Senhor, esta longa carta, rogando-vos que me considereis como um dos vossos maiores iradores e como um dos homens que mais vivamente desejam participar de vossa estima e de vossa amizade. Muito me afligiria a idia de no v-lo poder dizer um dia a vs mesmos. Estou ansioso por ter vossas notcias, conhecer vosso juzo sobre a minha traduo, saber se continuais a marchar na bela estrada que vos abristes e a ocupar-vos com o bem da humanidade.

com tais sentimentos de respeito, de estima e de amizade que tenho a honra de ser, etc.
Morellet

De Beccaria a Morellet

Milo, maio de 1766.

Permiti-me, Senhor, que empregue convosco as frmulas usadas na vossa lngua, como mais cmodas, mais simples, mais verdadeiras, mais dignas por isso de um filsofo como vs. Permiti-me, igualmente, que me sirva de um copista, por ser a carta que vos escrevi muito pouco legvel. A mais profunda estima, o maior reconhecimento, a mais terna amizade, so os sentimentos que fez nascer em mim a carta encantadora que vos dignastes escrever-me. Eu no saberia exprimir-vos quanto me honra ver minha obra traduzida na lngua de uma nao que esclarece e instrui a Europa. Tudo devo, eu mesmo, aos livros ses. Foram eles que desenvolveram em minha alma os sentimentos de humanidade sufocados por oito anos de educao fantica. Eu j respeitava vosso nome pelos excelentes artigos que inseristes na obra imortal da Enciclopdia (54); e foi para mim a mais agradvel surpresa saber que um homem de letras da vossa reputao dignava-se de traduzir o meu tratado Dos Delitos. Agradeo-vos, de todo o meu corao, o presente que me fizeste de vossa traduo, assim como vossa ateno em satisfazer o interesse que eu tinha em l-la. Li-a com um prazer que no posso exprimir-vos, e achei que embelezastes o original. Protesto-vos com a maior sinceridade que a ordem que seguistes parece-me, a mim mesmo, mais natural e prefervel minha, e que lamento que a nova edio italiana esteja quase terminada, porque do contrrio eu me poria inteira ou quase inteiramente de acordo com o vosso plano.

Minha obra nada perdeu de sua fora em vossa traduo, exceto nos lugares em que o carter essencial a uma e a outra lngua estabeleceu certa diferena entre vossa expresso e a minha. A lngua italiana mais malevel e dcil, e talvez, por ser menos cultivada no gnero filosfico, possa adotar expresses que a vossa recusaria empregar. No vejo solidez na objeo que vos fizeram, de que a mudana da ordem poderia fazer perder a fora. A fora consiste na escolha das expresses e na aproximao das idias; e a confuso s pode prejudicar esses dois efeitos.

O receio de ferir o amor-prprio do autor no devia deter-vos mais. Primeiro, porque, como vs mesmo o dissestes com razo em vosso excelente prefcio, um livro em que se defende a causa da humanidade, uma vez tornado pblico, pertence ao mundo e a todas as naes; e, relativamente a mim em particular, eu teria feito muito poucos progressos na filosofia do corao, que coloco acima da do esprito, se no tivesse adquirido a coragem de ver e amar a verdade. Espero que a quinta edio, que deve aparecer breve, esteja logo esgotada; e asseguro-vos que na sexta observarei inteiramente, ou quase inteiramente, a ordem de vossa traduo, que d maior relevo s verdades que tratei de coligir. Digo quase inteiramente, porque, segundo uma leitura nica e rpida que fiz at este momento no posso decidir-me com inteiro conhecimento de causa sobre as particularidades como j o fiz sobre o conjunto.

A impacincia que meus amigos tm de ler vossa traduo forou-me, Senhor a deix-la sair de minhas mos logo depois de a ter tido, e sou obrigado a dar em outra carta a explicao de certas agens que julgastes obscuras. Devo dizer-vos, porm, que tive, ao escrever, os exemplos de Machiavelli (55), de Galileu (56) e de Giannone ante os meus olhos. Ouvi o rudo das cadeias firmar a superstio, e os gritos de fanatismo abafar os gemidos da verdade. A viso desse espetculo medonho determinou-me, algumas vezes, a envolver a luz de nuvens. Quis defender a humanidade sem ser mrtir. Essa idia, de que eu devia ser obscuro, tornou-me s vezes tal, sem necessidade. Acrescentai a isso a inexperincia e a falta de hbito de escrever, perdoveis num autor que tem apenas vinte e sete anos e que h somente cinco anos entrou na carreira das letras.

