Queria, em primeiro lugar,
manifestar minha satisfao em abrir, com esta mesa redonda, o Curso de
Formao de Educadores em Direitos Humanos da UFPb, na presena de um pblico
to numeroso e qualificado, composto de alunos, funcionrios e professores
dos diferentes campi da nossa
Universidade. Um pblico onde esto presentes muito jovens: esperamos de no
desapontar ningum, mas, ao contrrio, estimular e motivar o maior nmero
de pessoas a se engajar na luta pela promoo e defesa dos direitos humanos
dentro e fora de Universidade.
Alguns tempos atrs, direitos
humanos era um tema maldito e proibido no Brasil; hoje um tema to
difuso que arrisca de tornar-se uma moeda gasta ou uma mera retrica vazia de
contedo e de eficcia. Por isso, importante que ns, militantes dos
direitos humanos, que fazemos de
sua promoo, tutela e difuso a nossa razo de ser e de existir, no
deixemos que isso acontea: no podemos permitir que se tornem uma palavra
oca, uma retrica boa para qualquer circunstncia ou acontecimento social,
um puro e simples enfeite.
Este
curso pretende comear a praticar a famosa inter- ou trans-disciplinariedade:
o prprio tema assim o exige. nesse sentido que procurarei dar minha
contribuio como professor de filosofia, questionando, levantando dvidas,
colocando a prova e testando as nossa prprias convices. Como sabe
qualquer estudante de filosofia, a dvida radical, metdica e sistemtica
a condio necessria e preliminar de toda pretenso ao conhecimento e
foi praticada por todos os grandes pensadores. Portanto, minha tarefa, no dilogo
interdisciplinar ser de levantar questes mais do que encontrar respostas.
Acredito que, durante o curso, com a colaborao de todos, teremos outras
oportunidades mais positivas e propositivas.
DIREITOS HUMANOS E OCIDENTE:
UMA HISTRIA DE EMANCIPAO E OPRESSO
O
presente mdulo tem como objetivo reconstruir
a trajetria histrica que levou emergncia e afirmao da
doutrina dos direitos humanos contemporneo. O marco temporal vai desde os
primrdios da modernidade no Ocidente (Sculos XV/XVI), at a Declarao
Universal das Naes Unidas de 1948. Neste perodo, ocorreu um gigantesco
fenmeno histrico: a expanso da civilizao europia (e de maneira
mais geral ocidental) sobre o resto do mundo, fazendo com que, pela primeira
vez, a histria de uma civilizao particular se identificasse
progressivamente com a histria do mundo.
Esse
o mbito macro-histrico que devemos sempre ter presente e que condiciona
a nossa analise das teorias e das prticas que contriburam para a formao
do corpus filosfico e jurdico
dos direitos do homem; os quais, nascidos
no contexto da civilizao europia, como momento da sua histria, foram,
desde o comeo, intimamente relacionados com todo o processo que fez da histria
da Europa a histria do Mundo.
Os povos do Novo Mundo foram
parte integrante, desde o incio, da moderna histria do Ocidente, mas a sua
integrao sempre foi, at os dias de hoje, subordinada, dependente, ao
mesmo tempo includente e excludente.
Ao final, o primeiro grande encontro, ou melhor, desencontro entre a Europa e
os povos descobertos, deu origem ao maior genocdio de que se tem memria
na histria da humanidade; nem a sho,
isto , o extermnio dos judeus no sculo XX, foi mais terrvel e cruel da
destruio das ndias como a definiu o grande Procurador dos ndios,
frei Bartolom de Las Casas.
Este
olhar de baixo, dos excludos, das vtimas, pode e deve ser a nossa
contribuio para uma reconstruo da histria dos direitos do homem
menos unilateral e simplista do que geralmente aparece nos manuais de divulgao
da histria dos direitos humanos, onde a Europa e o Ocidente aparecem como o
espao onde progressivamente se forja a emancipao do homem, que ,
posteriormente, estendida a toda a humanidade como modelo a ser seguido. O
resto do mundo constitui o agente ivo, marginal, o outro que no
descoberto, mas ocultado
como afirma Enrique Dussel
e recebe o verbum dos Direitos
Humanos do Ocidente civilizado.
claro que esta histria est mal contada.
