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332z3i

A Utopia
Thomas Morus

THOMAS MORUS: o autor e a obra. 1r462g

LIVRO PRIMEIRO. d6l3f

LIVRO SEGUNDO. b672q

Das cidades da Utopia e particularmente da cidade de Amaurota. 5b6q2p

Dos magistrados. 6j6a3o

Das artes e ofcios. 3a464l

Das relaes mtuas entre os cidados. 6a34s

Das viagens dos utopianos. 2r6433

Dos escravos. zh11

Da guerra. 642711

Das religies da Utopia. 5a664

Notas. 725f5f


THOMAS MORUS: o autor e a obra 273u5q

Thomas Morus, forma alatinada por que literariamente conhecido Thomas Moore, Grande Chanceler da Inglaterra, nasceu em Londres em 1478 e foi a decapitado em 1535. Filho de um dos juizes do banco dos reis, foi aos quinze anos colocado como pagem do Cardeal Morton, Arcebispo de Canturia. Em 1497 foi terminar seus estudos em Oxford, onde conheceu Erasmo. Fez durante trs anos o curso de Legislao, ao mesmo tempo que se preparava para exercer a advocacia.

Pouco depois da ascenso de Henrique VII, foi referendrio e membro do Conselho Privado (1514). Acompanhou o rei da Inglaterra ao campo de Drap d'or em 1520. Aps a queda do cardeal Wolsey foi nomeado Grande Chanceler (1529).
Quando Henrique VIII abjurou o catolicismo, Morus, ento ligado Igreja Romana, pediu demisso do cargo (1532), descontentando com esse gesto o Rei. No ano seguinte ofendeu mortalmente Ana Bolena, recusando-se a assistir sua coroao e a prestar fidelidade a seus descendentes. Foi condenado priso perptua e ao confisco de todos os seus bens. Pouco tempo depois foi condenado morte por crime de alta traio e decapitado em Londres em 1535.
A "Utopia", sua obra mais divulgada, e que lhe deu renome universal, foi editada em Basilia (Sua) por Erasmo a quem Morus estava ligado por fortes laos de amizade e a quem revelava, em sua correspondncia particular, a repugnncia que sentia pela vida parasitria e faustosa da corte: "No podes avaliar", escrevia-lhe, "com que averso me encontro envolvido nesses negcios de prncipes; no h nada mais odioso que esta embaixada"... Referia-se embaixada diplomtica enviada pelo Rei da Inglaterra a Flandres afim de resolver um dissdio surgido entre este pais e o prncipe Carlos de Castela.
A "Utopia" representa a primeira crtica fundamentada do regime burgus e encerra uma anlise profunda das particularidades inerentes ao feudalismo em decadncia. A forma muito simples; uma conversao ntima durante a qual Morus aborda ex-abrupto as questes mais novas e mais difceis. Sua palavra, s vezes satrica e jovial, outras, de uma sensibilidade comovedora, sempre cheia de fora.
A primeira parte o espelho fiel das injustias e misrias da sociedade feudal; , em particular, o martirolgio do povo ingls sob o reinado de Henrique VII. Entretanto, o povo ingls no era vtima unicamente da avareza do rei; outras causas de opresso e sofrimento o atormentavam. A nobreza e o clero possuam a maior parte do solo e das riquezas pblicas; estes bens permaneciam estreis para a grande massa de trabalhadores. Alm disso, nessa poca, os grandes senhores mantinham uma multido de vassalos, seja por amor ao fausto, seja para assegurar a impunidade de seus crimes ou ainda para utiliz-los como instrumentos de violncia contra os viles. Esta vassalagem era o terror do campons e do trabalhador.
De outro lado, o comrcio e a indstria da Inglaterra no tinham muita expanso antes das descobertas de Vasco da Gama e Colombo. E assim, as geraes se sucediam sem finalidade, sem trabalho e sem po. A agricultura estava em runas desde que a nascente indstria da l, prometendo lucros espantosos, fez com que terras imensas fossem transformadas em pastagens para carneiros. Em conseqncia disto uma multido de camponeses viu-se reduzida misria, trazendo uma multiplicao de mendicidade, vagabundagem, roubos e assassnios. Por sua vez a lei inglesa era de uma severidade inaudita, punindo com a morte, indistintamente, o ladro, o vagabundo e o assassino.
Com semelhante panorama social diante dos olhos, compreende-se a dureza e amargura das crticas de Morus contra uma sociedade to profundamente desorganizada e injusta.
Thomas Morus, depois de ter na "Utopia" feito uma stira a todas as instituies da poca, edifica uma sociedade imaginria, ideal, sem propriedade privada, com absoluta comunidade de bens e do solo, sem antagonismos entre a cidade e o campo, sem trabalho assalariado, sem gastos suprfluos e luxos excessivos, com o Estado como rgo da produo, etc.
Embora o carter essencialmente imaginrio e quimrico da "Utopia", a obra de Morus fica na histria do socialismo como a primeira tentativa terica da edificao de uma sociedade baseada na comunidade dos bens. E o seu nome ficou para sempre incorporado ao vocabulrio universal como o significado do todo sonho generoso de renovao social...

A UTOPIA 5v6cn

DISCURSO 1u5fm

DO MUITO EXCELENTE HOMEM 2m321w

RAFAEL HITLODEU 1j1o3v

SOBRE A MELHOR CONSTITUIO DE UMA REPBLICA 4n6d49

PELO k3j48

ILUSTRE 6u2kj

THOMAS MORUS 2d4i6k

VISCONDE E CIDADO DE LONDRES 5r5e23

NOBRE CIDADE DA INGLATERRA 1l1d1s

LIVRO PRIMEIRO 3y6e43

O invencvel rei da Inglaterra, Henrique, oitavo do nome, prncipe de um gnio raro e superior, teve, no faz muito tempo, uma querela de certa importncia com o serenssimo Carlos, prncipe de Castela. Eu fui, ento, enviado s Flandres, como parlamentar, com a misso de tratar e resolver essa questo.

Tinha por companheiro e colega, o incomparvel Cuthbert Tunstall, a quem o rei confiara a chancela do arcebispado de Canturia, com os aplausos de todos. Nada direi, aqui, em seu louvor. No por temer que se acuse a minha amizade de adulao; porm, a sua doutrina e as suas virtudes esto acima dos meus elogios, e sua reputao to brilhante que celebrar o seu mrito seria, como diz o provrbio, chover no molhado.
Encontramos em Bruges, lugar fixado para a conferncia, os delegados do prncipe Carlos, todos personagens distintssimos. O governador de Bruges era o chefe e o cabea dessa deputao, e Jorge de Tomsia, preboste de Mont-Cassel, era a boca e o corao. Este homem, que deve sua eloqncia, menos ainda arte que natureza, ava por um dos mais sbios jurisconsultos em questes de Estado; e sua capacidade pessoal; aliada a longa prtica dos negcios, fazia dele um habilssimo diplomata.

A conferncia j realizara duas sesses e no pudera ainda concordar sobre muitos artigos. Os enviados de Espanha despediram-se, ento de ns, para ir a Bruxelas consultar o prncipe. Aproveitei esse lazer e rend-me a Anturpia.

Durante a minha estada nesta cidade conheci muita gente; mas nenhuma relao me foi mais agradvel que a de Pedro Gil, antuerpiense de uma grande integridade. Este moo, que desfruta de honrosa posio entre os seus concidados, merece, realmente, uma das mais elevadas, j pelos seus conhecimentos, j por sua moralidade, pois, a erudio que possui iguala qualidade do carter. Sua alma est aberta a todos; mas nutre por seus amigos tanta benevolncia, amor, fidelidade e devotamento que poder-se-ia qualific-lo, muito justamente, como o perfeito modelo da amizade. Modesto e sem fingimentos, simples e prudente, sabe falar com esprito, e seu gracejo no nunca uma injria. Em suma, a intimidade que se estabeleceu entre ns foi to cheia de prazer e encanto, que suavizou em mim a saudade da ptria, do lar, de minha mulher, de meus filhos, e acalmou as inquietaes de uma ausncia de mais de quatro meses.
Um dia, estava eu na Notre-Dame, igreja da grande devoo do povo, e uma das obras primas mais belas da arquitetura; depois de ter assistido ao ofcio divino, dispunha-me a voltar para o hotel, quando, de repente, dou de cara com Pedro Gil, que conversava com um estrangeiro j idoso. A tez trigueira do desconhecido, sua longa barba, a capa, quase a cair-lhe, negligentemente, sua aparncia e aspecto revelavam um patro de navio.
Logo que Pedro deu comigo, aproximou-se, e, saudando-me, afastou-se um pouco de seu interlocutor que iniciava uma resposta, e, a propsito deste, me disse:

Vede este homem, pois bem, ia lev-lo diretamente vossa casa.
- Meu amigo, respondi-lhe, por vossa causa, ele seria benvindo.
- mesmo por causa dele, replicou Pedro, se o conhecsseis. No h sobre a terra outro ser vivo que possa vos dar detalhes to completos e to interessantes sobre os homens e os pases desconhecidos. Ora, eu sei que sois excessivamente curioso por essa espcie de notcias.
- No tinha adivinhado muito mal, disse eu, ento, pois que, logo primeira vista, tomei o desconhecido por um patro de navio.
- Enganai-vos estranhamente; ele navegou, certo; mas no como Palinuro. Navegou como Ulisses, e at mesmo como Plato. Escutai sua histria:

Rafael Hitiodeu (o primeiro destes nomes o de sua famlia) conhece bastante bem o latim e domina o grego com perfeio. O estudo da filosofia ao qual se devotou exclusivamente, fe-lo cultivar a lngua de Atenas de preferncia de Roma. E, por isso, sobre assuntos de alguma importncia, s vos citar agens de Sneca e de Ccero. Portugal o seu pas. Jovem ainda, abandonou seu cabedal aos irmos; e, devorado pela paixo de correr mundo, amarrou-se pessoa e fortuna de Amrico Vespcio. No deixou por um s instante este grande navegador, durante as trs das quatro ltimas viagens, cuja narrativa se l hoje em todo o mundo. Porm, no voltou para a Europa com ele. Amrico, cedendo aos seus insistentes pedidos, lhe concedeu fazer parte dos VINTE E QUATRO ficaram nos confins da NOVA-CASTELA. Foi, ento, conforme seu desejo, largado nessa margem; pois, o nosso homem no teme a morte em terra estrangeira; pouco se lhe d a honra de apodrecer numa sepultura; e gosta de repetir este apotegma: O CADVER SEM SEPULTURA TEM O CU POR MORTALHA; H POR TODA A PARTE CAMINHO PARA CHEGAR A DEUS. Este carter aventureiro podia ter-lhe sido fatal, se a Providncia divina no o tivesse protegido. Como quer que fosse, depois da partida de Vespcio ele percorreu, com cinco castelhanos, uma multido de pases, desembarcou em Taprobana, como por milagre, e. da chegou em Calicut, onde encontrou navios portugueses que o reconduziram ao seu pas, contra todas as expectativas.

Assim que Pedro acabou essa narrativa, agradeci-lhe o empenho e solicitude em me fazer desfrutar conversao com homem to extraordinrio; depois, abordei Rafael, e, aps as saudaes e cortesias habituais num primeiro encontro, levei-o minha casa com Pedro Gil. A, sentados no jardim, sobre um banco de relva, a conversa comeou.

Rafael me contou como, aps a partida de Vespcio, ele e seus companheiros, com afabilidade e bons servios, grangearam a amizade dos indgenas, e como viveram com eles em paz e na melhor harmonia. Houve mesmo um prncipe, cujo pais e nome me escapam, que lhes deu proteo a mais afetuosa. Sua generosidade os proveu de barcos, carros e tudo mais de que necessitavam para continuar a viagem, Um guia fiel teve ordem de acompanh-los e apresent-los aos prncipes com excelentes recomendaes.

Depois de vrios dias de marcha descobriram burgos e cidades bem istradas, naes inmeras e Estados poderosos.
No Equador, acrescentava Hitiodeu, de uma parte e de outra, no espao compreendido pela rbita do sol, no viram seno vastas solides eternamente devoradas por um cu de fogo. Ai, tudo os aturdia de horror e espanto. A terra inculta tinha apenas como habitantes os animais mais ferozes, os reptis mais terrveis, ou homens mais selvagens que os animais. Afastando-se do Equador, a natureza se abrandava pouco a pouco; o calor menos abrasador, a terra se cobre de uma ridente verdura e os animais so menos selvagens. Mais longe ainda, aparecem povos, cidades, povoaes, em que se faz um comrcio ativo por terra e por mar, no somente no interior e com as fronteiras, mas entre naes muito distantes.

Estas descobertas inflamavam o ardor de Rafael e de seus companheiros. E o que alimentava essa paixo pelas viagens era o fato de serem itidos sem dificuldade no primeiro navio a partir, qualquer que fosse o seu destino.

As primeiras embarcaes que viram eram chatas, as velas formadas de vimes entrelaados ou de fo1has de papiros, e algumas de couro. Em seguida, encontraram embarcaes terminadas em ponta, as velas feitas de cnamo; e finalmente embarcaes inteiramente semelhantes s nossas, e hbeis nautas conhecendo muito bem o cu e o mar, mas sem nenhuma idia da bssola.

Esses bons homens ficaram pasmados de irao e cheios do mais vivo reconhecimento, quando nossos castelhanos lhes mostraram uma agulha imantada. Antes, era tremendo que se aventuravam ao mar, e, ainda assim, atreviam-se a navegar apenas no vero. Hoje, bssola em mo, arrostam os ventos e o inverno mais confiados do que seguros; pois, se no tomam cuidado, essa bela inveno que parecia dever trazer-lhes tantos benefcios, poder transformar-se, por sua imprudncia, em uma fonte de males.

Seria muito extenso se elatasse, aqui, tudo o que Rafael viu em suas viagens. Alis, no essa a finalidade desta obra. Completarei talvez a sua narrativa num outro livro em que darei detalhes, principalmente, dos hbitos, costumes e sbias instituies dos povos civilizados, que freqentou Rafael.

Sobre essas graves questes ns o importunamos com perguntas interminveis, e ele consentia, prazeirosamente, em satisfazer a nossa curiosidade. Ns nada lhe perguntamos sobre esses monstros famosos que j perderam o mrito da novidade: Cila (1), Celenos, Lestriges, comedores de gente, e outras hrpias da mesma espcie que existem em quase toda parte. O que raro, uma sociedade s e sabiamente organizada.
Para dizer verdade, Rafael notou entre esses novos povos instituies to ruins quanto as nossas, mas, observou tambm um grande nmero de leis capazes de esclarecer, de regenerar as cidades, naes e reinos da velha Europa.

Todas essas coisas, repito-o, sero objeto de uma outra obra. Nesta, relatarei apenas o que Rafael nos contou dos costumes e instituies do povo utopiano. Antes, quero mostrar ao leitor de que maneira a conversa foi levada para este terreno:

Rafael entremeava a sua narrativa com as reflexes mais profundas. Examinando cada forma de governo, analisava, com uma sagacidade maravilhosa, o que h de bom e verdadeiro numa, de mau e de falso noutra. Ao ouvi-lo discorrer to sabiamente sobre as instituies e os costumes dos diferentes povos, era de pensar-se que vivera toda a vida nos lugares por onde apenas ara. Pedro no pode conter a sua irao.
Na verdade, disse, meu caro Rafael, espanto-me que no vos tivsseis posto a servio de algum rei. Certamente no haveria um s que no encontrasse em vs utilidade e satisfao. Enchereis de encanto os seus lazeres com o vosso conhecimento universal das coisas e dos homens, e os incontveis exemplos, que podereis citar, proporcionar-lhe-iam um slido ensinamento e conselhos preciosos. Fareis, ao mesmo tempo, uma brilhante fortuna para vs e os vossos.

- Eu pouco me inquieto com a sorte dos meus, retomou Hitiodeu. Creio ter cumprido sofrivelmente os meus deveres para com eles. Os outros homens s abrem mo de seus bens j velhos e na agonia, e ainda chorando, que renunciam ao que suas mos desfalecentes no mais podem reter. Eu, cheio de sade e juventude, tudo dei aos meus parentes e amigos.

- Eles no se queixaro, espero, do meu egosmo; no exigiro que, para cumul-los de ouro, eu me faa escravo de um rei.
- Entendamo-nos, disse Pedro, a minha inteno no foi a de que servsseis um prncipe como lacaio e sim como ministro.

- Os prncipes, meu amigo, pem nisto pouca diferena; e, entre estas duas palavras latinas servire e inservire, vm apenas uma slaba a mais, ou a menos.

- Chamai a coisa como quiserdes, respondeu Pedro; o melhor meio de ser til ao pblico, aos indivduos, e de tornar mais feliz a prpria situao.
- Mais feliz, dizeis! mas, como aquilo que repugna ao meu sentimento, ao meu carter, poderia fazer minha felicidade? Presentemente sou livre, vivo como quero, e duvido que muitos dos que vestem a prpura possam dizer o mesmo. Muita gente ambiciona os favores do trono; os reis no sentiro falta, se eu e dois ou trs da minha tmpera no nos encontrarmos entre os cortesos.

Ento falei assim:

evidente, Rafael, que no procurais riquezas nem poder, e no tenho menos irao e estima por um homem como vs, do que por aquele que est frente de um imprio. Parece-me, entretanto, que seria digno de um esprito to generoso, to filsofo, como o vosso, aplicar todos os seus talentos na direo dos negcios pblicos, embora houvesse que comprometer o seu bem estar pessoal; ora, a maneira de o fazer com mais proveito, ainda a de entrar para o conselho de algum grande prncipe; estou certo de que a vossa boca no se abrir jamais, seno para a virtude e para a verdade. Vs o sabeis, o prncipe a fonte de onde o bem e o mal jorram, como uma torrente, sobre o povo; e possus tanta cincia e tantos talentos que, embora no tivsseis o hbito dos negcios, dareis, mesmo assim, um excelente ministro para o rei mais ignorante.

- Incidis num duplo erro, caro Morus, replicou Rafael; e no s quanto ao fato em si como quanto pessoa; estou longe de ter a capacidade que me atribuis; e mesmo que a tivesse cem vezes maior, o sacrifcio de meu sossego seria intil causa pblica.

Em primeiro lugar, os prncipes cuidam somente da guerra (arte que me desconhecida e que no tenho nenhum desejo de conhecer). Eles desprezam as artes benfazejas da paz. Trate-se de conquistar novos reinados, e todos os meios lhes parecem bons; o sagrado e o profano, o crime e o sangue, no os detm. Em compensao, ocupam-se muito pouco de bem istrar os Estados submetidos sua dominao.

Quanto aos conselhos dos reis, eis aproximadamente a sua composio:
Uns se calam por inpcia, e teriam mesmo grande necessidade de ser aconselhados. Outros, so capazes, e sabem que o so; mas partilham sempre do parecer do preopinante, que est em melhores graas, e aplaudem, com entusiasmo, as pobres imbecilidades que este entende desembuchar; esses vis parasitas s tm uma finalidade: ganhar, por uma baixa e criminosa lisonja, a proteo do primeiro favorito. Os outros, so escravos de seu amor prprio e escutam apenas a prpria opinio, o que no de irar, pois a natureza insufla cada um a afagar com amor os produtos de sua inveno. assim que o corvo sorri sua ninhada, e o macaco aos seus filhotes.

Que sucede ento no seio desses conselhos onde reinam a inveja, a vaidade e o interesse? Intenta, algum, apoiar uma opinio razovel na histria dos tempos ados, ou nos costumes dos outros pases? Os outros se mostram surpresos e transtornados; e com o amor prprio alarmado como se fossem perder a reputao de sbios e ar por imbecis. Eles quebram a cabea at encontrar um argumento contraditrio, e, se a memria e a lgica lhes minguam, entrincheiram-se neste lugar comum: Nossos pais assim pensaram e assim fizeram; ah! queira Deus que igualemos a sabedoria de nossos pais! Depois se assentam, pavoneando-se, como se acabassem de pronunciar um orculo. Dir-se-ia, ao ouvi-los, que a sociedade vai perecer se surgir um homem mais sbio que os seus anteados. Enquanto isso, permaneamos indiferentes, deixando subsistir as boas instituies que eles nos legaram; e quando surge um melhoramento novo agarramo-nos antigidade para no acompanhar o progresso. Vi, em quase toda a parte, desses julgadores rabugentos, insensatos ou presunosos. Aconteceu-me uma vez na Inglaterra. -.

- Perdo, disse eu, ento, a Rafael, estivestes tambm na Inglaterra?
- Sim, estive l alguns meses, pouco depois da guerra civil dos ingleses ocidentais contra o rei que terminou com uma horrorosa matana dos insurretos - Nessa ocasio, recebi enormes obsquios do reverendssimo padre Joo Morton, cardeal-arcebispo de Canturia e chanceler da Inglaterra.
Era um homem (dirijo-me unicamente a vs, meu caro Pedro, porque Morus no necessita dessas informaes), era um homem ainda mais venervel por seu carter e virtude do que por suas altas dignidades. Sua estatura mediana no se curvava ao peso da idade; sua fisionomia, sem ser dura, impunha respeito; era de trato fcil, mas severo e majestoso. Sentia prazer em experimentar os solicitantes com apstrofes por vezes um tanto rudes, embora nunca ofensivas, mostrando-se encantado se percebia neles presena de esprito e respostas prontas, mas sem impertinncia. Esta prova o ajudava a inferir do mrito de cada qual e a classific-lo,- segundo a especialidade. Sua linguagem era pura e enrgica; sua cincia do direito profunda, seu julgamento seleto, sua memria prodigiosa. Essas brilhantes disposies naturais, ele as tinha ainda desenvolvido pelo exerccio e pelo estudo. O rei fazia grande caso de seus conselhos e o considerava como um dos mais firmes esteios do Estado - Levado muito jovem do colgio para a corte, envolvido toda a vida nos acontecimentos mais graves, tangido, sem descanso, pelo mar tempestuoso do destino, adquirira, em meio de perigos sempre renovados, uma consumada prudncia, um conhecimento to profundo das coisas que, por assim dizer, com ele prprio se identificava.

O acaso me fez encontrar um dia, mesa desse prelado, um leigo reputado como douto legista - Este homem, no sei a que propsito, se ps a cumular de louvores a rigorosa justia exercida contra os ladres. Narrava gostosamente como eles eram enforcados, aqui e ali, s vintenas, na mesma forca.
Apesar disso, acrescentava, vejam que fatalidade! Mal escapam da forca dois ou trs desses bandidos, e, no entanto, na Inglaterra, eles formigam por toda parte !
Com a liberdade de palavra que gozava na casa do cardeal, disse eu, ento:
Nada disso devia surpreender-vos. Neste caso a morte uma pena injusta e intil; bastante cruel para punir o roubo, mas bastante fraca para impedi-lo. O simples roubo no merece a forca, e o mais horrvel suplcio no impedir de roubar o que no dispe de outro meio para no morrer de fome. Nisto, a justia de Inglaterra e de muitos outros pases se assemelha aos mestres que espancam os alunos em lugar de instru-los. Fazeis sofrer aos ladres pavorosos tormentos; no seria melhor garantir a existncia a todos os membros da sociedade, a fim de que ningum se visse na necessidade de roubar, primeiro, e de morrer, depois?
- A sociedade previu o fenmeno, replicou o meu legista; a indstria, a agricultura oferecem ao povo inmeros meios de existncia; existem, porm, seres que preferem o crime ao trabalho.

