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A
DESOBEDINCIA CIVIL
por
Henry David Thoreau
Aceito com entusiasmo o lema "O melhor
governo o que menos governa"; e
gostaria que ele fosse aplicado mais rpida e
sistematicamente. Levado s ltimas consequncias,
este lema significa o seguinte, no que tambm
creio: "O melhor governo o que no governa
de modo algum"; e, quando os homens estiverem
preparados, ser esse o tipo de governo que tero.
O governo, no melhor dos casos, nada mais do
que um artifcio conveniente; mas a maioria dos
governos por vezes uma inconvenincia, e todo
o governo algum dia acaba por ser inconveniente.
As objeces que tm sido levantadas contra a
existncia de um exrcito permanente, numerosas
e substantivas, e que merecem prevalecer, podem
tambm, no fim das contas, servir para protestar
contra um governo permanente. O exrcito permanente
apenas um brao do governo permanente. O prprio
governo, que simplesmente uma forma que o povo
escolheu para executar a sua vontade, est igualmente
sujeito a abusos e perverses antes mesmo que
o povo possa agir atravs dele. Prova disso
a actual guerra contra o Mxico, obra de um nmero
relativamente pequeno de indivduos que usam o
governo permanente como um instrumento particular;
isso porque o povo no teria consentido, de incio,
uma iniciativa dessas.
Esse governo norte-americano - que vem a
ser ele seno uma tradio, ainda que recente,
tentando-se transmitir inteira posteridade,
mas que a cada instante vai perdendo pores da
sua integridade? Ele no tem a fora nem a vitalidade
de um nico homem vivo, pois um nico homem pode
faz-lo dobrar-se sua vontade. O governo uma
espcie de revlver brinquedo para o prprio povo;
e ele certamente vai quebrar se por acaso os norte-americanos
o usarem seriamente uns contra os outros, como
uma arma de verdade. Mas nem por isso ele menos
necessrio; pois o povo precisa dispor de uma
ou outra mquina complicada e barulhenta para
preencher a sua concepo de governo. Desta forma,
os governos so a prova de como os homens podem
ter sucesso no acto de oprimir em proveito prprio,
no importando se a opresso se volta tambm contra
eles. Devemos itir que ele excelente; no
entanto, este governo em si mesmo nunca estimulou
qualquer iniciativa a no ser pela rapidez com
que se disps a no atrapalhar. Ele no
mantm o pas livre. Ele no povoa as terras
do oeste. Ele no educa. O carcter inerente
do povo norte-americano o responsvel por tudo
o que temos conseguido fazer; e ele teria conseguido
fazer consideravelmente mais se o governo no
tivesse sido por vezes um obstculo. Pois o governo
um artifcio atravs do qual os homens conseguiriam
de bom grado deixar em paz uns aos outros; e,
como j foi dito, a sua convenincia mxima s
ocorre quando os governados so minimamente molestados
pelos seus governantes. Se no fossem feitos de
borracha da ndia, os negcios e o comrcio nunca
conseguiriam ultraar os obstculos que os
legisladores teimam em plantar no seu caminho;
e se fssemos julgar estes senhores levando em
conta exclusivamente os efeitos dos seus actos
- esquecendo as suas intenes -, eles mereceriam
a classificao dada e as punies impostas a
essas pessoas nocivas que gostam de obstruir as
ferrovias.
No entanto, quero me pronunciar em termos
prticos como cidado, distintamente daqueles
que se chamam antigovernistas: o que desejo imediatamente
um governo melhor, e no o fim do governo.
Se cada homem expressar o tipo de governo capaz
de ganhar o seu respeito, estaremos mais prximos
de conseguir form-lo.
No final das contas, o motivo prtico pelo
qual se permite o governo da maioria e a sua continuidade
- uma vez ado o poder para as mos do povo
- no a sua maior tendncia a emitir bons juzos,
nem porque possa parecer o mais justo aos olhos
da minoria, mas sim porque ela (a maioria) fisicamente
a mais forte. Mas um governo no qual prevalece
o mando da maioria em todas as questes no pode
ser baseado na justia, mesmo nos limites da avaliao
dos homens. No ser possvel um governo em que
a maioria no decida virtualmente o que certo
ou errado? No qual a maioria decida apenas aquelas
questes s quais seja aplicvel a norma da convenincia?
Deve o cidado desistir da sua conscincia, mesmo
por um nico instante ou em ltima instncia,
e se dobrar ao legislador? Por que ento estar
cada homem dotado de uma conscincia? Na minha
opinio devemos ser em primeiro lugar homens,
e s ento sditos. No desejvel cultivar o
respeito s leis no mesmo nvel do respeito aos
direitos. A nica obrigao que tenho direito
de assumir fazer a qualquer momento aquilo que
julgo certo. Costuma-se dizer, e com toda a razo,
que uma corporao no tem conscincia; mas uma
corporao de homens conscienciosos uma corporao
com conscincia. A lei nunca fez os homens
sequer um pouco mais justos; e o respeito reverente
pela lei tem levado at mesmo os bem-intencionados
a agir quotidianamente como mensageiros da injustia.
Um resultado comum e natural de um respeito indevido
pela lei a viso de uma coluna de soldados -
coronel, capito, cabos, combatentes e outros
- marchando para a guerra numa ordem impecvel,
cruzando morros e vales, contra a sua vontade,
e como sempre contra o seu senso comum e a sua
conscincia; por isso essa marcha muito pesada
e faz o corao bater forte. Eles sabem perfeitamente
que esto envolvidos numa iniciativa maldita;
eles tm tendncias pacficas. O que so eles,
ento? Chegaro a ser homens? Ou pequenos fortes
e paiis mveis, a servio de algum inescrupuloso
detentor do poder? s visitar o Estaleiro Naval
e contemplar um fuzileiro: eis a o tipo de homem
que um governo norte-americano capaz de fabricar
- ou transformar com a sua magia negra -, uma
sombra plida, uma vaga recordao da condio
humana, um cadver de p e vivo que, no entanto,
se poderia considerar enterrado sob armas com
acompanhamento fnebre, embora possa acontecer
que
"No se ouviu um rufar nem sequer um toque de silncio
enquanto muralha o seu corpo levamos nenhum soldado disparou uma salva de
adeus sobre o tmulo onde jaze o heri que enterramos".
Desta forma, a massa de homens serve ao Estado
no na sua qualidade de homens, mas sim como mquinas,
entregando os seus corpos. Eles so o exrcito
permanente, a milcia, os carcereiros, os polcias,
posse comitatus, e assim por diante. Na
maior parte dos casos no h qualquer livre exerccio
de escolha ou de avaliao moral; ao contrrio,
estes homens nivelam-se madeira, terra e s
pedras; e bem possvel que se consigam fabricar
bonecos de madeira com o mesmo valor de homens
desse tipo. No so mais respeitveis do que um
espantalho ou um monte de terra. Valem tanto quanto
cavalos e cachorros. No entanto, comum que homens
assim sejam apreciados como bons cidados. H
outros, como a maioria dos legisladores, polticos,
advogados, funcionrios e dirigentes, que servem
ao Estado principalmente com a cabea, e bem
provvel que eles sirvam tanto ao Diabo quanto
a Deus - sem inteno -, pois raramente se dispem
a fazer distines morais. H um nmero bastante
reduzido que serve ao Estado tambm com a sua
conscincia; so os heris, patriotas, mrtires,
reformadores e homens, que acabam por isso
necessariamente resistindo, mais do que servindo;
e o Estado trata-os geralmente como inimigos.