Marx,
nos prope uma leitura diferente, e nos alerta para a considerao de que a
Histria Universal, que Hegel idealiza como tendo como sujeito o Esprito do
Mundo (Weltgeist), a histria da
criao do mercado mundial:
Na
histria existente at o momento certamente um fato emprico que os
indivduos singulares, com a transformao da atividade em atividade histrico-mundial,
tornam-se cada vez mais submetidos a um poder que lhes estranho (uma opresso
que representavam como uma astcia do assim chamado Esprito do Mundo - Weltgeist),
um poder que se tornou cada vez mais macio e se revela, em ltima instncia,
como mercado mundial.
A criao de um mercado
mundial, desde a introduo do trfico de escravos em larga escala, at os
contemporneos processos de globalizao econmica e financeira (baste
pensar na enorme dvida externa dos pases dominados) o outro grande fenmeno
macro-histrico que condiciona todo o processo de universalizao dos
direitos humanos e que devemos sempre ter presente nas nossas anlises histricas
e atuais.
Enquanto
que, no chamado Ocidente, atravs de lutas de classe, conflitos e
guerras, foram se consolidando alguns direitos fundamentais, os pases
extra-europeus foram, desde o comeo, excludos deste processo, ou melhor,
participaram dele como vtimas.
Apesar da afirmao de que os homens nascem e so livres e iguais,
uma grande parte da humanidade permanecia excluda dos direitos. As vrias
declaraes de direitos (Bill of
Rights) das colnias
norte-americanas no consideravam os escravos
como titulares de direitos tanto quanto os homens livres. A Declarao dos direitos do homem e do cidado da Revoluo
sa no considerava as mulheres
como sujeitas de direitos iguais aos dos homens. Em geral, em todas estas
sociedades, o voto era censitrio e s podiam votar os homens adultos e
ricos; as mulheres, os pobres e os analfabetos no podiam participar da vida
poltica.
Devemos
tambm lembrar que estes direitos no valiam nas relaes internacionais;
com efeito, neste perodo, ao mesmo tempo em que proclamavam-se os direitos
universais do homem, tomava um novo impulso o grande movimento de colonizao e de explorao
dos povos extra-europeus; assim, a grande parte da humanidade ficava excluda
do gozo dos direitos. oportuno relembrar tambm que a criao de um
mercado mundial foi possvel graas pilhagem e a drenagem de enormes
recursos dos povos colonizados e a reintroduo, em ampla escala, da
escravido por parte do Ocidente Cristo. Fenmenos que contriburam para
o processo histrico da acumulao primitiva do capital, que deu o grande
impulso criao e expanso do sistema capitalista mundial.
A
escravido foi implantada na poca Moderna pela potncias crists,
numa forma tanto mais brutal e injustificvel enquanto abertamente em
contraste com a doutrina da liberdade e igualdade natural de todos os homens
proclamada pela tradio crist e
secularizada pela modernidade. E se os antigos discriminavam os brbaros,
foram os modernos que inventaram o racismo na sua forma especfica como um
produto novo do etnocentrismo e do cientismo europeu que a antigidade
no conheceu.
Uma vez colocadas estas questes
iniciais, vamos entrar no mrito, e contar melhor essa histria.
Na
constituio da doutrina dos direitos do homem, assim como nos a conhecemos
hoje, podemos identificar a confluncia de vrias correntes de pensamento e
de ao, entre as quais as principais so o liberalismo, o socialismo e o
cristianismo social.
Libert
Que
a doutrina dos direitos humanos seja uma aquisio da modernidade e
especificamente do pensamento liberal uma opinio amplamente difusa e que
faz parte da imagem que o Ocidente tem de si e que projeta sobre o resto do
mundo.
