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TICA, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA

Marconi Pimentel Pequeno [1]

O que a filosofia moral tem a nos dizer sobre os direitos humanos ? De que maneira a moralidade pode contribuir para a efetivao de certos direitos fundamentais ? O que significa do ponto de vista moral ter um direito ? O que um direito ? O que a moral ? O que um direito moral ? Finalmente, como pensar o ser da moral no momento em que se perde de vista a moral de todos os seres ? Tais indagaes traduzem a amplitude e a complexidade das questes que envolvem a relao entre tica e direitos humanos. Tal relao no est imune a controvrsias, razo pela qual acreditamos que seu estudo deve necessariamente nos conduzir a uma problematizao mais rigorosa acerca do que de fato representam os direitos humanos aos olhos da filosofia moral.

O contedo e a extenso dos direitos humanos no esto definitivamente fixados na conscincia moral da humanidade. No absolutamente evidente para os indivduos que eles gozam de direitos, nem, tampouco, que estes devem ser respeitados. Eis por que devemos, antes de tratar da natureza e das condies de possibilidade de sua efetivao, refletir sobre a origem de tais direitos. Se falamos em direitos fundamentais da pessoa humana, precisamos saber em que consistem tais direitos, por que so fundamentais e quem essa pessoa que goza de um estatuto humano. Em suma : precisamos encontrar o justo sentido dos termos que usamos em nosso discurso, mas que s vezes no sabemos o que significam. Assim sendo, pretendemos inicialmente abordar o problema confrontando a idia de direito com a noo de moralidade.

A idia moderna de moral est alicerada na subjetividade, enquanto os direitos humanos nascem como um conceito que assume uma dimenso coletiva. Mas, direitos coletivos implicam tambm obrigaes coletivas Nesse caso, no podemos pensar os direitos dissociando-os da noo de obrigao. Noutros termos, o primado moral do conceito de direito no pode substituir o de obrigao moral. certo que pode haver direitos sem obrigaes (no caso das crianas, por exemplo) e obrigaes sem direitos (a exigncia moral de no maltratarmos os animais, que, por sua vez, so destitudos de direitos formais), porm o que interessa destacar a relao ntima de correspondncia entre direitos humanos e obrigaes morais.

Parece evidente que, do ponto de vista axiolgico, o discurso sobre o direito ficaria desamparado sem a correlao com o discurso da obrigao. Se isto verdade, podemos ento aceder primeira concluso : formalmente, s podemos constituir um discurso sobre os direitos com base no discurso sobre as obrigaes. Com efeito, o conceito de direito somente teria sentido se fosse elaborada uma pergunta prvia sobre as obrigaes que lhe so correspondentes. Entretanto, se a cada direito correspondem diversas obrigaes seria o caso de falarmos primeiramente em obrigaes humanas e no em direitos humanos ?

Tais dificuldades revelam o quanto o universo dos direitos humanos se afigura inexpugnvel s abordagens simplistas, aos discursos do senso comum, s meras declaraes de princpios. Alis, h algo que permanece obscuro na idia iluminista de direitos humanos. Afinal, como no reconhecer que existe um paradoxo entre o entusiasmo da razo emancipadora que funda tais direitos e a dvida sobre a sua real efetivao?

Ora, a nossa experincia histrica comprova que a democracia no tem sido capaz de assegurar o exerccio da liberdade e a prtica da justia, ou seja, no tem se mostrado apta a garantir a efetivao dos direitos humanos. A democracia pode ser uma condio necessria efetivao dos direitos humanos, mas no jamais a condio suficiente e definitiva para a sua realizao. At porque a democracia, como j haviam mostrado Plato e Aristteles, no est imune tentao totalitria, podendo, por isso, tornar-se uma variante do direito do mais forte, uma espcie de tirania da maioria.

Como se v, os problemas ligados efetivao dos direitos humanos so numerosos, complexos e de natureza diversa. As dificuldades inerentes plena realizao de tais direitos nos impem o desafio de repensar os fundamentos, a razo de ser e a amplitude de tais postulados. Os direitos humanos esto enredados, ainda, em dificuldades concernentes legitimidade de alguns dos princpios normativos que os constituem. Diante dessa evidncia, poder-se-ia perguntar : qual a origem dos valores e normas que fundam tais direitos? Uma genealogia da idia de direitos humanos se impe como condio prvia de sua elucidao. Alm do que, para saber se tais direitos podem ser justificados, precisamos buscar uma definio precisa e adequada do termo. Em outras palavras, devemos elucid-los a partir do seu conceito. Todavia, no podemos falar em conceito sem nos reportarmos aos seus fundamentos. Eis que surge aqui o problema acerca do fundamento dos direitos humanos. Sobre isto a filosofia tem algo a nos dizer.

