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Direitos Humanos em Moambique
Josu Bila

Parte II
Captulo V

Entrevistas

Joo Carlos Trindade: Ser branco d vantagens

o juiz conselheiro Joo Carlos Trindade quem o reconhece e lamenta o aportuguesamento das universidades privadas...

Joo Carlos Trindade, um dos juizes conselheiros do Tribunal Supremo (TS) e director do Centro de Formao Jurdica e Judiciria (CFJJ), reconheceu, em entrevista ao Embondeiro,5 que nota, com muita infelicidade, que ser branco d uma srie de vantagens em Moambique, em comparao com os que no so desta cor de pele. A mim, como cidado moambicano, custa muito – fao das palavras de Mia Couto minhas – ir a um lugar qualquer e ser atendido primeiro por ser branco. Quantas vezes, vou a um lugar e sou atendido primeiro e logo exclamo: “quer atender a mim, mas este senhor est minha frente”, sublinha. Refere ainda que Moambique tem que deixar de ser um pas onde quem tem dinheiro e est prximo dos centros de deciso poltica e do poder consegue resolver os seus problemas. “E quem pobre por viver na zona perifrica do poder no tem o mnimo para sobreviver”, frisa.

Nesta entrevista, aquele juiz-conselheiro afirma ainda que o pas possui um sistema desequilibrado de istrao de justia, com o que se tem cadeias superlotadas de gente que no devia l estar detida ou presa. “E temos muita gente que l devia estar, mas que no est. Anda muita gente a nos ameaar. Eu prprio fui assaltado porta de minha casa”, enfatiza. Defende que para que os magistrados correspondam s expectativas dos cidados estes devem ter conhecimentos slidos da realidade scio-antropolgica do pas. Sobre as instituies de ensino superior, especialmente as suas faculdades de Direito, lana a seguinte lamentao: “universidades privadas usam programas portugueses”.

Embondeiro - O senhor juiz conselheiro defende, na obra Conflito e Transformao Social: Uma Paisagem das Justias em Moambique (2003), de que co-autor com o Prof. Doutor Boaventura de Sousa Santos, que o nosso sistema de istrao da justia no reflecte as condies multi-ticas e multiculturais de um pas perifrico.

- O que deve ser feito para a satisfao dessas condies?

JCT - Bom, na minha perspectiva e no quadro do trabalho que temos vindo a desenvolver aqui no Centro de Formao Jurdica e Judiciria, tenho mostrado que o Pas s sair a ganhar se tiver em conta a sua prpria realidade. Ns, durante muito tempo, na rea de Justia, fomos receptores de modelos que serviram noutras realidades e noutras pocas da histria, sem ter em conta o contexto tico e cultural moambicano. Moambique um pas que globalmente perifrico. E, dentro da mesma periferia, h realidades diferentes. Por exemplo, mais perifrico o moambicano do distrito de Chicualacuala, provncia de Gaza, do que o da cidade de Maputo. Isso significa que Moambique tem vrios pases sociais, econmicos e polticos, dentro de um nico pas, para alm de termos vrios pases judicirios. Uma das solues para se sair desse marasmo em que o sector de istrao da justia se encontra mergulhado poder ser a Lei de Base do Sistema de istrao da Justia (LBSAJ), que actualmente est em debate. Esta procurar concretizar algumas das idias fornecidas pelo estudo que vocs citaram (Conflito e Transformao Social: Uma Paisagem das Justias em Moambique - 2003) e outros posteriores a esse que procuraro responder s vrias preocupaes da Justia. Na sequncia desta lei de base, vamos preparar a reviso da Lei Orgnica dos Tribunais Judicirios e Comunitrios e da Lei de o Justia.

Embondeiro - Ser que essas leis ora em perspectiva traro solues?
JCT - Essas leis procuram acolher as solues que o CFJJ props. As solues am, grosso modo, pela conjugao e interligao de vrios nveis de tribunais: os judiciais, comunitrios e por a em diante. No caso de tribunais comunitrios propomos que continuem a funcionar com aqueles juizes que trabalhem com o bom-senso, que possam decidir os casos na base de equidade, tendo em conta o contexto cultural, tnico e grupal de cada regio, articulando-se depois com o Sistema Judicial. Por isso que propomos a articulao de vrios organismos, nomeadamente Conselhos Provinciais de Justias Comunitrias, para istrarem os tribunais comunitrios e fazerem a ponte com Tribunais Judiciais a nvel de distrito, de modo a que, por exemplo, uma pessoa que tenha um conflito na famlia ou numa zona rural a nvel de sua comunidade veja esse conflito resolvido no Tribunal Comunitrio (TC), dentro de princpios de equidade. E, se uma das partes no sair feliz da resoluo do TC, poder recorrer ao Tribunal Distrital (TD). E a no TD onde j se encontram juizes profissionais com licenciatura em Direito que podero julgar recursos vindos dos TC, utilizando os mesmos critrios, isto , equidade, bom senso e pressupostos empricos.

