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DST/SIDA E EXCLUSO:

os Direitos Humanos e a garantia de sade (pblica)

Dani Rudnicki[1]

Pobreza, Excluso e Doena

No momento em que proponho reflexo sobre o tema-ttulo, penso num dos objetivos do Seminrio, qual seja, "debater os temas pobreza e excluso, vinculados questo dos Direitos Humanos, na inteno de buscar alternativas que possam vir a ser implementadas para a superao da pobreza e erradicao das prticas de excluso social".

Cabe detalhar alguns dos conceitos a expressos. Direitos Humanos, se percebe hoje, ao contrrio do que (ainda) pensam muitos juristas, no dizem respeito apenas a teorias sobre o ordenamento jurdico, sobre a validade e/ou vigncia da Declarao Universal de Direitos dos Homens. Direitos Humanos precisam ser buscados e transformados em realidade, e no apenas justificados; trata-se de uma questo poltica e no filosfica ou jurdica[2]. Direitos Humanos falam de respeito possibilidade de viver, de ser livre e feliz (de ter o educao, ao lazer e sade), de amar.

Assim, no se pode aceitar, num pas que pretenda respeitar os Direitos Humanos, pobreza e excluso. O pressuposto dos Direitos Humanos o respeito pela dignidade humana[3]; a conduta de cada pessoa (natural ou jurdica), a solidariedade, a empatia, que expressa em relao aos outros. Eis onde se colhe prova do engajamento em busca de uma vida melhor, uma sociedade mais justa.

Importante perceber que a pobreza

"No resultante apenas da ausncia de renda. Incluem-se a outros fatores, como o precrio o aos servios pblicos e, especialmente, a ausncia de poder. Nesta direo, o novo conceito de pobreza se associa ao de excluso, vinculando-se s desigualdades existentes e especialmente privao de poder de ao e representao e, neste sentido, excluso social tem que ser pensada tambm a partir da questo da democracia[4]."

Quanto ao conceito de excluso, h ainda muita divergncia. Ela aparece quando ao ser humano falta o o aos canais oficiais de representao e aos (poucos) servios prestados pelo Estado. Tambm pode-se perceb-lo quando, em Estados nacionais formados por sociedades plurais, como os contemporneos, nos quais a diversidade deveria ser regra surgem dificuldades no convvio e a "soluo" parece ser a adoo de velhas prticas de segregao e/ou extermnio. Aos excludos restaria permanecer "fora do sistema", isolar-se, esconder-se.

Um pouco como quando, em nosso ado, em diversas visitas de autoridades estrangeiras, colocamos tapumes para no agredir olhos de rainhas com imagens da "zona" ou recolhemos mendigos e moradores de rua a instituies oficiais para poupar chefes de Estados a conhecerem parte indesejvel (intil?) de nossa populao.

Assim, pobreza e excluso no Brasil so faces de uma mesma moeda. As altas taxas de concentrao de renda e de desigualdade - persistentes em nosso pas convivem com os efeitos perversos do fenmeno do desemprego estrutural. Se, de um lado, cresce cada vez mais a distncia entre os 'excludos' e os 'includos', de outro essa distncia nunca foi to pequena, uma vez que os includos esto ameaados de perder direitos adquiridos. O Estado de Bem-Estar (que no Brasil j foi muito bem apelidado de Estado de Mal-Estar) no tem mais condies de assegurar esses direitos. Acresa-se a isto a tendncia poltica neoliberal de diminuio da ao social do Estado[5].

Neste sentido, o Brasil, num mundo dito globalizado, insere-se no sistema capitalista como pas perifrico e dependente, cujos governantes atuais, capitaneados por FHC, percebem no neoliberalismo uma forma de resoluo das questes econmicas vivenciadas. Com uma estrutura burocrtica desenvolvida to somente seguindo interesses polticos - resultado de regimes populistas e autoritrios, o pas nunca estruturou reais polticas sociais.

Assim, em poca de agravamento da crise mundial, multiplicam-se as dificuldades de famlias brasileiras assoladas pelo desemprego e misria (bem como cresce o nmero de famlias em tal situao). Ainda mais que, para atingir metas de desenvolvimento (?), estabelecidas por instituies financeiras internacionais, seguidamente se ampliam as decises de diminuir os investimentos (mormente os sociais).