A filosofia, ao longo da histria, tem elaborado princpios destinados a garantir que tais direitos sejam erigidos, proclamados e utilizados como idias regulativas da vida em sociedade. certo que o problema filosfico dos direitos humanos no pode ser dissociado do estudo dos problemas histricos, sociais, econmicos, jurdicos inerentes sua realizao. Por outro lado, convm colocar em questo a pertinncia de tal investigao a partir das seguintes indagaes : at que ponto o problema do fundamento dos direitos humanos torna-se prioritrio na poca em que vivemos ? Uma vez identificados tais direitos, como assent-los sobre princpios consistentes, se nem mesmo a existncia moral dos indivduos goza hoje de uma base terica segura ? Como elaborar um fundamento universal capaz de sustentar o peso da diversidade de culturas, hbitos, costumes, convenes e comportamentos prprios s inmeras sociedades ? Em face de tais dificuldades, seria cabvel compartilhar do ponto de vista de Norberto Bobbio para quem o problema grave do nosso tempo, com relao aos direitos humanos, no mais o de fundament-los e sim o de proteg-los (Bobbio, 1982, p. 25) ? Mas, proteg-los implica em aceitar a noo de que j conseguimos implant-los. O problema ento de outra ordem : em que sentido podemos afirmar que os direitos humanos j adquiriram estatuto de cidadania na comunidade de naes ? Trata-se de algo consensual e absolutamente livre de controvrsias sobre seu valor e eficcia ? Por fim, em que se fundamenta a idia de que devemos proteg-los ?

Talvez seja correto pensar, em meio crise do fundamento que nos assola, que a grande questo que nos desafia no de carter filosfico, histrico ou jurdico, mas sim poltico. Trata-se de garantir que, no obstante as solenes e inmeras Declaraes, tais direitos no sejam violados. Afinal, de que vale a pergunta acerca da natureza de tais direitos se os mesmos se afiguram inexeqveis ou mesmo desrespeitados? Sim, do ponto de vista pragmtico, o que importa analisar as condies, as vias e as situaes mediante as quais este ou aquele direito pode ser realizado. At porque parece claro que a exigncia do respeito aos direitos humanos pressupe, como condio sine qua non para a sua existncia e realizao, a certeza de que eles so fundamentados. Mas ser que o problema concernente fundamentao dos direitos humanos est mesmo resolvido ? A razo de ser de tais direitos constitui-se numa realidade consumada ? Trata-se de um problema com o qual ns no deveramos mais nos preocupar ? Convm demonstrar como a questo da fundamentao de tais direitos se oferece ao olhar da filosofia, at porque dever de ofcio da mesma se ocupar das questes que antecedem toda e qualquer tentativa de soluo do problema.

Ao longo da histria da filosofia muitas foram as tentativas de fundamentar os direitos humanos. De maneira mais significativa tal intento se anuncia nitidamente a partir do sculo XVII com o jusnaturalismo de Locke, para quem o homem naturalmente tem direito vida e igualdade de oportunidades. Este preceito seguido por Rousseau ao anunciar que todos os homens nascem livres e iguais por natureza. Nesse mesma perspectiva, podemos citar Kant para quem os homens tm direito liberdade a qual deveria ser exercida de forma autnoma e racional. Os tericos do direito natural recorriam freqentemente idia de evidncia para afirmar que tais direitos eram inelutveis e, portanto, inquestionveis.

Todavia, aquilo que era considerado evidente numa dada poca deixou de s-lo posteriormente (direito ir propriedade, direito de torturar prisioneiros, direito ao uso da violncia, etc.). Alis, uma breve digresso filosofia poltica do ado pode atestar esse carter de variabilidade que o acompanha. Assim, por exemplo, ao direito propriedade propugnado por Hobbes e Locke foram acrescentados o direito liberdade (Kant), os direitos polticos (Hegel), os direitos sociais (Marx). Eis porque se pode afirmar que cada direito filho do seu tempo.

Os direitos humanos tm hoje se alicerado no valor intrnseco do princpio da dignidade. Ao elaborar a segunda frmula do imperativo categrico, Kant anuncia age de tal forma que tu trates a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca como um meio (Kant, 1785, 420-1). Para ele, todo ser humano dotado de dignidade em virtude de sua natureza racional, ou seja, cada ser humano tem um valor primordial independentemente de seu carter individual ou de sua posio social. Eis por que o homem tomado como um fim em si mesmo. A idia de dignidade deve, pois, instaurar uma nova forma de vida capaz de garantir a liberdade e a autonomia do sujeito.

A dignidade se impe como um valor incondicional, incomensurvel, insubstituvel, que no ite equivalente. Trata-se de algo que possui uma dimenso qualitativa, jamais quantitativa. Por isso, uma pessoa no pode gozar de mais dignidade do que outra. Mas como utilizar esse preceito nas situaes-limite em que necessrio confrontar dignidades a fim de se escolher uma delas ? O que fazer diante da cena dantesca de um corredor de hospital pblico repleto de pacientes (e como so pacientes !) que almejam atendimento e salvao ? Esta dvida tem freqentemente atormentado profissionais da sade quando se vem sem meios para curar, sem critrios para escolher. evidente que tal princpio no pode servir como um imperativo aplicvel em todos os casos, porm em funo dessa idia voltil, e s vezes imprecisa, de dignidade que podemos identificar quando ela negada, negligenciada, esquecida.

certo que no estamos aptos a fornecer uma definio ampla, satisfatria e inquestionvel acerca do que vem a ser dignidade humana. A esta pergunta talvez seja o caso de responder como o fez Santo Agostinho quando lhe indagaram acerca do que o tempo : se ningum me pergunta o que representa a dignidade humana eu sei o que ela significa, porm se algum me pede para explic-la eu j no saberia o que dizer. Mas se tal expresso (dignidade humana) polissmica e sujeita a mltiplas interpretaes, como esperar que ela possa bem fundamentar tais direitos ?