Um homem sbio s ser de facto til como homem,
e no se sujeitar condio de "barro"
a ser moldado para "tapar um buraco e cortar
o vento; ele preferir deixar esse papel, na
pior das hipteses, para as suas cinzas:
"A minha origem nobre demais para que eu seja
propriedade de algum. Para que eu seja o segundo no comando
ou um til servial ou instrumento de qualquer Estado soberano deste
mundo"
Os que se entregam completamente aos seus
semelhantes so por eles considerados inteis
e egostas; mas aqueles que se do parcialmente
so entronizados como benfeitores e filantropos.
Que comportamento digno deve ter um homem
perante o actual governo vigente nos Estados Unidos?
A minha resposta que ele inevitavelmente se
degrada pelo facto de estar associado a ele. Nem
por um minuto posso considerar o meu governo
uma organizao poltica que tambm o governo
do escravo.
Todos reconhecem o direito revoluo, ou
seja, o direito de negar lealdade e de oferecer
resistncia ao governo sempre que se tornem grandes
e inveis a sua tirania e ineficincia.
No entanto, quase todos dizem que tal no acontece
agora. Consideram, porm, que isso aconteceu em
1775. Se algum me dissesse que o nosso governo
mo porque estabeleceu certas taxas sobre bens
estrangeiros que chegam aos seus portos, o mais
provvel que eu no criasse qualquer caso, pois
posso muito bem passar sem eles: todas as mquinas
tm atrito e talvez isso faa com que o bom e
o mau se compensem. De qualquer forma, fazer um
rebulio por causa disso um grande mal. Mas
quando o prprio atrito chega a construir a mquina
e vemos a organizao da tirania e do roubo, afirmo
que devemos repudiar essa mquina. Em outras palavras,
quando um sexto da populao de um pas que se
elegeu como o refgio da liberdade composto
de escravos, e quando todo um pas injustamente
assaltado e conquistado por um exrcito estrangeiro
e submetido lei marcial, devo dizer que no
cedo demais para a rebelio e a revoluo dos
homens honestos. E esse dever to mais urgente
pelo facto de que o pas assaltado no o nosso,
e pior ainda, que o exrcito invasor o nosso.
William Paley, uma autoridade em assuntos
morais, tem um captulo intitulado Duty of
submission to civil government (O dever de
submisso ao governo civil), no qual soluciona
toda a questo das obrigaes polticas pela frmula
da convenincia; e diz: "Enquanto o exigir
o interesse de toda a sociedade, ou seja, enquanto
no se possa resistir ao governo estabelecido
ou mud-lo sem inconvenincia pblica, a vontade
de Deus que tal governo seja obedecido - e nem
um dia alm disso. itindo-se este princpio,
a justia de cada acto particular de resistncia
reduz-se computao do volume de perigo e protestos,
de um lado, e da probabilidade e custos da reparao,
de outro". Diz ele que cada um julgar esta
questo por si mesmo. Mas parece que Paley nunca
levou em conta os casos em que a regra da convenincia
no se aplica, nos quais um povo ou um indivduo
tem que fazer justia a qualquer custo. Se arranquei
injustamente a tbua que a salvao de um homem
que se afoga, sou obrigado a devolv-la, ainda
que eu mesmo me afogue. De acordo com Paley, esta
uma circunstncia inconveniente. Mas quem quiser
se salvar desta forma acabar perdendo a vida.
O povo norte-americano tem que pr fim escravido
e tem que parar de guerrear com o Mxico, mesmo
que isso lhe custe a existncia enquanto povo.
As naes, na sua prtica, concordam com Paley, mas haver
quem considere que Massachusetts esteja agir correctamente na crise actual?
"Uma rameira de alta linhagem, um trapo de pano prateado
atirado lama,
Levanta a cauda do vestido, e arrasta no cho a sua
alma"
Em
termos prticos, os que se opem abolio em
Massachusetts no so uns cem mil polticos do
sul, mas uns cem mil comerciantes e fazendeiros
daqui, que se interessam mais pelos negcios e
pela agricultura do que pela humanidade e que
no esto dispostos a fazer justia ao escravo
e ao Mxico, custe o que custar. No discuto
com inimigos distantes, mas com aqueles que, bem
perto de mim, cooperam com a posio de homens
que esto longe daqui e defendem-na; estes ltimos
homens seriam inofensivos se no fosse por aqueles.
Estamos acostumados a afirmar que os homens em
geral so despreparados; mas as melhorias so
lentas, porque os poucos no so substantivamente
mais sbios ou melhores do que os muitos. No
to importante que muitos sejam to bons quanto
voc, e sim que haja em algum lugar alguma poro
absoluta de virtude; isso bastar para fermentar
toda a massa. H milhares de pessoas cuja opinio
contrria escravido e guerra; apesar
disso, nada fazem de efectivo para pr fim a ambas;
dizem-se filhos de Washington e Franklin, mas
ficam sentados com as mos nos bolsos, dizendo
no saber o que pode ser feito e nada fazendo;
chegam a colocar a questo do livre comrcio
frente da questo da liberdade, e ficam quietos
lendo as cotaes do dia junto com os ltimos
boletins militares sobre a campanha do Mxico;
possvel at que acabem por adormecer durante
a leitura. Qual hoje a cotao do dia de um
homem honesto e patriota? Eles hesitam, arrependem-se
e s vezes assinam peties, mas nada fazem de
srio ou de efectivo. Com muito boa disposio,
preferem esperar que outros remedeiem o mal, de
forma que nada reste para motivar o seu arrependimento.
No melhor dos casos, nada mais faro do que depositar
na urna um voto insignificante, cumprimentar timidamente
a atitude certa e, de agem, desejar-lhe boa
sorte. H novecentos e noventa e nove patronos
da virtude e apenas um homem virtuoso; mas mais
fcil lidar com o verdadeiro dono de algo do que
com seu guardio temporrio.
Toda
a votao um tipo de jogo, tal como damas ou
gamo, com uma leve colorao moral, onde se brinca
com o certo e o errado sobre questes morais;
e claro que h apostas neste jogo. O carcter
dos eleitores no entra nas avaliaes. Proclamo
o meu voto - talvez - de acordo com meu critrio
moral; mas no tenho um interesse vital de que
o certo saia vitorioso. Estou disposto a deixar
essa deciso para a maioria. O compromisso de
votar, desta forma, nunca vai mais longe do que
as convenincias. Nem mesmo o acto de votar pelo
que certo implica fazer algo pelo
que certo. apenas uma forma de expressar publicamente
o meu anmico desejo de que o certo venha a prevalecer.
Um homem sbio no deixar o que certo nas mos
incertas do acaso e nem esperar que a sua vitria
se d atravs da fora da maioria. H escassa
virtude nas aces de massa dos homens. Quando
finalmente a maioria votar a favor da abolio
da escravatura, das duas uma: ou ela ser indiferente
escravido ou ento restar muito pouca escravido
a ser abolida pelo o seu voto. A essa altura,
os nicos escravos sero eles, os integrantes
da maioria. O nico voto que pode apressar
a abolio da escravatura o daquele homem que
afirma a prpria liberdade atravs do seu voto.
