Educando
para a Cidadania
Os
Direitos Humanos no Currculo Escolar 523e2t

A REALIDADE DA
FSICA E A FSICA DA REALIDADE
Para comearmos a escrever este artigo
foi fundamental a escolha de um enfoque. Tnhamos muitas
possibilidades. Resolvemos, pois fazer uma breve anlise da Fsica em
lugares bem definidos. Inicialmente, uma pergunta: a realidade da
Fsica, como disciplina, confunde-se com a fsica da realidade? A
princpio a resposta parece bvia: claro! Faamos, porm,
raciocnio mais complexo. Ao analisarmos a expresso a realidade da
Fsica, devemos levar em considerao que no existe apenas uma
realidade. Se vivemos num pas subdesenvolvido, terceiro-mundista, onde
as desigualdades econmicas so enormes, onde encontramos seiks
abonados ao lado de gente que no consegue sequer alimentar-se, podemos
s a encontrar duas realidades, dois mundos. O primeiro, que tudo
compra, isto , que pode fazer investimentos altssimos na rea
cientfica, possuindo, algumas vezes, tecnologia de ponta, utilizando
diuturnamente a Fsica para o seu bem-estar. Ao mesmo tempo, um
segundo que nada compra, marginal, que sobrevive e que, por isso, no
tem tempo sequer para preocupar-se com a educao e menos ainda para
pensar a Fsica, tida como disciplina enfadonha e pouco comprometida
com o cotidiano. Falando em educao na perspectiva do ensino formal,
caberia perguntar: como se d o ensino-aprendizagem da Fsica dentro
da sala de aula? Tambm aqui, encontramos algumas prticas peculiares.
H, por exemplo, o ensino da Fsica ortodoxa, que se encontrava j
nos livros de cinqenta ou sessenta anos atrs, hermtica, pouco
vel. Esse procura, de forma mais acadmica possvel, informar os contedos, supondo
que aprender para poucos que, por destino ou, quem sabe, fatalidade,
nasceram para isso. Mas h tambm aquele ensino que, de maneira
velada, traz essa mesma realidade travestida numa roupagem atual.
Antigos e ortodoxos contedos com pelagem colorida, prticas modernas,
da mesma forma informam e muitas vezes despejam a Fsica
como um fardo a ser carregado.
Infelizmente, esta realidade a que
percebemos com mais freqncia e onde se joga maior nfase. H,
contudo, outra perspectiva, minoritria, verdade, incipiente,
verdade, mas com muita gana de firmar-se. Uma perspectiva de construir o
objetivo maior no apenas na informao, mas na formao. Uma
perspectiva desalienada, preocupar em gestar conscincias crticas,
debruadas sobre os problemas do mundo em que vivemos. a partir
desse mundo, que precisamos elaborar pactos de convivncia, de
respeito, de amor ao prximo e de responsabilidade diante desses
valores. O educador necessita estar axiologicamente posicionado no
sentido de vivenciar (e faz-lo junto a seus alunos) um cdigo
tico-moral internalizado e explicitado atravs da prtica concreta.
preciso ser cidado para educar na perspectiva da cidadania. O que
tem a Fsica a ver com isto? Muito. No podemos, por exemplo, numa
sala de Fsica, enquanto falamos de termologia, dilatao, calor ou
termodinmica, abordar fundamentalmente as causas e conseqncias do
efeito estufa?
Por que no relacionarmos o referido
fenmeno com a Biologia, mais especificamente com a Ecologia ou com a
Qumica? E por que no com a Filosofia e a Sociologia, favorecendo a
interdisciplinariedade? Ser o tema de interesse primeira
rea ou ter carter mais abrangente, indo provocar a reflexo das
chamadas Cincias Sociais? alis, existe uma cincia que no
seja social? No a Fsica uma cincia social? No creio que as
coisas da vida possam ser compreendidas segmentadamente. Todos somos
iradores do surto de desenvolvimento e prticas cientficas no
Renascimento, uma poca de profundas e profcuas transformaes nas
mais variadas reas do conhecimento. Foram ocasionais ou
inter-relao, a cosmoviso, a dinmica integradora do saber possui
papel essencial? Afirmamos que a influncia e a permeabilidade das
diversas reas do conhecimento que tornaram to frtil esse
momento da histria humana. exatamente desta atitude que estamos
necessitando hoje. Precisamos de permeabilidade e transparncia por
parte de todos, para que possamos crescer juntos, prosperarmos com
eficincia, competncia e solidariedade. Ao nvel das cincias:
interdisciplinariedade. Neste sentido, o estudo da Fsica deve
colaborar, unindo-se a outras reas e analisando, de maneira ampla e
irrestrita, os grandes problemas raciais na frica do Sul, a fome na
Etipia e em Bangladesh (e em vrios outros pases), a
superpopulao da ndia, o lixo atmico, o desmatamento da Amaznia
no Brasil, a crise energtica mundial, a destruio da camada de
oznio, etc. Temas urgentes, indispensveis e multidisciplinares.