Decerto que ningum precisa saber definir dignidade humana para reconhecer que ela existe como prerrogativa inalienvel do sujeito. Precisaramos ento compreender o que ela significa para defender os que tm sua dignidade ultrajada ? Acreditamos que no. Todavia, nessa cruzada contra os detratores da nossa humanidade, estaremos tambm prontos a lutar pela dignidade das plantas e dos animais, como querem os ambientalistas ? Embora originariamente essa categoria se aplique ao homem, nada nos impede de conferir estatuto de ser existente dotado de dignidade s espcies dos reinos animal, vegetal ou mesmo mineral. Podemos conferir-lhes, mas tambm podemos conspurcar-lhes tal estatuto. Isto atesta o carter antropocntrico de tais direitos. do homem que surgem, para o homem que convergem.

Tanto quanto a noo de direito humanos a idia de cidadania possui um sentido cada vez mais amplo. Os direitos do cidado implicam a existncia de uma ordem jurdico-poltica garantida pelo Estado. Tais direitos, portanto, no tm amplitude universal. So prerrogativas dos indivduos (cidados) que participam dos destinos da plis. Os direitos de cidadania precisam, pois, ser garantidos por dispositivos constitucionais. Em muitos casos, os direitos dos cidados coincidem com os direitos humanos fundamentais. Porm, estes se caracterizam pela amplitude e abrangncia em relao aos primeiros. Assim, por exemplo, uma criana tem direitos humanos, mas no tem direitos ou deveres ligados cidadania. O mesmo acontece com os doentes mentais e, em certo sentido, com os povos indgenas, que ainda sofrem a tutela do Estado. Do ponto de vista da variabilidade, os direitos de cidadania so mais sujeitos a modificaes, pois podem ser ampliados, restringidos ou simplesmente abolidos pelos governos ou pelos poderes constitudos. Porm, em virtude de sua preeminncia e complexidade, investigaremos a natureza dos direitos humanos, para, em seguida, mostrar como estes podem fundar alguns direitos de cidadania.

Os direitos humanos surgem como direitos fundamentais inatos a todos os homens. Constituem, por isso, uma prerrogativa inalienvel. Enquanto tais, eles devem ser protegidos pela ordem jurdica dos Estados. Eles valem, pois, como direitos positivamente estabelecidos, j que, na realidade, esto fundados em critrios normativos. Direito liberdade individual, vida, propriedade, busca da felicidade, segurana, participao na vida scio-poltica do pas, so os primeiros direitos reconhecidos como fundamentais, cuja formulao remonta ao direito natural racional (Hobbes, Locke, Wolff). Nesse caso, eles so fundamentais no porque tm um fundamento, mas porque so imprescindveis existncia do homem em sociedade. Porm, como garantir que o fundamento desses direitos fundamentais seja aceito e defendido pelo conjunto dos seres humanos ? Eis um problema de difcil soluo.

Atualmente tenta-se justificar o valor desses direitos recorrendo-se idia de que h uma consenso, um entendimento ou uma aceitao tcita dos mesmos por parte dos diversos membros da comunidade de naes. A Declarao Universal dos Direitos do Homem (1948) se prope a demonstrar que um determinado sistema de valores factvel, que ele pode ser instaurado e compartilhado pela maioria dos homens do planeta. A universalizao desse princpios regulativos da conduta humana revelaria que o humanidade partilha alguns valores comuns, cujo contedo seria subjetivamente aceito e acolhido por todos os homens do planeta.

Na Declarao de 1948, a afirmao dos direitos , ao mesmo tempo, universal e positiva. Ela envolve todos os homens e no apenas os cidados (como ocorre na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789). Para Bobbio, os direitos do homem nascem como direitos naturais universais (jusnaturalismo), desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrar sua plena realizao como direitos positivos universais (Bobbio, 1982, p. 30). Trata-se, pois, de um ideal a ser alcanado por todos os povos e naes. Tal Declarao, contudo, est longe de ser definitiva, haja vista o carter histrico e, portanto, provisrio de tais direitos. Alm disso, como indica Otfried Hffe, a declarao dos direitos fundamentais , sob diversos aspectos, primeiro um programa poltico e no a ltima pedra na positivao dos direitos do homem (Hffe, 1991, p.376). De fato, a Declarao de 1948 traduz os direitos do homem contemporneo que vive sob a gide dos valores determinados em sua poca pelos contornos da histria. A estes devem somar-se as exigncias mais atuais que demandam novos direitos, como : o progresso da tcnica, a degradao do meio-ambiente e o papel que nele ocupa o indivduo, a ampliao dos canais de informao, o direito verdade, etc. isto que nos credencia a substituir a noo de direitos humanos pela idia de direitos fundamentais e, sobretudo, a atualizar os princpios norteadores das Declaraes e Convenes existentes no mundo atual. A histria descortina os horizontes de revelao de novos direitos, atendendo sempre s exigncias impostas pela conscincia dos agentes sociais. Mas o que significa transformar um direito subjetivo num princpio universal ? Por que o problema referente universalidade de tais direitos torna-se crucial no nosso tempo ?

Inicialmente porque a garantia universal desses direitos se afigura impossvel. Em seguida porque, convm reiterar, acreditamos que a questo do seu fundamento no est completamente resolvida. E finalmente porque a liberdade e a dignidade do homem constituem-se como um ideal a ser atingido; no configuram um fato, mas um valor; no so fenmenos que pertencem esfera do ser, mas ao domnio do dever-ser; no so uma posse, mas uma conquista da humanidade. Se os direitos humanos traduzem um ideal da razo humana, o desafio que se impe ao homem contemporneo de outra ordem : ele consiste na dificuldade de se encontrar as vias concretas para a sua realizao.

