Educando
para a Cidadania
Os
Direitos Humanos no Currculo Escolar 7b1i

O QUE EDUCAR PARA A
CIDADANIA
Ao abordarmos aqui o tema da
educao para a cidadania fique claro que o fazemos na perspectiva da
educao escolar, uma vez que nas comunidades, nas igrejas, nas
organizaes da sociedade civil, nas famlias, nas associaes,
enfim, nos mais diversos tipos, tambm se pode e deve estimular a
conscincia cidad.
A pergunta inicial deve ser
esta: educar para que? Se para a cidadania, necessrio defini-la. O
que entendemos hoje por cidadania? Muito brevemente preciso lembrar o
significado dinmico das palavras. Cidadania, no ado, era sinnimo
de membro respeitvel (leia-se com poderes, com prerrogativas
especiais) da comunidade, com direito participao poltica,
influncia, vez e voz.
Contemporaneamente, o termo
cidadania expandiu-se e espalhou-se a compreender todo o membro da
comunidade humana, com direitos e deveres pessoais, universais,
indisponveis, inalienveis, naturais, transculturais, trans-histricos
e transgeogrficos. Alguns desses direitos e deveres esto
magnificamente sintetizados na Declarao Universal dos Direitos Humanos
de 1948. Cidado o sujeito da histria, de sua prpria
histria e, com outros cidados, da histria de sua comunidade, de sua
cidade, de sua nao, de seu mundo. Cidadania o que se eleva em
dignidade e direitos por sobre as Instituies e estruturas, por sobre o
prprio Estado que, sob licena, o governa. Cidadania todo o homem e
toda mulher, sem discriminao etria, igualado pela condio humana,
de onde emana todo o poder poltico, que somente no seu interesse se
justifica.
Os dias que seguem tm
resgatado como nunca o homem e cada homem na sua individualidade
socialmente mediatizada como o centro e o sujeito da histria. A
relativizao do papel do Estado, a dbcle dos absolutismos
tericos e prticos, a insubmisso crescente ao poder das elites e das
massas, reconduzem, aos poucos, o homem ao papel que sempre se lhe deveria
ter reservado, ao qual, hoje, para evocar dignidade, chamamos cidadania.
foroso no entanto,
reconhecer que a educao a pela percepo de sua negao, da
dura realidade ainda persistente em quase todos os cantos do planeta.
Paradoxalmente, a cidadania proclamada nas Cartas das Naes e nas
Constituies no mais que uma promissora declarao de
intenes. Urge, assim, uma luta sem trguas pela superao do
paradoxo. Temos, ento, uma resposta indagao: O que educar
para a cidadania?
1 - educar para o
reconhecimento dessa condio de direitos e deveres inerentes, que
carregamos dentro de ns pelo simples fato de sermos gente, de qualquer
raa, de qualquer credo, de qualquer nao, de qualquer extrato social;
2 - educar para
reconhecer e respeitar as diferenas no plano individual e para combater
os preconceitos, as discriminaes, as ofensivas disparidades e
privilgios no plano social;
3 - educar cada um para a
f no prprio potencial, como agente da transformao qualitativa da
prpria vida e do mundo onde est inserido;
4 - educar para a
fraternidade, para o sentido social da vida, sem jamais roubar, com isso,
a singularidade de cada projeto, de cada contribuio;
5 - educar para a luta
pacfica, mas encarniada, contra todo o sistema, contra toda a
estrutura que negue a quem quer que seja o direito de ser cidado.
Enquanto houver na terra um s sem posse plena desse status, os
demais s se justificam pela luta.
Evidentemente, este um
programa que no se cumpre a nvel discursivo. A dicotomia entre
discurso e prtica a negao de qualquer possibilidade educativa.
Isso quer dizer que no se
pode educar para o respeito aqueles a quem no respeitamos. No devemos
falar da fraternidade aos que oprimimos. hipocrisia pregar a
participao queles a quem calamos.