- Era a mesmo onde eu vos esperava, respondi. No falarei dos que voltam das guerras civis ou estrangeiras com o corpo mutilado. Quantos soldados, entretanto, na batalha de Cornualha, ou na campanha de Frana, perderam um ou vrios membros a servio do rei e da ptria! Esses infelizes tornaram-se fracos demais para exercer o seu antigo ofcio e velhos demais para aprender um novo. Mas deixemos isso, as guerras s se reacendem a longos intervalos. Olhemos o que se a cada dia ao redor de ns. A principal causa da misria pblica reside no nmero excessivo de nobres, zanges ociosos, que se nutrem do suor e do trabalho de outrem e que, para aumentar seus rendimentos, mandam cultivar suas terras, escorchando os rendeiros at carne viva. No conhecem outra economia. Mas, tratando-se, ao contrrio, de comprar um prazer, so prdigos, ento, at loucura e mendicidade. E no menos funesto o fato de arrastarem consigo uma turba de lacaios e mandries sem estado e incapazes de ganhar a vida.
Caiam doentes esses lacaios, ou venha o seu patro a morrer, e so jogados no olho da rua; porque prefervel nutri-los para no fazer nada, do que aliment-los enfermos; muitas vezes o herdeiro do defunto no est em condies de manter a domesticidade paterna.
Eis a pessoas expostas a morrer de fome se no tm o nimo de roubar. Tero eles,, na realidade, outras possibilidades? Procurando emprego gastam a sade e as roupas; e quando se tornam descorados pelas molstias e cobertos de farrapos, os nobres lhes tm horror, desprezando os seus servios. Os camponeses mesmo no os querem empregar. Os camponeses sabem que um homem criado molemente na ociosidade e nos prazeres, habituado a trazer a cimitarra e o broquel, a olhar superiormente os vizinhos e a desprezar todo mundo; os, camponeses sabem que um tal homem no apto a manejar a p e a enxada, a trabalhar, fielmente, por um salrio insignificante e uma parca alimentao, a servio de um pobre lavrador.

Sobre esse ponto meu antagonista respondeu:
- precisamente essa espcie de gente que o Estado deve manter e multiplicar com mais cuidado. H neles mais nimo e nobreza da alma que no arteso e no trabalhador. So maiores e mais robustos e constituem, portanto, a fora do exrcito na hora de combater.
- Seria o mesmo que dizer, repliquei ento, que se deve, para a glria e o xito dos vossos exrcitos, multiplicar os ladres. Porque esses mandries so uma sementeira inesgotvel para o exrcito. Com efeito, os ladres no so os piores soldados, como os soldados no so os ladres mais tmidos; h muita analogia entre esses dois ofcios. Infelizmente, esta praga social no particular Inglaterra; corri quase todas as naes.
A Frana est infestada por uma peste ainda mais desastrosa. O seu solo est inteiramente coberto e como que sitiado por inmeras tropas arregimentadas e pagas pelo Estado. E isto em tempo de paz; se que se pode chamar de paz as trguas de um momento. Este deplorvel sistema justificado pelo mesmo motivo que vos leva a sustentar mirades de lacaios ociosos. Pareceu a esses polticos, timoratos e aflitos, que a segurana. do Estado exigia um exrcito numeroso, forte, permanentemente em armas, e composto de veteranos. No confiam nos conscritos. Dir-se-ia mesmo que fazem guerras para ensinar o exerccio ao soldado a fim de que, como escreveu Salstio, nesse grande matadouro humano, o corao ou a mo no se lhes entorpeam no repouso.

A Frana aprende sua custa o perigo de alimentar essa espcie de animais carnvoros. No entanto, bastar-lhe-ia olhar os romanos, os cartagineses e muitos outros povos antigos. Que benefcios tiraram, entretanto, de seus exrcitos imensos e sempre em p de guerra? A devastao de suas terras, a destruio de suas cidades, a runa de seu imprio. Se, ao menos, tivesse adiantado, aos ses, exercitar, por assim dizer, seus soldados desde o bero! Mas os veteranos da Frana j combateram contra os conscritos da Inglaterra, e no estou certo se se podem gabar muitas vezes de ter levado a melhor. Eu me calo sobre esse captulo; pareceria estar fazendo a corte aos que me ouvem.
Voltemos aos nossos soldados lacaios.

Tm eles, dizeis, mais coragem e grandeza da alma do que os artesos e os trabalhadores. Eu, de mim, no creio que um lacaio faa muito medo nem a uns nem a outros, a no ser queles em que a fraqueza do corpo paralisa o vigor da alma e cuja energia foi aniquilada pela misria. Os lacaios, dizeis ainda, so maiores e mais robustos. Mas no uma lstima ver homens fortes e belos (porque os nobres escolhem as vtimas de sua corrupo) consumirem-se na inao, amolecerem-se em ocupaes de mulheres, quando fcil seria torn-los laboriosos e teis, dando-lhes um ofcio honrado e habituando-os a viver do trabalho de suas mos.
De qualquer maneira que se encare a questo, esta massa imensa de gente ociosa parece-me intil ao pas, mesmo na hiptese de uma guerra, que podereis, alis, evitar todas as vezes que o quissseis. Ela , alm do mais, o flagelo da paz; e a paz merece que se trate dela, tanto quanto da guerra.

A nobreza e a lacaiada no so as nicas causas dos assaltos e roubos que vos deixam desolado; h uma outra exclusivamente peculiar vossa ilha.- E qual ela?, disse o cardeal.

- Os inumerveis rebanhos de carneiros que cobrem hoje toda a Inglaterra. Estes animais, to dceis e to sbrios em qualquer outra parte, so entre vs de tal sorte vorazes e ferozes que devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as casas e as aldeias.

De fato, a todos os pontos do reino, onde se recolhe a l mais fina e mais preciosa, acorrem, em disputa do terreno, os nobres, os ricos e at santos abades. Essa pobre gente no se satisfaz com as rendas, benefcios e rendimentos de suas terras; no est satisfeita de viver no meio da ociosidade e dos prazeres, s expensas do pblico e sem proveito para o Estado. Eles subtraem vastos tratos de terra agricultura e os convertem em pastagens; abatem as casas, as aldeias, deixando apenas o templo para servir de estbulo para os carneiros. Transformam em desertos os lugares mais povoados e mais cultivados. Temem, sem dvida, que no haja bastantes parques e bosques e que o solo venha a faltar para os animais selvagens.