Acerca dos obstculos que envolvem a proteo e a efetivao dos direitos proclamados, Bobbio nos fornece a imagem de uma estrada desconhecida na qual trafegam, na maioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os que enxergam com clareza, mas tm os ps presos e os que poderiam ter os ps livres, mas no tm os olhos vendados(Bobbio, 1982, p. 37). Eis o drama que se desenha sob o horizonte histrico da nossa poca : a conquista de tais direitos traz em si o problema de como realiz-los. Alm do mais, o fato de o senso moral comum aceitar o contedo de tais direitos no significa que seu exerccio seja simples. At porque, embora aspirem universalidade, tais direitos no so jamais absolutos. Alis, o fato de desejarmos que os mesmos alcancem uma amplitude universal e de exigirmos um fundamento absoluto que lhes d sustentao no garante sua realizao prtica. Aqui surgem novas dificuldades que se expressam assim : como fundar de modo absoluto direitos regidos pela variabilidade dos rumos da histria ? Como no considerar vaga a expresso direitos do homem ?

Todos concordam que necessrio encontrar um meio capaz de compatibilizar a pluralidade das manifestaes polticas e jurdicas dos indivduos modernos e a identidade do homem. Mas, quem o homem de que trata os direitos humanos ? Como falar em direitos humanos quando no se tem uma idia clara do que seja o homem ? Quem ontologicamente esse homem que definimos como ser humano ? Trata-se de um ideal destitudo de singularidade concreta ? Seria este homem um ser que transcende as vicissitudes e abjees prprias ao sujeito real ? Enfim, como relacionar a objetividade dos postulados de tais direitos com as particularidades prprias subjetividade de cada indivduo ?

O homem dos direitos humanos designado sob a categoria de universalidade que supe uma definio baseada num ponto de vista moral imparcial, independente de toda determinao particular. Trata-se de um homem situado fora do tempo e do espao. Este homem no tem face nem histria. uma entidade difusa em cuja face pode aderir qualquer semblante, qualquer perfil. Pode-se ento afirmar que os direitos humanos estariam fundados numa espcie de humanismo abstrato? Se isso verdade, como ento coadunar essa idia abstrata de humanidade do homem com as formas de liberdade e os contedos do direito que lhe so correspondentes ? Como, enfim, manter o direito inclume ao surto imprevisvel dos instintos de cada ser humano ?

O homem real, como bem demonstrou Kant, tambm portador de inclinaes. O carter ional dos homens , para ele, um fator positivo no que se refere ao j afirmado desenvolvimento da espcie humana, pois tais inclinaes levam ao aperfeioamento das relaes sociais entre os indivduos. A razo, que define no plano prtico as relaes universais dos homens entre si, determina, no mesmo nvel, a possibilidade deste desenvolvimento. A razo liberta o homem do impulso instintivo, inserindo-o na sociedade.

Nessa direo, o direito natural a a ser reconhecido pela razo humana na forma de sistema de leis racionais a priori. Isso indica que a idia de uma comunidade de indivduos deve se assentar no direito natural dos homens de exercer sua liberdade e autonomia. Segundo Kant, a noo de que aqueles que obedecem devem, tambm, reunidos, legislar, se encontra na base de todos as formas de Estado.

Aristteles, alis, no livro I da Poltica descreve o homem como um animal poltico (zon politikon) dotado de logos, de discurso e razo. Palavra e pensamento fundam a possibilidade da existncia plural dos homens em sociedade. Entre os seres vivos, o homem enquanto animal poltico, se destaca como o nico apto a discernir sobre os valores, a definir o justo e o injusto, a escolher entre o bem e o mal. Ele no deseja apenas viver, mas bem viver. A poltica confere ao homem uma disposio para viver em sociedade, como animal social, mas quando separado da lei e da justia ele pode transformar-se num ser inumano. O homem preso s instituies o melhor de todos, mas quando ele delas se afasta torna-se o pior dos demnios. Sendo assim, em que se funda a obrigao de respeitarmos os direitos humanos ?



[1] Professor Doutor do Departamento de Filosofia e da Comisso de direitos Humanos da UFPB.

No fato de que tais direitos constituem-se como um atributo prprio a todos os seres racionais, poderia ser a resposta. Ou ainda, na exigncia que o imperativo da lei moral impe nossa vontade. Assim, viver sob a gide dos direitos humanos implica em cumprir as obrigaes que a liberdade determina a todo ser responsvel. Trata-se aqui primeiramente de uma obrigao imposta moralidade do sujeito pela razo. Todavia, sabemos que no basta praticar determinado ato segundo a norma ou regra que o disciplina. preciso tambm examinar as condies concretas nas quais ele se realiza. Afinal, para que possamos imputar a algum uma responsabilidade moral por determinado ato, necessrio que o sujeito no ignore as circunstncias nem, tampouco, as conseqncias de sua ao, e que a causa de seus atos esteja nele prprio, ou seja, que sua conduta seja livre. Conhecimento da lei e liberdade prtica so prerrogativas que nos remetem ao princpio da responsabilidade. Assim, para que o indivduo possa escapar das possveis sanes, ele precisar justificar o desconhecimento de tais normais ou ento o fato de que no obrigado a segu-las. Somente assim a ignorncia o isentaria de responsabilidade. A ignorncia, porm, no exime de responsabilidade aquele que responsvel por sua prpria ignorncia.