Ento, educar para a
cidadania tem muito a ver com o tipo metodolgico, com as relaes
interpessoais que estabelecemos com nossos alunos.
Ensinar contedos
crtico-sociais porque o ensino constitui-se necessariamente em um
processo vertical um contra-senso. Aprendemos, a duras penas, que
to possvel ser conservador e mesmo reacionrio esquerda
quanto direita. H aqui, pelo menos, duas vertentes dessa pedagogia,
de esquerda, do absurdo: o panfletarismo proselitista, simplista e bvio
(que visa gerar conscincias polticas a forceps), e o discurso
mais articulado, aparentemente srio, intelectualizado, das vanguardas
da pedagogia cvico-social dos contedos, que fazem essa bizarra
proposta de alcanar o novo atravs do velho. A ltima via ,
evidentemente, por mais sofisticada, mais perigosa. Avana, nas escolas,
com requintes de discurso oposicionista e anti-sistema, a partir do
surpreendente congraamento dos conservadores autoritrios de todos os
matizes. Uma velha pedagogia que se mal traveste com andrajos do surrado
discurso do prestgio e da competncia. E que, como sempre, s v
competncia nos modelos autoritrios. No h pejo pela forma.
Concede-se uma mudana no contedo ideolgico somente porque a forma
sabe-se mais importante. ela, a forma, que, pelo exemplo, finca as suas
razes. O resto so palavras...
dizendo de outra maneira: no
se educa para a cidadania derramando retrica academicista ainda que
com pretenses a crtico-cientfica sobre alunos objetos, ivos,
despersonalizados, sem espaos para a liberdade (que continua sendo
sempre a liberdade de discordar), coletores de informaes, repetidores
de elaboraes e anlises alheias, alienados de qualquer auto-conceito.
Se a retrica unilateral, se os textos so direcionados e
inquestionveis, se o aprendizado foi reduzido a testes e provas, se a
avaliao tornou-se apenas uma pobre medio da memria, no h educao
para a cidadania. No h sequer educao! Mesmo que isso tudo venha
perfumado com o discurso crtico-social da competncia. O adestramento
(perdoem a demasia em repetir esse j batido, mas no conscientizado,
lugar comum de todas as pedagogias emancipatrias) no privilgio de
qualquer ideologia...
A cidadania precisa ser
vivenciada na sala de aula por todo educador que se pretenda cidado e
que no queira estabelecer sua prtica sobre bases esquizofrnicas.
Isto no se confunde com liberalismo, nem desconhecimento do
prprio papel, nem com desorganizao, nem com desordem, nem com
incompetncia acadmica, nem com inconsistncia ao nvel das
propostas, nem com qualquer das coisas com que nos querem assustar os
mistificadores, amantes da velha ordem. Isto confunde-se com...
democracia! Tem nome, tem proposta, tem honestidade intelectual, no nega
nem superestima as diferenas nos papis professor/aluno e at hoje
no teve qualquer problema com a questo da incompetncia. Alis, na
histria das relaes polticas, firmou-se com competncia por sobre
todas as demais propostas absolutizantes, hoje francamente desmoralizadas.
Evidentemente, tanto quanto
uma boa metodologia, fundamental um bom contedo, em relao
harmnica. E bons contedos/metodologias devem municiar os que se nutrem
para alguma forma de prtica qualitativa diferenciada. Caso contrrio,
no seriam bons contedos e metodologias...
Isso significa que o micro
cosmo da sala de aula no pode deslocar-se, em suas relaes, do resto.
No h paraso metodolgico e nem conhecimento crtico-acadmico que
se justifiquem em si mesmos. As ferramentas no foram feitas para ficar
guardadas. preciso us-las para aprender a us-las... para us-las!