A doutrina jurdica que funda os direitos humanos o jusnaturalismo moderno, isto , a teoria dos direitos naturais, que
rompe com a tradio do direito natural antigo e medieval, sobretudo a
partir de Thomas Hobbes, no Sculo XVII. As caractersticas principais do
que Norberto Bobbio define como modelo jusnaturalista ou Hobbesiano
so as seguintes:
a)
Individualismo: existem (ora
como dado histrico, ora como hiptese de razo) indivduos que vivem num
estado de natureza anterior criao do Estado e que gozam de direitos
naturais intrnsecos, tais como o direito vida, propriedade,
liberdade, segurana e igualdade frente necessidade e morte.
b)
O Estado de natureza. um
pressuposto comum a todos os pensadores deste perodo, ainda que eles o
caracterizem de modo divergente: ora como um estado de guerra (Hobbes),
ora como um estado de paz instvel (Locke)
ora como primitivo estado de liberdade plena (Rousseau).
c)
O Contrato Social
entendido como um pacto artificial (no importa se histrico ou ideal) entre
indivduos livres para a formao da sociedade civil que, desta maneira,
supera o estado de natureza; pacto atravs do qual todos os indivduos se
tornam cidados, renunciando prpria liberdade in
parte ou in toto para consign-la nas mos do prncipe absolutista de Hobbes
(modelo absolutista) ou do monarca parlamentarista de Locke (modelo liberal)
ou da Assemblia Geral de Rousseau que representa diretamente a vontade
geral(modelo republicano-democrtico). Apesar das diferenas, o que h em
comum entre os autores o carter voluntrio e artificial do pacto ou do
contrato, cuja funo garantir os direitos fundamentais do homem que, no
estado de natureza, eram continuamente ameaados pela falta de uma lei e de
um Estado que tivesse a fora de faze-los respeitar.
d)
O Estado nasce, assim, da
associao dos indivduos livres (concepo atomista da sociedade) para
proteger e garantir a efetiva realizao dos direitos naturais inerentes aos
indivduos, que no so criados pelo Estado mas que existiam antes da criao
do Estado e que cabe ao Estado proteger.
Para Hobbes trata-se sobretudo do direito vida, para Locke do direito
propriedade, para Kant do nico e verdadeiro direito natural que inclui todos
os outros que a liberdade.
Estas
doutrinas surgiram nos sculos XVII e XVIII, no perodo de ascenso da
burguesia que estava reivindicando uma maior liberdade de ao e de
representao poltica frente nobreza e ao clero. Elas forneciam uma
justificativa ideolgica consistente aos movimentos revolucionrios que
levariam progressivamente dissoluo do mundo feudal e constituio
do mundo moderno. O jusnaturalismo moderno,
sobretudo atravs dos iluministas, teve uma importante influncia sobre as
grande revolues liberais do sculos XVII e XVIII:
A Declarao de Direitos (Bill
of Rights) de 1668 da assim chamada Revoluo
Gloriosa que concluiu o perodo da revoluo inglesa iniciado em
1640 levando formao de uma monarquia parlamentar;
A Declarao dos direitos (Bill
of Rights) do Estado da Virgnia de 1777, que foi a base da declarao
da Independncia dos Estados Unidos de Amrica (em particular as primeiras
10 emendas de 1791);
A Declarao dos direitos do
homem e do cidado da Revoluo sa de 1789 que foi o atestado
de bito do Ancien Rgime e
abriu caminho para a proclamao da Repblica.
Os
direitos da tradio liberal tem o seu ncleo central nos assim chamados
direitos de liberdade, que so fundamentalmente os direitos do indivduo
(burgus) liberdade, propriedade, segurana. O Estado limita-se a
garantia dos direitos individuais atravs da lei sem intervir ativamente na
sua promoo. Por isto, estes direitos so chamados de direitos de liberdade negativa, porque
tem como objetivo a no interveno
do Estado na esfera dos direitos individuais.