As pessoas deixam de receber gratuitamente assistncia mdica, diminuem os beneficies da previdncia social e a qualidade da educao pblica. A lgica do sistema capitalista brasileiro equivale-se do ado (liberal) europeu, no qual a possibilidade de o aos servios restringe-se a quem possua condies para arcar com os custos privados destes "privilgios". Mais, somente ser considerado Homem quem possa pagar por eles.

Nesta sociedade de "iguais e iguais oportunidades", o indivduo impe-se pelo "ter", pela posse de capital. Ou ainda, pela venda de fora de trabalho. Quem no puder faz-lo, no aparece como ser humano, resume-se a ser um ningum, um no-ser: apenas um fardo a ser ado pelo conjunto dos trabalhadores, dos "homens de belas".

Evidente, a maior parte, quase totalidade, da populao (sobre) vive do trabalho produzido por seu corpo, seu instrumento de trabalho. Logo, uma doena, algo que resulte em reduo ou perda da possibilidade de ganhos, significa vir a deixar de "ser". Estar doente significa no apenas o medo relativo patologia, mas tambm da perda do trabalho, da condenao a viver perambulando em eterna busca por remdios em farmcias e postos de sade do Estado - e sobreviver com achatadas penses de um falido sistema de previdncia social.

O Estado, que falha ao negar sade ou trabalho ao seu cidado, est a desrespeitar os Direitos Humanos, Assim, no Brasil, os Direitos Humanos surgem como uma expectativa de futuro, de um futuro melhor. E a triste realidade de serem to somente palavras esquecidas no livro que deveria guiar, orientar, os rumos da Nao.

Desta forma, inicia-se a compreenso do como e por que do incluir nesse Seminrio uma discusso sobre o tema das Doenas Sexualmente Transmissveis (DST)/AIDS. Mostrando-se que, se a razo de ser desta temtica simples, a sua compreenso, e, principalmente, superao, surge como questo extremamente complexa.

H de se refletir sobre o que sejam essas doenas e seu papel histrico e social, h de se perceber como se situam dentro de um conceito contemporneo de sade pblica e verificar como o sistema jurdico importa-se com esses fatos. Tudo para, a final, pensar sobre o tipo de Estado que impe tal situao e as possibilidades de transformao deste, bem como das relaes interindividuais nele propostas.

Doenas

Cumpre verificar que as doenas, durante muitos anos e ainda hoje, so poderosos meios de excluso social. A sade, ou a falta de, assumiram, no curso da histria, caractersticas preconceituosas, tomado-se poderosos fatores de discriminao. Tuberculose, cncer, sfilis, clera e SIDA[6] so ou foram utilizados ideologicamente como forma de represso a grupos minoritrios, instrumentos estigmatizadores em relao a outros povos[7].

A falta de sade significa ainda "etiqueta" que macula a pessoa como sendo de pouca competitividade, de reduzida capacidade produtiva. Logo, de pouco interesse para sociedade: pessoas dispensveis que, de toda forma, esto fadadas a uma morte rpida e certa.

Mais, Sontag (l984: 25) alerta que:

"tais fantasmas florescem porque considerarmos a tuberculose e o cncer muito mais do que como doenas que comumente so (ou eram) fatais. Ns os identificamos como a prpria morte". E acrescenta que "nada mais punitivo do que atribuir um significado a uma doena quando esse significado invariavelmente moralista. Qualquer molstia importante cuja causa obscura e cujo tratamento ineficaz tende a ser sobrecarregada de significao[8]"

Herbert Daniel (l991: 82) tambm ressalta o absurdo do temor que transforma doenas em algo muito mais do que um simples acontecimento fisiolgico:

"A AIDS um mito! Como diriam os chineses dos bons tempos, ' um tigre de papel'. Ora, direis, este um absurdo que vem desmentir todos os dados e fatos. E eu explico que a SIDA uma doena grave, transmissvel e mortal. No um 'enigma', mas - como muitas outras doenas - aparece como um desafio. Este desafio colocado cincia e comunidade (e no nesta ordem ....). verdade que, em termos de sade pblica, h um desafio a ser vencido, assim como a questo da fome, do trnsito, da poluio, das doenas cardiovasculares, do cncer, da iatrognese, etc".

