A
aprovao da Declarao Universal dos Direitos Humanos pela Organizao
das Naes Unidas, em 1984, foi o marco inicial de um novo ciclo na histria
da humanidade. Elaborado e proclamado pouco depois do trmino da segunda
guerra mundial, esse documento fundamental no foi apenas um grito de
protesto, uma exploso momentnea de indignao, contra as agresses
armadas e a negao da racionalidade implcita em todas as guerras.
Muito
mais do que isso, a Declarao Universal de 1948 foi a proclamao
solene da rejeio do individualismo egosta e do materialismo mal
disfarado, implantados no mundo ocidental no fim do sculo dezoito,
utilizando o rtulo do liberalismo e, no entanto, s cuidando da
liberdade dos privilegiados econmicos.
A
par dessa rejeio, a declarao Universal proclama com muita clareza
a primazia da pessoa humana, com suas dimenses espiritual e material,
com sua dignidade implcita na condio humana e com seus valores
fundamentais, protegidos como direitos prprios da natureza humana.
Desse
modo, os valores humanos essenciais, aqueles que so indispensveis para
a preservao da dignidade e o crescimento interior da pessoa, valores
que nascem com a pessoa humana e que no dependem das circunstncias de
tempo e lugar, das condies materiais e da situao social, foram
novamente colocados em primeiro plano.
A
conscincia de tais valores, j revelados na antigidade e postos em
evidncia, sobretudo, atravs da obra de grandes pensadores da Grcia
antiga, havia sido perdida pela humanidade, o que levara, afinal, ao
sistema de arbtrio do absolutismo e ordem aristocrtica
caracterizada pelas discriminaes e excluses.
Embora
algumas vozes isoladas j tenham denunciado as violncias contra os
valores inerentes natureza ainda no perodo medieval, como se
verifica, por exemplo, na obra de Santo Toms de Aquino, foi nos sculos
dezessete e dezoito que se conjugaram vrios fatores que iriam levar
implantao de uma nova ordem. Filsofos polticos de grande
envergadura, testemunhas e s vezes vtimas de discriminaes sociais
e perseguies polticas e religiosas, demonstraram com slida
argumentao a injustia das agresses a valores inerentes natureza
humana.
Ao
mesmo tempo, uma nova fora social, a burguesia, que se formara a partir
do sculo doze e que no sculo dezessete j era o segmento mais rico da
populao, em termos de patrimnio e renda, no queria mais aceitar
sua excluso poltica e a insegurana que da decorria para a pessoa,
o patrimnio e as relaes econmicas. Suas aspiraes e a
necessidade de proteo para os seus interesses foram bem sistematizados
na afirmao da liberdade e da igualdade como valores fundamentais e
direitos naturais da pessoa humana.
Esses
mesmos valores e direitos, proclamados e defendidos pelos filsofos
humanistas e cujo respeito era desejado pelos burgueses, davam resposta s
necessidades dos trabalhadores e das camadas mais pobres da populao de
modo geral. Todos esses sofriam agresses, humilhaes e excluses, no
havendo o mnimo respeito por sua dignidade e pelas exigncias naturais
de sua condio humana.
Foi
sob inspirao desses valores humanos fundamentais que ocorreram as
revolues burguesas dos sculos dezessete e dezoito, lideradas por
intelectuais e burgueses e fortemente apoiadas pelas massas populares,
crentes em que a imposio de limitaes ao poder pessoal dos
governantes e a eliminao dos privilgios da nobreza dariam lugar a
uma ordem social justa, a uma sociedade de pessoas livres e iguais.
Essas
crenas e aspiraes foram bem resumidas no lema da Revoluo
sa: liberdade, igualdade e fraternidade. Elas foram tambm
incorporadas Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, aprovada
pela assemblia sa em 1789. Acredita-se que os valores humanos
fundamentais iriam determinar os rumos da humanidade da por diante.
O
que ocorreu, entretanto, foi bem diferente do que se poderia supor pela
aparente crena comum nos valores fundamentais da pessoa humana e pela
conjugao de esforos para demolio da antiga ordem injusta. A nova
ordem estabelecida, liderada pelos detentores do poder econmico, apenas
substituiu os privilgios, pois a partir de uma afirmao formal e
abstrata de respeito liberdade, assegurou a supremacia poltica e
social dos detentores de bens econmicos e de maior renda.
A
igualdade de direitos e de oportunidades foi completamente esquecida,
usando-se o sofisma de que a desigualdade justa se todos forem livres.
No se levou em conta que nada significa o direito de ser livre para
quem, nascido na pobreza e sem ter o educao, aos cuidados de
sade, boa alimentao e a tudo o mais de que a pessoa humana
necessita para sobreviver e para viver com dignidade, no tem, por todas
essas limitaes, o poder de ser livre.
A
liberdade econmica e a proteo do patrimnio foram muito benficas
para quem tinha condies materiais para gozar dessa liberdade. Assim se
desenvolvem no sculo dezenove a relao industrial, houve notveis
avanos cientficos e tecnolgicos e as fortunas aumentaram. Mas as
diferenas sociais aumentaram profundamente, a explorao do homem pelo
homem atingiu propores degradantes para toda a humanidade.