Pensemos um pouco na rota das solues
para os mega-problemas acima arrolados. Muitos de nossos jovens crem
na perspectiva individualizada: a nica soluo possvel fazer as
malas e partir para o primeiro mundo. Faamos, ento, uma anlise de
como ocorrem as relaes num pas de primeiro mundo: l, onde
a democracia impera, todos podem comprar quase tudo. Os avanos
tecnolgicos podem ser adquiridos por qualquer pessoa, todos podem ter
o tecnologia de ponta, porque o poder aquisitivo, a renda per
capita, maior. Apenas para termos uma idia, em junho de 1990, para
uma jornada de 30 horas semanais, na Frana, o salrio mnimo
respectivo era de US$ 890 mensais, ou US$ 668, nos Estados Unidos, por
uma jornada de 40 horas semanais.
Enquanto isso, no Brasil, uma jornada de
40 horas semanais, US$ 67 mensais, e na Guatemala, para a mesma jornada,
o mnimo representa US$ 50 (Fonte: Embaixada dos pases no Brasil). A
custa de quem isto ocorre? Existiro pases melhores? A terra frtil
que produz os gros concentrou-se em algumas mos, deixando outras sem
nada? Certamente no. Nos pases onde se produz avanada tecnologia,
onde as cincias esto num grau de desenvolvimento invejvel, a
produo de alimentos nem sempre sustenta seus habitantes. Para
exemplificar: h alguns dados extrados de uma pesquisa publicada no
DCI, em 08 de junho de 1988, mostrando a participao dos salrios e
a margem do lucro no produto industrial em 1980. Enquanto, em Hong-Kong,
a participao dos salrios no produto industrial era de 52% e a
margem do lucro de 19%, ou na Noruega, respectivamente, 58% e 15%, no
Brasil a situao literalmente invertia-se, cabendo a participao
dos salrios apenas 17% e a gorda margem de lucro ficando com 52%
(Fonte: Organizao das Naes Unidas para o Desenvolvimento
Industrial)
Ao nvel da diviso internacional do
trabalho, conhecemos a situao. A mquina fabricada no primeiro
mundo, com tecnologia prpria. O alimento produzido terceiro mundo,
com a mquina do primeiro mundo, mas sem o poder da tecnologia.
preciso produzir alimentos para ganhar dinheiro. No adianta, contudo,
ganhar dinheiro sem os alimentos para comprar, j que possuem o
dinheiro. Por que no produzir a prpria tecnologia? No h tempo.
preciso plantar para exportar, para ganhar algum dinheiro, para comer
um pouco.
Enquanto isso, no primeiro mundo, o povo
bem alimentado, com recursos econmicos, pode investir pesado em sua
tecnologia, aprimorando-a sempre mais. No entanto, muita produo
tecnolgica requer muita energia. Compramos, ento, tambm esta
energia, at que, num dado momento, um homem poderoso, sintetizando
interesses, em nome de uma Nao, resolve intervir perigosamente junto
a esse setor econmico-chave. Desencadeia-se uma guerra.
Hipocritamente, o mundo civilizado s percebeu o que este homem
representava, os abusos que vinha cometendo, as violaes dos direitos
dos cidados iraquianos, quando o fornecimento de petrleo ou a
estar em questo. Podemos crer que a guerra se fez para salvar os indefesos
kuwaitianos? na verdade, toda e qualquer guerra, qualquer forma de
violncia vida degradante. A morte dos Curdos, de crianas
iraquianas, denuncia que, na utilizao do cultivo da opresso, dos
interesses escusos, ningum sai ileso. Nem orientais, nem ocidentais,
nem leste, nem centro, nem oeste... A nica e verdadeira sada a
sada do Homem construtor da Paz e da Dignidade. Como podemos pensar a
educao num mundo sem amor e solidariedade? Como podemos pensar a
vida num emaranhado de rancores? Como podemos pensar a Fsica em tal
universo de valores? Talvez, escolhendo uma proposta que leve em
considerao o homem como valor supremo, desenvolvendo-lhe seu mais
fundamental direito, a dignidade.
