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Direitos Humanos em Moambique
Josu Bila

Parte II
Captulo V

Entrevistas

Loureno do Rosrio: “Democracia sem desenvolvimento um fraude”

Em entrevista exclusiva concedida recentemente revista Democracia e Direitos Humanos, o Professor Loureno do Rosrio1 vincou que os intelectuais e acadmicos moambicanos se limitam a receber instrues e orientaes de modelos do Ocidente, que nada tm que ver com a nossa cultura de governao.

E diz: “duvido que os polticos e intelectuais conheam, sob o ponto de vista terico, os fundamentos da democracia que estamos a implantar”. Alis, para o nosso entrevistado, “democracia sem desenvolvimento uma fraude”. Loureno do Rosrio que, para alm de acadmico, igualmente Reitor do Instituto Superior Politcnico Universitrio (ISPU),2 declarou ainda que a nossa intelectualidade est muito virada para a vida urbana e para as tecnologias que a ligam ao centro e a desligam da periferia. Nesta entrevista3 ao nosso peridico, Loureno do Rosrio no poupou crticas comunicao social da qual, parafraseando Mia Couto, diz: “o jornalismo em Moambique o hino preguia”. Ei-lo, a seguir, na primeira pessoa:

Democracia e Direitos Humanos (DDH) – Muitos estudos e ideias de intelectuais e polticos moambicanos referem que a “democracia em Moambique tem dificuldades de se implementar, devido ao elevado ndice de analfabetismo”.

- Considerando esta tese como parte da nossa realidade social, como que o pas pode capitalizar os conhecimentos locais e/ou informais das comunidades, para que a democracia ganhe uma outra dinmica social?

Loureno do Rosrio (LR) – Penso que o grande problema est exactamente naquilo que ns entendemos como democracia, porque a democracia formal que ns temos nasce de um contexto civilizacional e cultural diferente do nosso. Este modelo, que nasce a partir da revoluo sa, tambm tinha analfabetos; por isso, na altura em que se deu a revoluo sa, os filsofos e polticos conceberam um modelo de governao que inclui os trs poderes representativos, nomeadamente o executivo, o judicial e o legislativo. O parlamento, por exemplo, era representado pelo povo, pela nobreza e pelo clero, o que quer dizer que cada grupo social tinha os seus interesses representados, dentro daquilo a que se chama democracia representativa, atravs de classes sociais, ao invs de partidos polticos. O que se a aqui, em Moambique e em frica, que ns, os intelectuais e acadmicos, limitamo-nos a receber instrues, indicaes e orientaes de modelos que, naturalmente, tm muito pouco que ver com a nossa cultura de governao. O grupo de analfabetos de que me fala, por exemplo, e no nosso caso, no um grupo amorfo, mas sim um povo organizado, com a sua estrutura de governao e que tm concepes claras de representatividade. Estas concepes no esto a ser respeitadas pelo modelo de governao que adoptamos. E mais: nem a istrao colonial respeitou. De facto, a democracia formal, ocidental, no a entendida por grande parte da nossa populao, significando para ns que devemos trabalhar mais. Os nossos antroplogos precisam de no depender apenas de teorias que vem de fora, mas devem produzir teorias inspiradas na observao e pesquisa interna para, exactamente, percebermos qual a concepo que a maioria do nosso povo tem sobre a democracia e, a partir dai, dar subsdios que pudessem melhorar este modelo de democracia que nos imposto. Podemos, sim, dizer s estruturas de democracia ocidental: ‘vocs querem que ns nos governemos desta maneira, mas o nosso povo tem a sua forma de se governar. Tudo isto ia melhorar os problemas que ns temos, o caso da unidade nacional, que os ocidentais provavelmente no tm. Como conjugar os factores negativos que podem dificultar a unidade nacional e a problemtica da democracia, atendendo a que temos fronteiras herdadas do colonialismo, somos um Estado artificial, que preciso construir no sentido de unidade e de territorializao?