Estou
informado de que haver em Baltimore, ou em outro
lugar qualquer, uma conveno para escolher um
candidato presidncia; essa conveno composta
principalmente por editores de jornais e polticos
profissionais; mas que importncia ter a possvel
deciso desta reunio para um homem independente,
inteligente e respeitvel? No fim das contas,
ainda poderemos contar com as vantagens da sua
sabedoria e da sua honestidade, no mesmo? Ser
que no poderemos prever alguns votos independentes?
No haver muitas pessoas neste pas que no frequentam
convenes? Mas no isso o que ocorre: percebo
que o homem considerado respeitvel logo abandona
a sua posio e a a no ter mais esperanas
no seu pas, quando o mais certo seria que seu
pas desesperasse dele. A partir disso ele adere
a um dos candidatos assim seleccionados por ser
o nico disponvel, apenas para provar
que ele mesmo est disponvel para todos
os planos do demagogo. O voto de um homem desses
no vale mais do que o voto eventualmente comprado
de um estrangeiro inescrupuloso ou do nativo venal.
Oh! preciso um homem que seja um homem e
que tenha, como diz um vizinho meu, uma coluna
dorsal que no se dobre aos poderosos! As nossas
estatsticas esto erradas: contou-se gente demais.
Quantos homens existem em cada mil milhas
quadradas deste pas? Dificilmente se contar
um. A Amrica oferece ou no incentivos para a
imigrao de homens? Os homens norte-americanos
foram rareando at dimenso de uma irmandade
secreta como a dos Odd Fellows, cujo integrante
tpico pode ser identificado pelo seu descomunal
carcter gregrio, pela manifesta falta de inteligncia
e de jovial autoconfiana; a sua preocupao primeira
e maior ao dar entrada neste mundo a de verificar
se os asilos esto em boas condies de funcionamento;
antes mesmo de ter direito a envergar roupas de
adulto ele organiza uma colecta de fundos para
as vivas e rfos que porventura existam; em
poucas palavras, um homem que s ousa viver
com a ajuda da Companhia de Seguros Mtuos, que
lhe prometeu um enterro decente.
De
facto, nenhum homem tem o dever de se dedicar
erradicao de qualquer mal, mesmo o maior dos
males; ele pode muito bem ter outras preocupaes
que o mobilizem. Mas ele tem no mnimo a obrigao
de lavar as mos frente questo e, no caso de
no mais se ocupar dela, de no dar qualquer apoio
prtico injustia. Se me dedico a outras metas
e consideraes, preciso ao menos verificar se
no estou fazendo isso custa de algum em cujos
ombros esteja sentado. preciso que eu saia de
cima dele para que ele tambm possa estar livre
para fazer as suas consideraes. Vejam como se
tolera uma inconsistncia das mais grosseiras.
J ouvi alguns dos meus conterrneos dizerem:
"Queria que eles me convocassem para ir combater
um levante de escravos ou para atacar o Mxico
- pois eu no iria"; no entanto, cada um
destes homens possibilitou o envio de um substituto,
fazendo isso directamente pela sua fidelidade
ao governo, ou pelo menos indirectamente atravs
do seu dinheiro. O soldado que se recusa a participar
de uma guerra injusta aplaudido por aqueles
que no recusam apoio ao governo injusto que
faz a guerra; aplaudido por aqueles cuja aco
e autoridade ele despreza e desvaloriza; tudo
funciona como se o Estado estivesse suficientemente
arrependido para contratar um crtico dos seus
pecados, mas insuficientemente arrependido para
interromper por um instante sequer os seus actos
pecaminosos. Estamos todos, desta forma, de conformidade
com a ordem e o governo civil, reunidos para homenagear
e dar apoio nossa prpria crueldade. Se ruborizamos
ante o nosso primeiro pecado, logo depois se instala
a indiferena. amos do imoral ao no-moral,
e isso no to desnecessrio assim para o tipo
de vida que construmos.
O
mais amplo e comum dos erros exige a virtude mais
generosa para se manter. So os nobres os mais
veis de proferir os moderados ataques a que
comumente est sujeita a virtude do patriotismo.
Sem dvida, os maiores baluartes conscienciosos
do governo, e muito frequentemente os maiores
opositores das reformas, so aqueles que desaprovam
o carcter e as medidas de um governo, sem no
entanto lhe retirar a sua lealdade e apoio. H
gente colectando s para fazer peties
ao Estado de Massachusetts no sentido de dissolver
a Unio e de desprezar as recomendaes do presidente.
Ora, por que eles mesmos no dissolvem essa unio
entre eles e o Estado e se recusam a pagar a sua
cota de impostos? No esto eles na mesma relao
com o Estado que a que este mantm com a Unio?
E no so as mesmas as razes que evitaram a resistncia
do Estado Unio e a resistncia deles ao Estado?
Como
pode um homem se satisfazer com a mera posse de
uma opinio e de facto usufru-la? Pode
haver algum usufruto da opinio quando o dono
dela a v ofendida? Se o seu vizinho o vigariza
e lhe subtrai um mero dlar, voc no se satisfaz
com a descoberta da vigarice, com a proclamao
de que foi vigarizado e nem mesmo com as suas
gestes no sentido de ser devidamente reembolsado;
o que voc faz tomar medidas efectivas e imediatas
para ter o seu dinheiro de volta e cuidar de nunca
mais ser enganado. Aces baseadas em princpios
- a percepo e a execuo do que certo - modificam
coisas e relaes; a aco deste gnero essencialmente
revolucionria e no se reduz integralmente a
qualquer coisa preexistente. Ela cinde no apenas
Estados e Igrejas; divide famlias; e tambm divide
o indivduo separando nele o diablico
do divino.
Existem
leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las,
ou devemos tentar emend-las e obedecer a elas
at sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente?
Numa sociedade com um governo como o nosso, os
homens em geral pensam que devem esperar at que
tenham convencido a maioria a alterar essas leis.
A sua opinio de que a hiptese da resistncia
pode vir a ser um remdio pior do que o mal a
ser combatido. Mas precisamente o governo o
culpado pela circunstncia de o remdio ser
de facto pior do que o mal. o governo
que faz tudo ficar pior. Por que o governo
no mais capaz e se antecipa para lutar pela
reforma? Por que ele no sabe valorizar a sua
sbia minoria? Por que ele chora e resiste antes
de ser atacado? Por que ele no estimula a participao
activa dos cidados para que eles lhe mostrem
as suas falhas e para conseguir um desempenho
melhor do que eles lhe exigem? Por que eles
lhe exigem? Por que ele sempre crucifica Jesus
Cristo, e excomunga Coprnico e Lutero
e qualifica Washington e Franklin de rebeldes?
No
absurdo pensar que o nico tipo de transgresso
que o governo nunca previu foi a negao deliberada
e prtica de sua autoridade; se no fosse assim,
por que ento no teria ele estabelecido a penalidade
clara, cabvel e proporcional? Se um homem sem
propriedade se recusa pela primeira vez a recolher
nove xelins aos cofres do Estado, preso por
prazo cujo limite no estabelecido por qualquer
lei que eu conhea; esse prazo determinado exclusivamente
pelo arbtrio dos que o enviam priso. Mas se
ele resolver roubar noventa vezes nove xelins
do Estado, em breve estar novamente em liberdade.