Egalit
A
tradio liberal dos direitos do homem domina o perodo que vai do Sculo
XVII at a metade do Sculo. XIX, quando termina a era das revolues
burguesas.
Nesta poca, irrompe na cena poltica o socialismo, que encontra suas razes
naqueles movimentos mais radicais da Revoluo sa que queriam no
somente a realizao da liberdade, mas tambm da igualdade.
O
socialismo, sobretudo a partir dos movimentos revolucionrios de 1848 (ano em
que foi publicado o Manifesto da Partido Comunista de Marx e Engels),
reivindica uma srie de direitos novos e diversos daqueles da tradio
liberal. A egalit da Revoluo
sa era somente (e parcialmente) a igualdade dos cidados frente lei,
mas o capitalismo estava criando novas grandes desigualdades econmicas e
sociais e o Estado no intervinha para pr remdio a esta situao.
Os
movimentos revolucionrios de 1848 constituem um acontecimento chave na histria
dos direitos humanos, porque conseguem que, pela primeira vez, o conceito de
direitos sociais seja acolhido na Constituio sa, ainda que de
forma incipiente e ambgua.
Estava assim aberto o longo e tortuoso caminho que levaria progressivamente
incluso de uma serie de direitos novos e estranhos tradio liberal:
direito educao, ao trabalho, segurana social, sade, etc. que
modificam a relao do indivduo com o Estado.
Na
sua longa luta contra o absolutismo, o liberalismo considerava o Estado como
um mal necessrio e mantinha um relao de intrnseca desconfiana: a
questo central era a garantia das liberdades individuais contra
a interveno do Estado nos assuntos particulares. Agora, ao contrrio,
tratava-se de obrigar o Estado a fornecer um certo nmero de servios para
diminuir as desigualdades econmicas e sociais e permitir a efetiva participao
de todos os cidados vida e ao bem estar social.
Este
movimento, que marca as lutas operrias e populares do sculo XIX e XX,
tomar um grande impulso com as revolues socialistas do Sec. XX
e com as experincias socialdemocrticas e laboristas europias. De fato,
atravs das lutas do movimento operrio e popular, os direitos sociais,
sobretudo aps a Segunda Guerra Mundial, comeam a ser colocados nas Cartas
Constitucionais e postos em prtica, criando assim o chamado Estado do
Bem-estar Social (Welfare State)
nos pases capitalistas (sobretudo europeus) e garantindo uma srie de
conquistas sociais nos pases socialistas.
oportuno assinalar que o processo no foi to linear e simples como parece
nesta sumria exposio. Na verdade, nunca foi fcil colocar em prtica,
ao mesmo tempo, os direitos de liberdade e os direitos de igualdade. Em
particular, nos pases de regime socialista, a garantia dos direitos econmico-sociais
foi acompanhada por uma brutal restrio, ou at eliminao, dos direitos
civis e polticos individuais. bom sempre lembrar que deste avano dos
direitos sociais continuaram excludos os pases submetidos dominao
colonial ou neocolonial que representavam a grande parte da humanidade.
Fraternit
A
mensagem bblica e especialmente neo-testamentria contm um forte
chamamento fraternidade universal: o homem foi criado por Deus a sua imagem
e semelhana e todos os homens so irmos porque tem Deus como Pai; o homem
tem um lugar especial no Universo e possui uma sua intrnseca dignidade. A
doutrina dos direitos naturais que os pensadores cristo elaboraram a partir
de uma sntese entre a filosofia grega e a mensagem bblica valoriza a
dignidade do homem e considera como naturais alguns direitos e deveres
fundamentais que Deus colocou no corao de todos os homens.
Por isso, segundo uma certa linha de interpretao, a doutrina moderna dos
direitos humanos pode ser considerada como uma secularizao dos princpios
fundamentais da antropologia teolgica crist que conferia a homem uma sua
intrnseca dignidade enquanto criado e imagem e semelhana de Deus.