Assim um avarento faminto enfeixa, num cercado, milhares de geiras; enquanto que honestos cultivadores so expulsos de suas casas, uns pela fraude, outros pela violncia, os mais felizes por uma srie de vexaes e de questinculas que os foram a vender suas propriedades. E estas famlias mais numerosas do que ricas (porque a agricultura tem necessidade de muitos braos), emigram campos em fora, maridos e mulheres, vivas e rfos, pais e mes com seus filhinhos. Os infelizes abandonam, chorando, o teto que os viu nascer, o solo que os alimentou, e no encontram abrigo onde refugiar-se. Ento vendem a baixo preo o que puderam carregar de seus trastes, mercadoria cujo valor j bem insignificante. Esgotados esse fracos recursos, o que lhes resta? O roubo, e, depois, o enforcamento segundo as regras.
Preferem arrastar sua misria mendigando? No tardam ser atirados na priso como vagabundos e gente sem eira nem beira. No entanto, qual o seu crime? o de no achar ningum que queira aceitar os seus servios, ainda que eles os ofeream com .o mais vivo empenho. E alis, como empregar esses homens? Eles s sabem trabalhar a terra; no h ento nada a fazer com eles, onde no h mais nem semeaduras nem colheitas. Um s pastor ou vaqueiro suficiente, agora, a fazer com que brote, de si mesma, a terra onde, outrora, para seu cultivo, centenas de braos eram necessrios.
Outro efeito desse fatal sistema uma grande carestia de vida em diversos lugares.
Mas no tudo. Aps a multiplicao dos pastos, uma horrorosa epizootia veio matar uma imensa quantidade de carneiros. Parece que Deus queria punir a avareza insacivel dos vossos aambarcadores com esta medonha mortandade que talvez fosse mais justo lanar sobre suas prprias cabeas. Ento, o preo das ls subiu to alto que os operrios mais pobres no as podem atualmente comprar. E eis a de novo uma multido de gente sem trabalho. verdade que o nmero de carneiros cresce rapidamente todos os dias; mas nem por isso o preo baixou; porque se o comrcio das ls no um monoplio legal, est, na realidade, concentrado nas mos de alguns ricos aambarcadores que nada pode constrang-los a vender a no ser com altos lucros.
As outras espcies de gado encareceram proporcionalmente pela mesma causa e por uma causa mais forte ainda, porque a reproduo destes animais est completamente abandonada, desde a abolio das granjas e a runa da agricultura. Vossos grandes senhores no cuidam da criao do gado, como da criao de seus carneiros. Vo comprar, distante, animais magros, quase por nada, engordam-nos nos seus campos e os revendem a preos extraordinrios.
Temo bastante que a Inglaterra no tenha sofrido todos os efeitos desses deplorveis abusos. At agora os engordadores de gado s provocaram a carestia nos lugares onde vendem; mas fora de transportar o gado do lugar onde compram, sem lhe dar tempo de reproduzir, o seu nmero acabar por diminuir, insensivelmente, e o pas acabar por cair numa horrvel penria. Assim, o que devia fazer a riqueza de vossa ilha far a misria, devido avareza de um punhado de miserveis.
A escassez geral obriga todo o mundo a restringir sua despesa e sua criadagem. E os que so despedidos, para onde vo? Mendigar ou roubar, se tm coragem.
A estas causas de misria ajuntam-se ainda o luxo e as despesas insensatas. Lacaios, operrios, camponeses, todas as classes da sociedade, ostentam um luxo inaudito nas vestes e na alimentao. Que direi dos lugares de prostituio, dos vergonhosos antros de embriaguez e devassido, das infames casas de tavolagem de todos os jogos, do baralho, do dado, do jogo da pla e da conca, que devoram o dinheiro de seus freqentadores, e os impelem diretamente ao roubo para reparar as perdas?
Arrancai de vossa ilha essas pestes pblicas, esses germes do crime e da misria. Obrigai os vossos nobres demolidores a reconstruir as quintas e burgos que destruram, ou a ceder os terrenos para os que quiserem reconstruir sobre as runas. Colocai um freio ao avarento egosmo dos ricos; tirai-lhes o direito do aambarcamento e monoplio. Que no haja mais ociosos entre vs. Dai agricultura um grande desenvolvimento; criai a manufatura da l e a de outros ramos de indstria, para que venha a ser ocupada utilmente esta massa de homens que a misria transformou em ladres, vagabundos ou lacaios, o que aproximadamente a mesma coisa.
Se no remediardes os males que vos assinalo, no vos vanglorieis de vossa justia; ela uma mentira feroz e estpida.
Abandonais milhes de crianas aos estragos de uma educao viciosa e imoral. A corrupo emurchece, vossa vista, essas jovens plantas que poderiam florescer para a virtude, e, vs as matais, quando, tornadas homens, cometem os crimes que germinavam desde o bero em suas almas. E, no entanto, que que fabricais? Ladres, para ter o prazer de enforc-los.
Enquanto eu assim falava, o meu adversrio preparava a rplica. Ele se dispunha a seguir a pomposa dialtica desses polemistas categricos, que repetem mais do que respondem e que fazem ponto de honra de uma discusso os exerccios de memria.
Falastes muito bem, disse-me ele, sobretudo vs que sois estrangeiro e que no podeis conhecer estas matrias seno de outiva. Eu vos darei melhores esclarecimentos. Eis a ordem do meu discurso: antes de tudo, recapitularei tudo o que vos disse; em. seguida realarei os erros a que vos induziu a ignorncia dos fatos; finalmente, refutarei os vossos argumentos e pulveriz-los-ei. Comeo, pois, como o prometi. Tendes, se no me engano, enumerado quatro...
- Eu vos detenho a, interrompeu bruscamente o cardeal, o exrdio me faz temer que o discurso seja um pouco longo. Ns vos pouparemos hoje desta fadiga. Mas no vos dou. por desembaraado dessa arenga; guardai-a integralmente para a prxima entrevista que tiverdes com vosso adversrio. Desejo que estejam ambos aqui, amanh, a menos que vs, ou Rafael, estejais na impossibilidade de vir. Enquanto isso, meu caro Rafael, far-me-eis o obsquio de explicar por que o roubo no merece a morte, e por que outra pena a substituireis de forma a garantir melhor a segurana pblica. Como no pensais que se deva tolerar o roubo, e se a forca no hoje uma barreira para o banditismo, que terror exercereis, sobre os celerados quando eles tiverem a certeza de no perder a vida? Que sano bastante forte dareis lei? Uma pena mais branda no seria um prmio de incitamento ao crime?
Minha convico ntima, eminncia, que injusto matar-se um homem por ter tirado dinheiro de outrem, desde que a sociedade humana no pode ser organizada de modo a garantir para cada um uma igual poro de bens.
Podem objetar-me, sem dvida, que a sociedade, tirando-lhe a vida, vinga a justia e as leis, e no pune somente uma miservel subtrao de dinheiro. Responderei com este axioma: Summum jus, summa injuria, O supremo direito uma injustia suprema. A vontade do legislador no to infalvel e absoluta que seja necessrio desembainhar a espada menor infrao aos seus decretos. A lei no to rgida e estica que coloque, no mesmo nvel, todos os delitos e crimes, e no estabelea nenhuma diferena entre matar um homem e roub-lo. Se a eqidade no uma palavra c, h entre essas duas aes um abismo.
E como! Deus proibiu o assassnio e ns, ns matamos to facilmente por causa do furto de algumas moedas!
Algum dir, talvez: Deus, com esse mandamento, tirou o poder de matar ao homem privado, mas no ao magistrado que condena aplicando as leis da sociedade.
Mas se assim, quem impede os homens de fazer outras leis igualmente contrrias aos preceitos divinos, e de legalizar o estupro, o adultrio e o perjrio.? Como!... Deus nos proibiu tirar a vida no somente ao nosso prximo mas tambm a ns mesmos; e ns poderamos legitimamente convencionar em degolarmo-nos em virtude de algumas sentenas jurdicas! E esta conveno atroz colocaria juizes e carrascos por cima da lei divina, dando-lhes o direito de mandar morte os que o cdigo penal condena a morrer!
Resultaria disso esta conseqncia monstruosa: a justia divina tem necessidade de ser legalizada e autorizada pela justia humana; e que, em todos os casos possveis, cabe ao homem determinar quando deve obedecer ou no aos mandamentos de Deus.
A prpria lei de Moiss, lei de terror e vingana, feita para escravos e homens embrutecidos, no punia de morte o simples roubo. Evitemos pensar que, sob a lei crist, lei de perdo e caridade, em que Deus ordena como pai, ns temos o direito de ser mais desumanos, e de derramar, sob qualquer pretexto, o sangue de nosso irmo.
Tais so os motivos que me persuadem que injusto aplicar ao ladro o mesmo castigo que ao assassino. Poucas palavras vos faro compreender como esta penalidade absurda em si mesma e como perigosa segurana pblica.
O celerado v que no h menos a temer furtando do que assassinando; ento, ele mata aquele a quem apenas despojara; e mata-o para a sua prpria segurana. Assim agindo, ele se descarta do seu principal denunciador, e tem maior probabilidade de esconder o crime. Eis o belo efeito desta justia implacvel: aterrorizando o ladro com a expectativa da forca, fez dele um assassino!
Chego, agora, soluo deste problema to controvertido: Qual o melhor sistema penitencirio?
Na minha opinio, era mais fcil encontrar o melhor do que o pior. Primeiramente, todos vs conheceis a penalidade adotada pelos romanos, povo to adiantado na cincia de governar. Eles condenavam os grandes criminosos escravatura perptua, aos trabalhos forados nas pedreiras ou nas minas. Esse modo de represso parece-me conciliar a justia com a utilidade pblica. Entretanto, para vos dizer o meu modo de pensar sobre esse ponto, no conheo nada de comparvel ao que v nos polileritas, nao dependente da Prsia.
aquele um pas bastante povoado, e `s suas instituies no falta sabedoria. Alm do tributo anual que pagam ao rei da Prsia, gozam de liberdade e se governam por suas prprias leis. Longe do mar, cercados de montanhas, se satisfazem com os produtos do seu solo feliz e frtil; vo raramente a outros lugares e raramente outros vm ao seu pas. Fiis aos princpios e costumes dos seus anteados, no procuram nunca estender as suas fronteiras, e nada tm a temer de fora. Suas montanhas, e o tributo que pagam, anualmente, ao monarca, pem-nos ao abrigo de uma invaso. Vivem comodamente na paz e na abundncia, sem exrcito e sem nobreza, ocupados com sua felicidade e despreocupados de qualquer v celebridade; pois, seu nome, desconhecido no resto da terra, talvez o seja mesmo aos seus vizinhos.
Quando ali um indivduo apanhado em furto, obrigam-no, primeiro, a restituir o objeto roubado ao proprietrio e no ao prncipe, como de uso em outras partes. Os polileritas julgam que o furto no destri o direito de propriedade. Se o objeto foi danificado ou perdido, o valor dele descontado dos bens do autor do furto, deixando-se o que sobrar do desconto sua mulher e filhos. Ele condenado aos trabalhos pblicos; e se o furto no acompanhado de circunstncias agravantes, o seu autor no jogado no calabouo nem posto a ferros; trabalha, o corpo livre, e sem entraves.
Para forar os preguiosos e os rebeldes, empregam-se os castigos corporais de preferncia s correntes. Os que cumprem bem o seu dever no sofrem nenhum mau trato. De tarde se faz a chamada nominal dos condenados, encerrando-os nas celas onde am a noite. Alis, a nica pena que podem vir a sofrer a continuidade do trabalho; porque lhes so fornecidas todas as coisas necessrias vida; uma vez que trabalham para a sociedade, a sociedade que os mantm.
Os costumes, nesse ponto, variam segundo as localidades. Em certas provncias, o produto das esmolas e das coletas reservado aos condenados; este recurso, precrio por si mesmo, , na rea1idade, o mais fecundo devido humanidade dos habitantes. Em outros pases destina-se, para este fim, uma parte das rendas pblicas, ou ento um tributo particular e pessoal.
H mesmo regies em que os condenados no so empregados nos trabalhos pblicos. Todo indivduo que tem necessidade de operrios, ou de carregadores, vem alug-los por dia, pagando-lhes salrio pouco menor que o de um homem livre. A lei d ao patro o direito de bater nos preguiosos. Dessa forma, os condenados no faltam nunca ao trabalho; ganham roupas e alimentao cada dia contribuem com alguma coisa para o Tesouro.
Eles so reconhecveis facilmente pela cor de seu uniforme, igual para todos e s a eles reservado. A cabea no raspada, exceto um pouco acima das orelhas, uma das quais mutilada. Os amigos podem lhes dar de beber, comer, e uma roupa. Mas um presente em dinheiro acarreta a morte tanto do que d como do que recebe. Um homem livre no pode, sob nenhum pretexto, receber dinheiro de um escravo ( assim que so chamados os condenados). O escravo no pode tocar em armas. Estes dois ltimos crimes so punidos de morte.
Cada provncia marca seus escravos com um sinal particular e caracterstico. Faz-lo desaparecer para eles um crime capital, assim como transpor a fronteira e falar com os escravos de uma outra provncia. O simples projeto de fugir no menos perigoso que a prpria fuga. Por ter-se envolvido em semelhante trama o escravo perde a vida e o homem livre, a liberdade. Ainda mais, a lei confere recompensas ao delator; dinheiro, se este livre; liberdade, se escravo; impunidade, se cmplice, a fim de que o malfeitor no se sinta mais seguro perseverando num mau desgnio, do que arrependendo-se.
Eis a as, penalidades correspondentes ao roubo entre os polileritas. No difcil divisar nelas uma grande humanidade aliada a um grande senso utilitrio. Se a lei castiga, para matar o crime, conservando o homem. Trata o condenado com tanta benignidade e justia, que o fora a se tornar honesto e a reparar, durante o resto de sua vida, todo o mal que fez sociedade.
Tambm extremamente raro que os condenados voltem aos seus antigos hbitos. Os cidados no tm nenhum medo deles, e mesmo comum, entre os que empreendem qualquer viagem, escolher seus guias entre os escravos que so trocados de uma provncia a outra. Na verdade, o que Se pode temer? A lei tira ao escravo a possibilidade, e at o pensamento, do roubo; suas mos esto desarmadas; o dinheiro para ele um crime capital; se aprisionado, a morte bem prxima e a fuga impossvel. Como quereis que um homem vestido diferentemente dos outros possa dissimular a sua fuga? E se fugisse completamente nu? Mas mesmo assim a sua orelha meio cortada o trairia.
impossvel igualmente que os escravos possam urdir uma conspirao contra o Estado. A fim de assegurar revolta alguma probabilidade de xito, os cabeas teriam necessidade de incitar e arrastar para o seu lado os escravos de diversas provncias. Ora, isto impraticvel. Uma conspirao no fcil a pessoas que, sob pena de morte, no se podem reunir, se falar, dar ou retribuir uma saudao. Ousariam mesmo confiar seu projeto aos camaradas que conhecem o perigo do silncio e a enorme vantagem da denncia? Por outro lado, todos alimentam a esperana de recobrar, um dia, a liberdade, mostrando-se submissos e resignados, dando, por seu bom comportamento, garantias para o futuro; alis, no h um ano sequer em que grande nmero deles, transformados em boas pessoas, no seja reabitado e emancipado.
Por que, acrescentei ento no se estabeleceria na Inglaterra uma penalidade semelhante? Isso valeria infinitamente mais do que esta justia que desperta to exaltado entusiasmo ao meu sbio antagonista.
- Um semelhante estado de coisas, respondeu este, no poderia jamais se estabelecer na Inglaterra, sem acarretar a dissoluo e a runa do imprio.
Depois sacudiu a cabea, mordeu os lbios, e calou.
Todos os ouvintes aplaudiram com arrebatamento esta magnfica sentena, at que o cardeal fez a seguinte reflexo:
No somos profetas para saber, antes de experimentar, se a legislao polilerita convm ou no ao nosso pas. Todavia, parece-me que depois do pronunciamento da sentena de morte, o prncipe poderia decretar o sursis, a fim de experimentar este novo sistema de represso, abolindo, ao mesmo tempo, os privilgios dos lugares de asilo. Se a experincia desse bons resultados, adotaramos o sistema; se no, que os condenados continuem a ser levados ao suplcio. Essa maneira de proceder apenas suspende o curso da justia e no oferece nenhum perigo no intervalo. Irei mesmo alm, creio que seria muito til tomar medidas igualmente moderadas e sbias para reprimir e acabar com a vagabundagem. Temos acumulado leis sobre leis contra este flagelo e o mal hoje pior do que nunca.
Apenas terminara o cardeal, os louvores mais exagerados acolheram as opinies expendidas por Sua Eminncia, as quais no tinham encontrado seno desprezo e desdm quando sozinho as sustentara. O incenso das louvaminhas envolvia particularmente as idias do prelado referentes vagabundagem.
No sei se seria prefervel suprimir o resto da conversao; coisas bem ridculas l foram ditas. Entretanto, vou relat-las; no eram de todo ruins e se relacionam com o assunto.
Havia na mesa um desses parasitas, cuja honra provm do ofcio de fazer o louco. A esse respeito a semelhana era to perfeita, que poderia ser facilmente tomada a srio. Seus gracejos eram to estpidos e inspidos que o riso era provocado mais a mido pela prpria pessoa do que por suas graas. Mas, de vez em quando escapavam-lhe algumas palavras bastante razoveis.
Um dos convivas observou que eu procurava remediar a sorte dos ladres e o cardeal a dos vagabundos; mas que existiam ainda duas classes de infelizes s quais a sociedade devia assegurar a existncia, porque so incapazes de trabalhar para viver: os doentes e os velhos.
Deixai-me falar, disse o bufo, possuo a este respeito um plano soberbo. Para falar francamente, grande o meu desejo de poupar-me ao espetculo desses miserveis e enclausur-los longe de todos os olhos. eles me fatigam com as suas lamrias, suspiros e lamentveis splicas, embora deva convir que esta lgubre msica ainda no conseguiu arrancar-me um cntimo; alis, sempre acontece comigo uma destas duas coisas: ou quando posso dar no o quero, ou quando quero no o posso. Tambm agora j se mostram bastante avisados: quando me vm ar se calam para no perder tempo. Sabem que de mim h tanto a esperar quanto de um padre.
Eis ento o decreto que sugiro:
Todos os mendigos velhos e doentes sero distribudos e classificados como se segue: os homens entraro para os conventos dos beneditinos na qualidade de irmos leigos; as mulheres tornar-se-o religiosas. Tal o meu bom desejo.
O cardeal sorriu desse repente, aprovou-o como um rasgo de esprito, enquanto os demais ouvintes o tomaram como uma sentena sria e grave. Causou particular bom humor a um irmo telogo que ali se achava. Este reverendo, desfranzindo um pouco a carrancuda fisionomia, riu-se maliciosamente, custa dos padres e frades, e depois, dirigindo-se ao bufo, falou:
No tereis suprimido a mendicidade, se no provirdes subsistncia de ns mesmos, frades mendicantes.
- Sua eminncia, o cardeal, proveu perfeitamente, quando disse que se devia encerrar os vagabundos e faze-los trabalhar. Ora, os freis mendicantes so os maiores vagabundos do mundo.
A vivacidade da resposta, todos os olhos se fixaram sobre o cardeal, que, no entanto, no pareceu se formalizar; o epigrama foi ento ruidosamente aplaudido. Quanto ao frei reverendo, ficou petrificado. O dardo satrico que acabava de lhe ser lanado ao rosto, acendeu subitamente a sua clera; e, vermelho como fogo, desatou numa torrente de injrias, tratando o engraado de velhaco, caluniador, tagarela, ameaando-o de danao, tudo temperado com as ameaas mais aterradoras da Santa Escritura.
Ento o nosso bufo gracejou com seriedade, e, levando a melhor, replicou:
No nos zanguemos, carssimo irmo. Est escrito:
Com pacincia dominareis as vossas almas.
O telogo recomeou, no mesmo instante, e foram estas as suas expresses:
No me agasto, pcaro; ou pelo menos no peco; porque o salmista diz: -- Encolerizai-vos mas no pequeis.
O cardeal, numa oestao cheia de doura, convida, ento, o frade a moderar os seus transportes.
No, monsenhor, exclamou, no, no posso Calar-me, no o devo. um zelo divino que me exalta, e os homens de Deus tiveram destas santas cleras. Est escrito: O ZELO DE TUA CASA ME CONSOME. No se ouve cantar nas igrejas: AQUELES QUE ZOMBAVAM DE ELISEU ENQUANTO ELE SUBIA PARA A CASA DE DEUS SOFRERAM A CLERA DO CALVO? A mesma punio castigar talvez esse gracejador, esse bufo, esse devasso.
- Sem dvida, disse o cardeal, a vossa inteno boa. Mas. me parece que procedereis mais sabiamente, seno mais santamente, evitando comprometer-vos com um louco numa querela ridcula.
- Monsenhor, meu comportamento no poderia ser mais sbio. Salomo, o mais sbio dos homens, disse: RESPONDEI AO LOUCO CONFORME A SUA LOUCURA. Pois bem, isso o que fao. Mostro-lhe o abismo onde vai se precipitar, se no se cuida. Aqueles que riam de Eliseu eram em grande nmero, e foram todos punidos por terem zombado de um nico calvo. Qual ser, pois, o castigo do nico homem que ridiculariza um to grande nmero de frades, entre os quais h tantos calvos? Mas o que deve, sobretudo, faz-lo tremer que temos uma. bula do papa que excomunga aqueles que escarnecem de ns.
O cardeal, vendo que o caso no acabava, despediu, com um aceno, o bufo parasita, e mudou prudentemente o curso da conversao. Logo depois levantou-se da mesa para dar audincia a seus vassalos, e despediu todos os convivas.
Caro Morus, fatiguei-vos com a narrativa de uma histria bastante longa. Estaria verdadeiramente envergonhado de t-la prolongado tanto se no fosse por ter cedido s vossas instncias, e se a ateno que prestastes aos detalhes no me tivesse obrigado a no omitir nenhum. Poderia ter abreviado, mas quis esclarecer-vos sobre o esprito e o carter dos convivas. Enquanto, sozinho, desenvolvi minhas idias, foi com o desprezo geral que foram acolhidas as minhas palavras; mas assim que o cardeal me trouxe o seu beneplcito o elogio substituiu o desprezo. Suas cortesanices iam ao ponto de achar judiciosas e sublimes as bufonerias de um bobo, que o cardeal tolerava como uma brincadeira frvola.
Julgai ainda que as pessoas da corte levariam em grande considerao minha pessoa e meus conselhos?.
Respondi a Rafael: Vossa narrativa fez-me experimentar uma grande alegria. Ela reunia o interesse e a atrao a uma profunda sabedoria. Escutando-vos, eu me acreditava na Inglaterra; porque fui educado desde criana no palcio desse bom cardeal, e sua lembrana me reconduz aos primeiros anos da vida. J vos tinha dado a minha amizade, mas todo o bem que dissestes memria do piedoso arcebispo, torna-vos ainda mais caro ao meu corao. De resto, persisto na mesma opinio a vosso respeito, estando persuadido de que vossos conselhos seriam de uma alta utilidade pblica, se quissseis vencer o horror que vos inspiram os reis e as cortes. E no um dever para vs, como para todo bom cidado, sacrificar ao interesse geral as suas ojerizas particulares? Plato disse: A humanidade. ser feliz um dia, quando os filsofos forem reis, ou quando os reis forem filsofos. Ai! Como est longe de ns esta felicidade quando os filsofos nem ao menos se dignam assistir os reis com seus conselhos!
Caluniais os sbios, replicou-me Rafael; eles no so bastante egostas para esconder a verdade; muitos a tm revelado em seus escritos; e se os senhores do mundo estivessem preparados para receber a luz, poderiam ver e compreender. Infelizmente cega-os uma venda fatal, a venda dos preconceitos e dos falsos princpios, em que se formaram e dos quais foram inficionados j na infncia. Plato no ignorava isso; sabia, como ns, que os reis nunca seguiam os conselhos dos filsofos, se eles prprios j no o eram tambm. Plato teve disso a triste experincia na corte de Diniz, o Tirano. (2).
Suponhamos pois que eu seja ministro de um rei. Proponho-lhe os decretos mais salutares; esforo-me por arrancar de seu corao e de seu imprio todos os germes do mal. Acreditais que no me expulsar da corte ou que no me expor ao riso dos cortesos?
Suponhamos, por exemplo, que eu seja ministro do rei de Frana. Eis-me sentado mesa do Conselho, ao o que, no fundo do palcio, o monarca preside, em pessoa, as deliberaes dos mais judiciosos polticos do reino. Essas nobres e poderosas cabeas esto procurando laboriosamente por quais maquinaes e intrigas, o rei, seu senhor, conservar o ducado de Milans, recobrar o reino de Npoles, sempre a fugir, e como, em seguida, destruir a. repblica de Veneza e submeter a Itlia toda; finalmente, como reunir sua coroa a Flandres, o Brabante, a Borgonha inteira, e outras naes que sua ambio j invadiu e conquistou h muito tempo.
Este prope concluir com os venezianos um tratado que durar enquanto no houver interesse em romp-lo. Para melhor dissipar suas desconfianas, acrescenta o mesmo, comunicar-lhes-emos as primeiras palavras do enigma; podemos mesmo deixar com eles uma parte do saque; fcil nos ser retom-la depois da execuo completa do plano.
Aquele aconselha aliciar alemes; um terceiro, que se atraiam os suos com dinheiro. Um outro pensa que se deve tornar propcio o deus imperial, sacrificando-lhe ouro em expiao; aquele julga oportuno entrar em entendimentos com o rei de Arago, abandonando-lhe, como garantia de paz, o reino da Navarra, que no lhe pertence. Outro ainda quer engodar o prncipe de Castela com a esperana de uma aliana, e manter, em sua corte, algumas inteligncias, pagando gordas penses a alguns grandes personagens.
Depois, vem a questo difcil e insolvel, a questo da Inglaterra, verdadeiro n grdio poltico. A fim de se prevenir contra qualquer eventualidade, tomam-se as seguintes resolues:
Negociar com essa potncia as condies de paz, e apertar mais estreitamente os laos de uma unio sempre vacilante; dar-lhe, publicamente, o nome de melhor amiga da Frana, e, no fundo, dela desconfiar como de seu inimigo mais poderoso.
Manter os escoceses permanentemente de guarda, como sentinelas avanadas, atentas a tudo, e, ao primeiro sintoma de movimento na Inglaterra, lan-los imediatamente como um exrcito de vanguarda.
Manter secretamente (por causa dos tratados que se opem a uma proteo aberta) algum grande personagem exilado, animando-o a fazer valer os seus direitos coroa da Inglaterra, e, assim, pr em cheque o prncipe reinante de quem se receia os desgnios...
Ento, se, no meio dessa assemblia real onde se agitam to vastos interesses, na presena desses profundos homens de Estado, a concluir, unnimes, pela guerra, se eu, homem do nada, me levantasse para transtornar suas combinaes e clculos, e dissesse:
Deixemos a Itlia em sossego e fiquemos na Frana; a Frana j grande demais para ser bem istrada por um s homem e o rei no deve cuidar em aument-la. Escutai, senhores, o que aconteceu aos acorianos numa situao semelhante, e a deciso que ento tomaram:
Esta nao, situada em frente ilha da Utopia, nas margens do Euronston, fez, outrora, a guerra, porque seu rei pretendia a sucesso de um reinado vizinho, em virtude de antiga aliana. O reino vizinho foi subjugado, mas cedo se reconheceu que a conservao da conquista era mais difcil e onerosa do que a prpria conquista.
A todo momento havia revoltas internas a reprimir, ou tropas a enviar para o pas conquistado; a cada instante era-se forado a combater pr ou contra os novos sditos. Em conseqncia, o exrcito tinha que ser mantido de p, e os cidados eram esmagados pelos impostos; o dinheiro fugia para fora; e, para lisonjear a vaidade de um s homem, o sangue corria em borbotes. Os curtos instantes de paz no eram menos desastrosos do que a guerra. A dissoluo das tropas lanara a corrupo nos costumes; o soldado voltava ao lar com o amor da pilhagem e a audcia do assassinato, resultado adquirido no trato da violncia nos campos de batalha.
Essas desordens, esse desprezo geral pelas leis, provinham de que o prncipe, ao dividir sua ateno e cuidados entre dois reinos, no podia bem istrar nem um nem outro. Os acorianos quiseram pr um termo a tantos males; reuniram-se em conselho nacional, e, polidamente, deram ao monarca a escolher entre os dois Estados, declarando-lhe que no podia mais carregar duas coroas, e que era absurdo que um grande povo. fosse governado por uma metade de rei, quando ningum desejava um almocreve que estivesse ao mesmo tempo a servio de outro patro.
Esse bom prncipe resolveu-se: cedeu o novo reino a um dos seus amigos, que foi expulso dali logo depois, e contentou-se com seu antigo domnio.
Volto minha hiptese. Se fosse mais longe ainda; se, dirigindo-me ao prprio monarca, o fizesse ver que essa paixo de guerrear, que transtorna as naes, depois de ter esgotado as finanas e arruinado o povo, poderia ocasionar Frana as conseqncias mais fatais; se lhe dissesse:
Senhor, aproveitai a paz que um feliz acaso vos concede, cultivai o reino de vossos pais, fazei nele florescer a felicidade, a riqueza e a fora; amai vossos sditos, e que o amor deles faa a vossa alegria; vivei como pai no meio deles e no comandai nunca como dspota; deixai em paz os outros reinos; aquele que vos coube por herana suficientemente grande para vs.
Dizei-me, caro Morus, com que espcie de bom ou mau humor seria acolhida semelhante arenga?
- Com pssimo mau humor, respondi.
- E no tudo, continuou Rafael; amos em revista a poltica exterior dos ministros de Frana; a glria era ento o de que necessitava o seu senhor ; agora o dinheiro. Vejamos um instante os seus novos princpios de governo e justia.
Este, prope elevar o valor da moeda quando se trate de reembolsar um emprstimo, e de faz-lo descer muito abaixo do par quando se trate de tornar a encher o tesouro. Com esse duplo expediente, o prncipe poder cobrir suas enormes dvidas, e, sem trabalho, fazer uma grande colheita em recursos.
Aquele, aconselha simular uma guerra prxima. Este pretexto legitimar um novo imposto. Depois da arrecadao do tributo extraordinrio, o prncipe far subitamente a paz; ordenar a celebrao desse feliz acontecimento por meio de aes de graa nos templos e de todas as pompas das cerimnias religiosas. A. nao ficar deslumbrada, e o reconhecimento pblico elevar at aos cus as virtudes de um rei to humanamente avaro do sangue de seus sditos.
Um outro vem, e exuma velhas leis carcomidas pelas traas e cadas em desuso pelo tempo. Como todo mundo ignora sua existncia, todo mundo as transgride. Restaurando, assim, as multas pecunirias contidas nessas leis, criar-se-ia uma fonte de renda lucrativa e at honrada, pois que se agiria em nome da justia.
Um terceiro pensa que no seria de menos proveito lanar, sob pena de pesadas multas, uma, multido de novas proibies, a maioria delas em benefcio do povo. O rei, mediante soma considervel, dispensaria aqueles cujos interesses privados fossem comprometidos por estas proibies. Dessa maneira o rei ver-se-ia cumulado das bnos do povo e faria dupla receita, recebendo, ao mesmo tempo, dinheiro dos contraventores e dos privilegiados. O melhor do negcio que quanto mais exorbitante fosse o preo das dispensas tanto mais Sua Majestade ganharia em estima e considerao.
Vejam, diriam, como este bom prncipe violenta seu corao ao vender to caro o direito de prejudicar o povo.
Outro ainda, enfim, aconselha ao monarca ter disposio juizes sempre dispostos a sustentar, em todas as ocasies, os direitos. da coroa. Vossa Majestade, acrescenta ele, deveria cham-los corte, e persuadi-los a discutir, perante a vossa augusta pessoa, os prprios negcios reais. Por pior que seja uma causa, haver sempre um juiz para julg-la boa, seja pela mania da contradio, seja por amor da novidade e do paradoxo, seja para agradar o soberano. Ento, uma discusso se trava; a multiplicidade e o conflito de opinies embrulham uma coisa de si mesma muito clara, e a verdade posta em dvida. Vossa Majestade aproveita o momento para resolver a dificuldade, interpretando o direito em proveito prprio. Os dissidentes se submetem opinio real por timidez ou por temor, e o julgamento dado, segundo as formalidades, com franqueza e sem escrpulo. Faltaro jamais ao juiz, que d uma sentena a favor do prncipe, os necessrios consideranda? No h o texto da lei, a liberdade de interpretao, e, acima das leis, para um juiz religioso e fiel, a prerrogativa real?
Ouvi os axiomas de moral poltica proclamados unanimemente pelos membros do nobre conselho:
O rei que sustenta um exrcito nunca tem dinheiro bastante.
O rei no poderia fazer o mal mesmo que o quisesse.
O rei o proprietrio universal e absoluto dos bens e pessoas de todos os seus sditos; nada possuem seno como usufruturios pelas boas graas do rei.
A pobreza do povo o baluarte da monarquia.
A riqueza e a liberdade conduzem insubordinao e ao desprezo da autoridade; o homem livre e rico a com impacincia um governo injusto e desptico.
A indigncia e a misria degradam os caracteres, embrutecem as almas, habituam-nas ao sofrimento e escravido, comprimindo-as a ponto de lhes tirar a energia necessria para sacudir o jugo.
Se outra vez me erguesse, e falasse assim a esses poderosos senhores:
Vossos conselhos so infames, vergonhosos para o rei, funestos para o povo. A honra de vosso senhor e a sua felicidade consistem na riqueza de seus sditos mais ainda do que na sua prpria. Os homens fizeram os reis para os homens e no para os reis; colocaram chefes sua frente para que pudessem viver comodamente ao abrigo das violncias e dos ultrajes; o dever mais sagrado do prncipe velar pela felicidade do povo antes de velar pela sua prpria; como um pastor fiel, deve dedicar-se a seu rebanho, e conduzi-lo s pastagens mais frteis.
Sustentar que a misria pblica a melhor salvaguarda da monarquia, sustentar um erro grosseiro e evidente; onde se vm mais querelas e rixas do que entre os mendigos?
Qual o homem que mais deseja uma revoluo? No ser aquele cuja existncia atual miservel? Qual o homem que revelar maior audcia em subverter o Estado? No ser aquele que com isso s pode ganhar por nada ter a perder?
Um rei que provocasse o dio e o desprezo dos cidados e cujo governo no pudesse se manter seno pelas vexaes, pela pilhagem, pelo confisco e pela misria universal, deveria descer do trono e depor o poder supremo. Empregando estes meios tirnicos, talvez pudesse conservar o nome de rei, mas de rei no teria mais nem o nimo nem a majestade. A dignidade real no consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes.
Fabricius, (3) esta grande alma, estava todo penetrado desse sublime sentimento quando respondeu: Prefiro governar ricos do que eu mesmo ser rico. E, de fato, nadar em delcias, saciar-se de voluptuosidades em meio s dores e gemidos de um povo, no manter um reino e sim uma cadeia.
O mdico que s sabe curar as molstias de seus clientes dando-lhes molstias mais graves, a por ignaro e imbecil; confessai, pois, - vs que no sabeis governar seno arrebatando aos cidados a subsistncia e as comodidades da vida! - confessai que sois indignos e incapazes de dirigir homens livres! Ou ento corrigi vossa ignorncia, vosso orgulho e vossa preguia: isso o que excita o dio e o desprezo pelo soberano. Vivei de vosso patrimnio, segundo a justia; medi vossas despesas na proporo de vossas rendas; detei as torrentes do vcio; criai instituies de benemerncia, que previnam o mal e o estiolem no germe, ao em vez de inventar suplcios contra os infelizes que uma legislao absurda e brbara impele ao crime e morte
No ressusciteis leis carunchosas cadas no olvido e no esquecimento, lanando sobre os vossos sditos toda a sorte de obstculos. No eleveis o preo de um delito a uma taxa que o juiz condenaria, como injusta e vergonhosa, entre simples particulares. Tende sempre diante dos olhos este belo hbito dos macarianos.
Nesta nao, vizinha da Utopia, no dia em que o rei toma posse do imprio, oferece sacrifcios divindade, comprometendo-se, por um juramento sagrado, a no ter nunca em seus cofres mais do que mil libras de ouro ou a soma em dinheiro de valor equivalente. Este uso foi introduzido por um prncipe que tinha mais desejo de trabalhar pela prosperidade do Estado, do que de acumular mi1bes. Quis desse modo pr um freio avareza dos seus sucessores e impedi-los de enriquecer pelo empobrecimento de seus sditos. Mil libras de ouro lhe pareceram uma quantia suficiente para um caso de guerra civil ou estrangeira, mas demasiado fraca para apoderar-se da fortuna da nao. Foi principalmente este ltimo motivo que o induziu a decretar esta lei; mas visava ele ainda duas outras finalidades: em primeiro lugar, ter em reserva, para os tempos de crise, a quantidade de dinheiro necessria circulao e s transaes quotidianas dos cidados; em segundo lugar, limitar as cifras dos impostos e da lista civil no intuito de impedir que o prncipe empregasse o excesso da dotao legal em semear a corrupo e cometer injustias. Um rei como este o terror dos maus e a venerao das pessoas de bem.
Mas, dizei-me, caro Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse e por sistema se orientam por princpios diametralmente opostos, no contar histrias a surdos?
- E a surdos como portas, respond. Mas isto no me espanta., e, para vos revelar o meu modo de pensar, perfeitamente intil dar conselhos quando se tem a certeza de que sero repelidos, quer na forma, quer no fundo. Ora, os ministros e os polticos de hoje, esto impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenas e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeas e em seu corao, a verdade e a justia? Esta filosofia escolstica est no seu lugar em uma conversao familiar, entre amigos; est fora de propsito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas so tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo.
- Era isto o que vos dizia ainda agora, retrucou Rafael, a filosofia no tem o na corte dos prncipes.
- Dizeis a verdade se vos referis a esta filosofia de escola, que ataca de frente, e cegamente, os tempos, os lugares, e as pessoas. Mas, existe uma filosofia menos selvagem; esta conhece o teatro em que atua, e, na pea que deve representar, desempenha seu papel com decncia e harmonia. esta a que deveis empregar.
Suponhamos que, durante a representao de uma comdia de Plauto, no momento em que os escravos esto de bom humor, irrompeis em cena, em trajes de filsofo, declamando a agem de Otvio, em que Sneca repreende e prega moral a Nero; duvido muito que fsseis aplaudido. Certamente, tereis agido com mais acerto se vos tivsseis limitado ao papel de um personagem mudo do que oferecer ao pblico este drama tragicmico. Um monstruoso amlgama destes estragaria todo o espetculo, mesmo que a vossa citao valesse cem vezes mais do que a pea. Um bom ator pe todo seu talento no papel que vai representar, qualquer que ele seja; e no perturba o conjunto, porque lhe ocorre fantasia declamar uma tirada magnfica e pomposa.
Da mesma maneira convm agir quando se delibera acerca dos negcios do Estado, no seio do conselho real; Se no se pode desarraigar de uma s vez as mximas perversas, nem abolir os costumes imorais, no isto razo para se abandonar a causa pblica. O piloto no abandona o navio diante da tempestade porque no pode domar o vento.
Falais a homens imbudos de princpios contrrios aos vossos; que caso podero fazer de vossas palavras, se lhes atirais face a contradita e o desmentido? Segui o caminho oblquo - ele vos conduzir mais seguramente meta. Aprendei a dizer a verdade com propriedade e a propsito; e, se vossos esforos no puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para diminuir a intensidade do mal; porque tudo s ser bom e perfeito, quando os prprios homens forem bons e perfeitos; e at l, os sculos aro.
Rafael respondeu:
Quereis saber o que me sucederia se assim procedesse? Ao querer curar a loucura dos outros, acabaria demente tambm. Mentiria, se falasse doutra maneira da que vos falei. A mentira talvez permitida a certos filsofos, mas no est em minha natureza.. Sei que minha linguagem parecer dura e severa aos conselheiros do rei; apesar disso, no vejo por que sua novidade seja de tal modo estranha que toque ao absurdo. Se me referisse s teorias da repblica de Plato, ou aos usos atualmente em vigor entre os utopianos, coisas melhores e infinitamente superiores s nossas idias e costumes, ento, poder-se-ia crer que eu vinha de outro mundo, porque aqui o direito de possuir de seu pertence a cada um, enquanto que l todos os bens so comuns. Mas, o que disse eu que no fosse conveniente e mesmo necessrio de se divulgar. Minha moral mostra o perigo e dele salva o, homem. ponderado; no fere seno o insensato que se atira de olhos fechados ao abismo.
H covardia ou m f em calar as verdades que condenam a perversidade humana, sob o pretexto de que sero escarnecidas como novidades absurdas ou quimeras impraticveis. De outra forma, seria necessrio deitar um vu sobre o Evangelho e dissimular aos cristos a doutrina de Jesus. Mas Jesus proibia a seus apstolos o silncio e o mistrio; repetia-lhes sempre: O que vos digo em voz baixa e ao ouvido, pregai pr toda parte, em voz alta e s claras. Ora, a moral de Cristo est muito mais em contradio aos costumes deste mundo, do que os nossos discursos.
Os Pregadores, homens sagazes, seguiram o caminho oblquo de que me falastes h pouco; vendo que repugnava aos homens acomodar seus maus costumes doutrina crist, torceram o Evangelho, como se fosse uma lei de chumbo, para model-lo segundo os maus costumes dos homens. Onde os conduziu esta hbil manobra? A dar ao vcio a calma e a segurana da virtude.
Quanto a mim, no obteria melhor resultado nos conselhos dos prncipes, porque, ou minha opinio contrria opinio geral, e, nesse caso, no seria tomada em considerao, ou coincide com a opinio geral, e ento, deliro tambm com os loucos, segundo a expresso de Micion, a personagem de Terncio. Assim, no vejo aonde pode levar o vosso caminho retorcido. Dizeis: Quando no se pode atingir a perfeio, deve-se, ao menos, atenuar o mal. Mas aqui, a dissimulao impossvel e a conivncia um crime, pois se trata de aprovar as propostas mais execrveis, de votar decretos mais perigosos que a peste, e, neste caso, aprovar perfidamente deliberaes infames como essas, seria comportar-se tal qual um espio e um traidor.
No h, pois, nenhuma maneira de ser til ao Estado nessas altas regies. O ar que a se respira corrompe a prpria virtude. Os homens que vos cercam, longe de corrigir-se com os vossos ensinamentos, vos depravam com seu contato e pela inf1uncia de sua perverso; e se conservais vossa alma pura e incorruptvel, servireis de manto s suas imoralidades e loucuras. No h, pois, esperana de transformar o mal em bem, trilhando o vosso caminho oblquo, aplicando os vossos meios indiretos.
Agora, caro Morus, vou revelar-vos o fundo de minha alma, e dizer-vos, os meus pensamentos mais ntimos. Em toda a parte onde a propriedade for um direito individual, onde todas as coisas se medirem pelo dinheiro, no se poder jamais organizar nem a justia nem a prosperidade. social, a menos que denomineis justa a sociedade em que o que h de melhor a partilha dos piores, e que considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a fortuna pblica a presa de um punhado de indivduos insaciveis de prazeres, enquanto a massa devorada pela misria.
Tambm, quando comparo as instituies utopianas com as dos outros pases, no me canso de irar a sabedoria e a humanidade de uma parte, e deplorar, da outra, o desvario e a barbaria.
Na Utopia, as leis so pouco numerosas; a istrao distribui indistintamente seus benefcios por todas as classes de cidados. O mrito ali recompensado; e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional to igualmente repartida que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida.
Alhures, o princpio do teu e do meu consagrado por uma organizao cujo mecanismo to complicado quo vicioso. H milhares de leis, e que ainda no bastam, para que um indivduo possa adquirir uma propriedade, defend-la e distingu-la da propriedade de outrem. A prova o nmero infinito de processos que surgem todos os dias e no terminam nunca. Quando me entrego a esses pensamentos, fao inteira justia a Plato e no me iro mais que ele tenha desdenhado legislar para os povos que no aceitam a comunidade dos bens. Esse grande gnio previra facilmente que o nico meio de organizar a felicidade pblica, fora a aplicao do princpio da igualdade. Ora, a igualdade , creio, impossvel num Estado em que a posse particular e absoluta; porque cada um se apoia em diversos ttulos e direitos para atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de um reduzido nmero de indivduos que deixam aos outros apenas indigncia e misria.
Muitas vezes at a sorte do rico deveria caber ao pobre. No h ricos avaros, imorais, inteis, e pobres simples, modestos, cujo engenho e trabalho trazem proveito ao Estado mas no, o trazem a si mesmos?
Eis o que invencivelmente me persuade que o nico meio de distribuir os bens com igualdade e justia, e de fazer a felicidade do gnero humano, a abolio da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifcio social, a esse mais numerosa e mais estimvel no ter por quinho seno misria, tormentos e desesperos.
Sei que existem remdios que podem aliviar o mal; mas estes remdios so impotentes para cur-lo. Por exemplo:
Decretar um mximo de posse individual em terras e dinheiro
Premunir-se por meio de severas leis contra, o despotismo e a anarquia.
Denunciar e castigar a ambio e a intriga. No traficar as magistraturas.
Suprimir o fausto e a representao nos altos cargos, a fim de que o funcionrio, para sustentar sua posio, no se entregue fraude e rapina; ou, a fim de que no seja obrigado a dar aos mais ricos os cargos que deveriam caber aos mais capazes.
Estes meios, repito-o, so excelentes paliativos que podem adormecer a dor e aliviar as chagas do corpo social; mas no espereis com isto devolver-lhe a fora e a sade, enquanto cada um possuir solitariamente e absolutamente seus bens; podeis cauterizar uma lcera, mas inflamareis todas as outras; curareis um doente, e matareis um homem so; porque o que acrescentais ao haver de um indivduo tirais ao de seu vizinho.
Disse eu, ento, a Rafael:
Longe de compartilhar vossas convices, penso, ao contrrio, que o pas em que se estabelecesse a comunidade de bens seria o mais miservel de todos os pases. Com efeito, como produzir para as necessidades do consumo? Todo mundo fugiria do trabalho e descansaria dos cuidados com sua existncia sobre o trabalho dos outros. E, mesmo que a misria perseguisse os preguiosos, desde que a lei no mantm inviolavelmente, para e contra todos, a propriedade de cada um a rebelio rugiria, sem cessar, esfomeada e ameaadora, e a matana ensangentaria vossa repblica.
Que barreira oporeis anarquia? Vossos magistrados tm apenas uma autoridade nominal; esto despidos, despojados de tudo que impe o temor e o respeito. No chego nem mesmo a conceber a possibilidade de governo nesse povo de niveladores que repele toda espcie de superioridade.
No me espanto que penseis assim, replicou Rafael. Vossa imaginao no poderia fazer a. menor idia de uma tal repblica, ou dela tem apenas uma idia falsa. Se tivsseis estado na Utopia, se tivsseis assistido ao espetculo de suas instituies e de seus costumes, como eu, que l ei cinco anos de minha vida, e que no me decidi a sair seno para revelar esse novo mundo ao antigo, confessareis que em nenhuma outra parte existe sociedade perfeitamente organizada.
Pedro Gil disse ento, dirigindo-se a Rafael:
- No me persuadireis jamais que haja nesse novo mundo povos melhor constitudos do que neste. A natureza no produz entre ns espritos de tmpera inferior. Temos, alm disso, o exemplo de uma civilizao mais antiga, e uma srie de descobertas, que o tempo fez brotar, para as necessidades ou para o luxo da vida. No me refiro s invenes nascidas do acaso, e que o gnio mais sutil no teria podido imaginar.
- A questo da antigidade, respondeu Rafael, vs a discutireis com mais solidez se tivsseis lido as histrias desse novo mundo. Ora, segundo essas histrias, l houve cidades, antes que aqui houvesse homens. Pelo que se refere s descobertas devidas ao gnio ou ao acaso, elas podem igualmente surgir em todos os continentes. ito que tenhamos sobre esses povos a superioridade da inteligncia; em compensao, eles nos deixam bem atrs em matria de atividade e engenho. Ides ter a prova:
Seus anais testemunham que no tinham jamais ouvido falar de nosso mundo, antes de nossa chegada; somente, h aproximadamente mil e duzentos anos, um navio impelido pela tempestade afundou em frente ilha da Utopia. As ondas jogaram praia alguns egpcios e romanos, que, desde ento, s com vida, queriam deixar o pas. Os utopianos tiraram desse acontecimento um partido enorme; na escola dos nufragos aprenderam tudo que estes conheciam das cincias e artes espalhadas no imprio romano. Mais tarde, esses primeiros germes se desenvolveram, e o pouco que os utopianos tinham aprendido, levou-os a descobrir o resto. Assim, um nico ponto de contato com o mundo antigo bastou para transmitir-lhes a indstria e o gnio.
possvel que depois desse naufrgio, a mesma sorte tenha levado alguns dos nossos Utopia; mas a lembrana disso est completamente apagada. Talvez a posteridade tambm esquea a minha estadia nesta ilha afortunada, estadia esta que foi infinitamente preciosa para os seus habitantes, pois, por este meio, puderam apropriar-se das mais belas invenes da Europa.
Mas para ns, quantos sculos nos sero precisos para aprender deles o que h de perfeito em suas instituies? Eis o que lhes d a superioridade do bem-estar material e social, embora os igualemos em inteligncia e riqueza: essa atividade do esprito dirigida incessantemente para a pesquisa, o aperfeioamento e a aplicao, das coisas teis.
- Pois ento, disse eu a Rafael, fazei-nos a descrio desta ilha maravilhosa. No suprimais nenhum detalhe, suplico-vos. Descrevei-nos os campos, os rios, as cidades, os homens, os costumes, as instituies, as leis, tudo o que pensais que desejamos saber, e, acreditai-me, esse desejo abarca tudo que ignoramos.