O problema acerca da constituio de instrumentos eficazes que possam garantir universalmente o respeito e o cumprimento dos direitos humanos permanece irresolvel. Em muitos casos, podemos apelar ordem moral vigente como forma de garantir o seu respeito. Mas que fora pode assumir tal apelo num mundo marcado pelo egosmo e pela intolerncia ? V-se que o ime se mantm, pois no h como instituir um direito legal ou moral sobre algo, sem que se pense em constituir paralelamente uma instncia legal ou moral de cobrana. mais fcil imaginar a existncia de tal instncia no mbito de Direito do que no mbito da moral. Parece evidente que, se temos um direito, a ningum permitido viol-lo. Neste caso, todos seriam o destinatrio da exigncia de cobrana que se vincula ao direito. Porm, aceitvel que todos tambm possam exercer o papel de instncia coercitiva ou punitiva ? Se isto parece impossvel, como ento conceber um direito moral sem uma instncia de cobrana ? Que valor tem um direito que est no papel, mas que no se pode se exigir sua observncia ? H, enfim, algo de incongruente nessa noo ?

Em sua obra A transparncia do mal, Jean Baudrillard afirma que o discurso dos direitos humanos se baseia numa crena iluminista na atrao natural do bem, numa idealidade das relaes humanas. Essa busca exacerbada do bem implica no desejo de minimalizao do mal, numa espcie de profilaxia da violncia, de extino da fora indomvel que domina a natureza humana. Tentar fugir ao espectro do mal to-somente conduz tais direitos para fora do universo humano, diz ele. Tudo se a como se devssemos aprender a conviver com a desrazo que reside em cada homem. Esta idia indica que resta sempre algo de insondvel na nossa maneira humana de ser. H coisas que somente a razo pode procurar, mas ela jamais as encontrar; h coisas que s o instinto poderia encontrar, mas ele , s vezes, cego para procur-las. Se, todavia, somos irremediavelmente propensos a negar a fora da racionalidade e, por conseguinte, as regras ordenadoras da nossa conduta (a lei do dever, o respeito aos direitos humanos), como acreditar no progresso moral da humanidade ? Como fugir quilo que Kant designa de insocivel sociabilidade ?

Para Kant, o antagonismo da espcie se refere sua insocivel sociabilidade j que o desejo de se associar convive, ao mesmo tempo, como a relutncia em realiz-lo. O instinto de sociabilidade conduz os indivduos a uma vida associativa. Contudo, interesses egostas e inclinaes o levam a negar as normas regulativas da vida em sociedade. Todavia, esta tendncia ambgua no algo em si mesmo deletrio, isto porque este movimento desperta a capacidade criativa do indivduo, resgatando-o da indolncia e da letargia. A insociabilidade tende a fomentar o desenvolvimento da espcie ao despertar a avidez dos homens incentivando-os concorrncia, luta pela sobrevivncia. Assim, ou os homens optam racionalmente por um fim histrico ou a natureza conduzi-los- forosamente, mediante guerras, conflitos e outras desgraas, sua consecuo.

Mesmo quando tencionamos adquirir vantagens em nosso proveito, somos levados, diz Kant, a seguir, como linha de orientao, as indicaes da natureza. E mesmo agindo em favor de ns mesmos, conseguimos realizar um fim mais amplo e elevado. Desse modo, aquilo que se afigura nebuloso e disperso nos indivduos pode representar no conjunto da espcie um desenvolvimento contnuo e progressivo. Somente na espcie que se pode vislumbrar o sentido das disposies naturais do homem, isto porque, ao contrrio dos outros animais, os homens possuem a capacidade de transmitir s futuras geraes seus feitos e conquistas. Assim, enquanto as tendncias anti-sociais conduzem os homens vida privada e iva, as disposies racionais os levam a se libertar das limitaes impostas pelas inclinaes ionais. Kant no confunde a histria da humanidade com a histria de homens singulares. Assim, j que o indivduo racional mortal, confiou-se espcie humana a realizao do seu destino racional. A filosofia da histria de Kant demonstra a existncia de evidncias que podem atestar o progresso moral da humanidade.

Kant considerava que a maneira entusiasmada com que o indivduo concebia um fato histrico relevante (a Revoluo sa, por exemplo) refletia as motivaes da espcie humana para o melhor. O tropismo libertrio seria concebido como uma destinao natural do homem. Ora, a modernidade nos legou a idia de progresso, mas tambm a realidade de certos males. Suas fronteiras delimitam, por um lado, a idia de liberdade advinda da Revoluo sa e, por outro, o terror que nela vem expresso sob forma de guilhotina e intolerncia.

De fato, a Revoluo sa representa o signo histrico que revela a disposio moral da humanidade, porm no podemos dissoci-la desse crime que o regicdio. Eis o exemplo do enigma insondvel que define os rumos de um poder originrio que pode se conduzir para bem ou para o mal. O terror pode ser considerado como um dos marcos histricos da radicalidade do mal. Contudo, a assepsia do mal no mata o bacilo da maldade, apenas antecipa outros tipos de desastre. Alm do que, como afirma Bernard-Henri Lvy, a vontade de pureza, quando torna-se obsesso, pode conduzir ao integrismo (Bernard-Henri Lvy, 1994, p.97). Nosso mundo sonha em acabar com a contradio, a negatividade, a morte, o mal. Todavia, somos muitas vezes incapazes de distinguir uma guerra justa de uma paz injusta.