Porm,
o envolvimento e a identificao da Igreja com as estruturas de poder da
sociedade antiga e medieval fez com que os idias da natural igualdade e
fraternidade humana que ela proclamava no fossem, de fato, respeitados e
colocados em prtica. Com o advento dos tempos modernos a Igreja Catlica,
fortemente atingida pelas grandes reformas religiosas, sociais e polticas
das revolues burguesas, foi perdendo progressivamente o poder temporal e
uma grande parte do poder econmico que se fundava na propriedade da terra.
Este foi um dos motivos principais da hostilidade da Igreja contra as
doutrinas e as praticas dos direitos humanos da modernidade: a Igreja
permaneceu defendendo o Antigo Regime, do qual era parte fundamental, com
todos os seus privilgios e reagiu contra as novidades.
Ainda
no Sculo XIX, o Papa Pio VI, em um dos numerosos documentos
contra-revolucionrios, afirmava que o direito de liberdade de imprensa e de
pensamento um direito monstruoso deduzido da idia de igualdade e
liberdade humana e comentava: No se pode imaginar nada de mais
insensato que estabelecer uma tal igualdade e uma tal liberdade entre ns.
Em 1832, o Papa Gregrio XVI afirmava, a respeito da liberdade de conscincia,
que: um princpio errado e absurdo, ou melhor uma loucura (deliramentum),
que se deva assegurar e garantir a cada um a liberdade de conscincia. Este
um dos erros mais contagiosos.
A
hostilidade da Igreja Catlica aos direitos humanos modernos comea a mudar
somente com o Papa Leo XIII que, com a sua Encclica Rerum
Novarum de 1894, dar incio a chamada doutrina social da Igreja.
Com ela, a Igreja Catlica procura inserir-se de maneira autnoma entre o
liberalismo e o socialismo propondo uma via prpria inspirada nos princpios
cristos. Este movimento continuar durante todo o nosso Sculo e levar a
Igreja Catlica, especialmente aps o Concilio Vaticano II, a modificar
profundamente sua posio de inicial condenao dos direitos humanos.
Mais recentemente o papa Joo Paulo II, na sua Encclica Redemptor Hominis, reconhece o papel das Naes Unidas na defesa
dos objetivos e inviolveis direitos do homem.
A Igreja Catlica se inseriu assim,
ainda que tardiamente, no movimento mundial pela promoo e tutela dos
direitos humanos em conjunto com outras igrejas crists que esto engajadas
nesta luta, num dilogo ecumnico aberto s outras grandes religies
mundiais. Cabe aqui citar, s a titulo de exemplo, a Declarao
para uma tica Mundial, promovida pelo Parlamento das Religies Mundiais
em Chicago em 1993, que inspira-se no trabalho de alguns telogos ecumnicos,
como Hans Kng,
os quais proclamam a centralidade dos direitos humanos individuais e sociais.
Ver DUSSEL, Enrique 1492: O Encobrimento do Outro, op. cit., p. 7.
BOBBIO Norberto, BOVERO Michelangelo, Sociedade
e Estado na Filosofia Poltica Moderna, trad. de Carlos Nelson
Coutinho, Brasiliense, So Paulo 1986.
Ver TRINDADE, Jos Damiano de Lima, Anotaes
sobre a histria social dos direitos humanos, in Direitos Humanos.
Construo da Liberdade e da Igualdade, Centro de Estudos da
Procuradoria Geral do Estado, So Paulo 1998, pp. 23-163; e COMPARATO Fbio
Konder, A afirmao histrica dos
direitos humanos, So Paulo, Saraiva 1999.
Antes ainda da Revoluo Sovitica, a Revoluo Mexicana de 1915
havia colocado claramente em primeiro plano a necessidade de garantir os
direitos econmicos e sociais. Ver COMPARATO, Fbio Konder, op.
cit., pp. 160-178 (Cap. 9: A Constituio Mexicana de 1917)
Ver. MARITAIN J. Por um humanismo
cristo, Paulus, So Paulo 1999; e LIMA, Alceu Amoroso, Os
Direitos do Homem e o Homem sem Direitos, Vozes, Petrpolis 1999.