- Com muito gosto, respondeu Rafael; essas coisas esto sempre presentes minha memria; mas a narrativa exige tempo.
- Nesse caso, disse-lhe, vamos ento jantar, primeiro; teremos depois todo o tempo necessrio.

- Perfeitamente, acrescentou Rafael. Entramos ento em casa para jantar, e depois voltamos ao jardim, onde sentamo-nos no mesmo banco. Recomendei particularmente aos criados afastar os importunos, pois havia associado minhas instncias s de Pedro, para que Rafael cumprisse sua promessa. Sentindo a nossa curiosidade, vida e atenta, recolheu-se, um instante, no silncio e meditao, e comeou com estas palavras.


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A ilha da Utopia tem duzentos mil os em sua maior largura, situada na parte mdia. Esta largura diminui gradual e sistematicamente do centro para as duas extremidades, de maneira que a ilha inteira se arredonda em um semicrculo de quinhentas milhas de arco, apresentando a forma de um crescente, cujos cornos esto afastados onze mil os aproximadamente.
O mar enche esta imensa bacia; as terras adjacentes que se estendem em anfiteatro quebram o furor dos ventos, mantendo as guas calmas e pacificas, e dando a esta grande massa lqida a aparncia de um lago tranqilo. Esta parte cncava da ilha como um nico e vasto porto vel aos navios em todos os pontos.
A entrada do golfo perigosa por causa dos bancos de areia de um lado, e dos escolhos, do outro. No meio se levanta um rochedo visvel de muito longe, e que por isto no oferece nenhum perigo, Os utopianos construram uma fortaleza, defendida por uma boa guarnio. Outros rochedos ocultos pela gua oferecem armadilhas inevitveis aos navegantes. Unicamente os nativos conhecem as agens navegveis e por esse justo motivo ningum pode entrar no estreito sem ser guiado por um piloto utopiano. Esta precauo seria ainda insuficiente, se os faris dispostos pela costa no indicassem o rumo a seguir. A simples transposio desses faris seria suficiente para destruir a frota mais numerosa, dando-lhe uma falsa direo.
Na parte oposta da ilha, encontram-se diversos portos, e a arte e a natureza fortificaram de tal forma as costas, que um punhado de homens poderia impedir o desembarque de um grande exrcito.
Se se der crdito s tradies, alis plenamente justificadas pela configurao do pas, esta terra no foi sempre uma ilha. Chamava-se antigamente Abraxa e se ligava ao continente; Utopus apoderou-se dela, e deu-lhe seu nome
Este conquistador teve bastante gnio para humanizar uma populao grosseira e selvagem e para formar um povo que ultraa hoje todos os outros em civilizao. Desde que a vitria o fez dono deste pas, mandou cortar um istmo de quinze mil os que o ligava ao continente; e a terra de Abraxa tornou-se, assim, a ilha da Utopia. Utopus empregou, no acabamento dessa obra gigantesca, os soldados do seu exrcito, assim como os indgenas, a fim de que estes no olhassem. o trabalho imposto pelo vencedor como uma humilhao e um ultraje. Milhares de braos foram ento postos em movimento e o xito, em breve, coroava o empreendimento. Os povos vizinhos que, antes, haviam taxado esta obra de vaidade e loucura, tomaram-se de espanto e de terror.
A ilha da Utopia tem cinqenta e quatro cidades espaosas e magnficas. A linguagem, os hbitos, as instituies, as leis so perfeitamente idnticas. As cinqenta e quatro cidades so edificadas sobre o mesmo plano e possuem os mesmos estabelecimentos e edifcios pblicos, modificados segundo as exigncias locais. A menor distncia entre essas cidades de vinte e quatro milhas, a maior de uma jornada a p.
Todos os anos, trs velhos experientes e capazes so nomeados deputados por cada cidade e se congregam em Amaurota, a fim de tratar dos negcios do pas. Amaurota a capital da ilha; sua posio central transformou-a em ponto de reunio mais conveniente para todos os deputados.
Um mnimo de vinte mil os de terra destinado em cada cidade produo dos artigos de consumo e lavoura. Em geral, a extenso do territrio proporcional ao afastamento das cidades. Estas felizes cidades no procuram aumentar os limites fixados pela lei. Os habitantes se olham mais como rendeiros do que como proprietrios do solo.
H pelos campos casas comodamente construdas, providas de toda a espcie de instrumentos de agricultura, e que servem de morada aos exrcitos de trabalhadores que a cidade envia periodicamente. ao campo.
A famlia agrcola se compe pelo menos de quarenta indivduos, homens e mulheres, e de dois escravos. Est sob a direo de um pai e de uma me de famlia, pessoas graves e prudentes.
Trinta famlias so dirigidas por um filarca (4).
Todos os anos vinte cultivadores de cada famlia regressam cidade; so os que terminaram seus dois anos de servio agrcola. So substitudos, ento, por vinte indivduos que ainda no serviram. Os recm-chegados recebem instruo dos que j trabalharam um ano no campo, e, no ano seguinte, se tornam instrutores por sua vez. Assim os cultivadores no so, nunca, todos de uma vez, ignorantes e novatos, e a subsistncia pblica no tem nada a temer da impercia dos cidados encarregados de mant-la.
Esta renovao anual tem ainda outra finalidade que a de no consumir por muito tempo a vida dos cidados nos trabalhos materiais e penosos. Entretanto, alguns tomam naturalmente gosto pela agricultura e obtm autorizao de ar vrios anos no campo.
Os agricultores cultivam a terra, criam animais, juntam madeira e transportam os aprovisionamentos para a cidade vizinha, por gua ou por terra. Eles usam de um processo extremamente engenhoso para conseguir grande quantidade de pintos: no deixam s galinhas a tarefa de chocar os ovos, mas fazem-nos romper a casca por meio de um calor artificial convenientemente temperado. E, quando o pinto quebra a casca, o homem que lhe serve de me, que o guia e sabe reconhec-lo. Criam poucos cavalos, e somente rdegos, destinados a corridas, e no tm outra aplicao que a de exercitar a juventude na equitao.
Os bois so empregados exclusivamente na lavoura e no transporte. O boi, dizem os utopianos, no tem a vivacidade do cavalo, mas o sobrepuja em pacincia e fora; menos sujeito a molstias, custa menos para ser nutrido, e quando no serve mais para o trabalho serve ainda para a mesa.
Os utopianos convertem em po os cereais; bebem o suco da uva, da ma, da pra; bebem tambm gua pura ou fervida com mel e alcauz, que possuem em abundncia.
A quantidade de vveres necessria ao consumo de cada cidade e de seus territrios determinada da maneira mais precisa. No obstante, os habitantes no deixam de semear o gro e criar gado, muito alm das necessidades do consumo. O excedente posto em reserva, para os pases vizinhos.
Quanto aos mveis, utenslios domsticos, e outros objetos que no podem ser encontrados no campo, os agricultores vo procur-los na cidade. Eles se dirigem aos magistrados urbanos que lhes mandam entregar sem remunerao nem atraso. Todos os meses se renem para celebrar uma festa.
Quando chega o tempo da colheita os filarcas das famlias agrcolas comunicam aos magistrados das cidades quantos braos auxiliares necessitam; e enxames de ceifadores chegam no momento convencionado e, se o cu est plcido, a colheita feita quase num s dia.

DAS CIDADES DA UTOPIA E PARTICULARMENTE DA CIDADE DE AMAUROTA 406n5m

- Quem conhece uma cidade, conhece todas, porque todas so exatamente semelhantes, tanto quanto a natureza do lugar o permita. Poderia portanto descrever-vos indiferentemente a primeira que me ocorresse; mas escolherei de preferncia a cidade de Amaurota, porque a sede do governo e do senado, fato que lhe d preeminncia sobre as demais. Alm disso, a cidade que melhor conheo, pois habitei-a cinco anos inteiros.
Amaurota se estende em doce declive sobre a vertente de uma colina. Sua forma de quase um quadrado. Comea a estender-se um pouco acima do cume da colina, prolonga-se cerca de dois mil os sobre as margens do rio Anidra, alargando-se medida que vai margeando o rio.
A nascente do Anidra pouco abundante; est situada a oitenta milhas acima de Amaurota. A fraca corrente se engrossa na sua marcha com o encontro de numerosos rios, entre os quais se distinguem dois de grandeza mdia. Ao chegar diante de Amaurota, o Anidra mede quinhentos os de largo. A partir da, segue se avolumando sempre at desembocar no mar, aps ter percorrido uma extenso de sessenta milhas.
Dentro de todo o espao compreendido entre a cidade e o mar, e algumas milhas acima da cidade, o fluxo e o refluxo da mar, que duram seis horas por dia, modificam singularmente o curso do rio. mar crescente, o oceano invade o leito do Anidra numa extenso de trinta milhas, rechaando-o para a nascente. Ento a vaga salina comunica seu amargor ao rio; mas este, pouco a pouco, se purifica, e leva cidade uma gua doce e potvel, e a reconduz inalterada at perto de sua embocadura, quando a mar baixa. As duas margens do Anidra esto ligadas por uma ponte de pedra, construda em arcadas maravilhosamente curvas. Esta ponte se encontra na extremidade da cidade mais afastada do mar, a fim de que os navios possam ancorar em todos os pontos da baa.
Um outro rio, pequeno verdade, mas belo e tranqilo, corre tambm no permetro de Amaurota. Este ribeiro brota a pouca distncia da cidade, na montanha sobre que est assentada; e, depois de a ter cortado ao meio, vem unir suas guas s do Anidra. Os amaurotanos cercaram a nascente de fortificaes que a ligam aos arrabaldes. Desta forma, no caso de cerco, o inimigo no poder envenenar o rio, nem barrar ou desviar-lhe o curso. Do ponto mais elevado, ramificam-se em todos os sentidos canos de barro que conduzem a gua aos quarteires baixos da cidade. Onde este meio impraticvel, vastas cisternas recolhem as guas pluviais para os diversos usos dos habitantes.
Uma cadeia de altas e largas muralhas circunda a cidade e, a pequenas distncias, erguem-se torres e fortalezas. As muralhas, dos trs lados, esto cercadas de fossos sempre secos, mas largos e profundos, atravancados de sebes e espinheiros. O quarto lado tem por fossa o prprio rio.
As ruas e as praas so convenientemente dispostas, seja para o transporte, seja para abrigar-se do vento. Os edifcios so construdos confortavelmente; brilham de elegncia e de conforto e formam duas fileiras contguas, acompanhando de longo as ruas, cuja largura de vinte ps.
Atrs, e entre as casas, abrem-se vastos jardins. Em cada casa h uma porta que d para a rua e outra para o jardim. Estas duas portas se abrem facilmente com um ligeiro toque, e deixam entrar o primeiro que chega.
Os habitantes da Utopia aplicam aqui o princpio da posse comum. Para abolir a idia da propriedade individual e absoluta, trocam de casa todos os dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na partilha.
Os habitantes das cidades tratam de seus jardins com desvelo; cultivam a vinha, os frutos, as flores. e toda a sorte de plantas. Pem nessa cultura tanta cincia e gosto que jamais vi em outra parte maior fertilidade e abundncia combinadas num conjunto mais gracioso. No o prazer o nico motivo que os incita arte da jardinagem; h emulao entre os diferentes quarteires da cidade, que lutam porfia por quem ter o jardim mais bom cultivado. Na verdade, nada se pode conceber mais agradvel, nem mais til aos cidados que esta ocupao. O fundador do imprio bem o compreendeu, quando tantos esforos envidou para encaminhar os espritos nessa direo.
Os utopianos atribuem a Utopus o plano. geral de suas cidades. Este grande legislador no teve tempo de concluir as construes e embelezamentos que tinha projetado; isso demandava o trabalho de muitas geraes. Assim, legou posteridade o cuidado de continuar e aperfeioar sua obra.
L-se nos anais da Utopia, conservados religiosamente desde a conquista da ilha e que abarcam a histria de mil setecentos e sessenta anos; l-se que, no comeo. as casas eram muito baixas, no havia seno choupanas, cabanas de madeira, com paredes de barro e tetos de palha, terminados em ponta. As casas, hoje, so elegantes edifcios de trs andares, com paredes externas de pedra ou de tijolo e paredes internas de calia. Os tetos so chatos, recobertos de uma matria moda e incombustvel, que no custa nada e protege melhor que o chumbo dos danos do tempo. As janelas envidraadas (faz-se na ilha grande uso do vidro) abrigam do vento. Algumas vezes substitui-se o vidro por um tecido de uma finura extrema revestido de mbar ou leo transparente, o que oferece ainda a vantagem de deixar ar a luz e evitar o vento.