Ser-me-ia impossvel pintar-vos, Senhor, a satisfao com a qual vejo o interesse que tomais por mim, e quanto me comovem as demonstraes de estima que me dais, e que no posso aceitar sem ser vo, nem rejeitar sem fazer-vos injria. Recebi com o mesmo reconhecimento e a mesma confuso as coisas lisonjeiras que me dissestes da parte desses homens clebres que honram a humanidade, a Europa e a sua nao. D'Alembert, Diderot, Helvtius, Buffon, Hume, nomes ilustres que no se pode ouvir pronunciar sem ficar comovido, assim como vossas obras imortais, so minha leitura contnua, o objeto de minhas ocupaes durante o dia e de minhas meditaes no silncio da noite. Cheio das verdades que ensinais, como poderia eu incensar o erro e aviltar-me ao ponto de mentir posteridade?...

Minha nica ocupao cultivar em paz a filosofia, e contentar assim trs sentimentos muito vivos em mim: o amor reputao literria, o amor liberdade e a compaixo pelas desgraas dos homens, escravos de tantos erros. Data de cinco anos a poca de minha converso filosofia, e devo-a leitura das Cartas Persas (57).

A segunda obra que completou a revoluo do meu esprito foi a do sr. Helvtius. Foi ele quem me lanou com fora no caminho da verdade e quem primeiro despertou minha ateno para a cegueira e as desgraas da humanidade. Devo leitura do Esprito (58) uma grande parte de minhas idias...

O Sr. conde Firmiani regressou a Milo h vrios dias, mas est muito ocupado, e ainda no pude v-lo. Ele protegeu meu livro, e a ele que devo minha tranqilidade.

Remeter-vos-ei breve algumas explicaes das agens que achastes obscuras e que no pretendo justificar, porque no escrevi para no ser entendido. Rogo-vos encarecidamente me envieis vossas observaes e as dos vossos amigos, para que eu as aproveite numa sexta edio. Comunicai-me, sobretudo, o resultado de vossas palestras, sobre meu livro com o sr. Diderot. Desejo vivamente saber que impresso teve de mim essa alma sublime...

Tenho a honra de ser, etc.
Beccaria

Notas 6v4h4y



(1) Jurisconsulto alemo, do comeo do sculo XVII.

(2) Jurisconsulto piemonts, falecido em 1575.

(3) Jurisconsulto italiano, famoso por sua crueldade, falecido em Roma em 1618. Deixou uma obra em treze volumes.

(4) Aluso ao frade Vincenzo Facchinei di Gorfri, do convento de Vallombrosa, que escreveu Notas e Observaes cuja resposta vem publicada as Notas e Observaes cuja resposta vem publicada no Apndice deste volume.

(5) Thomas Hobbes (1588-1679), filsofo ingls autor do Leviatan, obra em que defende o materialismo em filosofia, o egosmo em moral e o despotismo em poltica.

(6) Aluso a Jean-Jacques Rousseau, de cuja autoria so os livros: Discursos sobre as Cincias e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade.

(7) Charles de Secondat, baro de Montesquieu (1689-1755), grande escritor francs, autor das Cartas Persas e dos livros Grandeza e Decadncia dos Romanos e O Esprito das Leis.

(8) "Observe-se que a palavra direito no contradiz a palavra fora. O direito a fora submetida a leis para vantagens da maioria. Entendo por justia os laos que renem de maneira estvel os interesses particulares. Se esses laos se quebrassem, no haveria sociedade. mister que se evite ligar palavra justia a idia de uma fora fsica ou de um ser existente. A justia pura e simplesmente o ponto de vista sob o qual os homens encaram as coisas morais para o bem-estar de cada um. No pretendo falar aqui de justia de Deus, que de outra natureza, tendo relaes imediatas com as penas e as recompensas de uma vida futura".