Para Baudrillard , o direito vida, salienta, emociona todas as almas piedosas, at o momento em que chega o direito morte, ponto no qual se manifesta o absurdo de tudo isso. Porque morrer tanto quanto viver um destino, uma fatalidade (feliz ou infeliz), jamais um direito (Baudrillard, 1990, p.94), diz ele. Trata-se, pois, de um acidente natural que pertence ordem do ser e no do dever-ser. Eis todo o absurdo de se associar o direito a fenmenos inslitos, imponderveis, imprevisveis. Para muitos seria bizarro se depois de Chernobyl e do naufrgio do submarino atmico, a Rssia requisitasse o direito catstrofe, direito ao acidente, ao crime, ao erro, o direito ao pior e no apenas ao melhor. Bizarro talvez, mas no ilgico do ponto de vista da axiologia.

Outros exemplos podem ser oferecidos : o carter inquestionvel do direito ao trabalho deve impedir que alguns exijam o direito preguia, ao cio, ou mesmo, ao desemprego ? Se o direito vida inalienvel porque tambm no o o direito morte ? Como podemos recriminar algum que deseja se despedir de uma vida sofrida, desgraada, mrbida ? H algo de absurdo nessas consideraes ? O absurdo, para Beaudrillard, reside na absolutizao de certos direitos. Eis um exemplo airoso dessa situao : um condenado morte nos Estados Unidos reclama o direito de ser executado imediatamente contra todas as ligas de direitos humanos que se esforam para obter-lhe o perdo. Por isso, clebre frase de Fichte, o verdadeiro direito do homem a possibilidade de adquirir direito, poderamos acrescentar : e de recusar tais direitos.

Podemos reivindicar o direito de ser isso ou aquilo. Mas o que significa ser isso ou aquilo se tivermos tais direitos ? A postulao do direito indica uma falta, uma carncia, uma lacuna. Ademais, se uma coisa evidente, o direito torna-se suprfluo. Quando a reivindicao de direito comea a recair sobre algo que sempre se mostrou necessrio e inelutvel, ento devemos comear a nos preocupar. Assim, quando armos a exigir o direito gua, ao ar, ao espao, sinal de que tais elementos esto se extinguido progressivamente. O direito de resposta, antes de expressar uma conquista da democracia, indica a ausncia de dilogo. Assim tambm acontece em todas as situaes nas quais o direito se transforma em dogma. Se tudo pode remontar ao direito, nada mais direito.

Os direitos do indivduo perdem sentido quando ele deixa de ser um ente alienado, privado do prprio ser, estranho a si mesmo. O sistema de direitos humanos torna-se complemente inadequado e ilusrio numa conjuntura em que o indivduo torna-se um promotor da prpria existncia. Mas, sabemos, estamos longe de viver essa realidade, razo pela qual tais direitos existem teoricamente para promover a justia e garantir que os mais fracos no sejam massacrados pelos mais fortes. Diga-me qual e a sua fraqueza ou indigncia que eu direi qual o seu direito. Eis a mxima do nosso tempo.

Todos estamos prontos a aceitar que as vtimas, enquanto vtimas, tm direitos. Mas quem a rigor vtima e do qu ? Esta a pergunta que devemos primeiramente responder. Alm disso, j vimos, a vtima pode abdicar do direito de usufruir de um direito. Como no reconhecer aqui um ime representado pela existncia de direitos antinmicos ou mesmo excludentes ? Trata-se de um ato de justia exercer uma discriminao positiva (ao afirmativa) em favor de membros de certos grupos oprimidos ou de minorias sub-representadas socialmente ? Do ponto de vista dos direitos humanos aceitvel a interferncia das grandes naes para evitar genocdios ou conflitos tnicos em pases convulsionados ? Ora, parece polmico o direito que se confere a um Estado de se imiscuir nos assuntos alheios. O direito de ingerncia, por exemplo, permite que um pas (ou um grupo de pases) representante de um organismo internacional ou de uma comunidade de naes invada um Estado soberano, se esta soberania serve de pretexto para a prtica de crimes (genocdio, limpeza tnica, etc.) contra a populao indefesa. verdade que tal possibilidade representa, seno um progresso, pelo menos uma conquista do poder coercitivo da razo que obriga os tiranos e exterminadores de minorias a refletir bastante antes de empreenderem suas armas mortferas. Mas, a ingerncia vista com desconfiana porque nela se confundem motivaes geopolticas, interesses estratgicos e atitudes humanitrias. Atitudes humanitrias que, alis, no deixam de suscitar questionamentos e condenaes.

O problema que, como acentua Bernard-Henri Lvy, o humanitrio transformou-se numa grande medicina sem fronteiras cuja funo no mais coibir os assassinos, mas apenas socorrer as vtimas ou faz-las morrer de barriga cheia (Bernard-Henri Lvy, 1994, p. 144) O humanitrio um vitalismo. Em lugar de conferir uma imagem nobre do homem, de pens-lo como um ser dotado de pensamento e linguagem, ele o reduz a um princpio de vida que tem algo em comum com os animais. como animais que os tiranos tambm tratam suas vtimas. A ajuda humanitria trata os seres que padecem da tirania como corpos que merecem ateno depois de terem sido reduzidos a coisas pelos seus algozes. Tal postura pode assim ser resumida : massacrem, em seguida ns faremos o resto! Henri Dunant (fundador da cruz vermelha) falava em humanizar os campos de batalha, sem nada mencionar sobre a origem do horror que emanava da desumanidade dos tiranos.