Se
a injustia parte do inevitvel atrito no funcionamento da mquina
governamental, que seja assim: talvez ela acabe suavizando-se com
o desgaste - certamente a mquina ficar desajustada. Se a
injustia for uma pea dotada de uma mola exclusiva - ou
roldana, ou corda, ou manivela -, a ento talvez seja vlido
julgar se o remdio no ser pior do que o mal; mas se ela for
de tal natureza que exija que voc seja o agente de uma injustia
para outros, digo, ento, que se transgrida a lei. Faa da sua
vida um contra-atrito que pare a mquina. O que preciso fazer
cuidar para que de modo algum eu participe das misrias que
condeno.
No
que diz respeito s vias pelas quais o Estado
espera que os males sejam remediados, devo dizer
que no as conheo. Elas so muito demoradas,
e a vida de um homem pode chegar ao fim antes
que elas produzam algum efeito. Tenho outras coisas
para fazer. No vim a este mundo com o objectivo
principal de fazer dele um bom lugar para morar,
mas apenas para morar nele, seja bom ou mo. Um
homem no carrega a obrigao de fazer tudo, mas
apenas alguma coisa; e s porque no pode fazer
tudo no necessrio que faa alguma
coisa errada. No est dentro das minhas incumbncias
apresentar peties ao governador e Assembleia
Legislativa, da mesma forma que eles nada precisam
fazer de semelhante em relao a mim. Suponhamos
que eles no dem ateno a um pedido meu; que
devo fazer ento? Mas nesse caso o Estado no
forneceu outra via: o mal est na sua prpria
Constituio. Isto pode parecer grosseria, teimosia
e intransigncia, mas s quem merece ou pode apreciar
a mais fina bondade e considerao deve receber
este tipo de tratamento. Todas as mudanas para
melhor so assim, tais como o nascimento e a morte,
que produzem convulses nos corpos.
No
hesito em afirmar que todos os que se intitulam
abolicionistas devem imediata e efectivamente
retirar o seu apoio - em termos pessoais e de
propriedade - ao governo do Estado de Massachusetts,
e no ficar esperando at que consigam formar
a mais estreita das maiorias para s ento alcanar
o sofrido direito de vencer atravs dela. Creio
que basta saber que Deus est do seu lado, o que
vale mais do que o ltimo votante a fazer majoritrias
as suas fileiras. E, alm de tudo, qualquer homem
mais correcto do que os seus vizinhos j constitui
uma maioria apertada.
apenas uma vez por ano, e no mais do que isso, que me
encontro cara a cara com este governo norte-americano, ou com o governo
estadual que o representa: quando sou procurado pelo colector de impostos;
essa a nica instncia em que um homem na minha situao no pode
deixar de se encontrar com esse governo; e ele aproveita a oportunidade e diz
claramente: "Reconhea-me". E no h outra forma mais simples,
mais efectiva e, na conjuntura actual, mais indispensvel de lidar com o
governo neste particular, de expressar a sua pouca satisfao ou seu pouco
amor em relao a ele: preciso neg-lo, naquele local e momento. O
colector de impostos meu vizinho e concidado, e com ele que tenho de
lidar porque afinal de contas estou lutando contra homens, e no contra o
pergaminho das leis, e sei que ele voluntariamente optou por ser um agente governamental.
Haver outro modo de ele ficar sabendo claramente o que e o que fiz
enquanto agente do governo, ou enquanto homem, a no ser quando forado a
decidir que tratamento vai dar a mim, o vizinho que ele respeita como tal e
como homem de boa ndole, ou que ele considera um manaco e desordeiro?
Ser ele capaz de superar esse obstculo sua sociabilidade sem um
pensamento ou uma palavra mais rudes ou mais impetuosos a acompanhar a sua aco?
Disso estou certo: se mil, ou cem, se dez homens que conheo - apenas dez
homens honestos ou at um nico homem honesto do Estado
de Massachusetts, no mais sendo dono de escravos, decidisse pr
fim ao seu vnculo com o Estado, para logo em seguida ser trancado na cadeia
municipal, estaria ocorrendo nada menos do que a abolio da escravatura nos
Estados Unidos da Amrica. Pois no importa que os primeiros os paream
pequenos: o que se faz bem feito faz-se para sempre. Mas preferimos debater
o assunto: essa nossa misso, dizemos. H dezenas de jornais nas fileiras
do abolicionismo, mas no h um nico homem. O meu querido vizinho, que
desempenhou o papel de embaixador de Massachusetts e que sempre se dedica
resoluo das questes dos direitos humanos na Cmara do Conselho, esteve
ameaado de amargar uma priso na Carolina do Sul; no entanto, se tivesse
sido prisioneiro do Estado de Massachusetts, esse Estado que ansiosamente lana
Carolina do Sul a acusao de pecar com a escravido (embora actualmente
no encontre nada alm de uma atitude pouco hospitaleira como motivo para
brigar com ela), o nosso Legislativo no seria capaz de adiar liminarmente o
assunto da escravido at ao prximo inverno
Sob um governo que prende qualquer homem injustamente, o nico
lugar digno para um homem justo tambm a priso. Hoje em dia, o lugar prprio,
o nico lugar que Massachusetts reserva para os seus habitantes mais livres e
menos desalentados so as suas prises, nas quais sero confinados e trancados
longe do Estado, por um acto do prprio Estado pois os que vo para a priso
j antes tinham se confinado nos seus princpios. E a que devem ser
encontrados quando forem procurados pelos escravos fugidos, pelo prisioneiro
mexicano em liberdade condicional e pelos indgenas, para ouvir as denncias
sobre as humilhaes impostas aos seus povos; a, nesse cho
discriminado, mas to mais livre e honroso, onde o Estado planta os
que no esto com ele mas sim contra ele - a nica casa num
Estado-senzala na qual um homem livre pode perseverar com honra. Se h algum
que pense ser a priso um lugar de onde no mais se pode influir, no qual a
sua voz deixa de atormentar os ouvidos do Estado, no qual no conseguiria ser
to hostil a ele, esse algum ignora o quanto a verdade mais forte que
o erro e tambm no sabe como a injustia pode ser combatida com muito
mais eloquncia e efectividade por aqueles que j sofreram na carne um pouco
dela. Manifeste integralmente o seu voto e exera toda a sua influncia; no
se deixe confinar por um pedao de papel. Uma minoria indefesa quando se
conforma maioria; no chega nem a ser uma minoria numa situao dessas;
mas ela irresistvel quando intervm com todo o seu peso. Se a
alternativa ficar entre manter todos os homens justos na priso ou desistir
da guerra e da escravido, o Estado no hesitar na escolha. Se no ano
corrente mil homens no pagassem os seus impostos, isso no seria uma
iniciativa to violenta e sanguinria quanto o prprio pagamento, pois
neste caso o Estado fica capacitado para cometer violncias e para derramar
o sangue dos inocentes. Esta , na verdade, a definio de uma revoluo
pacfica, se que possvel uma coisa dessas. Se, como j ouvi um deles
me perguntar, o colector de impostos ou outro funcionrio pblico qualquer
indagar: "Mas o que devo fazer agora?", a minha resposta :
"Se de facto quiser fazer alguma coisa, ento renuncie ao seu
cargo". Quando o sdito negou a lealdade e o funcionrio renunciou ao
seu cargo, ento a revoluo completou-se. Mas vamos supor que h violncia.