Assim, toda a educao deve orientar-se no sentido do todo. O
conhecimento existe para melhorar a vida. A sala de aula precisa ser uma
caixa de ressonncia das aspiraes do social. A escola precisa
derrubar os muros invisveis que a separam da comunidade imediata e do
mundo. Em termos muitos prticos, no devemos falar da misria sem
assumirmos algum tipo de compromisso
prtico pela sua erradicao. Temos o dever de orientar os nossos
jovens nesse sentido se no os quisermos, em pouco tempo, amargurados,
desesperanados, cticos e, subseqentemente, cooptados.
Se trabalhamos contra o
preconceito, precisamos aproximar de nossos educandos os setores
organizados da sociedade que lutam pelo fim desses preconceitos (contra a
mulher, contra o negro, contra o ndio, etc.). precisamos dar-lhes uma
chance de ouvir direto das fontes, de sensibilizar-se com elas, de poder
optar com elas, somando-se a seus esforos ordenados por uma vida de
pleno significado fraterno.
No temos o direito de falar
da opresso poltica, da tortura, de execues e desaparecimentos, se
no possibilitamos ao nosso aluno que escreve a sua carta (quem sabe nas
aulas de portugus, ou de espanhol, ou de ingls, ou de geografia, ou de
histria) protestando contra os regimes nos quais impera a barbrie.
possvel fazer isso. H tantos organizaes que se dedicam a esse
trabalho e que gostariam desse apoio ( a Anistia Internacional tem tido,
muitas vezes, essa gratificante oportunidade).
Os debates sobre pena de morte
podem consubstanciar-se, por exemplo, em abaixo-assinados daqueles alunos
e professores que a ela se opes, enviados aos parlamentares no Congresso
Nacional (onde h sempre um risco de ser aprovada). Caso contrrio,
sero apenas debates, formadores de opinio, mas de opinio condenada
morte por inatividade.
Se a conscincia ecolgica
realmente importante para uma escola, os alunos precisam estabelecer, a
partir de possibilidades que essa mesma escola apresente, qualquer
vnculo amoroso e direto com a natureza (no possvel amar sem
interagir). Na escola onde trabalho, em Porto Alegre, h uma relao da
criana e do jovem adulto com o plantio e a preservao de bosques e
isso, em sala de aula, torna-se reflexo sobre o concreto e d
concretude e credibilidade reflexo. possvel ir alm. So
tantas organizaes ecolgicas que acolheriam de bom grado jovens
militantes, que poderiam ter nelas uma vida menos vazia...
Todas as disciplinas tm algo
a ver com pelo menos algumas dessas dimenses. pequeno, medocre,
causa d o pretexto de ter que dar a matria.... que mundo
esse, aos pedaos, onde os que se dizem educadores esto to somente
preocupados em dar o que chamam de matria? para que serve
mesmo a matria?
Se ns, os professores,
fssemos menos pretensiosos, se percebssemos que poderamos
desempenhar nosso mais importante papel, oportunizando aos educandos uma
imerso crtica mais intensa na vida
real, ento, vida real se lhe devolveria o status de melhor
escola que a escola, de fonte mais densa e significativa de conhecimentos,
de nica experienciao segura para habilitar competncia. E talvez
a escola pudesse, no mundo, aps sculos de opresso, de injustia e
destruio, dar a sua primeira efetiva contribuio para uma sociedade
melhor.
Seguramente, temos
parte importante no despontar dessa nova era, ajudando na gerao de uma
juventude mais sadia, mais plena, portadora de ideais, de um significado
para a sua existncia. Seria um crime contra ela e contra ns mesmos
perdermos tamanha oportunidade. No tarefa to difcil. Basta um
pouco de ousadia, alguma criatividade, f em nosso prprio potencial,
vocao real para educar e muita conscincia de cidadania.
Ricardo Brisolla Barestreti
Educador no Colgio Farroupilha em Porto Alegre, Diretor
Nacional e ex-Presidente da Anistia Internacional no Brasil. Coordena
o Programa Nacional de Educao para a Cidadania - PRONEC |