Embondeiro - Que casos acha que devem ser julgados nos Tribunais Comunitrios?
JCT - Ns temos zonas no nosso Pas que so zonas de sistema matrilinear e patrilinear. Ora, bvio que a soluo de um conflito familiar de natureza conjugal e de diviso de bens diferente em funo daquilo que a cultura e as normas locais vigentes, que no esto escritas, mas que foram transmitidas de gerao em gerao. O que ns propomos que se respeitem essas normas e diversidades culturais. No tenhamos a tentao de pensarmos que o respeito s normas locais pe em causa a unidade nacional, porque esta se constri com base na diversidade e no na tentativa de homogenizar algo que no pode ser homogenizado. Moambique um pas complexo, devido s varias realidades culturais, religiosas e tnicas, e a nossa proposta de que no se trate de igual maneira o que , pela sua natureza, diferente, ou seja, o nosso princpio bsico este: as coisas devem ser tratadas de forma igual quando forem iguais e diferentes quando forem diferentes, mas dentro de um certo limite, que a Constituio da Repblica, pois ela defende direitos iguais para todos cidados. Isso significa que, ao Tribunal Comunitrio, no pode ser permitido aplicar sanses que so proibidas pela Constituio, nomeadamente sanes corporais e outras. Temos de estar atentos para que este no viole o direito igual entre homens e mulheres.

Embondeiro - Neste momento histrico, entre os tribunais judiciais de nvel distrital e provincial, em quais o Pas deve investir mais?
JCT – O que ns apontamos acima revela em si que o Estado deve investir com mais recursos materiais, humanos e financeiros a nvel de distrito, por aquele ser o corao do sistema judicial. A nossa idia de vermos canalizados para os tribunais distritais grande parte das competncias que esto ao nvel dos tribunais provinciais, libertando estes para outro tipo de conflito e para usar mais a sua capacidade de tribunais de recurso de segunda instncia. Esse processo vai implicar a libertao do Tribunal Supremo (primeira instncia) da sobrecarga de processos que chegam l que poderiam ser resolvidos ao nvel provincial.

Embondeiro – H luzes nisso?
JCT – Ns, o CFJJ, vamos propor a reviso dessa lei para consagrar exactamente uma maior ligao dos tribunais comunitrios ao Sistema Judicial, porque eles so uma continuao dos tribunais populares, que existiram no tempo do socialism0. A regulamentao dos tribunais comunitrios era relativamente simples, porque ns tnhamos uma e nica fora poltica no pas, ou seja, o partido-Estado, que quem indicava os candidatos para trabalharem nesses tribunais. As assemblias do povo aos vrios nveis elegiam os candidatos e os tribunais comeavam a funcionar. Hoje, temos uma realidade pluralista em termos polticos e sociais, da a necessidade de os tribunais comunitrios reflectirem as vrias sensibilidades polticas, interesses sociais e outras foras presentes no terreno. Propomos ainda que sejam discutidas as competncias de cada um dos tribunais, pois a lei actual, por exemplo, diz que os tribunais judiciais podem dicidir sobre casos a que se aplique um determinado nmero de sanes. O que uma definio pela negativa, porque no se sabe quem decidir ou julgar o furto de uma galinha competncia de que tribunal. Por exemplo, o roubo de uma galinha pode ser punida por uma pena de multa, mas, por sua vez, o Cdigo Penal diz que quem furtar algo de uma pessoa pode ser sujeito a uma pena de priso. Ora, a pena de uma priso no pode ser aplicada por um tribunal comunitrio. Onde ficamos? Onde julgado o furto de uma galinha? por essa razo que urgente clarificar o campo de actuao de uns rgos e de outros.

Embondeiro - Em sua opinio, onde deve ser julgado o furto de uma galinha?
JCT – Eu acho que deve ser julgado no tribunal comunitrio, porque se ns julgamos o furto de uma galinha com a possibilidade de sujeitar o autor de crime do furto a uma pena de priso, nunca vamos vencer o problema da superlotao das cadeias. O grande problema que ns temos que o sistema muito desequilibrado: ns temos cadeias superlotadas de gente que no devia l estar e temos gente que l devia estar, mas que no est. Anda a muita gente nas ruas a nos ameaar. Estamos, neste momento, a atravessar uma onde criminalidade. Eu, particularmente, fui assaltado por um individuo porta de minha casa.