Na realidade nacional, h de se perceber que, no momento em que o neoliberalismo proclama o abandono do Estado de Bem-Estar, estar doente aflige muito mais as pessoas sem condies econmicas para contratarem planos privados de sade do que aquelas com capacidade para arcar com os custos destes, de hospitais, de mdicos particulares.

Percebi[9], em pesquisa realizada junto ao, Grupo de Apoio Preveno da AIDS (GAPA/RS), no ano de 1993, que 44, I% dos atendimentos do departamento jurdico da entidade diziam respeito a questes providenciarias. O que comprova ser de assistncia, de o aos servios pblicos, a principal carncia de pessoas sem condies de arcar com os custos da doena.

DST/SIDA

No que tange s doenas sexualmente transmissveis, existem registros milenares e elas at a dcada de quarenta eram fatais e preocupavam as autoridades. Em 1927, a Lei de Koch na Alemanha, e depois o Cdigo Penal dinamarqus, em 1930, criminalizaram condutas que pudessem propagar doenas venreas e molstias graves. Destinavam-se a impedir a propagao da sfilis, gonorria e do cancro-mole. Falharam. Destaque-se que essas disposies influenciaram o Cdigo Penal brasileiro de 1940, que continua regulando a matria no pas.

Entretanto, o controle das DST aconteceu somente a partir da metade do anos quarenta, quando a clnica mdica ou a utilizar-se da penicilina e das sulfas. Parecia que o problema acabara quando, nos anos sessenta surge a revoluo sexual (com o fim do culto virgindade e a aceitao de novos mtodos de controle da natalidade) e a indstria do sexo; tudo facilitado pela crescente urbanizao (o anonimato da populao urbana dos grandes centros assegura com discrio o aumento do nmero de parceiros).

Destacam-se estas doenas, tendo em vista que nelas o preconceito recrudesce: o contgio decorre da atividade sexual e sexo continua a ser sinnimo de pecado, de algo a ser escondido. Especialmente quando acompanhado de opes "desviantes", "marginalizadas"; cujos praticantes ou bem negam, socialmente, sua prtica, ou bem so excludos da sociedade dos "normais".

O Brasil um bom exemplo prtico destas caractersticas preconceituosas e mistificadoras em relao SIDA e outras doenas. Os programas governamentais que visavam a preveno da Sndrome, durante muito tempo, mostraram-se ligados a questes tcnicas e dominados pelo medo de expor assunto tabu de forma clara e explcita, assumindo que existem na conduta da populao. Como resultado obteve-se inoperncia, gastos e fracassos.

Para aprofundar o exame dessa realidade cumpre saber do que se trata a SIDA, ou Sndrome da Imunodeficincia Adquirida. Sndrome de conjunto de sintomas ou sinais de doenas, imunodeficincia do momento no qual o sistema imunolgico de uma pessoa no pode proteger o corpo, o que facilita o desenvolvimento de diversas doenas; e adquirida do fato de que ela no hereditria, depende de infeco pelo Vrus da Imunodeficincia Humana (VIH).

Esse tipo de conceito, porm, no me parece suficiente, limita-se a relatar aspectos clnicos. Para muitos a Sndrome ainda sinnimo de morte, mas grande parte das pessoas j percebem que o perodo de vida da pessoa contaminada aumenta e no existe possibilidade de se negar que a doena ter, em breve, as caractersticas de uma patologia crnica.

O mdico Jonathan Mann, quando era responsvel pelo programa de controle da SIDA da Organizao Mundial de Sade (OMS), em 20 de outubro de 1987, perante a Assemblia Geral da ONU, alertava que a SIIDA, na verdade, representava trs epidemias: a primeira da infeco pelo vrus; a segunda das doenas infecciosas e a terceira das reaes sociais, culturais, econmicas e polticas. Ele acrescentava, desde aquela poca, ser essa ltima to fundamental quanto a prpria doena e, potencialmente, mais explosiva do que aquela.

Nesse sentido, tambm Daniel (l991: 100), para quem "atribui-se cincia, de forma quase imediata, o papel de descobrir solues mdicas. Coisas bem restritas. No estaro solucionando nenhum Grande Enigma. Estaro dando uma explicao mdica sobre uma doena. Ou seja, uma interpretao cientfica de certos danos e fatos na relao entre agente etiolgico e a evoluo da patologia". Por isso, opto por um conceito histrico-cultural da SIDA, como o que se segue.