KNG, Hans, Projeto de tica
mundial. Uma moral ecumnica em vista da sobrevivncia humana, So
Paulo, Paulinas 1992.
A declarao Universal da ONU de 1948
Quando, aps a experincia terrvel das duas guerras mundiais,
os lderes polticos das grandes potncias (vencedoras) criaram a ONU
e confiaram-lhe a tarefa de evitar a guerra e de promover a paz entre as
naes, consideraram que a promoo dos direitos naturais do
homem fosse a conditio sine qua non
para uma paz duradoura. Por isto, um dos primeiros atos da Assemblia
Geral das Naes Unidas foi a proclamao, em 10 de dezembro de 1948,
de uma Declarao
Universal dos Direitos Humanos, cujo primeiro artigo reza da
seguinte forma:
Todas as pessoas nascem livres
e iguais em dignidade e em
direitos. So dotadas de razo e de conscincia e devem agir em relao
umas s outras com esprito de fraternidade.
Os
redatores tiveram a clara inteno de reunir, numa nica formulao,
as trs palavras de ordem da Revoluo sa de 1789: liberdade,
igualdade e fraternidade. Desta
maneira, a Declarao Universal
reafirma o conjunto de direitos das revolues burguesas (direitos de
liberdade, ou direitos civis e polticos)
e os estende a uma srie de sujeitos que anteriormente estavam deles
excludos (probe a escravido, proclama os direitos das mulheres,
defende os direitos dos estrangeiros, etc.); afirma tambm os direitos da
tradio socialista (direitos de igualdade, ou direitos
econmicos e sociais) e do cristianismo social (direitos
de solidariedade) e os estende aos direitos culturais.
oportuno lembrar que: mesmo aps subscreverem a Carta de So
Francisco e a declarao de 48, as velhas metrpoles
colonialistas continuaram remetendo tropas e armas para tentar esmagar as
lutas de libertao e, em praticamente todos os casos, s se retiraram
aps derrotados por esses povos.
A
partir da declarao, atravs de vrias conferncias, pactos,
protocolos internacionais o nmero de direitos foi se universalizando,
multiplicando e diversificando sempre mais. Aos direitos
civis e polticos (ou de primeira
gerao) foram acrescentados
os direitos econmicos, sociais e culturais (ou de segunda gerao). Em
tempos mais recentes, a lista dos direitos incluiu os direitos de terceira
gerao, que dizem respeito a
uma nova ordem internacional: direito paz, ao desenvolvimento, ao meio
ambiente e abrem-se perspectivas para direitos de quarta
gerao (direitos das geraes futuras).
ALGUMAS QUESTES ABERTAS
Esta
leitura, que expusemos de forma sumria, encontra hoje um amplo consenso
e constitui uma koin de
significados e de conceitos amplamente difundidos e utilizados para a
interpretao dos acontecimentos histricos e contemporneos do
Ocidente e do mundo. Aparentemente no haveria maiores problemas: ao
redor do ncleo essencial dos direitos liberais se d uma contnua
agregao de direitos que, sem ferir os princpios inspiradores originrios,
vem ampliando o leque dos direitos possveis acompanhando o crescimento
da conscincia moral da humanidade.
Porm,
as coisas no so to simples e vozes crticas rompem este aparente consensum
gentium, apontando problemas, aporias, contradies que merecem ser
analisadas. Acreditamos que, hoje, podemos identificar trs grandes
grupos de questes em aberto, a respeito do nosso tema.
Eurocentrismo, universalismo, geopoltica.
O
carter contraditrio da afirmao histrica dos direitos humanos
questiona a pretenso da conscincia europia e ocidental de se
considerar como o lugar histrico por excelncia da emancipao
universal e mostra o lado exclusivo e violento que sempre esteve presente
durante toda a histria moderna at o presente.