Tendo como ideal esta viso de mundo, a
coisa no fica assim to difcil. Como dizia o poeta: A vida a
arte do encontro, embora haja tantos desencontros por a. Como levar
a Fsica para a sala de aula nesta perspectiva? A Fsica deve ser mais
uma, entre outras disciplinas, que auxilia o aluno a pensar de maneira
lgica, utilizando, para para isso, todos os recursos e habilidades
mentais que ele possui. Mas, deve desafi-lo a cada instante,
provocando desequilbrio em seus conhecimentos, em suas falsas
certezas, em suas verdades acabadas, para que ele possa, de maneira
autnoma, transpor estes limites.
Deve, ao mesmo tempo, oferecer es
de contedos, para que esse aluno se desenvolva de maneira gradativa e
independente. O professor ser o grande provocador desse
desenvolvimento. Para que esses desafios ocorram de maneira paulatina,
evitando traumatizar ou desestimular o aluno, imprescindvel que o
professor o conhea com a maior integridade possvel. Conhecendo seu
aluno, o professor poder saber o exato momento em que ele necessita de
novo desafio, visto que j venceu o anteriormente provocado.
Nesta razo que se d o papel
libertador dos chamados contedos. Eles subsidiam o orientando para que
possa vencer as dificuldades que lhe so propostas, com tranqilidade,
segurana e autoconfiana. Cabe aqui salientar-se que s se
constrem conhecimentos quando o trabalho embasado em contedos significativos. Exatamente por
esse motivo, no podemos pensar em educao sem contedo. Posto que
o professor e o aluno so pessoas de relao, evidente que, para
cada desafio, seja estimulado, de comum acordo, um tempo. Este tempo
no deve ser rgido e muito menos tomado como uma espcie de verdugo
do professor e de seu orientando. O tempo mais um desafio a ser
derrotado. A avaliao, nesta perspectiva, precisa ser realizada
bilateralmente, como um processo dentro do trabalho. Isto implica numa
continuidade e num acompanhamento constante das realizaes do
professor e do aluno. esse acompanhamento deve ser feito tanto pelo
professor (dos trabalhos seus e de seu orientando) como pelo aluno (dos
seus trabalhos e de seu orientador). Isto no implica em que seja
imprescindvel a avaliao formal, com provas, exames ou testes, mas
tambm no significa que estas modalidades estejam terminantemente
proibidas. Quando alguma das partes sentir necessidade, poder
sugeri-las.
O que realmente interessa que os
objetivos de cada etapa do processo estejam plenamente explicitados,
para que possa ocorrer uma efetiva aprendizagem e uma significativa
mudana de atitudes em relao aos meios e aos fins de educao.
Assim, a avaliao deve estar inserida corretamente no contexto
metodolgico, de forma dialtica e dialgica. Apenas para
exemplificar: h alguns anos, numa aula introdutria (terceira srie
do 2 grau), quando consultvamos a turma a respeito do mtodo de
trabalho e da forma como pretendamos desenvolv-lo, ao abordar o tema
avaliao, comentamos que no era nossa inteno realizar
avaliaes formais, uma vez que os que l estavam, estavam em fim de
uma etapa e j haviam sido cobrados suficientemente at ali.
O que nos interessava naquele momento era
fornecer-lhes o maior nmero de instrumentos possveis para qualificar
suas vidas. Mais tarde, fomos agradavelmente surpreendidos por uma
histria que nos foi contada pela me de uma daquelas alunas. Sua
filha, ao chegar em casa, comentara que, naquele ano, seria necessrio
estudar mais Fsica do que em anos anteriores, uma vez que no haveria
provas... Comentrios desse tipo estimulam nosso agir e indicam que,
pelo menos alguns alunos, conseguem realmente compreender uma proposta
de carter mais abrangente.
Finalmente, precisamos lembrar que esta
forma de encarar o ensino de Fsica exigir do professor e do aluno um
engajamento poltico-social. Pensar em desafios, em qualquer rea,
no comporta o acadmico "estudar por estudar. Precisamos
levar sempre em considerao, junto a nossos alunos, que o estudo e a
cultura devem levar o homem a ascender material e espiritualmente na
vida, na dimenso individual e coletiva. Somente a organicidade, com os
Movimento Populares e com a sociedade civil organizada, poder
levar-nos a uma deciso real de colocarmos nossos intelectos e nossas
aes a servio da melhoria de vida para todos, do resgate pleno da
dignidade humana, o maior dos valores.
A Fsica, como qualquer disciplina, tem
tudo a ver com isso.
Moacyr Marranghello
Educador na Escola Municipal Emlio Meyer e nos Colgios Anchieta
e Svign, em Porto Alegre, na Universidade Luterana do Brasil,
em Canoas, e especialista em mtodo e tcnicas de ensino.
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