No poderamos considerar que uma agresso conscincia tambm
provoca um tipo de ferimento grave? Um ferimento desses provoca a perda da autntica
humanidade e da imortalidade de um homem, e ele sangra at uma morte eterna.
Posso ver esse sangue a correr, agora.
Especulei sobre a priso do infractor, e no sobre o
confisco dos seus bens - embora ambas as medidas sirvam ao mesmo fim -, porque
os que afirmam o certo e que, por isso, so os seres mais perigosos para um
Estado corrupto, em geral no gastam muito do seu tempo na acumulao de
propriedades. Para homens assim o Estado presta servios relativamente
pequenos e um imposto bem leve tende a ser considerado exorbitante,
particularmente quando so obrigados a realizar um trabalho especial para
conseguir a quantia cobrada. Se houvesse quem vivesse inteiramente sem usar o
dinheiro, o prprio Estado hesitaria em exigir que ele lhe entregasse uma
quantia. O homem rico, no entanto - e no pretendo estabelecer uma comparao
invejosa -, sempre um ser vendido instituio que o enriquece. Falando
em termos absolutos, quanto mais dinheiro, menos virtude; pois o dinheiro
interpe-se entre um homem e os seus objectivos e permite que ele os compre;
obter alguma coisa dessa forma no uma grande virtude. O dinheiro acalma
muitas perguntas que de outra forma ele se veria pressionado a fazer; de outro
lado, a nica pergunta nova que o dinheiro suscita difcil, embora suprflua:
"Como gasta-lo?" Um homem assim fica, portanto, sem base para uma moralidade.
As oportunidades de viver diminuem proporcionalmente ao acmulo daquilo que
se chama de "meios". A melhor coisa a ser feita em prol da cultura
do seu tempo por um homem rico realizar os planos que tinha quando ainda
era pobre. Cristo respondeu aos seguidores de Herodes de acordo com a situao
deles. "Mostrem-me o dinheiro dos tributos", disse ele; e um deles
tirou do bolso uma moeda. Disse ento Jesus Cristo: "Se vocs usam o
dinheiro com a imagem de Csar, dinheiro que ele colocou em circulao
e ao qual ele deu valor, ou seja, se vocs so homens do Estado e esto
felizes de se aproveitar das vantagens do governo de Csar, ento paguem-no
por isso quando ele o exigir. Portanto, dai a Csar o que de Csar, e a
Deus o que de Deus"; Cristo no lhes disse nada sobre como distinguir
um do outro; eles no queriam saber isso.
Quando converso com os mais livres dentre os meus vizinhos,
percebo que, independentemente do que digam a respeito da grandeza e da
seriedade do problema e de sua preocupao com a tranquilidade pblica, no
fim das contas tudo se reduz ao seguinte: eles no podem abrir mo da proteco
do governo actual e temem as consequncias que a sua rebeldia provocaria nas
suas propriedades e famlias. Da minha parte, no gosto de imaginar que
possa vir algum dia a depender da proteco do Estado. Mas se eu negar a
autoridade do Estado quando ele apresenta a minha conta de impostos, ele logo
confiscar e dissipar a minha propriedade e tratar de me hostilizar e
minha famlia para sempre. Essa uma perspectiva muito dura. Isso
torna impossvel uma vida que seja simultaneamente honesta e confortvel em
aspectos exteriores. No valeria a pena acumular propriedade; ela
certamente se perderia de novo. O que se tem a fazer arrendar alguns
alqueires ou ocupar uma terra devoluta, cultivar em pequena escala e consumir
logo toda a sua produo. Voc tem que viver dentro de si mesmo e depender
de si mesmo, sempre de mala feita e pronto para recomear; voc no deve
desenvolver muitos vnculos. At mesmo na Turquia voc pode ficar rico, se
em tudo for um bom sdito do governo turco. Confcio disse: Se um Estado
governado pelos princpios da razo, a pobreza e a misria so factos
acabrunhantes; se um Estado no governado pelos princpios da razo, a
riqueza e as honrarias so os factos acabrunhantes". No! At que eu
solicite um remoto porto sulino, que a proteco do Estado de Massachusetts
me seja estendida com o fim de preservar a minha liberdade, ou at que eu me
dedique apenas a construir pacificamente um patrimnio aqui no meu Estado,
posso negar a minha lealdade ao governo local e negar o seu direito minha
propriedade e minha vida. Sai mais barato, em todos os sentidos, sofrer a
penalidade pela desobedincia do que obedecer. Obedecer faria com que eu me
sentisse diminudo.
H alguns anos o Estado procurou-me em nome de uma organizao
religiosa e intimou-me a pagar uma certa quantia destinada a sustentar um
pregador que o meu pai costumava frequentar; eu nunca o tinha visto.
"Pague ou ser trancado na cadeia", disse o Estado. Eu recusei-me a
pagar. Infelizmente, no entanto, outro homem achou melhor fazer o pagamento
em meu nome. No consegui descobrir por que o mestre-escola deveria pagar
imposto para sustentar o clrigo e no o clrigo contribuir para o sustento
do mestre-escola; pois eu no era mestre-escola do Estado, e sustentava-me
com subscries voluntrias. No vi o motivo pelo qual o liceu no
devesse apresentar a sua conta de impostos e fazer com que o Estado
apoiasse, junto com a organizao religiosa, essa sua pretenso. No
entanto, os conselheiros municipais pediram-me e eu concordei em fazer uma
declarao por escrito cuja redaco ficou mais ou menos assim:
"Saibam todos quantos esta declarao lerem que eu, Henry Thoreau, no
desejo ser considerado integrante de qualquer sociedade organizada qual no
tenha aderido". Entreguei o texto ao secretrio da municipalidade. Deve
estar com ele at hoje. Sabendo portanto que eu no queria ser considerado
membro daquela organizao religiosa, o Estado nunca mais me fez uma exigncia
parecida; ele considerava, no entanto, que estava certo e que deveria
continuar a operar a partir dos pressupostos originais com que me abordou. Se
fosse possvel saber os seus nomes, eu teria desligado-me minuciosamente, na
mesma ocasio, de todas as organizaes das quais no era membro; mas no
soube onde encontrar uma lista completa delas.
H seis anos que no pago o imposto per capita. Fui
encarcerado certa vez por causa disso, e ei uma noite preso; enquanto o
tempo ava, fui observando as paredes de pedra slida com dois ou trs ps
de espessura, a porta de madeira e ferro com um p de espessura e as grades
de ferro que dificultam a entrada da luz, e no pude deixar de perceber a
idiotice de uma instituio que me tratava como se eu fosse apenas carne e
sangue e ossos a serem trancafiados. Fiquei especulando que ela devia ter
concludo, finalmente, que aquela era a melhor forma de me usar e, tambm,
que ela jamais cogitara de se aproveitar dos meus servios de alguma outra
maneira. Vi que apesar da grossa parede de pedra entre mim e os meus concidados,
eles tinham uma muralha muito mais difcil de vencer antes de conseguirem
ser to livres quanto eu. Nem por um momento me senti confinado, e as paredes
pareceram-me um desperdcio descomunal de pedras e argamassa. O meu
sentimento era de que eu tinha sido o nico dos meus concidados a pagar o
imposto. Estava claro que eles no sabiam como lidar comigo e que se
comportavam como pessoas pouco educadas. Havia um erro crasso em cada ameaa
e em cada saudao, pois eles pensavam que o meu maior desejo era o de
estar do outro lado daquela parede de pedra. No pude deixar de sorrir
perante os cuidados com que fecharam a porta e trancaram as minhas reflexes
- que os acompanhavam porta afora sem delongas ou dificuldade; e o perigo
estava de facto contido nelas. Como eu estava fora do seu alcance,
resolveram punir o meu corpo; agiram como meninos incapazes de enfrentar uma
pessoa de quem sentem raiva e que ento do um chuto no cachorro do seu
desafecto. Percebi que o Estado era um idiota, tmido como uma solteirona s
voltas com a sua prataria, incapaz de distinguir os seus amigos dos inimigos;
perdi todo o respeito que ainda tinha por ele e ei a consider-lo apenas
lamentvel.