Se
o Colonialismo, enquanto forma poltica acabou, a misso
civilizadora do Ocidente continua e se expressa justamente nas
doutrinas universais dos direitos humanos. Hoje, qualquer interveno
poltica e at militar dos Estados dominantes e das organizaes
internacionais (por eles dominados) faz apelo defesa dos direitos
humanos como sua justificativa ideolgica.
A
pretensa universalidade dos direitos do homem esconde o carter
marcadamente europeu e cristo deste ltimos, que no podem, portanto
serem estendidos ao resto do mundo onde permanecem tradies culturais e
religiosas prprias, estranhas quando no contrrias e incompatveis
com as doutrinas ocidentais, tradies estas que precisam se
respeitadas. Estas crticas se inserem num debate mais amplo sobre os
processos de homogeneizao cultural que o Ocidentes est impondo ao
mundo inteiro e encontram receptividade entre todos aqueles que esto
preocupados com o respeito das culturas e manifestam uma franca desconfiana
para com qualquer forma de universalismo. Os direitos humanos arriscam
assim de se tornar um pensamento nico que justificam uma
pratica nica, politicamente correta, nivelando as diferenas e as
divergncias.
Por
isso, surgem fortes crticas pretenso de criar uma nova ordem poltica
mundial fundada sobre os direitos humanos que permita aos organismos
internacionais e as grandes potncias de defender e promover os direitos
humanos no mundo, atravs de uma poltica de centralizao e de
interveno humanitria que e por cima da soberania dos
Estados e possa intervir, at de forma armada, quando necessrio. O Ocidente estaria
utilizando a retrica dos direitos humanos para encobrir os seus
verdadeiros interesses e impor ao resto do mundo a sua hegemonia poltica
e econmica.
Direitos de liberdade e
direitos de igualdade: irreconciliveis?
Uma
outra crtica dirigida contra a imagem da evoluo linear e progressiva
dos direitos humanos tende a pr em evidencia o seu carter conflituoso
pela presena de tradies de pensamento diferentes e contrastantes que
pem o problema de sua compatibilidade.
A polarizao entre direitos de igualdade e direitos de
liberdade continua sendo uma das grandes questes no resolvidas do
debate atual sobre os direitos humanos.
Na
concepo liberal, o Estado nasce da agregao de indivduos que
supostamente viviam auto-suficientes e livres no estado de natureza, com o
objetivo de garantir a liberdade (negativa) de cada um em relao ao
outro. Por isso, a realizao histrica dos direitos no confiada
interveno positiva do Estado, mas deixada ao livre jogo do
mercado, partindo do pressuposto liberal que o pleno desdobramento dos
interesses individuais de cada um - limitado somente pelo respeito formal dos interesses do
outro - possa transformar-se em benefcio pblico pela mediao da mo
invisvel do mercado.
O
prprio contrato social funda-se no pressuposto do natural egosmo dos
indivduos que deve ser somente controlado e dirigido para uma
sadia competio de mercado. Isto no impede, como afirma
H. C. de Lima Vaz, o
reaparecimento do estado de natureza
em pleno corao da vida social, com o conflito dos interesses na
sociedade civil precariamente conjurado pelo convencionalismo jurdico.
Universalizao dos direitos versus
globalizao da economia.
Aparece
sempre mais claramente - sobretudo para quem olha o mundo do lugar social
dos excludos - que o projeto dos direitos humanos como hoje se
apresenta, no somente no de fato universal, mas tampouco pode ser
universalizvel, porque precisa reproduzir continuamente a contradio
excludos/includos, emancipao /explorao, dominantes/dominados.