(9) "Se cada cidado tem obrigaes a cumprir para com a sociedade, a sociedade tem igualmente obrigaes a cumprir para com cada cidado, pois a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes. Essa cadeia de obrigaes mtuas, que desce do trono at cabana e que liga igualmente o maior e o menor dos membros da sociedade, tem como nico fim o interesse pblico, que consiste na observao das convenes teis maioria. Violada uma dessas convenes, abre-se a porta desordem. - A palavra obrigao uma das que se empregam mais freqentemente em moral do que em qualquer outra cincia. Existem obrigaes a cumprir no comrcio e na sociedade. Uma obrigao supe um raciocnio moral, convenes racionadas; no se pode, porm, emprestar palavra obrigao uma idia fsica ou real. uma palavra abstrata que precisa ser explicada. Ningum pode obrigar-vos a cumprir obrigaes sem saberdes quais so tais obrigaes". Nota de Beccaria.

(10) Isto , em vernculo e no em latim.

(11) "Entre os criminalistas, ao contrrio, a confiana que merece uma testemunha aumenta em proporo da atrocidade do crime. Apoiam-se eles neste axioma de ferro, ditado pela mais cruel imbecilidade: In atrocissimis leviores conjecturae sufficiunt, et licet judici jura transgredi. Traduzamos essa mxima hedionda, para que a Europa conhea ao menos um dos revoltantes princpios e to numerosos aos quais est submetida quase sem o saber: "Nos delitos mais atrozes, isto , menos provvel, bastam as mais ligeiras circunstncias, e o juiz pode pr-se acima das leis." Os absurdos em uso na legislao so muitas vezes o resultado do medo, fonte inesgotvel das inconseqncias e dos erros humanos. Os legisladores, ou antes, os jurisconsultos, cujas opinies so consideradas aps sua morte como espcies de orculos, e que, como escritores vendidos ao interesse, se tornaram rbitros soberanos da sorte dos homens, os legisladores, repito, receosos de ver condenar inocentes, sobrecarregaram a jurisprudncia de formalidades e excees inteis, cuja exata observao colocaria a desordem e a impunidade no trono da justia. Outras vezes, assombrados com certos crimes atrozes e difceis de provar, acharam que deviam desprezar essas formalidades que eles prprios estabeleceram. Foi assim. que, dominados ora por um despotismo impertinente, ora por temores pueris, fizeram dos julgamentos mais graves uma espcie de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do arbtrio".

(12) Refere-se Beccaria a Gustavo III (1746-1792), que subiu ao trono da Sucia, em 1771, tendo feito um governo liberal e posto em prtica numerosas idias defendidas pelos enciclopedistas ses. Morreu assassinado aos 46 anos de idade, vtima de uma conspirao dos aristocratas.

(13) Isabel Petrovna (1709-1762), filha de Pedro-o-Grande, tendo subido ao trono da Rssia em 1741.

(14) Tito, filho de Vespasiano, imperador romano de 76 a 81, cognominado a delcia do gnero humano, em virtude dos grandes benefcios feitos ao povo. "Perdi o dia" (Diem perdidi), - costumava ele dizer quando se ava um dia sem que tivesse tido ocasio de praticar alguma ao generosa.

(15) Antonino o Piedoso foi um dos sete imperadores romanos (Nerva, Trajano, Adriano, Antonio, Marco Aurlio, Vero e Cmodo) que reinaram de 96 a 192. Seu governo, de 138 a 161, caracterizou-se por um notvel esprito de moderao e de justia.

(16) Um dos sete imperadores antoninos, excelente organizador. Reinou de 98 a 117.

(17) "Nas primeiras edies desta obra, eu mesmo cometi esse erro. Ousei dizer que o falido de boa f devia ser guardado como penhor de sua dvida, reduzido ao estado de escravido e obrigado a trabalhar por conta dos credores. Envergonho-me de ter escrito essas coisas cruis. Acusaram-me de impiedade e de sedio, sem que eu fosse sedicioso nem mpio. Ataquei os direitos da humanidade, e ningum se levantou contra mim... "

(18) "0 comrcio ou a troca dos prazeres do luxo no deixa de ter inconvenientes. Esses prazeres so preparados por muitos agentes, mas partem de um pequeno nmero de mos e se distribuem a um pequeno nmero de homens. A maioria s raramente pode prov-los numa pequena proporo. Eis porque o homem se lamenta quase sempre de sua misria. Mas, esse sentimento apenas o efeito da comparao e nada tem de real".