Portanto, o Estado nunca confronta intencionalmente o
sentimento intelectual ou moral de um homem, mas apenas o seu corpo, os seus
sentidos. Ele no dotado de gnio superior ou de honestidade, apenas de
mais fora fsica. Eu no nasci para ser coagido. Quero respirar da forma
que eu mesmo escolher. Veremos quem mais forte. Que fora tem uma multido?
Os nicos que podem me coagir so os que obedecem a uma lei mais alta do
que a minha. Eles obrigam-me a ser como eles. Nunca ouvi falar de homens que
tenham sido obrigados por multides a viver desta ou daquela forma.
Que tipo de vida seria essa? Quando defronto um governo que me diz "A
bolsa ou a vida!", por que deveria apressar-me em lhe entregar o meu
dinheiro? Ele talvez esteja ando por um grande aperto, sem saber o que
fazer. No posso ajud-lo. Ele deve cuidar de si mesmo; deve agir como eu
ajo. No vale a pena choramingar sobre o assunto. No sou individualmente
responsvel pelo bom funcionamento da mquina da sociedade. No sou o filho
do maquinista. No meu modo de ver quando sementes de carvalho e de castanheira
caem lado a lado, uma delas no se retrai para dar vez outra; pelo contrrio,
cada uma segue as suas prprias leis, e brotam, crescem e florescem da melhor
maneira possvel, at que uma por acaso acaba superando e destruindo a
outra. Se uma planta no pode viver de acordo com a sua natureza, ento ela
morre; o mesmo acontece com um homem.
A noite que ei na priso, alm de uma novidade, foi
tambm bem interessante. Os prisioneiros, em mangas de camisa,
distraam-se conversando na entrada, aproveitando o vento fresco da noite;
assim estavam quando me viram chegar. Mas o carcereiro disse-lhes:
"Venham, rapazes, j hora de trancar as portas"; ouvi o barulho
dos seus os enquanto caminhavam para os seus compartimentos vazios. O
carcereiro apresentou-me o meu companheiro de cela, qualificando-o como
"um sujeito de primeira e um homem esperto. Trancada a porta, ele
mostrou-me o cabide onde deveria pendurar o meu chapu e explicou-me como
istrava as coisas por ali. As celas eram caiadas uma vez por ms; a
nossa cela, pelo menos, era o apartamento mais branco, de mobilirio mais
simples e provavelmente o mais limpo de toda a cidade. Naturalmente ele quis
saber de onde eu vinha e por que eu tinha ido parar ali; quando lhe contei a
minha histria, foi minha a vez de lhe perguntar a sua, na suposio
evidente de que ele era um homem honesto; e, da maneira que as coisas esto,
acredito que ele de facto era um homem honesto. Ele disse: Ora, acusam-me de
ter incendiado um celeiro; mas no fui eu". Pelo que pude perceber,
ele provavelmente fora deitar-se, bbado, para dormir num celeiro, no sem
antes fumar o seu cachimbo; e assim perdeu-se no fogo um celeiro. Ele tinha a
fama de ser um homem esperto, e ali aguardava havia trs meses o seu
julgamento; tinha outros trs meses a esperar ainda; mas estava bem cordato
e contente, j que no pagava pela casa e comida e se considerava bem
tratado.
Ele ficava ao lado de uma janela, e eu junto outra; percebi
que se algum ficasse por ali por muito tempo acabaria tendo por actividade
principal olhar pela janela. Em pouco tempo eu tinha lido os folhetos que
encontrara, e fiquei observando os locais por onde antigos prisioneiros tinham
fugido, vi onde uma grade tinha sido serrada e ouvi a histria de vrios hspedes
anteriores daquele aposento; pois acabei descobrindo que at mesmo ali
circulavam histrias e tagarelices que no conseguem atravessar as paredes
da cadeia. Essa provavelmente a nica casa na cidade onde se escrevem
poesias que so publicadas em forma de circular, mas que no chegam a
virar livros. Mostraram-me uma grande quantidade de poesias feitas por
alguns jovens cuja tentativa de fuga tinha sido frustrada; eles vingavam-se
declamando os seus versos.
Tirei tudo o que pude do meu companheiro de cela, pois temia
nunca mais tornar a encontr-lo; mas finalmente ele indicou-me a minha cama e
deixou para mim a tarefa de apagar a lamparina. Ficar ali deitado por uma nica
noite foi como viajar a um pas distante, um pas que eu nunca teria
imaginado visitar. Pareceu-me que nunca antes ouvira o relgio da cidade
dar as horas ou os rudos nocturnos da aldeia; isso porque dormamos com as
janelas abertas, janelas estas instaladas por dentro das grades. Era como
contemplar a minha aldeia natal luz da Idade Mdia, e o nosso familiar rio
Concord transformou-se na torrente de um Reno; minha frente desfilaram
vises de cavaleiros e castelos. As vozes que ouvia nas ruas eram dos antigos
burgueses. Fui espectador e testemunha involuntria de tudo o que se fazia
e dizia na cozinha da vizinha hospedaria local - uma experincia
inteiramente nova e rara para mim. Tive uma viso bem mais ntima da minha
cidade natal. Eu estava razoavelmente perto da sua alma. Nunca antes vira as
suas instituies. Essa cadeia uma das suas instituies peculiares,
pois Concord a sede do condado. Comecei a compreender o que preocupa os
seus habitantes.
Quando chegou a manh, o nosso desjejum foi empurrado para
dentro da cela atravs de um buraco na porta; era servido numa vasilha de
estanho ajustada ao tamanho do buraco e consistia numa poro de chocolate
com po preto; junto vinha uma colher de ferro. Quando do lado de fora
pediram a devoluo das vasilhas, a minha inexperincia foi tanta que coloquei
de volta o po que no comera; mas o meu companheiro pegou o po e
aconselhou-me a guard-lo para o almoo ou para o jantar. Pouco depois,
deixaram que ele sasse para trabalhar num campo de feno das vizinhanas,
para onde se deslocava todos os dias; no voltaria antes do meio-dia; ele ento
deu-me bom-dia e disse que duvidava que nos vssemos de novo.
Quando sa da priso - pois algum interferiu e pagou o meu
imposto -, percebi diferenas, no as grandes mudanas no dia-a-dia notadas
por aqueles aprisionados ainda jovens e devolvidos j trpegos e grisalhos.