DOS MAGISTRADOS 1t535o

Trinta famlias fazem, todos os anos, a eleio de um magistrado, chamado sifogrante na antiga linguagem do pas e filarca na moderna.
Dez sifograntes e suas trezentas famlias obedecem a um protofilarca, antigamente denominado tranbora.
Finalmente os sifograntes, em nmero de mil e duzentos, aps o juramento de dar os seus votos ao cidado mais virtuoso e mais capaz, escolhem por escrutnio secreto e proclamam prncipe um dos quatro cidados propostos pelo povo; porque a cidade sendo dividida em quatro sees, cada quarteiro apresenta seu candidato ao senado.
O principado vitalcio, a menos que recaia sobre o prncipe a suspeita de aspirar tirania. Os tranboras so nomeados todos os anos, mas s por graves motivos so eles mudados. Os outros magistrados so renovados anualmente.
Todos os trs dias, e ainda mais freqentemente se o caso exige, os tranboras se renem em conselho com o prncipe para deliberar sobre os negcios do pais e terminar rapidamente os processos que surgem entre os particulares, processos alis excessivamente raros. Dois sifograntes assistem a cada uma das sesses do senado, e esses dois magistrados populares so alternados em cada sesso.
A lei quer que as moes de interesse geral sejam discutidas no senado trs dias antes de ir a votao e de ser convertido em decreto o projeto.
Reunir-se fora do senado e das assemblias do povo para deliberar sobre os negcios pblicos um crime punido com a morte.
Estas instituies tm por finalidade impedir o prncipe e os tranboras de conspirarem juntos contra a liberdade, de oprimir o povo com leis tirnicas e de mudar a forma do governo. A constituio de tal modo vigilante a este propsito que as questes de alta importncia so relatadas nos comcios dos sifograntes, que as comunicam s suas famlias. O caso ento examinado em assemblia popular; depois, os sifograntes, aps terem deliberado, transmitem ao senado seu parecer e a vontade do povo. Algumas vezes mesmo a opinio de toda a ilha consultada.
Entre os regulamentos do senado, o seguinte merece assinalado. Quando uma proposta feita, proibido discuti-la no mesmo dia; a discusso transferida sesso seguinte.
Desta maneira ningum fica exposto a desembuchar levianamente as primeiras coisas que lhe em pela cabea, e a defender, em seguida, a sua opinio antes do que o bem geral; pois no freqente acontecer que se recue diante da vergonha de uma retratao e do reconhecimento de um erro irrefletido? Ento, sacrifica-se o bem pblico para salvar a reputao. Este perigo funesto da precipitao foi previsto, e aos senadores dado o tempo suficiente para refletir.

DAS ARTES E OFCIOS 5uf5r

H uma arte comum a todos os utopianos, homens e mulheres, e da qual ningum tem o direito de isentar-se, a agricultura. As crianas aprendem a teoria nas escolas e a prtica nos campos vizinhos da cidade aonde so levadas em eios recreativos. A assistem a trabalhar e trabalham tambm, e este exerccio traz ainda a vantagem de desenvolver as suas foras fsicas.
Alm da agricultura, que, repito-o, um dever imposto a todos, ensina-se a cada um um ofcio especial. Uns tecem a l ou o linho; outros so pedreiros ou oleiros; outros trabalham a madeira ou os metais. So esses os principais ofcios.
As roupas tm a mesma forma para todos os habitantes da ilha; esta forma invarivel, e apenas distingue o homem da mulher, o solteiro do casado. Estas vestes renem a elegncia comodidade; facilitam todos os movimentos do corpo, defendem-no contra os calores do vero e do frio do inverno. Cada famlia confecciona seus prprios vestidos.
Todos, homens e mulheres, sem exceo, so obrigados a aprender um dos ofcios mencionados acima. As mulheres, sendo mais fracas, trabalham apenas a l e o linho, os homens so encarregados das coisas mais penosas.
Em geral, cada um adestrado na profisso de seus pais, porque habitualmente a natureza que inspira o gosto desta profisso. Entretanto, se algum sente mais aptido e atrado por outra, a a fazer parte, por adoo, de uma das famlias que a exercem. Seu pai, de acordo com o magistrado, trata de coloc-lo a servio de um pai de famlia honesto e respeitvel.
Se algum, tendo j uma profisso, quer aprender outra, pode aprend-la nas condies precedentes. Deixa-se-lhe a liberdade de exercer a que melhor lhe convier, a menos que a cidade no lhe designe uma por motivo de utilidade pblica.
A funo principal e quase nica dos sifograntes a de velar por que ningum se entregue ociosidade e preguia e todos exeram com nimo a sua profisso. No se deve crer que os utopianos se atrelem ao. trabalho como bestas de carga desde a madrugada at noite. Esta vida embrutecedora para o esprito e para o corpo, seria pior que a tortura e a escravido. E no entretanto, tal , em outra qualquer parte, a triste sorte do operrio!
Os utopianos dividem o intervalo de um dia e de uma noite em vinte e quatro horas iguais. Seis horas so empregadas nos trabalhos materiais; eis a sua distribuio.
Trs horas de trabalho antes do meio dia, depois almoam. Depois de meio dia, duas horas de repouso, trs de trabalho, em seguida jantam.
Contam uma hora onde contamos meio dia, deitam-se s nove e reservam nove horas para o sono.
O tempo compreendido entre o trabalho, as refeies e o sono, cada qual livre de empregar sua vontade. Longe de abusar dessas horas de lazer, abandonando-se ociosidade e preguia, descansam variando suas ocupaes e trabalhos. Esto aptos a assim fazer, graas a uma instituio verdadeiramente irvel.
Todas as manhs, antes do sol se levantar, os cursos pblicos so abertos. Somente os indivduos especialmente destinados s letras, so obrigados a seguir esses cursos; mas todo mundo tem direito a assisti-los, as mulheres como os homens, quaisquer que sejam as suas profisses. O povo acorre em massa; e cada um se apega ao ramo de ensino que tem mais relao com sua indstria e seus gostos.
Alguns, durante as horas de liberdade, entregam-se de preferncia ao exerccio de sua profisso. So os homens cujo esprito no tem o gosto das especulaes abstratas. Longe de serem contrariados nessa preferncia, so, ao contrrio, aplaudidos, pois se tornam, assim, constantemente teis a seus concidados.
A noite, depois da ceia, os utopianos se entregam, durante uma hora, aos divertimentos; no vero, pelos jardins, e no inverno, nas salas comuns onde fazem suas refeies. Fazem msica ou se distraem conversando. Desconhecem os dados, o baralho e todos os outros jogos de azar, to estpidos como perigosos. Praticam entretanto duas espcies de jogos, que tm. muita semelhana com o nosso xadrez; um a batalha aritmtica, na qual o nmero pilha o nmero; o outro o combate das vcios e das virtudes. Este ltimo mostra, com destaque, a anarquia dos vcios entre si, o dio que os divide e, contudo, seu perfeito acordo quando se trata de atacar as virtudes. Faz ver ainda quais so os vcios opostos a cada uma das virtudes, como aqueles atacam a estas pela violncia e a descoberto, ou pela astcia e meios sinuosos; como a virtude repele os assaltos do vcio, derruba-o e aniquila seus esforos; e como, finalmente, a vitria se decide por um ou outro lado.
Aqui espero uma sria objeo e apresso-me em rebat-la.
Dir-se- talvez: Seis horas de trabalho por dia no so suficientes para as necessidades do consumo pblico, e a Utopia deve ser um pas muito miservel.
Mas no este realmente o caso. Ao contrrio, as seis horas de trabalho produzem abundantemente para todas as necessidades e comodidades da vida, e ainda um suprfluo bem superior s exigncias do consumo.
Compreendereis facilmente se refletirdes no grande nmero de pessoas ociosas existentes nas outras naes. Antes de tudo, so essas quase todas as mulheres, que em si j constituem a metade da populao, e a maioria dos homens, ali onde as mulheres trabalham. Em seguida, esta imensa multido de padres e religiosos vagabundos. Somai ainda todos esses ricos proprietrios vulgarmente chamados nobres e senhores; acrescentai tambm as nuvens de lacaios e outro tanto de malandros de libr; e o dilvio de mendigos robustos e vlidos que escondem sua preguia sob o disfarce de enfermidades. E achareis, em resumo, que o nmero dos que, por seu trabalho, provm ao gnero humano de todas as necessidades bem menor do que imaginais.
Considerai tambm como so poucos aqueles que a trabalhar esto empregados em coisas verdadeiramente necessrias. Porque, neste sculo de dinheiro, onde o dinheiro o deus e a medida universal, grande o nmero das artes frvolas e vs que se exercem unicamente a servio do luxo e do desregramento. Mas se a massa atual dos trabalhadores estivesse repartida pelas diversas profisses teis, de maneira a produzir mesmo com abundncia tudo o que exige o consumo, o preo da mo de obra baixaria a um ponto que o operrio no poderia mais viver de seu salrio.
Suponde, pois, que se faa trabalhar utilmente aqueles que no produzem seno objetos de luxo e os que nada produzem, embora comam o trabalho e o quinho de dois bons operrios; ento, concebereis, sem dificuldade, que disporo de mais tempo do que necessitam para prover s necessidades e mesmo aos prazeres da vida, quero dizer, os que se fundam na natureza e na verdade.
Ora, o que afirmo aqui, na Utopia est provado pelos fatos. Em toda a extenso de uma cidade utopiana, inclusive seu territrio, no mais de quinhentos indivduos, compreendidos os homens e mulheres na idade e fora de trabalhar, existem isentos por lei. Neste nmero esto os sifograntes; mas mesmo esses magistrados trabalham como os outros cidados a fim de estimul-los pelo exemplo. Este privilgio se estende tambm aos jovens que o povo destina s cincias e s artes, por recomendao dos padres e conforme os sufrgios secretos dos sifograntes. Se um desses eleitos ilude a esperana pblica, transferido para a classe dos operrios. Se, ao contrrio, e o caso freqente, um operrio consegue adquirir uma instruo suficiente consagrando suas horas de lazer aos estudos intelectuais, fica isento do trabalho mecnico e sobe classe dos letrados.
entre os letrados que se escolhem os embaixadores, os padres, os tranboras e o prncipe, chamado antigamente barzame e hoje demo. O resto da populao continuamente ativa no exerce seno profisses teis e produz, em pouco tempo, uma massa considervel de trabalhos perfeitamente executados.
O que contribui ainda para abreviar o trabalho que, tudo sendo bem estabelecido e conservado, h muito menos o que fazer na Utopia do que entre ns.
Nas outras partes, a construo e a reparao dos edifcios exigem trabalhos contnuos. A razo disto que o pai, aps ter edificado a sua casa com grandes sacrifcios, deixa seus bens a um filho negligente e dissipador, em cujas mos tudo se deteriora pouco a pouco; o resultado que o herdeiro deste ltimo no pode empreender reparaes sem fazer despesas enormes. Freqentemente acontece mesmo que um mais requintado no luxo desdenha as construes paternas, e se pe a construir, com maiores despesas ainda, noutro terreno, enquanto a casa de seu pai cai em runas.
Na Utopia, tudo est to bem previsto e organizado que raro -se obrigado a construir em novos terrenos. Os estragos so consertados no momento em que aparecem, e os que esto iminentes so prevenidos. Assim, as construes se conservam com pouco gasto e trabalho. A maior parte do tempo, os operrios permanecem em casa para, desbastando os materiais, talhar a madeira e a pedra. Quando h uma construo a fazer, os materiais esto todos prontos e a obra rapidamente terminada.
Ides ver como dispendem pouco os utopianos para se vestirem.
No trabalho, vestem de couro ou de pele; este trajo pode durar sete anos. Em pblico, cobrem-se de um casaco ou sobretudo que tapa a roupa grosseira do trabalho. O casaco de cor natural, e igual para todos. Desta sorte usam muito menos casemira do que em qualquer outra parte, e a l lhes vem por menor preo. O linho de uso muito difundido, porque exige menos trabalho. Eles no do preo seno brancura do linho, nitidez e limpeza da l, sem considerar a fineza ou delicadeza da fiao. Um s trajo dura de ordinrio dois anos; enquanto que alhures, cada pessoa carece de quatro a cinco roupas de diferentes cores, outras tantas vestimentas de seda e os mais elegantes no se satisfazem com uma dezena. Os utopianos no vm motivo para possuir um to grande nmero; no se sentiriam por isso nem mais cmoda nem mais elegantemente vestidos.
Assim, todo mundo, na Utopia, vive ocupado em. artes e ofcios realmente teis. O trabalho material de curta durao e mesmo assim produz a abundncia e o suprfluo. Quando h acmulo de produtos, os trabalhos dirios so suspensos e a populao transportada em massa para reparar as estradas esburacadas e estragadas. Na falta de obras comuns ou extraordinrias a realizar, um decreto autoriza uma diminuio nas horas de trabalho, porque o governo no procura fatigar seus cidados em labores inteis.
O fim das instituies sociais na Utopia de prover antes de tudo s necessidades do consumo pblico e individual; e deixar a cada um o maior tempo possvel para libertar-se da servido do corpo, cultivar livremente o esprito, desenvolvendo suas faculdades intelectuais pelo estudo das cincias e das letras. neste desenvolvimento completo que eles pem a verdadeira. felicidade.

DAS RELAES MTUAS ENTRE OS CIDADOS 3l4j13

Agora o a expor as relaes dos cidados entre si, seu comrcio e a lei da distribuio das coisas necessrias vida.
A cidade se compe de famlias, na sua maioria unidas pelos laos de parentesco.
Desde que uma moa nbil, -lhe dado um marido, e ela vai morar com ele.
Os vares, filhos e netos, no deixam as suas famlias. O membro mais antigo de uma famlia o chefe, e se os anos enfraqueceram sua inteligncia, substitudo por aquele que mais se aproxima de sua idade.
As seguintes disposies mantm o equilbrio da populao, impedindo-a de tornar-se muito rara em certos pontos, muito densa em outros.
Cada cidade deve ser constituda de seis mil famlias. Cada famlia ,no pode conter seno de dez a dezesseis mancebos na idade da puberdade. O nmero de crianas impberes ilimitado.
Quando uma famlia cresce alm da medida, o excedente colocado entre as famlias menos numerosas.
Quando h numa cidade mais gente do que deve conter, o excedente vai preencher os claros das cidades menos povoadas.
Finalmente, se a ilha inteira se visse sobrecarregada de habitantes, seria decretada a emigrao geral. Os emigrantes iriam fundar uma colnia no continente mais prximo, onde os indgenas dispem de mais terreno do que cultivam.
A colnia se governa segundo as leis utopianas, e chama a si os nativos que queiram partilhar de seus trabalhos e gnero de vida.
Se os colonos encontram um povo que aceita suas instituies e costumes, formam com ele uma mesma comunidade social, e esta unio benfica a todos. Pois, a viver todos, assim, utopiana, uma terra que, outrora, era ingrata e estril para um nico povo, toma-se produtiva e fecunda para dois povos ao mesmo tempo.
Mas se os colonos encontram uma nao que repele as leis da Utopia, eles expulsam esta nao da regio do pas que querem colonizar, e, se preciso, empregam, para tal, a fora das armas. Segundo os seus princpios, a guerra mais justa aquela que se faz a um povo que possui imensos territrios incultos e que os conserva desertos e estreis, notadamente quando este mesmo povo interdiz a sua posse e o seu uso aos que vm para cultiv-los e deles se nutrir, conforme a lei imprescritvel da natureza.
Se acontecesse (e este foi o caso, por duas vezes, em conseqncia de pestes horrveis) que a populao do lugar diminusse a ponto de no poder ser restabelecida sem romper o equilbrio e a constituio das outras partes da ilha, os colonos regressariam Utopia. Nossos insulares prefeririam deixar que as colnias perecessem a permitir que decrescesse uma nica cidade da me-ptria.
Mas voltemos s relaes mtuas entre os cidados.
O mais idoso, como j o disse, preside a famlia. As mulheres servem a seus maridos; as crianas, a seus pais e mes; os mais jovens, aos mais velhos.
A cidade inteira se divide em quatro quarteires iguais. No centro de cada quarteiro, encontra-se o mercado das coisas necessrias vida. So depositados a os diferentes produtos do trabalho de todas as famlias. Esses produtos, depositados primeiramente nos entrepostos, so em seguida classificados nas lojas de acordo com sua espcie.
Cada pai de famlia vai procurar no mercado aquilo de que tem necessidade para si e os seus. Tira o que precisa sem que seja exigido dele nem dinheiro nem troca. Jamais se recusa alguma coisa aos pais de famlia. A abundncia sendo extrema, em todas as coisas, no se teme que algum tire alm de sua necessidade. De fato, aquele que tem a certeza de que nada faltar jamais, no procurar possuir mais do que preciso. O que torna, em geral, os animais cpidos e rapaces, o temor das privaes no futuro. No homem em particular, existe uma outra causa de avareza - o orgulho, que o excita a ultraar em opulncia os seus iguais e a deslumbr-los pelo aparato de um luxo suprfluo. Mas as instituies utopianas tornam este vcio impossvel.
Os mercados de que acabo de falar esto juntos dos mercados de comestveis, onde se depositam os legumes, as frutas, o po, o peixe, as aves domsticas e as partes de se comer dos animais quadrpedes.
Fora da cidade, existem os matadouros onde se abatem os animais destinados ao consumo. Esses matadouros so mantidos sempre limpos graas a correntes de gua que arrastam o sangue e as imundcies dos animais. da que levada ao mercado a carne limpa e retalhada pelas mos dos escravos: pois a lei probe aos cidados o ofcio de carniceiro, temerosa que o hbito da matana destrua pouco a pouco o sentimento de humanidade, o sentimento mais nobre do corao do homem. Esses aougues so situados fora da cidade no intuito de evitar tambm aos cidados um espetculo hediondo, ao mesmo tempo que desembaraa a cidade das sujeiras e matrias animais cuja putrefao poderia provocar molstias.
Em cada rua amplos palcios esto dispostos a igual distncia, distinguindo-se uns dos outros por nomes particulares. a que moram os sifograntes; suas trinta famlias esto alojadas nos dois lados, quinze direita e quinze esquerda; no palcio do sifogrante que elas vo fazer as refeies em comum.
Os provedores se renem no mercado a uma hora fixa e requerem uma quantidade de vveres proporcional ao nmero de bocas que tm de nutrir. Comea-se sempre por servir os doentes, que so alojados em enfermarias pblicas.
Em torno da cidade e um pouco alm de seus muros esto situados quatro hospitais de tal forma espaosos, que poderiam ser tomados por quatro burgos considerveis. Evita-se assim a acumulao e o atravancamento dos doentes, inconvenientes que retardam a cura; alm disto, quando um homem atingido por uma molstia contagiosa, pode-se isol-lo completamente. Esses hospitais possuem com abundncia todos os remdios e todas as coisas necessrias ao restabelecimento da sade. Os doentes so a tratados com um cuidado afetuoso e assduo, sob a direo dos mais hbeis mdicos. Ningum obrigado a ir para l; entretanto, no h quem, em caso de doena, no prefira tratar-se no hospital do que em sua casa.
Depois que os provedores dos hospitais recebem o que pediram, segundo as prescries dos mdicos, o que h de melhor no mercado distribudo, sem distino, entre todos os refeitrios, proporcionalmente ao nmero dos comedores. Serve-se, ao mesmo tempo, o prncipe, o pontfice, os tranboras, os embaixadores, os estrangeiros, se os h, o que muito raro. Estes ltimos, ao chegarem cidade, encontram os seus alojamentos j preparados e providos de todas as coisas de que podem necessitar.
Uma trombeta marca a hora das refeies. Ento toda a sifograntia encaminha-se para o refeitrio comum, com exceo dos indivduos acamados em casa ou no hospital. permitido ir ao mercado procura de vveres para o consumo particular, mas s depois que as mesas pblicas estiverem completamente providas. Os utopianos, porm, no se utilizam jamais desse direito, a no ser por graves motivos: se cada qual livre de comer em sua casa, ningum encontra prazer em faz-lo. Ademais, seria loucura dar-se ao trabalho de preparar um mau jantar, quando se pode ter um bem melhor a alguns os.
Os escravos so encarregados dos trabalhos de cozinha mais sujos e penosos. As mulheres cozinham os alimentos, temperam os guisados e servem e tiram as mesas. Revezam-se nestes misteres, famlia por famlia.
Preparam-se trs mesas ou mais, de acordo com o nmero de convivas. Os homens assentam-se do lado da parede; as mulheres ficam dispostas em frente, a fim de que, se alguma for acometida de uma indisposio sbita, o que acontece freqentemente s mulheres grvidas, possam se retirar sem incomodar ningum, e ir para os aposentos das amas.
As amas se sentam a parte com as crianas de peito, em salas particulares, sempre aquecidas e providas de gua limpa e beros; desta maneira elas podem deitar as criancinhas, desenfaix-las e faz-las brincar prximo do fogo.
Cada me aleita seu filho, exceto em caso de morte ou de doena. Nestes dois casos, as mulheres dos sifograntes procuram imediatamente uma ama, o que no difcil encontrar. As mulheres em situao de prestar este servio so as primeiras a se oferecer. Alis, esta funo uma das mais honrosas, e a criana pertence tanto sua ama de leite como sua me.
Na sala das amas vivem tambm as crianas que no tm ainda cinco anos completos. Os meninos e as meninas, da idade da puberdade at a do casamento servem a mesa. Os mais jovens e que no tm fora para servir, conservam-se de p e em silncio; comem o que lhes dado pelos que esto mesa, e no tm outro momento para fazer suas refeies.
O sifogrante e sua mulher so colocados no centro da primeira mesa. Esta mesa ocupa a extremidade do fundo da sala e de l se descortina, num golpe de vista, toda a assemblia. Dois velhos, escolhidos entre os mais velhos e mais respeitveis, assentam-se com o sifogrante, e, assim, todos os convivas so servidos e comem quatro a quatro. Se h um templo na sifograntia, o sacerdote e sua mulher substituem os dois velhos, presidindo a refeio.
Dos dois lados da sala esto enfileirados alternativamente dois jovens e dois indivduos mais idosos. Esta disposio aproxima os iguais e mistura, ao mesmo tempo, todas as idades; e alm disso preenche uma finalidade moral. Como nada se pode dizer ou fazer que no seja percebido pelos vizinhos, assim a gravidade da velhice, o respeito que ela inspira, contm a petulncia dos jovens, impedindo-os sair da medida tanto nas palavras como nos gestos.
A mesa do sifogrante servida em primeiro lugar; em seguida as outras, segundo sua posio. Os melhores pedaos so dados aos velhos das famlias que ocupam lugares fixos e de destaque. Todos os demais so servidos com uma igualdade perfeita. As pores desses bons velhos no lhes so bastante grandes para dar a todo o mundo; mas eles as repartem, como entendem, com os vizinhos mais prximos. Assim, rende-se velhice a honra que lhe devida, e esta homenagem volve ao bem de todos.
Os almoos e os jantares comeam pela leitura de um livro de moral; esta leitura breve para que no aborrea. Quando terminada, os mais idosos encetam conversaes honestas, mas cheias de jovialidade e alegria. Longe de falar exclusivamente, eles gostam de escutar os jovens; provocam mesmo seus repentes, a fim de apreciar-lhes a natureza do carter e do esprito. Ao calor e liberdade reinantes nas horas de refeio, essa natureza facilmente se trai.
O almoo rpido; a ceia demorada; porque ao almoo seguem-se os trabalhos, enquanto que depois da ceia, vm o sono e o repouso da noite. Ora, os utopianos acreditam que o sono da noite mais favorvel do que o trabalho a uma boa digesto. A ceia no se realiza sem msica e sem uma sobremesa copiosa e delicada. Os perfumes, as essncias mais recendentes, nada poupado para o bem estar e o gozo dos convivas. Poder-se-, talvez, por isto, acusar os utopianos de uma tendncia excessiva ao prazer? Eles tm por princpio que a volpia que no engendra nenhum mal perfeitamente legtima.
assim que vivem entre si os utopianos das cidades. Aqueles que trabalham no campo esto muito apartados uns dos outros para comer em comum; tomam suas refeies em casa, individualmente. De resto, as famlias agrcolas tm assegurada uma alimentao abundante e variada. Nada lhes falta: no so elas as provedoras, as mes nutrizes das cidades?