DDH – No caso de Moambique, qual deve ser a ligao entre a democracia e o desenvolvimento?
LR – Num dia, o Secretariado Tcnico de istrao Eleitoral fez o seu Conselho Consultivo e apontou que as eleies custariam 22 milhes de dlares. A primeira reaco que tive foi de que no temos dinheiro. E se no temos dinheiro no andemos a brincar s democracias. No podemos pagar um produto caro, quando estiver acima das nossas capacidades.
Como somos um pas sem dinheiro, ento os doadores vo ter de pagar, porque at nos submeteram a essa regra de jogo. Ora bem, esses 22 milhes de dlares so um instrumento para tornar as nossas instituies capazes de transformar a nossa situao em desenvolvimento. Eu acho que este regime que nos foi imposto no faz sentido, enquanto no trouxer o almejado desenvolvimento. E o desenvolvimento tem cara, pois comea pela melhoria das condies das infra-estruturas, nomeadamente a rede viria, ferro-porturia, pontes, rede de comercializao, rede elctrica, sistema bancrio e financeiro. No mnimo, com estas condies criam-se oportunidades para o investimento que, por sua vez, se vai reflectir na melhoria das condies de vida das populaes. Digo: se a democracia sinnimo de realizao de eleies, de cinco em cinco anos, ento no serve absolutamente para nada, pois, democracia sem desenvolvimento uma fraude. Democracia sim, mas que traga desenvolvimento.

DDH – Qual deve ser o papel/contributo dos partidos polticos e da sociedade civil na educao sobre aspectos democrticos populao?
LR – No podemos, de forma alguma, pensar que, de um momento para o outro, vamos transmitir ao nosso povo aspectos sobre democracia, que penso que mal conhecemos, pois duvido que os nossos polticos e intelectuais conheam, sob o ponto de vista terico, os fundamentos da democracia que estamos a implementar. Agora, pergunto, como que ns podemos transmitir ao nosso povo aquilo que ns mal conhecemos? Estou – friso – a falar sob um ponto de vista meramente terico, e no poltico. O que os intelectuais devem saber, antes, que no somos apenas urbanos. Digo isto porque a nossa intelectualidade muito urbana e virada para as tecnologias informticas, e para tudo o que nos aproxima mais do centro do que, propriamente, da periferia. Significa isso que o grande problema dos pases do Terceiro Mundo, os da frica em particular, serem cooptados pelo centro. Neste preciso momento, quando os intelectuais de frica querem fazer uma pesquisa vo para Londres (Inglaterra) ou Nova Iorque (Estados Unidos Amrica) consultar bibliotecas desses pases, pensando-se, desta forma, que o bom intelectual aquele que foi formado na Universidade de Oxford. Todas estas tendncias fazem com que cada vez mais nos afastemos do nosso vizinho, que est aqui na Manhia. Com este afastamento, fazemos uma espcie de terreno de ningum ou um grande espao vazio, onde a classe poltica anda perdida, porque no anda municiada. H dias, vi e li no jornal que um membro de certo partido poltico no foi eleito no seu partido, pelo que quer formar o seu partido poltico. Este comportamento questiona-me. Qual a sua ideologia poltica? Que programa ele quer apresentar? O que ns vamos esperar desse partido poltico que ser formado? Perante este cenrio da classe poltica parece que estamos perante indivduos que procuram lugar atravs da tentativa de conquista do poder, porque quando se chega ao poder h garantia de que se vai ter benefcios. Ento, parece-me que todos os polticos que esto fora do poder se envolvem em aces para a conquista do poder, e no fazer crescer a democracia representativa dos partidos polticos, porque estar na oposio uma grande responsabilidade, pelo seu carcter educativo, crtico e inspeccionista, ajudando, entretanto, a crescer o patriotismo na diversidade de opinies. Ento, no vejo muito, aqui, que, nas condies actuais, os acadmicos e intelectuais possam ajudar os polticos a desenvolver aces, de modo a consolidarem esta democracia.

DDH - Nalguns pases do mundo, as manifestaes democrticas ou emisso de comunicados de imprensa contra certas polticas antagnicas ao desenvolvimento so concebidas e desenhadas por professores e estudantes do ensino superior, em particular os das cincias sociais e humanas.

- No caso concreto de Moambique, por que que temos verificado uma “paragem cvico-poltica” dos professores e intelectuais?