Ainda assim uma nova perspectiva tinha-se instalado no meu modo de ver a
cidade, o Estado e o pas, representando uma mudana maior do que se fosse
causada pela mera agem do tempo. Vi com clareza ainda maior o Estado que
habitava. Vi at que ponto podia confiar nos meus conterrneos como bons
vizinhos e amigos; e percebi que a sua amizade era apenas para os momentos
de tranquilidade; senti que eles no tm grandes intenes de proceder
correctamente; descobri que, tal como os chineses e malaios, eles formam uma
raa diferente da minha, por causa dos seus preconceitos e supersties;
constatei que eles no arriscam a si mesmos ou a sua propriedade nos seus
actos de sacrifcio pela humanidade; vi que, no fim das contas, eles no so
to nobres a ponto de conseguir tratar o ladro de forma diferente do que
este os trata; e que s querem salvar as suas almas, atravs de aces
de efeito, de algumas oraes e da eventual observao dos limites particularmente
estreitos e inteis de um caminho de rectido. possvel que esteja
proferindo um julgamento duro sobre os meus vizinhos, pois acredito que a
maioria deles no sabe que existe na sua cidade uma instituio tal como a
cadeia.
Antigamente, na nossa aldeia, havia o costume de saudar os
pobres endividados que saam da cadeia olhando-os atravs dos dedos
dispostos em forma das barras de uma janela de priso; e perguntava-se ao
recm-liberto: Como vai?" No recebi essa saudao dos meus
conhecidos, que primeiro me encaravam e depois entreolhavam-se, como se eu
acabasse de voltar de uma longa viagem. Eu tinha sido preso quando me
dirigia ao sapateiro para buscar uma bota consertada. Quando fui solto na
manh seguinte, resolvi retomar o que estava fazendo e, depois de calar a
tal bota, juntei-me a um grupo que pretendia colher frutas silvestres e me
queria como guia. E em pouco mais de meia hora - pois logo recebi um cavalo
arreado - chegamos ao topo de um dos nossos mais altos morros, onde abundavam
frutas silvestres, a trs quilmetros da cidade; e dali no se podia ver o
Estado em lugar nenhum.
Esta a histria completa das Minhas prises''.
Nunca me recusei a pagar o imposto referente s estradas,
pois a minha vontade de ser um bom vizinho to grande quanto a de ser um
pssimo sdito; no que toca sustentao das escolas, actualmente fao
a minha parte na tarefa de educar os meus conterrneos. No um item
particular dos impostos que me faz recusar o pagamento. Quero apenas negar
lealdade ao Estado, quero me retirar e me manter efectivamente indiferente a
ele. No me importo em seguir a trajectria do dlar que paguei - mesmo se
isso fosse possvel -, at o ponto em que ele contrata um homem ou compra
uma arma para matar um homem; o dlar inocente. O que me importa
seguir os efeitos da minha lealdade. Na verdade, eu silenciosamente declaro
guerra ao Estado, minha moda, embora continue a us-lo e a tirar vantagem
dele enquanto puder, como costuma acontecer nestas situaes.
Se outros resolvem pagar o imposto que o Estado me exige,
nada mais fazem alm do que j fizeram quando pagaram o seu imposto, ou
melhor, estimulam a injustia alm do limite que o Estado lhes pediu. Se
eles pagam o imposto alheio a partir de um equivocado interesse pela sorte
daquele que no paga, para salvar a sua propriedade ou para evitar o seu
encarceramento, isso s ocorre porque no meditaram seriamente no quanto esto
permitindo que os seus sentimentos particulares interfiram no bem geral.
Esta, portanto, minha posio actual. Mas no se pode
ficar exageradamente de sobreaviso numa circunstncia dessas, pelo risco de
que tal atitude seja desviada pela obstinao ou pela preocupao indevida
para com a opinio do prximo. Que cada um cuide de fazer apenas o que lhe
cabe, e s no momento certo.
Por vezes penso assim: ora, esse povo tem boas intenes,
mas ignorante; ele faria melhor se soubesse como agir; por que incomodar
os meus vizinhos e for-los a tratar-me de uma forma contrria s suas
inclinaes? Mas depois penso: no h motivo para proceder como eles ou
para permitir que mais pessoas sofram outros tipos de dor. E digo ainda a mim
mesmo: quando muitos milhes de homens, sem paixo, sem hostilidade, sem
sentimentos pessoais de qualquer tipo, lhe pedem apenas uns poucos xelins, sem
que a sua natureza lhes possibilite retirar ou alterar a sua exigncia actual
e sem a possibilidade de voc, por seu lado, fazer um apelo a outros milhes
de homens, por que voc deveria se expor a tal fora bruta avassaladora? Voc
no resistir ao frio e fome, aos ventos e s ondas com tanta obstinao;
voc submete-se pacificamente a mil imposies similares. Voc no
coloca a cabea na fogueira. Mas exactamente na medida em que no considero
esta fora inteiramente bruta - e sim uma fora parcialmente humana - e em
que avalio que mantenho relaes com esses milhes e com outros muitos milhes
de homens - que no so apenas coisas brutas ou sem vida -, vejo tambm que
possvel a apelao: em primeira instncia e de pronto, eles podem
apelar ao Criador; em segunda instncia, podem apelar uns aos outros. Mas se
ponho a minha cabea no fogo de propsito no h apelo possvel a ser
feito ao fogo ou ao Criador do fogo, e sou o nico culpado pelas consequncias.
Se eu conseguisse convencer-me de que tenho algum direito a me sentir
satisfeito com os homens tal como eles so, e a trat-los de acordo com isso
e no parcialmente de acordo com as minhas exigncias e expectativas de como
eles e eu mesmo deveramos ser, ento, como bom muulmano e fatalista, eu
teria que me esforar para ser feliz com as coisas como elas so e proclamar
que tudo se a segundo a vontade de Deus. E, acima de tudo, h uma diferena
entre resistir a essa fora e a uma outra puramente bruta ou natural: a
diferena que posso resistir a ela com alguma efectividade. No posso esperar
mudar a natureza das pedras, das rvores e dos animais, tal como Orfeu.
No quero polemizar com qualquer homem ou nao. No quero
fazer filigranas, estabelecer distines elaboradas ou colocar-me numa
situao superior dos meus vizinhos. Estou a buscar, posso admitir,
at mesmo uma desculpa para aceitar as leis do pas. Estou preparado at
demais para obedecer a elas. Neste particular tenho motivos para suspeitar de
mim mesmo; e a cada ano, quando se aproxima a poca da visita do colector de
impostos, surpreendo-me disposto a revisar os actos e as posies do
governo central e do governo estadual, a rever o esprito do povo, para
descobrir um pretexto para a obedincia. Acredito que logo o Estado ser
capaz de aliviar-me de todos os encargos deste tipo e ento no serei mais
patriota do que o resto dos meus conterrneos. Encarada de um ponto de vista
menos elevado, a Constituio, com todos os seus defeitos, muito boa; a
lei e os tribunais so muito respeitveis; mesmo o Estado de Massachusetts
e o governo dos Estados Unidos da Amrica so, em muitos aspectos, coisas
irveis e bastante raras, pelas quais devemos ser gratos, tal como nos
disseram muitos estudiosos das nossas instituies. Mas se elevarmos um
pouco o nosso ponto de vista, elas mostram-se tais como as descrevi; e indo
mais alm, at chegarmos ao mais alto, quem ser capaz de dizer o que so
elas, ou quem poder dizer que sequer vale a pena observ-las ou reflectir
sobre elas?