(19) "Quando a extenso de um pas aumenta em proporo maior do que a populao, o luxo favorece o despotismo, porque a indstria particular diminui medida que os homens esto mais dispersos, e, quanto menos indstria houver, mais os pobres dependero dos ricos, cujo fausto os faz subsistir. Torna-se, ento, to difcil para os oprimidos reunirem-se contra os opressores, que as insurreies deixam de ser temidas. Os homens poderosos obtm com muito mais facilidade a submisso, a obedincia, a venerao e essa espcie de culto que torna mais sensvel a distncia que o despotismo estabelece entre o homem poderoso e o infeliz. - Os homens so mais independentes quando so menos observados, e so menos observados quando so em maior nmero. - Por outro lado, quando a populao aumenta em maior proporo do que a extenso do pas, o luxo torna-se, ao contrrio, uma barreira contra o despotismo. - Anima a indstria com a atividade dos cidados. O rico encontra em torno de si bastantes prazeres para entregar-se completamente ao luxo de ostentao, o nico capaz de firmar no esprito do povo a idia de sua dependncia. E pode observar-se que nos Estados vastos, mas fracos e despovoados, o luxo de ostentao deve prevalecer, se outras causas no o impedem; ao o que o luxo de comodidade tender a diminuir cada vez mais a ostentao nos pases mais populosos do que extensos".

(20) "Essa atrao se parece em muitas coisas com a gravitao universal. A fora dessas duas causas diminui com a distncia. Se a gravitao modifica os movimentos dos corpos, a atrao natural de um sexo para outro afeta todos os movimentos da alma, enquanto durar sua atividade. Essas causas diferem pelo fato de que a gravitao se pe em equilbrio com os obstculos que encontra, ao o que a paixo do amor adquire com os obstculos mais fora e vigor".

(21) 0 Evangelho.

(22) Ditador romano, nascido em 136 a. C. Companheiro e mais tarde rival de Mrio, cnsul em 88, vencedor de Mitridates, chefe do partido aristocrtico e depois senhor de Roma e da Itlia. Proscreveu os adversrios, reformou a constituio romana em sentido favorvel ao Senado e conseguiu enorme influncia. Abdicou inesperadamente em pleno fastgio e morreu no ano seguinte (80 a. C.).

(23) Referencia obra Emilio ou Da Educao (1762), romance filosfico em que Jean-Jacques Rousseau prope um sistema de educao baseado no princpio de que "o homem naturalmente bom" e de que, sendo m a educao dada pela sociedade, conviria estabelecer "uma educao negativa, como a melhor, ou antes, como a nica boa". A despeito de certos paradoxos, esse livro teve influncia salutar sobre a educao daquela poca.

(24) Carlos Magno ou Carlos I (742-814), rei dos Francos e imperador do Ocidente, era filho de Pepino-o-Breve, do qual sucedeu em 768. Poltico profundo e hbil organizador, estimava e protegia as letras, criando escolas, rodeando-se de homens eminentes e governando com sabedoria o seu imenso imprio.

(25) Oto I, o Grande (912-973), imperador da Alemanha desde 936, tendo governado com grande habilidade.

(26) Imperador romano de 375 a 383.

(27) Imperador romano de 364 a 375, cujo governo foi assinalado por grande severidade e intolerncia religiosa.

(28) Teodsio I, o Grande (346-395), imperador romano que contribuiu para o triunfo do cristianismo sobre o paganismo.

(29) Arcdio (376-408), filho de Teodsio, imperador do Oriente desde 395.

(30) Alexandre Severo (208-235), imperador romano, sucessor de Heliogbalo.

(31) Imperador romano de 81 a 96, filho de Vespasiano e de Tito, clebre por sua crueldade. Morreu assassinado, sendo cmplice do crime sua prpria mulher. Foi o ltimo dos doze Csares.

(32) Segundo imperador romano, de 14 a 37, famoso por sua desumanidade.

(33) Henrique VIII (1491-1547), rei da Inglaterra desde 1509, rompeu com a Igreja catlica e fundou o anglicanismo. Instrudo, artista, mas cruel e libertino.

(34) Historiador latino, autor da obra Os doze Csares, coleo de anedotas de imenso interesse documental.

(35) "Quem caminha livremente, caminha com confiana; quem, porm, se desvia do seu caminho, ser descoberto".