LR - O intelectual no tem, necessariamente, de fazer o papel de oposio poltica ao poder. A questo no deve ser posta desta maneira. Pelo que me parece, em primeiro lugar, o problema comea na comunicao social ( CS). A nossa CS, de uma forma geral, no aprofunda as questes, salvo raras excepes. Ou seja, ela prefere a intriga poltica investigao. A nossa CS publicita mais os escndalos e, muitas vezes, no forma nem educa os cidados, por forma a monitorar positivamente a opinio pblica. Segundo, temos as universidades que so espao de debate de ideias e onde se forjam indivduos que, futuramente, tero algum papel na sociedade. O grande problema que se coloca quais so os objectivos das pessoas que entram nas universidades. Ns ainda estamos num grande dfice, entre a procura de lugar na universidade e a capacidade que as mesmas tm para oferta, por um lado. Por outro, mesmo o Aparelho de Estado est sistematizado de modo a valorizar muito, em termos salariais, o diploma universitrio. As pessoas entram rapidamente, para sair com um diploma e melhorar a sua vida. Portanto, neste momento, a universidade ainda no um espao onde as pessoas se sentam e debatem ideias, saindo com propostas exequveis. H algumas tentativas, mas ainda so frgeis. Mas no me parece a mim que os intelectuais estejam calados e que no tenham condies nem termos de articulao com a comunicao social, para se poder aprofundar o debate nacional, pois a vida nacional deve estar em constante debate, para que se produzam informaes elaboradas sistematicamente para a opinio pblica. E no isso que acontece, os debates so comeados e largados. Em jeito de concluso, tanto na comunicao social como nas universidades, no h a prtica de aprofundamento das coisas. Nestas duas instituies, h um dfice bastante grande quanto a isso. No nosso seio h preguia mental para aprofundar os debates. Mas, sou optimista. As coisas vo mudar. Penso que nos prximos dez anos as coisas no vo ser iguais.

DDH – O que estar por detrs desse comportamento ou atitude na comunicao social?
LR – Olha, ia talvez citar o Mia Couto que, num encontro, disse que o que se a com o jornalismo em Moambique o hino preguia: cria uma santa aliana entre os jornalistas, o pblico e os polticos. Porque o jornalista, como tem preguia de aprofundar e analisar os problemas, faz um pacto com o poltico. Este, mesmo que no tenha importncia alguma na sociedade, merece destaque na terceira pgina de um jornal, por exemplo. O poltico, por ter sido destacado na terceira pgina, acha-se importante e ns, o pblico, achamos que o poltico fulano importante porque o jornal o destacou logo numa pgina nobre. No sei se este comportamento da comunicao social causado pelo baixo nvel acadmico ou por preguia; ou ainda por uma cultura de escndalos, apenas. Por exemplo, a zanga entre Wehia Ripua e Yaqub Sibindy no tem uma relevncia nacional tal que possa ser destacada na comunicao social. Mas, entretanto, vejo que a zanga entre o Presidente da Repblica, Joaquim Chissano, e o Presidente da RENAMO, Afonso Dhlakama, deva merecer questionamento: sobre as suas origens; quantas vezes j se zangaram; quais as implicaes na vida nacional e consequente destaque.

DDH – H entre ns medo de debater ideias por causa do sistema...
LR – Como que queremos democracia com medo? Democracia , exactamente, a pessoa no ter medo; podermos falar e os outros serem capazes de nos ouvir e debatermos em conjunto as ideias na tolerncia. A tolerncia e o direito opinio que permitem liberdade de expresso e de pensamento. Eu posso ser membro de um partido poltico, mas como cidado tenho coisas sobre as quais tenho obrigaes sociais para debater (ideias). O medo est nas cabeas das pessoas que no conhecem os seus direitos. Ento, vamos voltar questo da preguia. Quantos neste pas que sejam professores universitrios, jornalistas e intelectuais, no geral, conhecem, efectivamente, os seus direitos?

DDH – Como que o cidado mdio moambicano intelectualmente?
LR – Acho que, de uma forma generalizada, o cidado mdio moambicano ignorante. H pessoas que acabam o curso universitrio sem que nunca tenham entrado numa biblioteca. H pessoas que nunca leram um romance. J no digo um poema. H indivduos que so grandes figuras a que nunca leram um livro. Como que indivduos destes podem ser intelectuais? Intelectual de qu; intelectual de conversa de caf. Eu, pessoalmente, tenho um trabalho de investigao com dados qualitativos e quantitativos que melhor fundamentam esta minha posio.