A SIDA foi diagnosticada pela primeira vez em 1982. Aparece como uma nova doena; logo, porm, assume um carter bem mais amplo, mostrando-se um poderoso fator de discriminao. Decorrncia de caractersticas das pessoas ento identificadas como portadores: homossexuais masculinos norte-americanos com idade entre os trinta e quarenta anos. Isso leva os mdicos, respaldados pelos meios de comunicao, a pensar no surgimento de um cncer gay - denominao decidida sem ter por base nem sequer o conhecimento do agente transmissor da Sndrome.

Pouco tempo depois, identificavam-se inmeros casos de semelhante problema em territrio africano. As hipteses ento levantadas explicavam o surgimento da epidemia como resultado de rituais tribais envolvendo macacos, animais nos quais se descobriu vrus semelhante ao VIH. A teoria estava montada. Trabalhadores haitianos, com agem pela frica, teriam disseminado o vrus para os Estados Unidos atravs de relacionamento homossexual com norte-americanos.

Assim como a sfilis em pocas adas, percebe-se uma perfeita manipulao dos fatores sexuais e econmicos de discriminao. Afinal, hoje, embora se tenha claro que a transmisso sexual da SIDA no restrita ao comportamento homossexual e que, se a origem da epidemia foi realmente a frica, a causa mais provvel so experincias de cientistas do Primeiro Mundo em territrio subdesenvolvido, a idia inicial persiste no inconsciente coletivo, mesmo que o perfil atual da Sndrome seja de carter pandmico, atingindo todas as faixas etrias, independentemente de classe social e comportamento sexual.

A vontade de estar imune ao perigo, que seria reservado ao outro, ao pecador, remonta ao sculo XVIII, quando Cotton Mather (pregador e escritor puritano da Nova Inglaterra, 1663-1728) dizia que a sfilis era um castigo "que o justo juzo de Deus reservou para nossa era tardia"[10]. Hoje, Dom Eugnio Sales (l985) escreve a respeito da SIDA:

"E cai, como raio, na humanidade, o perigo da AIDS... Surge como imposio que atinge, em cheio, a inverso sexual, a troca de parceiros, uma interminvel lista de assuntos condenados pela legislao divina... Esse clima revela a decadncia dos costumes com as conseqncias de um comportamento humano quando contraria o destino para o qual fomos criados... Os flagelos sociais servem de instrumento para despertar a conscincia, explorar a imoralidade reinante, fazer o homem retomar aos cantinhos de Deus[11].

Essas vises apocalpticas so absurdas. A SIDA no algo anormal que vai acabar com a vida e/ou os costumes do homem na Terra, apenas uma doena. Como tal deve ser tratada, como tal deve ser entendida, pelas pessoas e pelo Direito.

Sontag, no conjunto de sua obra desmistificada falsas diferenas entre o cncer e a SIDA ressaltando que, enquanto no cncer o doente pergunta o porqu de estar vivendo uma situao, na SIDA isso no acontece. Naquela doena revela-se uma fraqueza do doente; nesta, uma irresponsabilidade, uma delinqncia.

Houve tempo em que o cncer igualmente era "criminoso". Representava sedentarismo, maus hbitos alimentares. Ele perdeu esse carter, deixou de ser um pecado, algo a ser escondido; o mesmo est a acontecer com a SIDA.

Proteo jurdica da sade

No Brasil, conforme Kawamoto (1996: 23/26), a histria do direito sade pode ser percebido em quatro momentos: I) no perodo colonial, quando a quase totalidade da populao utilizava-se da medicina popular (influenciada pelas culturas indgenas, africanas e jesuticas) e o o aos profissionais da rea de sade limitava-se aos nobres e grandes proprietrios rurais; 2) no incio do perodo republicano as epidemias grassam o pas e assustam potenciais imigrantes europeus - Oswaldo Cruz combate a febre amarela no incio deste sculo e Carlos Chagas, na dcada de 20, implanta reforma que prope, entre outros, propaganda e educao para a sade, expanso das atividades de saneamento e servios de profilaxia, licena-gestante e proibio do trabalho de menores de 12 anos em fbricas.

A seguir, 3) no momento compreendido entre os anos de 1930/1964, criou-se o Ministrio da Educao e Sade (I 930) e os trabalhadores aram a pressionar para receber assistncia mdica e 4) no perodo iniciado com a ditadura militar elabora-se o atual sistema de sade e previdncia nacional: o INPS, hoje INSS, e o Sistema nico de Sade, funda-se uma nova definio de sade, proposta pela Constituio Federal de 1988.