DAS VIAGENS DOS UTOPIANOS i6d5m

Quando um cidado deseja ir ver um amigo que mora noutra cidade, ou quer simplesmente ter o prazer de uma viagem, os sifograntes e os tranboras consentem de boa vontade em sua partida se no houver impedimento razovel.
Os viajantes Se renem para partir em conjunto; munem-se de uma carta do prncipe que um certificado de licena e que fixa o dia de regresso. Fornecem-lhes uma carruagem e um escravo para guiar a carruagem e cuidar dos animais. Mas habitualmente, a menos que levem mulheres em sua companhia, os viajantes dispensam o carro como um obstculo. No se provm de nada durante o percurso; porque nada lhes pode faltar e em qualquer lugar esto em sua casa.
Se um viajante a mais de um dia numa localidade, tem que trabalhar no seu ofcio e recebe o mais carinhoso acolhimento dos operrios de sua profisso.
Aquele que por sua prpria vontade se permite franquear os limites de sua provncia, tratado como criminoso; apanhado sem a licena do prncipe, reconduzido como desertor e severamente punido Em caso de reincidncia, perde a liberdade.
Se algum cidado deseja fazer excurso nos campos que dependem de sua cidade, pode faz-lo com o consentimento de sua mulher e do pai de famlia. Mas necessrio que compre e pague o seu sustento trabalhando antes do almoo e da ceia tanto quanto os que a moram. Sob esta condio, cada indivduo tem o direito de sair da cidade e percorrer o territrio adjacente, porque ele to til ali como aqui. Vede que na Utopia a ociosidade e a preguia so impossveis. No se vm nem tabernas, nem lugares de prostituio, nem oportunidade para deboches, nem antros ocultos, nem assemblias secretas. Cada um, continuamente exposto ao olhar de todos, se sente na feliz contingncia de trabalhar e de repousar, conforme as leis e os costumes do pas. A abundncia de todas as coisas o fruto desta vida pura e ativa. O bem estar se reparte igualmente por todos os membros desta irvel sociedade; a mendicidade e a misria so a monstros desconhecidos.
J disse que cada cidade da Utopia enviava trs deputados ao senado de Amaurota. As primeiras sesses do senado so consagradas a levantar a estatstica econmica das diversas partes da ilha. Desde que se verifica os pontos onde h demais e os pontos onde no h bastante, o equilbrio restabelecido enchendo-se a carncia das cidades infelizes com a superabundncia das cidades mais favorecidas. Esta compensao gratuita. A cidade que d nada recebe em troca da parte que entrega; e, reciprocamente, recebe de graa de uma outra cidade qual nada deu.
Assim, toda a repblica utopiana como uma nica e mesma famlia.
A ilha sempre abastecida por dois anos, na incerteza de uma boa ou m colheita para o ano seguinte. Exportam-se para fora da ilha os gneros suprfluos, tais como trigo, mel, l, linho, madeiras, matrias para tinturas, peles, cera, sebo, animais. A stima parte dessas mercadorias distribuda aos pobres do pas para onde se exporta; o resto vendido a um preo moderado. Este comrcio permite Utopia importar no somente objetos de necessidade, o ferro, por exemplo, como, tambm, uma massa considervel de ouro e prata.
Desde que os utopianos praticam este negcio que acumularam uma quantidade incrvel de riquezas. por isso que lhes indiferente, hoje, vender a vista ou a prazo. Habitualmente, recebem vales em pagamento; mas no se fiam em s individuais. Os vales devem estar revestidos das formas legais e garantidos f e selo da cidade que os aceita. No dia do vencimento, a cidade signatria exige o reembolso aos devedores particulares; o dinheiro depositado no tesouro pblico e o seu valor garantido at que os credores utopianos o reclamem.
Estes no reclamam quase nunca o pagamento da dvida inteira; acreditariam cometer uma injustia, tirando a um outro uma coisa que lhe necessria e que para ele intil. Entretanto, h casos em que retiram toda a soma que lhes devida; isto acontece quando querem se servir desta para emprestar a uma nao vizinha ou para empreender uma guerra. Neste ltimo caso, juntam todas suas riquezas para fazer como que uma trincheira de metal contra os perigos urgentes e imprevistos. Estas riquezas so destinadas a engajar e a pagar copiosamente as tropas estrangeiras; porque o governo da Utopia prefere expor morte os estrangeiros que os seus cidados. Ele sabe tambm que o inimigo mais encarniado se vende algumas vezes, se o preo da venda est altura de sua cobia; sabe que, em geral, o dinheiro o nervo da guerra, quer para comprar traies, quer para combater abertamente.
Para tais fins, os utopianos tm sempre sua disposio imensos tesouros; mas, longe de conserv-los com uma espcie de culto religioso, como fazem outros povos, eles os empregam em coisas que mal ouso dizer-vos. Temo que no acrediteis, pois eu mesmo, confesso-vos francamente, se no tivesse visto a coisa no acreditaria sobre palavra. Isto muito natural; quanto mais os costumes estrangeiros so opostos aos nossos, menos estamos dispostos a acreditar neles. Contudo, o homem sbio que julga judiciosamente, ao saber que os utopianos pensam e agem de modo exatamente contrrio aos outros povos, no se surpreender que eles empreguem o ouro e a prata de modo inteiramente diverso de ns. Na Utopia no se utiliza jamais dinheiro em moeda nas transaes mtuas; so elas reservadas para os acontecimentos crticos sempre possveis, ainda que incertos.
O ouro e a prata no tm, nesse pas, mais valor do que lhes deu a natureza. Esses dois metais so ali considerados bem abaixo do ferro, o qual to necessrio ao homem quanto a gua e o fogo. Com efeito, o ouro e a prata no tm nenhuma virtude, nenhum uso, nenhuma propriedade cuja privao acarrete um inconveniente natural e verdadeiro. Foi a loucura humana que ps tanto valor em sua raridade.
A natureza, esta excelente me, escondeu-os em grandes profundidades, como produtos inteis e vos, enquanto que expe a descoberto a gua, o ar, a terra, e tudo o que h de bom e realmente til.
Os utopianos no escondem seus tesouros nas torres, ou em outros lugares fortificados e inveis. O vulgo, numa extravagante malcia, poderia suspeitar que o prncipe e o senado enganassem o povo, enriquecendo-se e pilhando a fortuna pblica. Com o ouro e a prata no se fabricam nem vasos, nem obras artisticamente trabalhadas. Porque, se houvesse necessidade de um dia fundi-los, para pagar o exrcito em caso de guerra, os que tivessem posto sua afeio e suas delcias nesses objetos de arte e de luxo, sentiriam, ao perd-los, uma dor amarga.
A fim de prevenir esses inconvenientes, os utopianos imaginaram um uso perfeitamente em harmonia com o restante de suas instituies, mas em completo desacordo com as do nosso continente, onde o ouro adorado como um Deus, procurado como o bem supremo. Eles comem e bebem em loua de barro ou vidro, que se elegante na forma, , no entanto, despida do menor valor; o ouro e a prata so destinados aos usos mais vis, tanto nas residncias comuns, como nas casas particulares; so feitos com eles at os vasos noturnos. Forjam-se cadeias e correntes para os escravos, e marcas de oprbrio para os condenados que cometeram crimes infames. Estes ltimos levam anis de ouro nos dedos e nas orelhas, um colar de ouro no pescoo, um freio de ouro na cabea.
Assim, tudo concorre para manter o ouro e a prata na ignominia. Entre outros povos a perda da fortuna um sofrimento to cruel como um dilaceramento de entranhas; mas quando se arrancasse nao utopiana todas suas imensas riquezas ningum pareceria ter perdido um cntimo.
Os utopianos recolhem prolas na sua costa, diamantes e pedras preciosas em certos rochedos. Sem ir cata desses objetos raros, eles gostam de polir os que a sorte os presenteia, a fim de adornar os seus filhinhos, que ficam todo orgulhosos de trazer esses ornamentos. Mas, medida que crescem, percebem logo que estas frivolidades no convm seno s crianas pequenas. Ento, no esperam pela observao dos pais; espontaneamente e por amor prprio livram-se desses enfeites. como entre ns, quando as crianas que vo crescendo, abandonam as bolas e as bonecas.
Estas instituies, to diferentes das dos outros povos, gravam no corao do utopiano sentimentos e idias inteiramente contrrias s nossas. Fiquei singularmente chocado com esta diferena por ocasio de uma embaixada anemoliana. Os enviados de Anemlia vieram a Amaurota quando eu l estava, e como deviam tratar de negcios de alta importncia, o senado esteve reunido na capital. At ento, os embaixadores das naes limtrofes que tinham vindo Utopia, a levaram a vida mais simples e modesta, porque estavam j ao par dos costumes utopianos. Sabiam que o luxo de seus atavios no tem l nenhum valor, a seda desprezada e o ouro uma coisa infame.
Mas, os anemolianos, muito mais afastados da ilha, tinham tido muito poucas relaes com ela. Ao saberem que os seus habitantes vestiam-se de modo grosseiro e uniforme, imaginaram que esta extrema simplicidade era causada pela misria, e, mais vaidosos do que sagazes, resolveram apresentar-se com a magnificncia digna de enviados celestes e ofuscar esses miserveis insulares com o brilho de um fausto deslumbrante.
Os trs ministros, que eram grandes senhores de Anemlia, ao entrar em Amaurota, faziam-se seguidos de cem pessoas, vestidas de trapos de seda de diversas cores. Os prprios embaixadores traziam uma vestimenta rica e suntuosa; trajavam uma roupa de l tecida com ouro, traziam colares e brincos de ouro nas orelhas, anis de ouro nos dedos e os seus chapus resplandeciam de pedrarias. Enfim, estavam cobertos do que na Utopia constitui o suplcio do escravo, a marca vergonhosa da infmia, o brinquedo da criana.
Era divertido ver a orgulhosa satisfao dos embaixadores e das pessoas do seu squito, que, comparavam o luxo de seus paramentos s vestes simples e negligentes do povo utopiano, espalhado em massa sua agem. De outro lado, no era menos curioso observar a atitude da populao, e como esses estrangeiros se enganavam em sua expectativa, e como estavam longe de despertar a estima e as honras que tinham imaginado.
A parte um pequeno nmero de utopianos, que tinha viajado no exterior por graves motivos, todos os outros olhavam com piedade todo este aparato suntuoso; os utopianos saudavam os mais nfimos lacaios do cortejo, tomando-os por embaixadores, e deixavam ar os embaixadores, sem lhes dar mais ateno do que aos lacaios, porque os viam carregados de cadeias de ouro como seus escravos.
As crianas que j tinham abandonado os diamantes e as prolas e que as viam nos chapus dos embaixadores, puxavam suas mes, gritando:
Veja este grandalho que ainda traz pedrarias como se fosse pequenino.
E as mes respondiam gravemente:
Calai-vos, meu filho, , eu penso, um dos bufes da embaixada.
Muitos criticavam a forma dessas correntes de ouro.
Elas so, diziam, muito finas, e poderiam ser quebradas facilmente; alm disso, no esto bem fechadas e apertadas, e o escravo poderia se desembaraar delas, se quisesse, e fugir.
Dois dias depois de sua entrada em Amaurota, 08 embaixadores compreenderam que os utopianos desprezavam o ouro tanto quanto ele era venerado no seu pas. Tiveram ocasio de observar no corpo de um escravo mais ouro e prata do que o que trazia toda a sua escolta. Ento, humilhados em sua vaidade e envergonhados da mistificao de que tinham sido vtimas, despojaram-se apressadamente do fausto que to orgulhosamente tinham exposto. As relaes ntimas que entretiveram na Utopia, ensinaram-lhes quais eram os princpios e os costumes de seus habitantes.
Os utopianos iram-se de que seres razoveis possam se deleitar com a luz incerta e duvidosa de uma pedra ou de uma prola, quando tm os astros e o sol com que encher os olhos. Encaram como louco aquele que se acredita mais nobre e mais estimvel s porque est coberto de uma l mais fina, l tirada das costas de um carneiro, e que foi usada primeiro por este animal. iram-se que o ouro, intil por sua prpria natureza, tenha adquirido um valor fictcio to considervel que seja muito mais estimado do que o homem; ainda que somente o homem lhe tenha dado este valor e dele se utilize, conforme seus caprichos.
Espantam-se tambm que um rico, de inteligncia de chumbo, estpido como uma acha de lenha, to tolo quanto imoral, mantenha em sua dependncia uma multido de homens sbios e virtuosos, apenas porque a sorte lhe deixou algumas pilhas de escudos.
Mas, dizem, a fortuna pode tra-lo e a lei (que tanto quanto a sorte precipita freqentemente o homem do pinculo ao lodo) pode arrancar-lhe o dinheiro, fazendo-o ar s mos do mais ignbil de seus lacaios. Ento, este mesmo rico se sentir feliz em ar tambm, na companhia de seu dinheiro, a servio de seu antigo criado.
H uma outra loucura que os utopianos detestam ainda mais, e que dificilmente concebem, a loucura dos que rendem homenagens quase divinas a um homem porque rico, sem serem, entretanto, nem seus devedores nem seus sditos. Os insensatos sabem, no obstante, como srdida a avareza desses Cresos egostas; sabem, perfeitamente, que nunca tero um vintm de todos os tesouros destes ltimos.
Nossos insulares adquirem semelhantes sentimentos, parte no estudo das letras, parte na educao que recebem no seio de uma repblica cujas instituies so formalmente opostas a todas as nossas espcies e gneros de extravagncia. verdade que um nmero muito pequeno dispensado dos trabalhos materiais, entregando-se exclusivamente cultura do esprito. So, como j disse, aqueles que, desde a infncia, demonstraram aptides raras, um gnio penetrante, vocao cientfica. Mas nem por isso se deixa de dar uma educao liberal a todas as crianas; e a grande massa dos cidados - homens e mulheres - consagra, cada dia, seus momentos de repouso e liberdade aos trabalhos intelectuais.
Os utopianos aprendem as cincias em sua prpria lngua, rica e harmoniosa, intrprete fiel do pensamento; ela difundida, mais ou menos alterada, sobre uma grande extenso do globo.
Antes de nossa chegada, os utopianos nunca tinham ouvido falar nesses filsofos to famosos no nosso mundo; entretanto, fizeram as mesmas descobertas que ns, no terreno da msica, da aritmtica, da dialtica, da geometria. Se igualam em quase tudo os nossos antigos, so bastante inferiores aos dialticos modernos, porque ainda no inventaram nenhuma dessas regras sutis de restrio, amplificao, suposio, que se ensinam juventude nas escolas de lgica. Ainda no aprofundaram as idias segundas; e, quanto ao homem em geral, ou universal, segundo a gria metafsica, este colosso, o maior dos gigantes, que nos mostram aqui, ningum na Utopia pode ainda perceb-lo.
Em compensao, conhecem de uma maneira precisa o curso dos astros e o movimento dos corpos celestes. Imaginaram mquinas que representam com grande exatido os movimentos e as posies respectivas do sol e da lua e dos astros visveis acima do seu horizonte. Quanto aos dios e s amizades dos planetas e s demais imposturas de adivinhao pelo cu, nem mesmo em sonhos disso se ocupam. Sabem prever, por indcios confirmados por uma longa experincia, a chuva, o vento e as outras revolues do ar. Fazem apenas conjecturas sobre as causas desses fenmenos, sobre o fluxo e o refluxo do mar, sobre a composio salina dessa imensa massa lqida, a origem e a natureza do cu e do mundo. Seus sistemas coincidem em certos pontos com os dos nossos antigos filsofos; e em outros, se afastam. Mas, nas novas teorias que imaginaram, h dissidncias entre eles, como entre ns.
Em filosofia moral, agitam as mesmas questes que os nossos doutores. Procuram na alma do homem, no seu corpo e nos objetos exteriores, o que pode contribuir para sua felicidade; perguntam, procuram saber se o nome de Bem convm indiferentemente a todos os elementos da felicidade material e intelectual, ou s ao desenvolvimento das faculdades do esprito. Dissertam sobre a virtude e o prazer; mas a primeira e principal de suas controvrsias tem por fito determinar a condio nica, ou as diversas condies da felicidade do homem.
Talvez possais acus-los de propender demais para o epicurismo, porque, se a volpia no , para eles, o nico elemento da felicidade, um dos mais essenciais. E, fato singular, invocam em apoio dessa moral voluptuosa a religio to grave e severa, to triste e rgida. Tm por princpio no discutir jamais sobre o bem e o mal, sem partir dos axiomas da religio e da filosofia; de outra maneira, temeriam raciocinar em bases falhas e edificar falsas teorias.

Eis aqui seu catecismo religioso:
A alma imortal: Deus que bom, criou-a para ser feliz. Depois da morte, as recompensas coroam a virtude, suplcios atormentam o crime.
Embora esses dogmas pertenam religio, os utopianos pensam que a razo pode induzir a crer neles e aceit-los No hesitam em declarar que, na ausncia desses princpios, fora preciso ser estpido para no procurar o prazer por todos os meios possveis, criminosos ou legtimos. A virtude consistiria, ento, em escolher, entre duas volpias, a mais deliciosa, a mais picante; e em fugir dos prazeres a que se seguissem dores mais vivas do que o gozo que tivessem proporcionado.
Mas praticar virtudes severas e difceis, renunciar aos prazeres da vida, sofrer voluntariamente a dor e nada esperar depois da morte em recompensa s mortificaes da terra, , aos olhos dos nossos insulares, o cmulo da loucura.
A felicidade, dizem, no est em toda espcie de voluptuosidade; est unicamente nos prazeres bons e honestos. para esses prazeres que tudo, at a prpria virtude, arrasta irresistivelmente a nossa natureza; so eles que constituem a felicidade.
Os utopianos definem a virtude: viver segundo a natureza. Deus, criando o homem, no lhe deu outro destino.
O homem que segue o impulso da natureza, aquele que obedece voz da razo, em seus dios e seus apetites. Ora, a razo inspira, em primeiro lugar, a todos os mortais o amor e a adorao da majestade divina, qual ns devemos o ser e o bem estar. Em segundo lugar, ela nos ensina e nos instiga a viver alegremente e sem lamentaes, e a proporcionar aos nossos semelhantes, que so nossos irmos, os mesmos benefcios.
De fato, o mais enfadonho e o mais fantico zelador da virtude, o inimigo mais odiento do prazer, ao vos propor imitar seus trabalhos, suas viglias e mortificaes, ordena-vos, tambm, mitigar, com todas as vossas foras, a misria e as aflies dos outros. Esse moralista severo cumula de elogios, em nome da humanidade, o homem que consola e que salva o homem; e cr, assim, que a virtude mais nobre e mais humana, em qualquer terreno, consiste em suavizar os sofrimentos do prximo, arranc-lo ao desespero e tristeza, restituir-lhe as alegrias da vida, ou, em outros termos, faz-lo ter parte tambm na volpia.
E por que a natureza no induziria cada um de ns a se fazer, a si mesmo, o mesmo bem que aos outros? Pois, das duas uma: ou uma existncia agradvel, isto , a volpia, um bem ou um mal. Se um mal, no somente no se deve ajudar seus semelhantes a fru-la, mas ainda deve-se arranc-la como coisa perigosa e condenvel. Se um bem, pode-se e deve-se procur-la para si prprio como para os outros. Por que iramos ter menos compaixo de ns do que dos outros? A natureza, que inspira em ns a caridade por nossos irmos, no ordena que sejamos cruis conosco mesmos.
Eis o que leva os utopianos a afirmarem que uma vida honestamente agradvel quer dizer que a volpia o fim de todas as nossas aes; que tal a vontade da natureza e que obedecer a esta vontade ser virtuoso.
A natureza, dizem eles, convida todos os homens a se ajudarem mutuamente e a partilharem em comum do alegre festim da vida. Este preceito justo e razovel, pois no h indivduo to altamente colocado acima do gnero humano que somente a Providncia deva cuidar dele. A natureza deu a mesma forma a todos; aqueceu-os todos com o mesmo calor, envolve todos com o mesmo amor; o que ela reprova, aumentar o prprio bem estar agravando a infelicidade de outrem.
por isto que os utopianos pensam que necessrio observar no s as convenes privadas entre simples cidados, mas ainda as leis pblicas, que regulam a distribuio das comodidades da vida, em outros termos, que distribuem a matria do prazer, quando estas leis foram justamente promulgadas por um bom prncipe, ou sancionadas pelo consentimento geral de um povo, nem oprimido pela tirania, nem embado pelo artifcio.
A sabedoria reside em procurar a felicidade sem violar as leis. A religio trabalhar pelo bem geral. Calcar aos ps a felicidade de outrem, em busca da sua, uma ao injusta.
Ao contrrio, privar-se de algum prazer, para comunic-lo a outrem, indcio de um corao nobre e humano, e que, alis, torna a ach-lo muito superior ao prazer sacrificado. Primeiro que tudo, esta boa ao recompensada pela reciprocidade dos servios; em seguida, o testemunho da conscincia, a lembrana e o reconhecimento dos que foram obsequiados causam alma delcia maior que no poderia ter dado ao corpo o objeto de que se foi privado. Finalmente, o homem que tem f nas verdades religiosas, deve estar firmemente persuadido de que Deus recompensa a privao voluntria de um prazer efmero e ageiro, com alegrias inefveis e eternas
Assim, em ltima anlise, os utopianos reduzem todas as aes e mesmo todas as virtudes ao prazer, como finalidade.
Eles chamam volpia todo o estado ou todo movimento da alma e do corpo, nos quais o homem experimenta uma deleitao natural. No sem razo que eles acrescentam a palavra natural, porque no semente a sensualidade, tambm a razo que nos atrai para as coisas naturalmente deleitveis; e por isto devemos compreender os bens que se podem procurar sem injustia, os gozos que no privem de um prazer mais vivo, e que no arrastem consigo nenhum mal.