DDH – A excluso poltica pela Frelimo no sistema de governao uma realidade. Deste modo, at que ponto a democracia est ameaada?
LR – Bom, primeiro temos o aspecto histrico. A Frelimo, em 1994, aps a vitria nas eleies gerais sobre a Renamo e outros partidos de oposio moambicana j vinha governando o pas desde o ano de 1975, com toda uma cultura de partido nico e com experincia e segredos de governao. Ento, era difcil incluir outros partidos no governo ou seus quadros, mesmo com competncia reconhecida publicamente. O partido no poder precisava de arrumar a casa, por ter entrado numa nova regra de jogo (democracia multipartidria). Entendo da que era difcil para a Frelimo fazer um governo de unidade nacional. Alm disso no s se inclui por razes de competncia de quadros dos partidos de oposio, mas tambm preciso que o partido vencedor tenha confiana sobre tais quadros a incluir. Entretanto, acredito que se as eleies tivessem sido ganhas pela Renamo, o governo de unidade nacional teria sido formado at com iniciativa da prpria Renamo, porque nessa altura a Renamo provinha de uma guerrilha e ainda no era um partido poltico estruturado que conhecesse os segredos de governao.

DDH – Em 1999, por que que a Frelimo no incluiu outros partidos?
LR – Aqui, entendo que h o aspecto conjuntural. Em 1999, tinhmos a Renamo e os partidos polticos pequenos, que sozinhos no tinham hiptese de ultraar a barreira dos cinco por cento para, pelo menos, se fazerem representar ao nvel parlamentar e a Frelimo, mais uma vez, foi s eleies sem se juntar a ningum. Isso tem a ver com a cultura de auto-suficincia de concorrer aos pleitos eleitorais e se houver alguma necessidade de incluso deve ser sempre a posterior. No sei o que vai acontecer nas prximas eleies previstas para este ano, mas vejo ser muito difcil a Frelimo fazer acordos prvios de coligao com partidos. Acredito que pode fazer depois das eleies. Mas, medida que a Frelimo perder paulatinamente o peso poltico na sociedade moambicana poder coligar-se ou incluir outras foras polticas. Penso que se no tivssemos tido o conflito armado dos 16 anos, onde o processo de transformao do regime socialista para o de democracia tivesse sido normal acredito que a Frelimo chamaria individualidades com competncia reconhecida na sociedade para o governo, sem que fossem seus membros.

DDH – O PCA do BCI, Magid Osman, numa comunicao para a AMECOM em 2002, apontou que nos pases do terceiro Mundo, como Moambique, os detentores do poder econmico-financeiro investem os seus recursos em reas improdutivas (compram mercedes, manses e fatos de luxo...). Como que analisa esta questo?
LR – Normalmente, estes cidados de que o Doutor Magid Osman fala vem de uma cultura de gesto estatal que, tendo falido as suas empresas, tiveram que enfrentar a cultura de gesto privada. E porque aqui h regras de jogo prprias caram. O indivduo privado que comea com o dinheiro privado do banco que sabe que deve pagar no vai comprar Mercedes. Ele deve produzir dinheiro para pagar o emprstimo. Quanto a isso no sou pessimista. As pessoas esto a mudar para o melhor. Em Moambique temos empresrios que dia e noite lutam para desenvolver seus investimentos, preferindo liquidar suas dvidas a comprar Mercedes, manses e fatos de luxo.


Maputo, Abril de 2004

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Notas:

1 - Doutorado em Letras, especialidade em Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa, pela Universidade de Coimbra, desde Janeiro de 1987. igualmente Doutorado em Estudos Portugueses, com especialidade em Estudos Africanos, pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Publicou seis livros de literatura: “A Narrativa Africana de Expresso Oral” (1989); “O Conto Africano – Da Oralidade Escrita” (1994); “Singularidades” (1996); “Contos Moambicanos do Vale do Zambeze” (2001); “Dia de Festa” (2005); “Histrias Portuguesas e Moambicanas para Crianas” (2005) e dezenas de ensaios e prefcios.

2 - Hoje, Universidade A Politcnica.

3 - Esta entrevista consta do livro SINGULARIDADES II, de autoria do professor moambicano Loureno do Rosrio, publicado neste segundo semestre de 2007, sob chancela da Editora Escolar. Originalmente, a entrevista foi publicada na revista Democracia e Direitos Humanos, em Abril de 2004, onde fui redactor-principal, entre 2003 a 2005. Em SINGULARIDADES II, as perguntas e respostas dos nmeros 6 a 10, no se encontram inseridas, talvez por a segunda parte da entrevista ter sido publicada em Maio do mesmo ano ou por no ter sido encontrada pelos organizadores do livro, para efeitos de publicao.

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