A Constituio de 1988 declara que a sade um direito social (artigo 6), direito de todos e dever do Estado (artigo 196). Na Constituio, sade significa polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doenas e de outros agravos e ao o universal igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao" (artigo 196). Mais, quer dizer "atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais" com "participao da comunidade" (artigo 198, incisos II e III).

Kawamoto (l995: 11) esclarece que

"A sade a resultante da influncia dos fatores scio-econmico-culturais: alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, o e posse da terra e o a servios de sade. Esses fatores podem gerar grandes desigualdades nos nveis de vida, que iro interferir na sade individual e coletiva.".

Ela, desta forma, revela-se sob forma mais atual e dinmica; abandona o critrio curativo em prol do preventivo. No mais atuando de forma a minorar o sofrimento, mas buscando evit-lo (e, pragmaticamente, diminuir os gastos estatais com honorrios mdicos, medicao e custos hospitalares).

A sade encontra-se protegida pelo Estado de Bem-Estar Social, eis que reconhecida como direito humano de segunda gerao, direito social (assim como a educao, cultura etc)[12] . Essa sade confunde-se, prioritariamente, com vida saudvel e preveno de doenas. Deixa de ser questo meramente individual para tornar-se interesse coletivo relacionado cidadania.

Morais (l996: 188) resume esta idia dizendo que:

"Percebe-se, ento, que a sade no se restringe mais busca individual e a a ter uma feio coletiva na medida em que a sade pblica a a ser apropriada pelas coletividades como direito social, como direito coletivo, bem como alarga-se o seu contedo. Tem-se a preveno da doena.".

Para muitos, porm, persiste a idia antiga, que confunde sade com doena e morte. Sade assume um contorno de apenas ser uma forma de curar as doenas. O direito sade fica, ento, a possibilidade de contratar um profissional mdico de acordo com a capacidade econmica da pessoa, ou recorrer ao Sistema nico, em sendo esta inexistente.

Papel do Estado, do Direito e da Sociedade

O pressuposto de um Estado de Bem-Estar Social a existncia de um Estado Democrtico- O Brasil, conforme a Constituio Federal declara, o '[13]. Entretanto, destaquei acima, meras declaraes de direitos tomam-se insuficientes perante a realidade da vida. E, em todo o mundo, a barbrie grassa: preconceitos relativos a origens, religies, condies econmicas, opes, tornam o mundo um palco de intolerncia no qual a possibilidade de sobrevivncia encontra-se em rotas de fuga.

De acordo com esse quadro, percebe-se que "a doena o lado sombrio da vida, uma espcie de cidadania mais onerosa. Todas as pessoas vivas tm dupla cidadania, uma no reino da sade e outra no reino da doena"[14]. A doena surge como mais uma forma de discriminao. Surgem os sifilticos, cancerosos ou aidticos; categorias estranhas s pessoas saudveis.

E, neste discurso de "coisificao" do ser humano, eles perdem sua condio de vida e so condenados morte civil. Tomam-se no-pessoas - apenas doentes a espera da morte; semi-homens a serem identificados, marcados e isolados. Causa de preocupao para a populao sadia. Ameaa comunidade. Ghersi (1992: 171), jurista argentino, declara que "el enfermo de SIDA representa um estado peligroso de agresin o ataque". O jornal francs, Le Monde, oito de junho de 1989, falava em SIDA dos inocentes (como se algum fosse culpado de estar doente).

Esse quadro concernente aos preconceitos envolvendo a Sndrome demonstra que no se pode restringir a doena e seus efeitos ao campo do saber e atuao dos profissionais da sade. Mann tem razo ao denunciar as diversas epidemias de SIDA.

Assim, no que tange ao Estado, o atendimento deve ocorrer junto comunidade e sob superviso desta, seguindo tanto critrios mdicos quanto sociais. O atendimento deve democratizar-se, garantindo populao servios de sade, preventivos e curativos. Educao para a sade e polticas de incentivo solidariedade (como contraponto ao preconceito e excluso), destacam-se entre as medidas esperadas de um novo enfoque nas aes governamentais.