H, pois, algo de infame na ideologia humanitria. Ela olha para as grandes tragdias humanas, mas no consegue ver que preciso salvar os homens. O esprito humanitrio funda-se numa espcie de poltica do sentimento, num tipo peculiar de compaixo, cujo motor a piedade e a comoo diante do terror. Eis a imoralidade reinante num mundo que no sabe mais distinguir entre os torturadores e suas vtimas. A aberrao da nossa poca pode ser representada pela figura terna de um soldado da O.N.U, um combatente desarmado, uma sentinela tornada alvo. H algo de pattico no espetculo dessa fora impotente, que, resignadamente, ajuda a gerenciar no os conflitos, mas as guerras de extermnio.

A forma ltima da perversidade que marca o nosso tempo representada pela frase infame : tudo possvel. Isto porque constitui-se ela na chave de o ao reino do tudo aceitvel. J no h limite que separe o provvel do insano. So poucos as coisas que tendem a ns provocar averso. Tem se tornado difcil definir o inaceitvel. Espectadores inertes diante do mal que se lhe recai e indiferentes s dores do outro, assim somos ns em face do teatro de horrores do nosso sculo. Podemos recusar o enfrentamento, mas no podemos esquecer : certos crimes so inexplicveis. Hannah Arendt fala das duas experincias radicais do nosso sculo : o totalitarismo, que traz luz a antinomia da poltica e da liberdade; e as possibilidades de aniquilao orquestradas pelos Estados modernos, que ela designa de antinomia entre poltica e conservao da vida. Pois bem, o aniquilamento do homem pelo Estado continua sendo o smbolo maior do carter bestial da violncia humana neste fim milnio. A guerra da Bsnia, o massacre dos chechenos, a perseguio dos curdos, o extermnio dos tutsis em Ruanda e no Burundi, atestam o que j previam os gregos : o trgico dominou a histria e a transformou no em destino, mas em terror. Enquanto isso, pouco a pouco temos nos acostumados com a mentira, a dissimulao e a provocao dos que nos governam e com a prepotncia dos que mandam nos que nos governam. Fala-se em universalizao dos valores ocidentais, em globalizao e transculturalismo, num mundo cada vez mais marcado pelo tribalismo e pela xenofobia.

Por isso, no podemos postular a universalizao dos direitos humanos sem perguntar se o evolucionismo cosmopolita possvel. H uma fora irreconcilivel que atua em todas as culturas, fazendo com uma pretensa lei universal jamais seja inelutvel. Alm disso, seria justo obrigar os indivduos a respeit-los como valores universais ? Se os direitos humanos repousam sobre um princpio de totalidade (a idia de dignidade), podemos livr-lo da tentao totalitria ? Se h algo de totalitrio na idia de totalidade, como dizia Hannah Arendt, os direitos humanos esto livres das motivaes ideolgicas ou etnocntricas das naes que os proclamaram ? A postulao de uma s ordem no seria o sinal mais evidente de que vivemos uma poca de grande desordem ? A tranqilidade ou a indiferena com que aceitamos o inaceitvel reflete a indolncia que domina nosso viver. A sociedade contempornea conhece bem as marcas do mutismo que conduzem muitos a abdicar de direitos em troca de benefcios pecunirios. Noutros termos, nunca tantos venderam por to pouco sua alma ao diabo. O homo economicus o principal personagem desse cena em que os direitos humanos atuam como coadjuvantes mudos do espetculo.

Soma-se a isso, a propagao da surdez, a cegueira endmica, a desertificao das almas. A barbrie econmica nos arrasta, com todos os nossos direitos, para fora do campo da vida. Nosso mundo bem sabe que os valores financeiros no so ativos reais. So cifras, smbolos inverificveis, nmeros que migram de uma praa financeira a outra, como entidades espectrais que assombram governos, pases, naes. Enquanto isso, o poder poltico opera dentro de paisagens econmicas. Os agentes financeiros decidem, ordenam, pressionam, controlam os que nos governam. O capital financeiro, o pilar desse novo modelo de civilizao, se impe como uma fora indomvel, onipotente, devastadora, que desconhece fronteiras e limites. Um ameaa oculta, sinistra. Eis o retrato de uma experincia humilhante : homens vencidos, fracassados, considerados inteis e suprfluos. Eles so julgados incompatveis com a sociedade que os exclui. Eles so acusados por serem suas vtimas. O paradoxo a marca do absurdo que caracteriza os nossos tempos.

Se antes os indivduos lutavam contra a explorao, hoje lutam contra a falta dela. Alguns lutam para reencontrar a sua desumana condio : desejam ser explorados. Muito preferem sentir as labaredas do inferno do que nada sentir. Dante no imaginaria inferno pior do que o daqueles que clamam desesperadamente pelo inferno; aqueles para quem a maior danao seria ser expulso dele.

O desastre est no fato de que tudo parece natural, inevitvel, sem alternativa, incontornvel e o que pior : conseguem nos convencer de que tudo isso necessrio. A indiferena acaba permitindo nossa adeso iva realidade que nos imposta. No estamos diante de um fato consumado, estamos trancados nele. Como demonstra Saramago em seu romance Ensaio sobre a cegueira, muitos esto acordados, mas fazem de conta que esto dormindo.