H coisas fora da natureza, que os homens, por uma conveno absurda, intitulam prazeres (como se tivessem o poder de transformar a essncia to facilmente como modificam as palavras). Essas coisas, longe de contribuir para a felicidade, so outros tantos obstculos em seu caminho; aos que seduzem, elas impedem gozarem satisfaes puras e verdadeiras; viciam o esprito, preocupando-o com a idia de um prazer imaginrio. H, com efeito, uma quantidade de coisas, s quais a natureza no juntou nenhuma doura, as quais ela chegou at a misturar de amargura e que, no entanto, os homens olham como altas volpias de algum modo necessrias vida, apesar de, na sua maioria, serem essencialmente ms e s estimular as paixes perversas.
Os utopianos classificam nessa espcie de prazeres bastardos, a vaidade daqueles de que j falei, que se crem melhores porque usam uma roupa mais bonita. A vaidade desses tolos duplamente ridcula.
Em primeiro lugar, consideram suas roupas acima de suas pessoas; pois, quanto ao que de uso, em que, vos pergunto, uma l mais fina prevalece sobre uma l mais grossa? Entretanto, os insensatos, como se se distinguissem da multido pela excelncia de sua natureza, e no pela loucura de seu comportamento, erguem orgulhosamente a cabea, imaginando valer um grande preo. Exigem, em virtude da rica elegncia de suas vestes, honras que no ousariam esperar com um traje simples e comum; mostram-se indignados quando se olha a sua roupa com um olhar de indiferena.
Em segundo lugar, esses mesmos homens no so menos estpidos por se alimentarem de honras sem realidade e sem proveitos. natural e verdadeiro o prazer que se sente em frente de um adulador que tira o chapu e dobra humildemente o joelho? Uma genuflexo cura algum da febre ou da gota?
Entre aqueles que ainda seduz uma falsa imagem do prazer, esto os nobres que se comprazem com orgulho e amor no pensamento de sua nobreza. E de que se gabam? Do acaso que os fez nascer em uma longa srie de ricos anteados, e, sobretudo, de ricos proprietrios (porque a nobreza de hoje a riqueza). Todavia, se esses insensatos nada tivessem herdado de seus pais, ou tivessem devorado todo seu patrimnio, ainda assim no se sentiriam, por isso, diminudos na sua nobreza de um s cabelo.
Os utopianos classificam os amadores de pedrarias na categoria dos manacos de nobreza. Os homens que tm essa paixo, julgam-se uns pequenos deuses, quando encontram uma pedra bela e rara, particularmente apreciada na sua poca e no seu pas, pois. a mesma pedra no conserva sempre e por toda a parte o mesmo valor. O amador de pedras as compra nuas e sem ouro; leva mesmo a precauo a ponto de exigir do vendedor uma cauo e at o juramento que o diamante, o rubi, o topzio so de bom quilate, de tal modo teme que um falso brilhante impressione os seus olhos! Que prazer h, pois, em olhar uma pedra natural de preferncia a uma artificial, desde que o olho no apreende a diferena? Tanto uma como outra no tm realmente mais valor para um que enxerga do que para um cego.
Que dizer dos avarentos que acumulam dinheiro e mais dinheiro, no para seu uso, mas para se consumir na contemplao de uma enorme quantidade de metal? O prazer desses ricos miserveis no pura quimera? Ser mais feliz aquele que, por uma extravagncia mais estpida ainda, enterra os seus escudos? Este ltimo nem ao menos v o seu tesouro, e o medo de perd-lo faz que o perca de fato. Mas enterrar ouro no o mesmo que roubar a si prprio e aos outros? No entanto, o avarento sente-se tranqilo, salta de alegria quando enterrou bem suas riquezas. Agora, suponhamos que algum se apodere desse depsito confiado terra, e que o nosso Harpago sobreviva dez anos sua runa, sem o saber; eu vos pergunto, que lhe importou nesse intervalo, ter conservado ou perdido o tesouro? Enterrado ou roubado, ele lhe deu exatamente a mesma serventia.
Os utopianos encaram tambm como imaginrios os prazeres da caa e dos jogos de azar. Dos ltimos no conhecem os desatinos seno de nome, no os praticando jamais. Que divertimento podereis encontrar, dizem eles, em jogar um dado sobre a mesa? E supondo que houvesse nisso qualquer prazer, vs j vos fartastes tantas vezes dele que deve ter-se tornado enfadonho e inspido
No mais fatigante do que agradvel ouvir os ces ladrarem e ganirem? Em que mais divertido ver correr um co atrs de uma lebre do que v-lo atrs de outro cachorro? Entretanto, se a corrida que faz o prazer, a corrida existe nos dois casos. Mas no antes a expectativa da morte ou a espera da carniceria o que apaixonam os homens pela caa? E como no abrir a alma piedade, como no ter horror a esta matana, em que o co forte, cruel e audaz, dilacera a lebre fraca, tmida e fugitiva?
por isso que os nossos insulares probem a caa aos homens livres, como um exerccio indigno deles; ela s permitida aos magarefes, que so todos escravos. E mesmo na opinio deles, a caa a parte mal vil da arte de matar os animais; as outras partes desse ofcio so muito mais consideradas, porque trazem maior lucro e porque nelas s matam os animais por necessidade, enquanto que o caador procura no sangue e na morte um divertimento estril.
Os utopianos desprezam todas essas alegrias, e muitas outras semelhantes em nmero quase infinito, e que o vulgo considera como bens supremos, mas cuja suavidade aparente no se encontra na natureza. Mesmo que esses prazeres enchessem os sentidos da mais deliciosa embriaguez (o que parece ser o efeito natural da volpia) os utopianos sustentam que os mesmos nada tm de comum com a verdadeira voluptuosidade; porque, dizem, esse prazer sensual no vem da prpria natureza do objeto, o fruto de hbitos depravados que fazem achar doce o que amargo. assim que as mulheres grvidas, cujo gosto est corrompido, acham a resina e o sebo mais doces que o mel.
Os utopianos distinguem diversas espcies de prazeres verdadeiros: uns se relacionam com o corpo, outros com a alma.
Os prazeres da alma esto no desenvolvimento da inteligncia e nas puras delcias que acompanham a contemplao da verdade. Nossos insulares acrescentam ainda o testemunho de uma vida irreprochvel e a esperana certa de uma imortalidade bem-aventurada.
Eles dividem em duas espcies as voluptuosidades do corpo:
A primeira espcie compreende todas volpias que exercem sobre os sentidos uma impresso atual, manifesta, e cuja causa o restabelecimento dos rgos consumidos pelo calor interno. Essa impresso nasce de um lado, da ao de beber e comer que devolve as foras perdidas; de outro lado, das funes animais que expelem do corpo as matrias suprfluas. Tais so as secrees intestinais, o coito, e o alvio de uma comicho qualquer, ao esfregar-se ou ao coar-se.
Algumas vezes o prazer dos sentidos no provm das funes animais que reparam os rgos esgotados, ou os aliviam de uma exuberncia penosa; mas pelo efeito de uma fora interior e indefinvel que comove, encanta e seduz; tal o prazer que nasce da msica.
A segunda espcie de volpia sensual consiste no equilbrio estvel e perfeito de todas as partes do corpo, isto , numa sade isenta de mal estar. Com efeito, o homem que no afetado pela dor, experimenta em si um certo sentimento de bem estar, mesmo que nenhum objeto exterior agite agradavelmente os seus rgos. verdade que esta espcie de volpia no afeta nem atordoa os sentidos, como por exemplo os prazeres da mesa; apesar disso, muitos a colocam em primeiro lugar; e quase todos os utopianos declaram que ela a base e o fundamento da verdadeira felicidade. Porque, dizem, s uma sade perfeita torna a condio da vida humana tranqila e apetecvel; sem sade, no h voluptuosidade possvel; sem ela, a prpria ausncia da dor no um bem, a insensibilidade do cadver.
Uma viva disputa travou-se outrora na Utopia a este respeito. Alguns pretendiam que no se devia contar no nmero dos prazeres uma sade estvel e tranqila, porque esta no d a perceber um gozo atual e diferente, como as sensaes que nos vem de fora. Mas hoje, todos, com pequenssima exceo, concordam em proclamar a sade como uma volpia essencial. Com efeito, para eles, a dor que, na molstia, a inimiga implacvel do prazer; ora, a molstia igualmente inimiga da sade; por que ento no haveria prazer na sade, da mesma forma que h dor na molstia? Pouco importa que a doena seja a dor ou que a dor seja inerente molstia, desde que os resultados so de todo semelhantes. Ainda que se considere a sade como a prpria voluptuosidade, ou como a causa que a produz necessariamente, assim como o fogo produz necessariamente o calor, o homem de sade inaltervel deve nos dois casos experimentar um certo prazer. Quando comemos, perguntam os utopianos, no a sade que, comeando a desfalecer, luta contra a fome com a ajuda dos alimentos? Estes avanam, repelindo o seu inimigo cruel e do ao homem a alegria que acompanha o retorno do seu vigor normal. Mas a sade que lutara com tanto gosto, no teria o direito de rejubilar-se aps a vitria? O que ela procurava na luta era a sua fora primitiva; e obtido este resultado, issvel que venha a cair num entorpecimento estpido, sem conhecer e apreciar a prpria felicidade?
Em conseqncia disto, os utopianos rejeitam completamente a opinio de que o homem sadio no tem conscincia de seu estado. Segundo eles, necessrio estar-se doente ou adormecido para no sentir que se est so; seria preciso ser-se de pedra, ou estar-se atacado de letargia, para no se comprazer de uma sade perfeita, e nisso sentir encanto. Ora, este encanto, esta satisfao, que outra coisa seno a voluptuosidade?
Eles se entregam acima de tudo aos prazeres do esprito, que encaram como o principal e mais essencial de todos os prazeres; colocam no plano dos mais puros e mais desejveis, a prtica da virtude e a conscincia de uma vida sem mancha. Entre as volpias corporais do preferncia sade porque no se deve procurar a boa mesa e os outros prazeres da vida animal, seno visando a conservao da sade, visto que essas coisas no so deleitveis em si mesmas, mas unicamente em virtude de se oporem invaso secreta da molstia.
O homem prudente previne o mal, de preferncia a empregar os remdios; evita a dor antes de recorrer aos alvios. De conformidade com essas normas, os utopianos usam de todos os prazeres corporais, para cuja privao fosse preciso o emprego de meios curativos. Mas no depositam toda sua felicidade nesses prazeres; do contrrio, o cmulo da felicidade humana seria a fome e a sede permanentes, pois que seria preciso ento comer e beber sem cessar. Certamente semelhante vida seria to miservel quo ignbil.
Os prazeres animais so os mais vis, os menos puros, e sempre uma dor os acompanha. No est presa a fome ao prazer de comer, e isto em propores desiguais? Com efeito, a sensao da fome a mais violenta; ela tambm a mais durvel pois nasce antes do prazer e no morre seno com ele.
Os utopianos, formados nesses princpios, pensam que se no deve dar importncia s volpias carnais seno na medida em que so teis. Todavia, eles se entregam alegremente a elas, agradecidos natureza, que, ao cuidar do homem, tem a ternura de uma me e mistura impresses to doces e suaves com as funes indispensveis da vida.

Que triste destino seria o nosso, se nos fosse preciso expulsar, fora de venenos e drogas amargas, a fome e a sede de cada dia, como expulsamos as molstias que nos assaltam de longe em longe!
Eles mantm e cultivam de boa vontade a beleza, o vigor, a agilidade do corpo, os dons mais agradveis e felizes da natureza. item tambm os prazeres que a natureza criou exclusivamente para o homem e que fazem a graa e o encanto da vida. Porque o animal no demora a olhar sobre a magnificncia da criao, sobre a ordem e o arranjo do universo. Sente o odor para distinguir a alimentao, mas no saboreia a delcia dos perfumes; no conhece as relaes dos sons, e no aprecia a dissonncia nem a harmonia.
Finalmente, em toda espcie de satisfaes sensuais, os utopianos no esquecem jamais esta regra prtica:
Fugir volpia que impede gozar uma; volpia maior ou que seguida de qualquer dor. Ora, a dor , a seus olhos, a conseqncia inevitvel de toda volpia desonesta.
Eis ainda um de seus princpios:
Desprezar a beleza do corpo, enfraquecer suas foras, converter sua agilidade em entorpecimento, esgotar seu temperamento pelo jejum e pela abstinncia, arruinar a sade, em uma palavra, repelir todos os favores da natureza, no intuito de devotar-se mais eficazmente felicidade humana, na esperana de que Deus venha recompensar essas penas de um dia por xtases de alegria eterna, dar mostra de religio sublime. Mas crucificar a carne, sacrificar-se por um vo fantasma de virtude, ou para habituar-se antecipadamente a misrias que talvez no aconteam nunca, dar mostra de loucura, de uma covarde crueldade para consigo mesmo, de orgulhosa ingratido para com a natureza. pisar aos ps os benefcios do Criador, como desdenhando ser-lhe obrigado em alguma coisa.
Tal a teoria utopiana no que se refere virtude, e ao prazer. A menos que uma revelao descida do cu inspire ao homem qualquer coisa de mais santo, eles crem que a razo humana no pode conceber nada de mais verdadeiro.
Esta moral boa, m? o que no discutirei; no tenho tempo para tanto e no , alis, necessrio ao meu objetivo; fao apenas histria e no uma apologia. O que certo para mim, que o povo da Utopia, graas s suas instituies, o primeiro de todos os povos, e que no existe em parte alguma repblica mais feliz.
O utopiano gil e nervoso; sem ser de pequeno talhe, mais vigoroso do que parece exteriormente. A ilha no de igual fertilidade em todos os lugares; o ar no em toda a parte igualmente puro e salubre. Os habitantes combatem pela temperana as influncias funestas da atmosfera; corrigem o solo por meio de uma excelente cultura; de modo que em nenhuma outra parte vi jamais gado to robusto, nem mais abundantes colheitas. Em pais nenhum a vida do homem mais longa e as molstias menos numerosas.
No somente os cidados agricultores executam com grande perfeio os trabalhos que fertilizam uma terra naturalmente ingrata; mas o povo em massa empregado algumas vezes em extirpar florestas mal situadas para a comodidade de transporte, e plantar novas perto do mar, dos rios ou das cidades; porque de todos os produtos do solo, a madeira o mais difcil de transportar por terra.
O povo utopiano espiritual, amvel, engenhoso, ama o lazer, paciente no trabalho, quando o trabalho necessrio; sua paixo favorita o exerccio e o desenvolvimento do esprito. Durante a nossa estada na ilha tivemos a ocasio de dizer algo aos seus habitantes das letras e cincias da Grcia. Era verdadeiramente curioso ver o ardor com que esses bons insulares nos suplicavam interpretar-lhes os autores gregos; no lhes falamos dos latinos, pensando que no apreciariam desses ltimos seno os historiadores e poetas. Afinal foi foroso ceder s suas splicas; e, confessar-vos-ei, foi de nossa parte um ato de pura complacncia de que no espervamos tirar grande proveito. Mas, depois de algumas lies, tnhamos razo em nos felicitar pelo xito do empreendimento. Ficamos maravilhados da facilidade com que os meus discpulos copiavam a forma das letras, da nitidez de sua pronncia, da presteza de sua memria e da fidelidade de suas tradues. verdade que a maior parte dos que se tinham entregue a esse estudo, a princpio, espontaneamente, com to belo ardor, depois foi obrigada a faz-lo por um decreto do senado; eram eles os sbios mais notveis da classe dos letrados, e homens de idade madura. Em menos de trs anos no havia nada nas obras dos bons autores que no compreendessem perfeitamente simples leitura, exceto as dificuldades provenientes de erros tipogrficos.
Sou de opinio que a grande facilidade com que aprenderam o grego prova que esta lngua no lhes era inteiramente desconhecida. Creio que so gregos de origem e ainda que o seu idioma se aproxime muito do persa, nos nomes das suas cidades e magistraturas encontram-se alguns traos da lngua grega.

Quando de minha quarta viagem Utopia, em lugar de mercadorias, embarquei com um lindssimo pacote de livros, resolvido que estava de s regressar Europa depois de longo tempo. Ao deixar os utopianos, leguei-lhes minha biblioteca; ficaram assim, por meu intermdio, com quase todas as obras de Plato, um grande nmero das de Aristteles, o livro de Teofrasto sobre as Plantas, que estava rasgado em vrias agens, o que lastimo infinitamente.
Durante a travessia descuidei-me dele e por infelicidade um macaco deu com o livro, e ps-se a divertir-se arrancando-lhe as folhas ao acaso. Dentre os gramticos, s pude dar aos nossos insulares o Lascarias, por no ter trazido o grande Teodoro; em matria de dicionrios dei-lhes o Hesichius e o Dioscrido.
Plutarco o autor favorito deles; a jovialidade, a seduo de Luciano os encantam. Entre os poetas possuem Aristfanes, Homero, Eurpedes e Sfocles. Como historiadores, deixei-lhes Tucdides, Herdoto e Herodiano.
De medicina, tm algumas obras de Hipcrates e o Microtecn, de Galeno, que meu companheiro .de viagem, Tricius Apinas, levara consigo. Os dois ltimos livros so muito apreciados entre eles porque se no h pas algum onde a medicina seja menos necessria do que na Utopia, em compensao em parte alguma mais respeitada. Os utopianos a situam entre as partes mais teis e mais nobres da filosofia natural. O mdico, costumam dizer, que se aplica em penetrar os mistrios da vida, no somente tira deste estudo irveis prazeres, como ainda se torna agradvel ao divino obreiro, autor da vida. Nas idias utopianas, o Criador, assim como os operrios da terra, expe sua mquina do mundo aos olhos do homem, nico ser capaz de compreender esta bela imensidade. Deus olha com amor aquele que ira essa grande obra e procura descobrir suas molas e leis; olha com piedade o que permanece frio e estpido perante esse maravilhoso espetculo, como um animal sem alma.
fcil compreender agora por que os utopianos, cujo esprito cultivado incessantemente pelo estudo das cincias e das letras, so to dotados para as artes e invenes teis ao bem estar da vida. Devem a ns a imprensa e a fabricao do papel; mas nisto seu prprio gnio lhes serviu tanto quanto as nossas lies, pois no conhecamos bem a fundo nenhuma dessas duas artes. No fizemos seno mostrar as invenes tipogrficas dos Aldos e falar-lhes em termos vagos da matria empregada na fabricao do papel, e demais processos de impresso. Logo adivinharam o que apenas havamos indicado.
Antes escreviam em peles, cascas, folhas de papiros; ensaiaram logo depois fabricar papel e imprimir. Estas primeiras tentativas foram estreis, mas fora de experincias mil vezes repetidas chegaram a obter um xito completo; e se tivessem mo todos os manuscritos gregos poderiam tirar numerosas edies. Eles no possuem hoje outros livros alm dos deixados por mim; mas estes livros j foram multiplicados por milhares de exemplares.
O estrangeiro que aporta Utopia bem recebido, se se recomenda por um mrito real, ou se longas viagens lhe deram uma cincia exata dos homens e das coisas.
Foi por este ltimo ttulo que fomos recebidos de braos abertos ali, onde enorme a curiosidade de conhecer-se o que se a no estrangeiro. O comrcio com a ilha atrai pouca gente; porque, exceo do ferro, o que se pode levar a Utopia? Ouro? Prata? Mas quem o fizesse certamente seria obrigado a voltar com um e outro. Quanto ao comrcio de exportao, so os prprios utopianos que o fazem; e ao faz-lo tm em vista dois objetivos: primeiro, pr-se ao corrente de tudo que se a no exterior; e depois, manter e aperfeioar sua navegao.