Embondeiro – O que que falta nas faculdades de Direito (privadas e pblicas), para que tenhamos juristas com conhecimento da realidade antropolgica e sociolgica do Pas?
JCT – O que nos falta que ns devemos mudar a lgica de formao. O que tem perseguido a abertura das universidades privadas a lgica do mercado: estamos numa economia de mercado e de iniciativa privada, portanto, se surge uma entidade que pretenda abrir uma faculdade privada o Estado autoriza. S que o Estado no tem tido a capacidade de controlar a qualidade de formao, programas curriculares e a respectiva adequao desses programas realidade moambicana. O que acontece que 90 a 100 por cento das universidades privadas, no caso concreto das faculdades de Direito, utilizam programas das universidades portugueses com as quais tm acordos de cooperao e transportam c os seus programas com um corpo docente que no est preparado. Portanto, o Estado deve ter um papel regulador muito mais interveniente do que o que tem at agora. E deve-se apostar na qualidade de educao. E a qualidade de educao a no s por dar competncias tcnicas, mas, tambm, por conferir aos formandos nas faculdades de direito conhecimentos antropolgicos e sociolgicos, o que temos feito, aqui, no CFJJ, para que uma pessoa que colocada em Cuamba ou Chicualacualala tenha instrumentos para o meio onde est e para poder se articular nesse meio e satisfaa as necessidades e as aspiraes das pessoas. Penso que se for uma pessoa que formada imagem e semelhana das universidades portuguesas, na base do Direito Portugus, e ser indicado a magistrado nesses meios comunitrios, ter sempre dificuldades de perceber o meio em que se encontra. Ele pode ter dificuldades de estar a servio da cidadania moambicana.

Embondeiro - O que acha da Ordem de Advogados de Moambique?
JCT – A Ordem dos Advogados tem que se libertar um pouco da concepo demasiado corporativista para se tornar num rgo que tambm se preocupa com questes sociais. A advogacia no pode ser uma profisso para ganhar dinheiro. Tem de ser uma profisso para fazer justia! Quantas vezes ns ouvimos os advogados a reclamarem que so o terceiro pilar da justia. Para serem terceiro sector da justia devem ter preocupaes sociais. Devem apoiar as pessoas mais carenciadas, pobres e aquelas pessoas que no tm condies para verem exactamente os seus direitos defendidos. E ai ela (ordem dos advogados) estar mais socializada.

Embondeiro – Qual o quadro dos direitos humanos em Moambique, antes e depois da Constituio de ’90?
JCT – Em termos de direitos humanos, nomeadamente o direito liberdade, vida, integridade fsica e outros que so da primeira gerao, o Estado nem esses conseguiu assegurar aos cidados, quanto mais os de segunda gerao: o direito sade, educao, ao trabalho, habitao. Sobre estes estamos muito longe de assegurar. Mas, fiquemos nos direitos de primeira gerao: h muito cidado que vtima de abusos de autoridade, que no tem onde se dirigir ou apresentar a queixa ou ainda se apresentar queixa no como ver a sua pretenso ser encaminhada. Portanto, h um trabalho enorme por fazer. Acho que o Estado pode sair a ganhar se olhar as organizaes da sociedade civil no como inimigas, mas como aliadas para a dignificao dos direitos humanos da cidadania. Muita gente no gosta da Liga Moambicana dos Direitos Humanos e do estilo de sua presidente, Maria Alice Mabota. Eu devo confessar que iro o papel que a LDH desempenha, em particular de Alice Mabota, por ser uma mulher combativa, que enfrenta as coisas e que sempre vai a frente. Obviamente, nem sempre estou de acordo com o que ela diz e faz... nem tenho que estar. Mas, globalmente, a LDH tem tido um papel muito positiva. No vejo a LDH como inimiga do Estado; pelo contrrio, vejo o papel da LDH como aquele que chama a ateno do Estado, para melhorar o seu desempenho e a sua performance para que realmente o cidado, quaisquer que seja, se sinta realmente cidado.

Embondeiro - O que acha do exerccio de cidadania em Moambique?
JCT – Ns no podemos ser um pas onde quem tem dinheiro, conhecimento e est prximo dos centros de deciso poltica e do poder e consiga resolver os seus problemas e quem pobre por viver na zona perifrica do poder no tem o mnimo para sobreviver. No foi com esses ideais que compatriotas nossos se bateram. Todos devemos nos preocupar para que os direitos de cidadania se estendam a todos os cidados moambicanos, independentemente da sua condio social. A mim, como cidado moambicano, custa-me muito – fao das palavras de Mia Couto minhas – ir a um lugar qualquer e ser atendido primeiro por ser branco. Quantas vezes vou a um lugar e sou atendido primeiro e logo exclamo dizendo: “Quer atender a mim, mas este senhor est minha frente. Quero ser atendido tal como os outros.

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Nota:

5 - A 15 de Junho de 2005, o juiz conselheiro do Tribunal Supremo e ento director do Centro de Formao Jurdica e Judiciria, Joo Carlos Trindade, concedeu-me a supra-entrevista. quando estava a servio do extinto jornal Embondeiro, em Maputo-Moambique.

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