Entretanto, no me preocupo muito com o governo, e quero
dedicar a ele o menor nmero possvel de reflexes. Mesmo no mundo tal como
agora, no o muitos momentos sujeito a um governo. Se um homem
livre de pensamento, livre para fantasiar, livre de imaginao, de modo
que aquilo que nunca lhe parece ser na maior parte do tempo,
governantes ou reformadores insensatos no so capazes de lhe criar
impedimentos fatais. Sei que a maioria dos homens pensa de maneira diferente
de mim; mas no estou nem um pouco mais satisfeito com os homens que se
dedicam profissionalmente a estudar estas questes e outras parecidas. Pelo
facto de se colocarem to integralmente dentro da instituio, os homens de
Estado e os legisladores nunca conseguem encar-la nua e cruamente. Eles
gostam de falar sobre mudanas na sociedade, mas no tm um ponto de apoio
situado fora dela. Pode ser que haja entre eles homens de certa experincia e
critrio e evidentemente capazes de criar sistemas engenhosos e at teis,
pelos quais lhes devemos gratido; mas todo o seu gnio e toda a sua
utilidade no ultraam certos limites relativamente estreitos. Eles tendem
a esquecer que o mundo no governado atravs de decises e convenincias.
Webster nunca chega aos bastidores do governo e, por isso, no pode ser uma
autoridade no assunto. As suas palavras so sbias apenas para os
legisladores que no cogitam de qualquer reforma essencial no governo
existente; para as exigncias dos pensadores e dos que fazem leis
duradouras, ele nem chega a visualizar o assunto. Conheo algumas pessoas
cujas especulaes serenas e sbias logo revelariam os limites do alcance e
da hospitalidade da imaginao de Webster. Mesmo assim, quando comparadas
com as pauprrimas declaraes da maioria dos reformadores e com a
mentalidade e a eloquncia ainda piores dos polticos em geral, as suas
palavras so praticamente as nicas que tm valor e revelam sensibilidade;
devemos por isso agradecer ao cu por contarmos com Webster. Em termos
comparativos, ele sempre impetuoso, original e, acima de tudo, prtico.
Mas a sua virtude no a sabedoria, e sim a prudncia. A verdade de um
jurista no a Verdade, mas a consistncia, ou uma convenincia
consistente. A verdade est sempre em harmonia consigo mesma, e a sua importncia
principal no a de revelar a justia que porventura possa conviver com
o mal. Webster bem merece o ttulo pelo qual conhecido: "Defensor
da Constituio". De facto, ele no precisa atacar, mas apenas armar
a defesa contra os golpes alheios. Ele no um lder, e sim um seguidor.
Os seus lderes so os constitucionalistas de 1787. Eis as suas prprias
palavras: "Nunca tomei e nunca pretendo tomar uma iniciativa; nunca
apoiei ou pretendo apoiar uma iniciativa - que vise desmanchar o acordo
original pelo qual os diversos Estados formaram a Unio". Ao comentar a
cobertura que a Constituio d escravido, diz ele: "J que
parte do pacto original, que continue a escravido". Apesar da sua
agudeza e habilidade especiais, ele no consegue isolar um facto das suas
relaes meramente polticas para contempl-lo nos termos absolutos
exigidos para o seu aproveitamento pelo intelecto - por exemplo, o que se impe
moralmente hoje em dia nos Estados Unidos no tocante a agir frente
escravido; no entanto, ele arrisca-se ou levado a formular uma resposta
desesperada tal como a que se segue, e insiste que fala em termos absolutos,
como um homem particular: "A forma pela qual os governos dos Estados onde
existe escravido decidem regulament-la matria da sua prpria
deliberao, pela qual so responsveis perante os seus cidados,
perante as leis gerais da propriedade, da humanidade e da justia, e
perante Deus. Quaisquer associaes formadas em outro lugar, mesmo oriundas
de um sentimento de compaixo humana, ou com qualquer outra origem, nada tm
a ver com o assunto. Nunca lhes dei qualquer apoio, e nunca darei". Que
novo e original cdigo de obrigaes sociais pode ser inferido de palavras
como estas? (1)
Para os que no conhecem as fontes mais puras da verdade, que
no querem subir mais pela sua correnteza, a opo - sbia -
interromper a sua busca na Bblia e na Constituio; ser a que eles a
sorvero, com reverncia e humildade; mas para aqueles que conseguem
perceber que a verdade vem mais de cima e alimenta esse lago ou aquele
remanso, preciso preparar de novo o corpo para continuar a peregrinao,
at chegar nascente.
Ainda no surgiu um homem dotado de gnio para legislar no
nosso pas. Homens assim so raros na histria mundial. Oradores, polticos
e homens eloquentes existem aos milhares; mas ainda estamos por ouvir a voz do
orador capaz de solucionar as complexas questes do dia-a-dia. Amamos a
eloquncia pelos seus mritos prprios, e no pela sua capacidade de
pronunciar uma verdade qualquer, nem pela possibilidade de inspirar algum
herosmo. Os nossos legisladores ainda no aprenderam a distinguir o valor
relativo do livre-comrcio frente liberdade, unio e rectido.
Eles no tm gnio ou talento nem para as questes relativamente simplrias
dos impostos, das finanas, do comrcio e da indstria, da agricultura. A
Amrica do Norte no conseguiria manter por muito tempo a sua posio
entre as naes se fssemos abandonados esperteza palavrosa dos
congressistas; felizmente contamos com a experincia madura e com os
protestos efectivos do nosso povo. Talvez no tenha o direito de afirmar
isto, mas o Novo Testamento foi escrito h mil e oitocentos anos; no entanto
onde encontrar o legislador suficientemente sbio e prtico para se
aproveitar de tudo o que esse texto ensina sobre a cincia da legislao?
A autoridade do governo, mesmo do governo ao qual estou
disposto a me submeter - pois obedecerei com satisfao aos que saibam e
faam melhor do que eu e, sob certos aspectos, obedecerei at aos que no
saibam nem faam as coisas to bem -, ainda impura; para ser inteiramente
justa, ela precisa contar com a sano e com o consentimento dos governados.
Ele no pode ter sobre a minha pessoa e meus bens qualquer direito puro alm
do que eu lhe concedo. O progresso de uma monarquia absoluta para uma
monarquia constitucional, e desta para uma democracia, um progresso no
sentido do verdadeiro respeito pelo indivduo. Ser que a democracia tal
como a conhecemos o ltimo aperfeioamento possvel em termos de
construir governos? No ser possvel dar um o a mais no sentido de
reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haver um Estado
realmente livre e esclarecido at que ele venha a reconhecer no indivduo um
poder maior e independente - do qual a organizao poltica deriva o seu
prprio poder e a sua prpria autoridade - e at que o indivduo venha a
receber um tratamento correspondente. Fico imaginando, e com prazer, um Estado
que possa enfim se dar ao luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o
indivduo respeitosamente, como um vizinho; imagino um Estado que sequer
consideraria um perigo sua tranquilidade a existncia de alguns poucos
homens que vivessem parte dele, sem nele se intrometerem nem serem por ele
abrangidos, e que desempenhassem todos os deveres de vizinhos e de seres
humanos. Um Estado que produzisse esta espcie de fruto, e que estivesse
disposto a deix-lo cair logo que amadurecesse, abriria caminho para um
Estado ainda mais perfeito e glorioso; j fiquei a imaginar um Estado
desses, mas nunca o encontrei em qualquer lugar.
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