Na
encclica "Centsimo Ano", publicada em 1981 para comemorar o centenrio
da publicao da encclica "Rerum
Novarum", na qual o papa Leo XIII fazia a denncia da existncia
de graves e extensas injustias sociais, com multides de marginalizados
e excludos, o papa Joo Paulo II ressaltou que o sculo dezenove, to
celebrado pelo dinamismo da economia, foi o mesmo que criou o capitalismo
e o proletariado. E poderia acrescentar que foi um sculo em que se usou
amplamente o trabalho escravo.
Supremacia
absoluta para a riqueza material, privilgios polticos e sociais para
os detentores dessa riqueza, egosmo a avidez em lugar da fraternidade e
solidariedade, foi essa a marca da sociedade implantada no sculo
dezoito. Com o mais absoluto desprezo pelos valores humanos fundamentais,
esse tipo de sociedade criou distncias enormes entre pobres e ricos,
estabelecendo barreiras insuperveis para os nascidos na misria,
estabelecendo uma ordem legal essencialmente injusta, os dominadores
legalizaram as injustias, dando o nome de "direitos" aos seus privilgios e assim impam um sistema de
marginalizao crnica e hereditria, pretendendo-se transferir para
os excludos a culpa por sua excluso.
As
duas guerras do sculo vinte, que envolveram, direta ou indiretamente,
quase toda a humanidade, espalhando morte e destruio e plantando as
sementes de novas guerras inevitveis se no ocorrerem mudanas
profundas, foram produtos desse tipo de sociedade e de sua escala de
valores. Ambies materiais sem limites, ao lado de injustias inveis,
s podem levar ao conflito e violncia e jamais produziro a paz.
Foi
a conscincia dessa necessidade de mudana profunda que produziu a
Declarao Universal dos Direitos Humanos em 1948. Um dado fundamental
da declarao, que o ponto de partida para a recuperao da conscincia
da dignidade e dos valores bsicos da pessoa humana, a proclamao
contida no artigo 1: "Todos
os seres humanos nascem livres e iguais em direitos e dignidade...".
A est, na utilizao da palavra "todos",
abrindo o documento e condicionando sua leitura, compreenso e aplicao,
a afirmao expressa da Universalidade dos Direitos Humanos.
Isso
tem como conseqncia que se alguma pessoa nascer em condies tais
que impliquem discriminao ou excluso, quanto titularidade dos
direitos e igual possibilidade de seu uso, estar ocorrendo uma agresso
aos direitos Humanos.
Educao
para os Direitos Humanos: "basta"
excluso social
Educar
para os Direitos Humanos infundir e implementar a conscincia de que a
pessoa humana o primeiro dos valores. Disso decorre o compromisso de
respeito dignidade dos seres humanos e aos valores fundamentais que so
de toda a humanidade. Sendo direitos e valores universais nenhuma pessoa
pode ser excluda desse respeito e toda excluso social negao do
humano.
Um
ponto que deve ficar bem claro que a educao para os Direitos
Humanos sempre, necessariamente, preparo e estmulo para a prtica.
Nas ltimas dcadas aumentou muito o nmero de instrumentos normativos
de Direitos Humanos, havendo j uma quantidade considervel de convenes,
pactos, acordos, tratados e outros instrumentos de natureza jurdica a
afirmao e a proteo dos Direitos Humanos, sobretudo para a correo
de situaes em que tem sido habitual a prtica de ofensas graves a
esses direitos.
Ao
mesmo tempo, e em parte como conseqncia da evoluo normativa, vem
aumentando constantemente o nmero de pessoas que falam e escrevem sobre
Direitos Humanos. Em princpio bom que isso acontea, mas existe, em
primeiro lugar, o risco de se confundir o tratamento terico com a prtica.
No basta falar em Direitos Humanos, escrever sobre eles e at fazer
leis em seu favor se isso no tiver autenticidade, se no houver a firme
disposio de respeit-los e faz-los respeitar.
Outro
risco a criao da iluso de respeito, a introduo dos
Direitos Humanos na linguagem comum como simples modismo, sem conseqncias
prticas. Assim, por exemplo, hoje ningum diz que a mulher inferior
ao homem e que as posies de comando na sociedade devem ser reservadas
aos homens. E no entanto em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil,
as mulheres continuam sofrendo muitas excluses, no tendo as mesmas
oportunidades pelo simples fato de serem mulheres, independente do mrito
que possam ter.
Na
realidade, j houve considerveis avanos, o que deve ser reconhecido e
louvado, mas persistem ainda muitas excluses, que devem ser
identificadas, denunciadas e combatidas sem descanso. Existem os excludos
tradicionais, que so os herdeiros da pobreza, os marginais da educao,
os imigrantes e refugiados, entre outros.
Em
pesquisa realizada na Frana recentemente, verificou-se que cerca de 70%
dos jovens sem qualquer diploma e sem qualificao profissional eram
mais humildes e de menor remunerao, ou ento eram filhos de
desempregados ou de pessoas que nunca tiveram um emprego fixo.
Esse
um aspecto que deve merecer especial ateno: a existncia de
pessoas que j nascem excludas e que muito provavelmente jamais podero
superar a situao de excluso. No preciso ir longe, fazer uma
pesquisa aprofundada ou ser especialista em qualquer cincia para
perceber que isso acontece hoje no Brasil. Embora a Constituio afirme
a igualdade de todos e assegure a todos a mesma liberdade, s por
hipocrisia algum poder dizer que o filho de pais ricos tem a mesma
liberdade e as mesmas oportunidades quanto ao o aos direitos
fundamentais que os filhos de pais pobres ou miserveis.