A
atual conjuntura mundial dominada pelo processo de globalizao sob a
hegemonia neo-liberal no faz que acentuar esta situao, exasperando a
contradio entre democracia poltica e social, entre direitos de
liberdade e direitos sociais. De fato, a universalizao dos direitos
humanos no vai no mesmo sentido da globalizao da economia e da finana
mundial que est vinculada lgica do lucro, da acumulao e da
concentrao de riqueza e desvinculada de qualquer compromisso com a
realizao do bem estar social e dos direitos do homem. O processo de
globalizao significa um retorno - e um retrocesso - pura defesa dos
direitos de liberdade, com uma interveno mnima do Estado.
Nesta perspectiva no h lugar para os direitos econmico-sociais
e/ou de solidariedade da tradio socialista e do cristianismo social;
por isto, novas e velhas desigualdades sociais e econmicas esto
surgindo no mundo inteiro.
Este,
de maneira sumaria, o quadro de algumas questes que se apresentam no
debate atual sobre os direitos do homem. Est claro que a doutrina no
to consensual como pode aparecer a uma anlise superficial e que esto
em jogo os problemas mais dramticos e urgentes da humanidade. Apesar da
retrica oficial, a grande parte da humanidade continua, como sempre foi,
excluda dos direitos mnimos fundamentais e, apesar dos esforos dos
organismos internacionais a situao tende a se agravar continuamente.
Em
todas as criticas apresentadas se pressupe a existncia de uma contradio
fundamental e estrutural inerente ao desenvolvimento histrico dos
direitos e consolidao atual dos mesmos, que mina as bases tericas
do projeto e impede a sua execuo e realizao prtica em escala
mundial. A questo central - na nossa opinio - a relao entre tica
e poltica, que caracteriza-se, na modernidade, por dois movimentos
contraditrios: de um lado uma proclamao de direitos que vai sempre
mais se estendendo e que poderamos considerar como a realizao jurdica
de um corpus de valores tico-polticos
tendencialmente universais; do outro um movimento contrrio e
preponderante da poltica moderna que, seguindo a inspirao maquiavlica,
tende a separar a tica da poltica e a formular o problema poltico em
termos puramente tcnicos e no
mais ticos.
BECK, Ulrich. O
que a globalizao. Equvocos do globalismo. Respostas globalizao,
Paz e Terra, Rio de Janeiro 1999
BOBBIO,
Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade
e Estado na Filosofia Poltica Moderna, trad. Carlos Nelson Coutinho,
Brasiliense, So Paulo 1986 (1979).
COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos, So Paulo, Saraiva
1999
DUSSEL, Enrique. O
Encobrimento do Outro. A origem do mito da modernidade, Vozes, Petrpolis,
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FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Direitos Humanos Fundamentais, Saraiva, So Paulo 1996.
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de tica mundial. Uma moral ecumnica em vista da sobrevivncia
humana, So Paulo, Paulinas 1992
TRINDADE, Jos Damiano de
Lima. Anotaes sobre a histria social dos direitos humanos, in
Direitos Humanos. Construo da Liberdade e da Igualdade, Centro de
Estudos da Procuradoria Geral do Estado, So Paulo 1998, pp. 23-163.
Em 1948, os Estados que aderiram Declarao Universal da ONU eram
somente 48, hoje atingem quase a totalidade das naes do mundo.
Iniciou assim um processo pelo qual os indivduos esto se
transformando de cidados de um Estado em cidados do mundo.
Nestas dcadas, a ONU promoveu uma srie de conferencias especficas
que aumentaram a quantidade de bens que precisavam ser defendidos: a
natureza e o meio ambiente, a identidade cultural dos povos e das
minorias, o direito comunicao e a imagem, etc.
As Naes Unidas tambm definiram melhor quais eram os sujeitos
titulares dos direitos. A pessoa humana no foi mais considerada de
maneira abstrata e genrica, mas na sua especificidade e nas suas
diferentes maneiras de ser: como mulher, criana, idoso, doente,
homossexual, etc.
VAZ, H. C. de Lima, Escritos
de filosofia II. tica e Cultura,
So Paulo, Loyola,
1988, p. 175.