A apatia se revela como incapacidade de defender nossos prprios valores, a fraqueza de uma vontade traduzida em conduta de resignao e ividade. Enquanto itimos que somos filhos de uma poca de desencanto, o mundo amadurece para toda forma de crueldade. O encontro da misria da alma com a amargura de viver d origem a pior forma de violncia : a violncia da calma.

certo que o homem jamais domesticar por completo o lobo que repousa nele prprio. Sabemos tambm o quando custa a uma sociedade que deseja radicalmente extirpar sua parte maldita. Por isso, o ideal de uma sociedade livre, justa, livre e fraterna, antes de indicar nosso triunfo, talvez seja uma maneira de atestar a nossa runa. Como falar em liberdade e em direitos num mundo assolado pelo espectro do egosmo e da moral do interesse ? Por que temos tendncia a defender com mais volpia nossos direitos do que aqueles que se referem ao outro ? Quem esse outro, s vezes to prximo, s vezes to estranho a ns mesmos ? A prtica cruel e insana do racismo mostra o quanto os homens so incipientes nessa arte de aceitar e respeitar o outro.

O racismo expressa uma forma alucinada de negao da diferena. O racismo comea a existir quando o outro torna-se diferente. Hoje tudo se fala em termos de alteridade, ou seja, da existncia factual do outro, mas a alteridade no a diferena. A diferena mata a alteridade. O outro comea a ser rechaado no momento em que se torna diferente. A crtica poltica e ideolgica do racismo uma crtica formal, j que s ataca a obsesso racista, sem atacar o seu ncleo principal : a prpria idia de diferena. Com isso, deixa-se de demonstrar que a idia de diferena, da qual se nutre o racismo, uma iluso. Tal crtica acaba tornando-se uma iluso crtica, j que a nada se refere. Eis por que o racismo tem sobrevivido critica racional que se lana contra ele. To grave quanto o fragililidade da crtica antiracista e a ingenuidade dos que suspeitam que a cultura racista pode sucumbir ao tempero da miscigenao. O Brasil um caso emblemtico desse auto-engano.

A questo racial (ou tnica) permanece to mal resolvida no Brasil quanto em outros pases. O racismo ideolgico, todavia, tem sido aparentemente menos cultuado no nosso pas, em virtude da confuso tnica e da multiplicao da mestiagem. A discriminao racial parece diluda no cruzamento das linhas de diversas etnias, como se fossem as linhas de nossa mo. Essa forma de desqualificao do racismo por disperso do objeto mais sutil e eficaz do que a luta ideolgica. Todavia, ela no suficiente para afugentar a sombra da bestialidade e da insensatez que o racismo representa.

A prtica voluntria da violao dos direitos humanos, seja ela de carter racista, sexista, regionalista, nos coloca em face da fraqueza da vontade ou da escolha do pior. Esse problema existe desde o intelectualismo moral socrtico, que Aristteles apresenta no livro VII de sua tica a Nicmaco, segundo o qual ningum age mal deliberadamente. Ora, temos bastante dificuldade, do ponto de vista moral, para itir que o mal possa ser praticado contra o semelhante por aqueles que sabem o que o bem. No entanto, sabemos que certas pessoas tm o prazer em fazer o mal por escolha prpria e em fugir do bem por deciso autnoma. Ento convm recolocar a questo : como acreditar no progresso moral da humanidade se somos incapazes de domesticar as nossa inclinaes malvolas, de controlar os nossos mpetos destrutivos ? Contudo, o mal no repousa na irracionalidade das paixes. Ele antes o resultado das nossa decises e escolhas racionais, ou seja, trata-se de um produto da nossa liberdade e no da vontade de uma gnio diablico que residiria em todos ns.

Libertar-se do mal implica tambm em se libertar do mal da liberdade. Mas isto corresponderia tambm a se libertar da prpria liberdade. O que desejamos afirmar com isso : libertao ilimitada ou degradao ilimitada so as duas faces de uma sntese perversa. A tendncia para o mal no deixa de ser uma possibilidade da liberdade humana. Vimos, com Aristteles, que a constituio do homem como animal poltico no elimina o risco de desmesura, a ameaa da tragdia. Por isso, recolocar a questo : se a disposio para o bem no soberana para suprimir a propenso para o mal, como podemos acreditar no progresso moral da humanidade ? Como transformar uma curva (a liberdade) numa linha reta (os direitos humanos) sem desfigurar sua natureza ou geometria irregular ?

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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ARISTTELES, Poltica, (Obras Completas) Buenos Aires : Aguillar, 1982.

BAUDRILLARD, Jean, A transparncia do mal. Ensaio sobre os fenmenos extremos, So Paulo : Papirus, 1990.

FICHTE, Johan C., Introduo teoria do Estado (1813), So Paulo : Abril Cultural, 1980.

TUGENDHAT, Ernst, Lies sobre tica, Petrpolis : Vozes, 1977.

KANT, Immanuel, Fundamentao da Metafsica dos Costumes (1785), Lisboa : Edies 70, 1980.

LVY, Bernand-Henri, La puret dangereuse, Paris : Grasset, 1994.

SARAMAGO, Jos, Ensaio sobre a cegueira, So Paulo : Companhia das Letras, 1994.

HOBBES, Thomas, Leviat, ou matria, forma e poder de um Estado eclesistico e civil, So Paulo : Abril Cultural, 1983.

ROUSSEAU, Jean-Jacques, Do contrato Social (1757), So Paulo : Abril Cultural, 1985.

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