Quanto ao papel do Direito, percebe-se que no se limita ao antes previsto pelo Cdigo Penal (criminalizar condutas como o propagar germes ou impedir o governo de cont-los, envenenar ou poluir guas, falsificar remdios ou alimentos). Neste sentido so elogiveis as decises de nosso Tribunal de Justia:

Apelao Cvel. n 59087170, julgada pela 1 Cmara Cvel do TJRGS ("istrativo e constitucional. Paciente de SIDA ou AIDS. Sade, Direito Fundamental do Cidado e Dever do Estado. Medicamentos. Fonecimento. Responsabilidade do Pblico" - Dirio de Justia de 08/08/97)

ou

Agravo de Instrumento n 596245019, julgado pela 18 Cmara Cvel do TJRGS ("1. As regras da legislao ordinria no se sobrepem a mandamento constitucional e a doena grave, como a AIDS, causada pelo vrus HIV, no pode ficar aguardando o tratamento e que depende de soluo jurdica ou burocrtica, que via de regra, chega quase sempre depois do decesso da vtima. 2. A sade o bem maior do homem e deve do Estado, que deve ajud-lo na senda de sua plena realizao." - DJ de 04/07/97).

No que tange SIDA, em outra oportunidade, escrevi:

"Assim comprova-se, a funo do Direito Penal deve ser preventiva. Tutelando o sigilo do resultado de exames, garantindo o o a empregos sem testagem compulsria, o internamento dos doentes em hospitais etc. Afora o respeito pelos direitos dos cidados, cabe esclarecer outra vantagem desta poltica criminal. Essas posturas anti-discriminatrias garantiriam melhores chances de controle da epidemia, tendo em vista que as pessoas no temeriam assumir sua condio de portador. Seriam, portanto, incentivadas a procurar os servios mdicos para realizar testes e, se necessrio, tratamento prescrito."[15].

Afinal, os conflitos jurdicos, as lides que alcanam ao Poder Judicirio, no so mais apenas as que dizem respeito a relaes interindividuais. As questes sociais adquiriram importncia e relevncia. Hoje, o cidado, reunido em ONGS, possui capacidade para postular direitos transindividuais[16], o Ministrio Pblico, depois da Constituio de 1988 tambm (em vrios momentos a instituio j fez uso dessa prerrogativa, quase dever - para a qual pode ser acionado).

Ou seja, a misso do Direito est a ampliar-se e dispositivos capazes de permitir essa atuao a serem criados. Tudo a fim de alcanar os preceitos constitucionais contemporneos de busca de efetividade dos direitos sociais e, em especial, no que interessa aqui, um conceito de sade no ao curar a doena de um paciente, mas ao garantir a qualidade de vida, a sade, dos cidados.

O atraso da lei em relao ao texto constitucional deve ser recuperado. A legislao ordinria deve ser adaptada Constituio. Dentre as formas de faz-lo, destaque-se o privilgio da redao de normas positivas (opostas s penais - negativas eis que meramente criminafizantes, proibitivas de condutas) que pautem as obrigaes do Estado e da sociedade e os obriguem a agir e intervir de forma a resolver os problemas sociais e no agrav-los atravs de condutas e polticas discriminatrias.

Essas so medidas jurdicas que o Direito tem condies de realizar. Representam uma nova forma de perceber o direito sade e possibilidade de garantir o texto da Constituio. Eis a que cabe os operadores jurdicos dedicar-se, eis do que necessitam os cidados, eis o que a populao deve exigir.

Mas apenas isso no solucionar o problema. Grande parte das questes suscitadas pelas doenas se resolver quando as pessoas receberem o auxlio que necessitam e merecem. Entretanto, permanecer o desafio de resolver questes relativas a discriminao e preconceito. Polticas pblicas e aes positivas adotadas pelo Estado possuem papel relevante, embora no nicos, eis que dependem igualmente da mudana de Mentalidade dos indivduos.

E incentivar a transformao consciente de condutas surge como algo muito mais complexo a ser efetuado. Principalmente por pressupor a vontade do indivduo em alter-la. Um difcil desafio que, mesmo depois de resolvidas discriminaes em relao ao cncer, sfilis e outras, prossegue em relao SIDA.

Um desafio que continuar a pautar atitudes de quem busque uma sociedade democrtica, quer seja em relao a integrar pessoas doentes, pessoas que atingiram (ou no) determinada idade, pessoas com a pele de uma ou de outra cor, homens e mulheres que optaram por manter uma vida sexual ativa. Esses os desafios postos s sociedade contempornea no mbito da discusso aqui proposta.