(36) Calgula (12-41), imperador romano desde 37. Famoso por sua crueldade, desejava que o povo romano tivesse uma s cabea para decep-la de um golpe. Sua insensatez chegou ao ponto de dar o titulo de cnsul ao seu cavalo Incitatus.

(37) Imperador romano de 54 a 68, que se celebrizou por sua crueldade.

(38) Imperador romano de 218 a 222 e que se tornou famoso por suas loucuras e crueldades.

(39) "Podem consultar-se os santos padres e, entre outros, Tertuliano na sua Apolog., cap. XXXVII, onde ele diz que os cristos tinham por mxima sofrer ante a prpria morte do que d-la a algum. E, no seu Tratado de Idolatria, caps. XVII e XXI, condena ele toda espcie de cargos pblicos, como interditos aos cristos, porque no era possvel exerc-los sem que, s vezes, fosse obrigado a pronunciar a pena de morte contra os criminosos".

(40) Lodovico Antonio Muratori (1672-1750), historiador Italiano.

(41) Deodoro da Siclia, autor de uma Biblioteca Histrica.

(42) Gegrafo grego, autor de uma preciosa Geografia. Morreu sob Tibrio.

(43) "No condenar ningum morte, nem mesmo pelo pior delito".

(44) Tito Lvio (59 a. C. - 19 d. C.), historiador latino, nascido em Pdua. Deixou, sob o ttulo de Dcadas, uma histria romana, mais notvel pelo estilo do que pela autenticidade dos fatos.

(45) Andr Morellet (1727-1819), abade, literato e economista francs, colaborador da Enciclopdia.

(46) Chrtien-Guillaume de Lamoignon de Malesherbes (1721-1794), magistrado de grande reputao, ministro sob Luiz XVI, que ele defendeu perante a Conveno. Morreu no cadafalso.

(47) Denis Diderot (1713-1784), filsofo francs, ardente propagandista das idias filosficas do sculo XVIII, um dos fundadores da Enciclopdia. Deixou vrias obras importantes.

(48) Claude-Arien Hlvetius (1715-1771), literato e filsofo francs, autor do livro Do Esprito.

(49) Georges-Louis Leclerc de Buffon (1707 1778), naturalista e escritor francs, autor da Histria Natural.

(50) Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filsofo e escritor francs, nascido em Genebra, autor da Nova Helosa, do Contrato Social, do Emilio ou Da Educao, Confisses e Discursos sobre as Cincias e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade.

(51) David Hume (1711-1776), filsofo e historiador ingls, criador da filosofia fenomenista, autor de um clebre Ensaio sobre o Entendimento Humano.

(52) Paul-Henri Holbach (1723-1789), baro, filsofo materialista francs, amigo e protetor dos Enciclopedistas

(53) Jean le Rond d'Alembert (1717-1783), clebre escritor, filsofo e matemtico francs, um dos fundadores da Enciclopdia.

(54) Publicao monumental, dirigida por d' Alembert e Diderot, que foi uma verdadeira mquina de guerra posta ao servio das doutrinas filosficas do sculo XVIII (1751-1772).

(55) Nicolau Machiavelli (1469-1527) poltico e historiador italiano, autor das Dcadas sobre Tito Lvio e do Prncipe.

(56) Galileu Galilei (1564-1642), ilustre matemtico, fsico e astrnomo italiano, nascido em Pisa. Proclamou, partilhando a teoria de Coprnico, que o Sol, e no a Terra, o centro do mundo planetrio, e que a Terra gira em torno de si mesma e tem tambm, como os outros planetas, um movimento de translao ao redor do Sol. Foi por isso denunciado como herege e obrigado pela Inquisio a abjurar de joelhos as suas afirmaes (1633). Depois dessa abjurao, que o livrou da fogueira, foi condenado ao cativeiro e morreu cego alguns anos mais tarde. famosa sua frase: E pur si muove! (E contudo se move!), que teria proferido ao ser obrigado a abjurar.

(57) Cartas satricas que Montesquieu publicou em 1721, sob o annimo. uma correspondncia imaginria de dois persas chegados Europa, Rica e Uzbek, dirigida aos seus amigos da Prsia e na qual o autor a em revista, com plena liberdade, a poltica, a religio e toda a sociedade sa de sua poca.

(58) Obra publicada em 1758 e na qual Helvtius aconselha o materialismo, tendo provocado os mais vivos protestos.
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