De entendimento e resoluo complexa, a questo das DST/SIDA em relao excluso aparece como mais um momento em que os Direitos Humanos devem demonstrar que surgem como alternativa real para resoluo de conflitos sociais dentro dos Estados contemporneos. Quer seja garantindo sade (pblica), quer seja garantindo qualidade de vida, quer seja garantindo respeito pelo ser humano.

Referncias Bibliogrficas 3h3m2q

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MANN, Jonathan et al. A AIDS no mundo. Rio de Janeiro: ABIA e UERJ, 1993. 321 p.

MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. 247 p.

RUDNICKI, Dani. AIDS e Direito - funo do Estado e da Sociedade na preveno da doena. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1996. 162 p.

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SALES, Eugnio. O Globo. 27/07/1985.

SILVA, Mriam Ventura da et al. Direitos das pessoas vivendo com VIH e AIDS. Rio de Janeiro: Grupo pela Vidda, 1993. 64 p.

SIEGHART, Paul. AIDS & Human. Londres: British Medical Association Fondation for AIDS, 1989. 103 p.

SONTAG, Susan. A AIDS e suas Metforas. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. 111 p.

A DoeMa como Metfora. Rio de Janeiro: Graal, 1984. 108 p.

WANDERLEY, Mariangela Belfiore. Refletindo sobre a noo de excluso. Servio social e sociedade. So Paulo, n. 55, p. 74-93, 1997.



[1]Mestre em Direito Civil, professor da UNICRUZ/RS, conselheiro do Movimento de Justia e Direitos Humanos/RS.

[2] Para aprofundar tal questo, Bobbio ("A Era dos Direitos", Rio de Janeiro: Campus, 1992).

[3] A Constituio Federal de 1988, no ttulo I, dedicado aos princpios fundamentais da Repblica Federativa do Brasil, Estado Democrtico de Direito, declara que um de seus fundamentos (artigo l, inciso RI) a dignidade da pessoa humana.

[4] Wanderley, 1997: 80

[5] Wanderley, 1997: 82

[6] a denominao que eu prefiro e utilizo nesse trabalho, respeitadas as citaes em que o autor tenha optado por AIDS e os nomes de entidades que utilizem essa. Destaque-se que por vezes me refiro Sndrome como sendo "doena". Utilizo a concepo popular, genrica, eis que uma sndrome caracteriza-se justamente por no ser uma doena, mas o conjunto de vrias.

[7] Na literatura mundial, as obras "A montanha mgica" (Tomas Mann) e "A peste" (Albert Camus) ilustram histrias de segregao e preconceito.

[8] Sontag, 1984: 76

[9] Rudnicki, 1996: 78

[10] citado por Sontag, 1989: 72

[11] A revista Veja, em fevereiro de 1994, anunciava que, entre 1987 e 1993, no Brasil, 35 padres morreram de SIDA.

[12] Os Direitos Humanos de primeira gerao dizem respeito s liberdades individuais e os de terceira aos direitos transindividuais (relacionados ao meio ambiente e s relaes de consumo, por exemplo). H quem j fale em uma quarta gerao (relacionada a questes de biotecnologia).

[13] Vide nota dois.

[14] Sontag, 1984: 7

[15] Rudnicki, 1993: 246

[16] O professor Bolzan de Morais (l996: 125) define com preciso esses "novos" direitos, denominando-os de interesses: "Da confluncia de fatores prprios sociedade contempornea emergem interesses que, alm de escaparem tradio individualstica, se pem como indispensveis vida das pessoas. So interesses que atinam a toda a coletividade, so interesses ditos transindividuais, pois no esto acima ou alm dos indivduos, mas peram a coletividade de indivduos e estes isoladamente. So interesses que se referem a categorias inteiras de indivduos e exigem uma interveno ativa, no somente uma negao, um impedimentos de violao - exigem uma atividade. Ao contrrio do Direito excludente, negativo e repressivo de feitio liberal, temos um Direito comunitrio, positivo, promocional. Chega a ser um Direito educativo, no sentido que busca criar, antes que reprimir, uma conscincia de compromisso com atos futuros. Castigar o ado, alm de insuficiente, ineficiente para seus objetivos, sequer apenas promover o presente.".

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