DOS ESCRAVOS 62s15

Nem todos os prisioneiros de guerra so indistintamente entregues escravido; mas unicamente os indivduos pegados de armas na mo.
Os filhos de escravos no so escravos. O escravo estrangeiro torna-se livre ao tocar na terra da Utopia.
A servido recai particularmente sobre os cidados culpveis de grandes crimes e sobre os condenados morte pertencentes ao estrangeiro. Estes so muito numerosos na Utopia; os utopianos vo mesmo procur-los no exterior onde os compram a vil preo; algumas vezes obtm-nos at de graa.
Todos os escravos so submetidos a um trabalho contnuo, e trazem correntes. Os que so tratados, porm, com mais rigor, so os indgenas, que so tidos como os mais miserveis dos celerados, dignos de servir de exemplo aos outros por uma pior degradao. Com efeito, eles receberam todos os germes da virtude; aprenderam a ser felizes e bons, e, no entanto, abraaram o crime.
H ainda uma outra espcie de escravos, os trabalhadores pobres das regies vizinhas que vm se oferecer voluntariamente para trabalhar. So em tudo tratados como cidados; apenas so obrigados a trabalhar um pouco mais, uma vez que tm o hbito de fadiga maior. So livres de partir quando querem e nunca so devolvidos de mos vazias.
J disse dos cuidados afetuosos que tm os utopianos pelos enfermos; nada poupado que possa contribuir para sua cura, quer em remdios, quer em alimentos.
Os infelizes afetados de males incurveis recebem todos os consolos, todas as atenes, todos os alvios morais e fsicos, capazes de lhes tornar a vida mais vel. Mas quando a esses males incurveis se juntam sofrimentos atrozes, que ningum pode suprimir ou suavizar, os padres e magistrados se apresentam ao paciente e lhe levam a exortao suprema.
Mostram-lhe que ele est despojado dos bens e das funes da vida; que no faz seno sobreviver prpria morte, tornando-se assim um peso para si e os outros. Persuadem-no, ento, a no alimentar mais o mal que o devora, e a morrer com resoluo, uma vez que a existncia no para ele seno uma horrenda tortura.
Confiai - dizem-lhe - quebrai as cadeias que vos amarram, e desprendei-vos, por vossas prprias mos, da masmorra da vida; ou pelo menos consenti que outros dela vos libertem. Vossa morte no uma mpia repulsa aos benesses da existncia, mas o termo de um cruel suplcio.
Obedecer, neste caso, voz dos padres, intrpretes da divina vontade, fazer obra religiosa e santa.
Os que se deixam persuadir pem fim a seus dias pela abstinncia voluntria ou so adormecidos por meio de um narctico mortal, e morrem sem se aperceber. Os que no querem a morte, nem por isso am a receber menos atenes e cuidados; quando cessam de viver a opinio pblica honra sua memria.
O homem que se mata sem motivo reconhecido pelo magistrado e pelo padre, julgado indigno da terra e do fogo; seu corpo privado de sepultura e atirado ignominiosamente nos pntanos.
As raparigas no se podem casar antes dos dezoito anos; os rapazes, antes dos vinte e dois.
Os indivduos de um e doutro sexo, convictos de se terem entregue ao prazer antes do casamento, so veis de uma censura severa; e o casamento lhes completamente interdito, a menos que o prncipe releve a falta. O pai e a me de famlia, em cuja casa foi o delito praticado, ficam desonrados por no terem velado com bastante cuidado pelo comportamento de seus filhos.

res garantias de probidade poltica. O utopiano no se deixar corromper pelos atrativos da riqueza, por mais brilhante que ela possa ser, porque dentro de pouco j lhe no serviria para nada: quando tivesse de retornar ptria dentro de poucos anos ou meses. To pouco o utopiano deixar-se-ia levar pelo amor ou pelo dio, pois completamente desconhecido dos seus istrados.
Infeliz do pas onde a avareza e as afeies privadas sentam-se no banco do magistrado! Adeus justia! a mola mais firme dos Estados!
A repblica utopiana reconhece como aliados os povos que lhe vm pedir chefes, e por amigos os que lhe devem um benefcio. Quanto aos tratados que as outras naes assinam to freqentemente para romp-los e renov-los em seguida, ela nunca os assina.
Para que servem os tratados? interrogam os utopianos. No uniu a natureza o homem ao homem por laos bastante indissolveis? Aquele que despreza esta aliana ntima e sagrada ter escrpulo em violar um protocolo?
Consolida-os nesta opinio o fato de que nas terras desse novo mundo raro que as convenes entre prncipes sejam observadas de boa f
Na Europa, e principalmente nas regies onde reinam a f e a religio do Cristo, a majestade dos tratados santa e inviolvel. Isso decorre em parte da justia e da bondade dos monarcas, em parte do temor e do respeito que lhes inspiram os soberanos pontfices. Os papas em nada se comprometem que no executem religiosamente; por isso obrigam os outros soberanos a cumprirem exatamente as suas promessas, empregando o interdito pastoral e a severidade cannica para forar os que tergiversam. Os papas crem com razo que seria vergonhoso para a cristandade ver aqueles que se glorificam acima de tudo do nome de Fiis, se mostrarem infiis As suas prprias convenes.
Mas, nesse novo mundo separado do nosso, menos ainda pelo crculo equatorial do que pelos usos e costumes, no se presta nenhuma confiana aos tratados. Uma repentina ruptura segue de ordinrio os juramentos de paz mais solenes e que receberam a consagrao das mais santas cerimnias. muito fcil descobrir matria para chicana no texto de uma aliana; os negociadores insinuam de m f, nos textos, manhosas escapatrias, a fim de que o prncipe no fique jamais indissoluvelmente preso, e possa encontrar sempre uma sada secreta para seus compromissos.
E, entretanto, este mesmo ministro que se vangloria de falsificar assim as negociaes, por conta do rei, seu senhor, se percebesse que semelhantes embustes, ou melhor, velhacarias, eram introduzidas num contrato entre simples particulares, este mesmo diplomata, franzindo o sobrolho do alto de sua probidade, condenaria a fraude como um sacrilgio digno da forca.
Por este exemplo, dir-se-ia que a justia uma virtude plebia e de baixo nvel, a rastejar muito abaixo dos tronos dos reis. A menos que se distingam duas espcies de justias: uma boa para o povo, que anda a p e de cabea baixa, encerrada numa estreita muralha que no pode transpor; outra, para uso dos reis, infinitamente mais augusta e mais elevada, infinitamente mais livre, e a qual s est inibida de fazer o que no quer.
Sou levado a pensar que a deslealdade dos prncipes nesses pases longnquos a causa que determina os utopianos a no nenhuma espcie de conveno diplomtica. Mudariam talvez de opinio se morassem na Europa.
Contudo, em tese, encaram como um mal a introduo de tratados entre os povos, mesmo que fossem observados religiosamente. Este uso habitua os homens a se considerarem mutuamente inimigos, nascidos para se guerrearem sempre e para legitimamente se entredevorarem, na falta de um tratado de paz; como se no houvesse mais uma sociedade natural entre duas naes s porque uma colina ou. um rio as separa.
Ainda se as alianas garantissem a amizade dos confederados, mas, na realidade, nunca eliminam elas todos os pretextos de rompimento, e por conseguinte, de saque e de guerra, dada a leviandade dos diplomatas que redigem os artigos. raro que os plenipotencirios possam abarcar todos os casos possveis de proibies e compromissos, ou que os formulem de uma forma perfeitamente clara e precisa.
Os utopianos tm por princpio que no se deve ter por inimigo seno aquele que se torna culpado de injustia ou violncia. A comunho na mesma natureza parece-lhes um lao mais indissolvel do que todos os tratados.
O homem, afirmam, est unido ao homem de uma maneira mais ntima e mais forte pelo corao e pela caridade do que pelas palavras e protocolos.

DA GUERRA s6w1p

Os utopianos abominam a guerra como uma coisa puramente animal e que o homem, no entanto, pratica mais freqentemente do que qualquer espcie de animal feroz. Contrariamente aos costumes de quase todas as naes, nada existe de to vergonhoso na Utopia como procurar a glria nos campos de batalha. No se quer dizer com isto que eles no se exercitem com muita assiduidade na disciplina militar; as prprias mulheres so a isto obrigadas tanto quanto os homens; certos dias so fixados para os exerccios, a fim de que ningum fique sem habilitao para o combate quando chegar o momento de combater.
Mas os utopianos no fazem a guerra sem graves motivos. S a empreendem para defender suas fronteiras ou repelir uma invaso inimiga nas terras de seus aliados, ou ainda para libertar da escravido e do jugo de um tirano um povo oprimido. Neste caso, no consultam os seus interesses; vm apenas o bem da humanidade.
A repblica da Utopia presta gratuitamente socorros a seus amigos, no s no caso de agresso armada, mas tambm para vingar e obter reparao de uma injria. Entretanto, no caso, ela s age assim quando foi consultada antes da declarao de guerra; examina ento conscienciosamente a justia da causa, e se o povo que cometeu o dano no o quer reparar, , ento, declarado o nico autor e o nico responsvel pelos males da guerra.
Os utopianos tomam esta deliberao extrema todas as vezes que se d um saque em conseqncia de uma invaso armada. Mas a sua clera nunca to terrvel como quando os negociantes de uma nao amiga, sob o pretexto de algumas leis inquas, ou de conformidade com uma interpretao prfida de leis justas, sofreram no estrangeiro vexaes injustas em nome da justia.
Tal foi a origem da guerra que empreenderam pouco antes da atual gerao contra os alaoplitas e a favor dos nefelgitas. Os alaoplitas, no dizer dos nefelgitas, causaram a alguns de seus comerciantes prejuzos considerveis, sob um pretexto legal qualquer. Fosse ou no a queixa fundamentada, o fato que resultou uma guerra atroz. Aos dios e s foras dos dois inimigos principais, juntaram-se as paixes e os socorros dos pases vizinhos. Naes poderosas foram violentamente sacudidas, outras derrocadas. Esta deplorvel sucesso de males s terminou com a derrota completa e a escravido dos alaoplitas. Estes ltimos foram submetidos dominao dos nefelgitas, dado que a guerra no envolvia interesse direto dos utopianos. Entretanto, os nefelgitas estavam longe da situao florescente dos primeiros.
com tamanho vigor que os nossos insulares vingam o ultraje feito a seus amigos, mesmo que esteja em jogo apenas o dinheiro destes ltimos. So menos ciosos quanto a seus prprios negcios. E se acontece que alguns de seus cidados so despojados de seus bens no estrangeiro, vtimas de alguma trapaa, vingam-se do povo que cometeu o ultraje cessando todo comrcio com ele, a menos que tenha havido atentado contra as pessoas.
No que tenham menos apego aos interesses de seus concidados do que aos de seus aliados; porm am com menos pacincia as trapaas praticadas em prejuzo desses ltimos, porque o negociante que no utopiano perde ento uma parte de sua fortuna privada, e esta perda representa para ele uma pura desgraa, ao o que o utopiano no perde seno para a fortuna pblica, ou. melhor, para a abundncia e o suprfluo de seu pas; e, ento, a exportao proibida. por isso que as perdas em dinheiro s debilmente afetam na Utopia os indivduos. Eles julgam, e com razo, que seria demasiado cruel vingar, com a morte de um grande nmero de pessoas, um dano que no pode afetar nem a vida, nem o bem estar de seus concidados.
Alis, caso um utopiano seja maltratado ou morto injustamente, em conseqncia de deliberao pblica ou premeditao privada, a repblica encarrega seus embaixadores de verificarem o fato; pede que lhe sejam entregues os culpados e, no caso de recusa, somente a imediata declarao de guerra pode apazigu-la. No caso contrrio, os autores do crime so punidos com a morte ou com a escravido.
Os utopianos choram amargamente sobre os louros de uma vitria sangrenta; envergonham-se mesmo, considerando absurdo comprar as mais brilhantes vantagens ao preo do sangue humano. Para eles, o mais belo ttulo de glria o de ter vencido o inimigo fora de habilidade e artifcio. ento quando celebram os triunfos pblicos e erguem os trofu; como aps uma ao herica; ento quando se vangloriam de ter agido como homens e como heris, uma vez que venceram unicamente pela fora da razo, coisa de que no capaz nenhum animal, exceto o homem. Os lees, dizem, os ursos, os javalis, os lobos, os ces e outros animais ferozes no sabem empregar no combate seno as foras corporais; a maioria deles nos sobrepuja em audcia e vigor, mas todos, no entretanto, se dobram ao imprio da inteligncia e da razo
Fazendo a guerra, os utopianos no tm outra finalidade seno obter o que lhes teria evitado declar-la, caso suas reclamaes fossem satisfeitas antes da ruptura da paz. Quando toda satisfao impossvel, vingam-se sobre os provocadores, de forma a impedir, no futuro, pelo terror, os que ousassem tentar repetir semelhantes acometimentos. Tal o fito dos utopianos na execuo dos seus projetos, fito que se esforam por atingir com presteza, procurando antes evitar o perigo que colher uma fama intil.
Uma vez declarada a guerra, eles tratam de mandar pregar, secretamente, no mesmo dia, nos lugares mais visveis do pas inimigo, proclamaes revestidas com o selo do Estado. Essas proclamaes prometem magnficas recompensas ao assassino do prncipe inimigo; outras recompensas menos considerveis, ainda que bastante sedutoras, pelas cabeas de um certo nmero de indivduos, cujos nomes so escritos nessas fatais proclamaes. Os utopianos proscrevem, desta maneira, os conselheiros ou os ministros, que so, depois do prncipe, os principais autores da ofensa.
O preo prometido pelo homicdio dobrado para quem entregar vivo um dos proscritos. Mesmo aqueles cujas cabeas foram postas a prmio so convidados a trair seus partidrios por oferecimento de iguais recompensas e pela promessa de impunidade.
Esta medida tem por efeito colocar imediatamente os chefes do partido adverso em estado de suspeio mtua. No h mais confiana entre eles, e no se sentem mais seguros; temem uns aos outros e este temor no quimrico. No raro acontecer que muitos tm sido trados, sobretudo o prncipe, por aqueles em que depositavam mais confiana. Tal o poder que tem o ouro para arrastar ao crime! Tambm, os utopianos no poupam dinheiro nessa circunstncia. Recompensam com a gratido mais generosa queles que impelem aos perigos da traio; eles tm o cuidado de fazer com que a grandeza do perigo seja largamente compensada pela magnificncia do prmio.
por isso que prometem aos traidores no s imensas somas em dinheiro, mas ainda a propriedade perptua de terras de grande rendimento situadas em lugar seguro no pas aliado. E cumprem fielmente a palavra.
O uso de negociar os seus prprios inimigos, pondo suas cabeas a prmio, reprovado nos outros pases como uma infmia digna unicamente de almas degradadas. Os utopianos, porm, se gabam disso como de uma ao de alta sabedoria que termina sem combate as guerras mais terrveis. Honram-se disso como de uma ao humanitria e misericordiosa, que resgata, ao preo da morte de um punhado de culpados, a vida de vrios milhares de inocentes, de um como de outro lado, destinados a morrer nos campos de batalha. A piedade dos utopianos tambm se estende aos soldados de todas as bandeiras; sabem que o soldado no vai por sua prpria vontade guerra, mas arrastado pelas ordens e pelos furores dos prncipes.
Se os meios precedentes no do resultados, os nossos insulares semeiam e alimentam a discrdia, dando ao irmo do prncipe ou a alguma outra personagem a esperana de se apoderar do trono. Se as faces internas definham amortecidas ento eles instigam as naes vizinhas do inimigo, jogando-as contra ele, exumando mesmo alguns desses velhos ttulos que nunca faltam aos reis; ao mesmo tempo, prometem socorros aos novos aliados, dando-lhes dinheiro em caudal, mas os seus cidados no lhes entregam seno muito poucos.
Os cidados so para a repblica da Utopia o tesouro mais caro e mais precioso: a considerao que os habitantes da ilha tm uns pelos outros de tal modo elevada que no consentiriam de bom grado em trocar qualquer dos seus por um prncipe inimigo. Prodigalizam ouro sem pena porque este no empregado seno para os usos j referidos e porque nenhum deles seria exposto a viver menos comodamente, mesmo que lhes fosse necessrio gastar o ltimo escudo.
Alis, alm das riquezas guardadas na ilha, so os utopianos ainda, creio j vos t-lo dito, credores para muitos Estados de imensos capitais. com parte deste dinheiro que eles alugam soldados de todos os pases e principalmente do pas dos zapoletas, situado a leste da Utopia, numa distncia de quinhentos mil os.
O zapoleta, povo brbaro, feroz e selvagem, no sabe viver seno no meio das florestas e rochedos em que foi nutrido. Calejado na fadiga, a pacientemente o frio, o calor, o trabalho. As delcias da vida lhe so desconhecidas; menospreza a agricultura, a arte de bem morar e de bem vestir. No possui outra indstria que a criao dos rebanhos, e, as mais das vezes, no conhece outros meios de vida alm da caa e da pilhagem.
Nascidos exclusivamente para a guerra, os zapoletas procuram avidamente e no perdem nenhuma oportunidade de faz-la; ento descem aos milhares das montanhas e vendem a baixo preo seus servios primeira nao que deles necessita. O nico ofcio que sabem exercer o que d a morte; batem-se com bravura e incorruptvel fidelidade a servio dos que os contratam. Nunca se alistam por tempo determinado; e sempre sob a condio de ar no dia seguinte para o inimigo se lhe oferecer melhor paga, ou voltar primeira bandeira se a lhes concedem ligeiro aumento no soldo.
raro haver uma guerra nessas regies sem que haja zapoletas nos dois campos. tambm comum ver-se parentes muito prximos, amigos estreitamente ligados, enquanto serviam a mesma causa, combatendo-se com o mais vivo encarniamento, desde que a sorte os dispersou pelas fileiras das duas partes contrrias. Eles esquecem famlia, amizade e se matam furiosamente s pelo fato de dois soberanos inimigos pagarem alguns patacos por seu sangue e seu furor. A paixo do dinheiro entre eles to forte que um vintm a mais no soldo dirio basta para faz-los mudar de campo. Esta paixo degenerou numa avareza desenfreada, mas intil; porque o que o zapoleta ganha pelo sangue derramado, gasta-o na devassido.
Este povo faz a guerra pelos utopianos, contra todo o mundo, porque em parte alguma encontra melhor pagamento. De seu lado, os utopianos, que tratam a gente sria convenientemente, ajustam com muito gosto essa infame soldadesca para engan-la e destru-la. Quando precisam dos zapoletas comeam por seduzi-los com brilhantes promessas; depois expem-nos sempre nos postos mais perigosos. A maior parte perece e no volta para reclamar o que se lhes prometera; os que sobrevivem recebem exatamente o preo convencionado e esta rgida boa f anima-os a afrontar outra vez o perigo com a mesma audcia. Aos utopianos pouco se lhes d perder grande nmero desses mercenrios, pois esto persuadidos de que tero bem merecido do gnero humano se puderem um dia expurgar a terra desta raa impura de bandidos.
Alm dos zapoletas, os utopianos empregam ainda, em tempo de guerra, as tropas dos Estados de que tomam a defesa, e mais as legies auxiliares de seus outros aliados; s depois, por ltimo, recorrem a seus prprios concidados, entre os quais escolhem um homem de talento .e coragem para colocar frente de todo o exrcito
Este general-chefe tem sob suas ordens dois lugares-tenentes que no possuem nenhum poder enquanto ele pode comandar. Assim que o general morto ou aprisionado, um dos seus dois lugares-tenentes lhe sucede como por direito de herana; este ltimo , por sua vez substitudo por um terceiro. Resulta disto que os perigos a que est exposto pessoalmente o general, sujeito como qualquer um aos azares da guerra, no podero jamais comprometer a sorte do exrcito.
Cada cidade recruta e exercita suas tropas formadas pelos que se alistam voluntariamente. Ningum alistado contra a vontade para as expedies longnquas, pois um soldado naturalmente medroso, em lugar de se comportar valorosamente, no pode seno infundir em seus camaradas a prpria covardia. Entretanto, em caso de invaso, em caso de guerra no interior, todos os poltres robustos e vlidos so utilizados; enquanto uns so postos entre os melhores soldados, a bordo dos navios do Estado, os outros so disseminados pelas praas fortes. A, no h possibilidade de retirada; o inimigo est a dois os, a fuga impossvel, e os camaradas os observam. Esta posio extrema sufoca o temor da morte; e muitas vezes o excesso do perigo faz leo o mais covarde dos homens.
Se a lei no obriga ningum a marchar contra sua vontade para a fronteira, permite s mulheres que o queiram, acompanhar seus maridos no exrcito. Longe de serem impedidas, so, ao contrrio, estimuladas a seguir, constituindo tal gesto para elas brilhante ttulo de honra. Durante o combate, os esposos so colocados no mesmo posto, cercados de seus filhos, de seus aliados e parentes, a fim de que se prestem um mtuo e rpido socorro, os que a natureza impele a se protegerem entre si com maior afinco.
A desonra e a infmia esperam o esposo que volta sem a mulher e o filho sem o pai. Tambm quando os utopianos so forados a ar s vias de fato e o inimigo resiste, uma longa e lgubre refrega precipita a carnificina e a morte. Lanam mo de todos os meios para no se expor pessoalmente ao combate e terminar a guerra apenas por meio dos auxiliares que mantm s suas custas. Mas se surge a necessidade imperiosa de entrar realmente em combate, sua intrepidez, na ao, no menor do que a prudncia despendida quando era possvel.
No pem todo o entusiasmo no primeiro choque. A resistncia e a durao de uma batalha reforam pouco a pouco o seu valor, exaltando-os a ponto de tornar-se mais fcil mat-los que faz-los recuar.
O que lhes inspira este valor sublime, esse desprezo pela morte e pela vitria a certeza de ter, sempre, em sua terra, de que viver perfeitamente, sem carecer inquietar-se sobre a sorte da famlia, inquietao essa que, em todos os outros lugares, alquebra as almas mais generosas. O que ainda lhes aumenta a confiana a habilidade extrema na ttica militar; enfim, acima de tudo, a excelente educao que recebem, desde a infncia, nas escolas e instituies da repblica. Desde cedo aprendem a no desdenhar tanto a vida, para esbanj-la estouvadamente; mas tambm a no am-la tanto para guard-la com vergonhosa avareza, quando a honra exige que seja arriscada.
No mais forte da peleja, um troo seleto de jovens, conjurados e devotados at morte, tem por objetivo perseguir a todo o transe o chefe do exrcito inimigo. Ataca-o de surpresa ou a descoberto, de perto ou de longe. Esta pequena tropa disposta em tringulo no faz alto nem conhece repouso. continuamente renovada com novos recrutas perfeitamente descansados que substituem os soldados fatigados; raro que no consiga o seu fim, isto , matar o general inimigo ou aprision-lo, a menos que este no escape pela fuga.
Os utopianos, uma vez vitoriosos, no matam inutilmente os vencidos. Preferem prender a matar os fugitivos, e nunca os perseguem sem ter ao mesmo tempo um corpo de reserva disposto em ordem de batalha e preparado. Salvo no caso em que, desbaratadas as suas primeiras linhas, a retaguarda arrebate a vitria, os utopianos preferem deixar escapar todos os inimigos a ter que correr atrs deles e a habituar, com isso, os soldados a romperem as prprias filas, desordenadamente. No se esquecem que muitas vezes deveram sua salvao a esta ttica.
Realmente, muitas vezes o inimigo, depois de ter derrotado completamente o grosso do exrcito utopiano, tem-se arremessado, sem ordem, embriagado pelo triunfo, no encalo dos fugitivos. Nesse momento uma pequena reserva, atenta s oportunidades, pode mudar rapidamente a face do combate, atacando os vencedores de improviso, quando estes, dispersos aqui e ali, se esquecem de toda a precauo por excesso de confiana. Desta forma, a vitria mais segura tem sido algumas vezes arrebatada das mos que a detinham e, por seu turno, os vencidos batem os vencedores

difcil afirmar-se se os utopianos so mais hbeis em armar emboscadas do que prudentes em evit-las Acreditareis que preparam uma fuga quando preparam justamente o contrrio; e, reciprocamente, se tinham inteno de fugir no o podereis adivinhar. Quando se sentem bastante inferiores em posio ou em nmero, levantam o acampamento de noite, em profundo silncio, ou, ento, contornam o perigo com qualquer outro estratagema. Algumas vezes retiram-se em pleno dia mas em to boa ordem que no menos perigoso atac-los durante a retirada do que quando oferecem batalha.
Tm o maior cuidado em defender o prprio campo com fossas grandes e profundas; os entulhos so jogados no interior do campo. Estas construes no so entregues a operrios mas aos prprios soldados; todo o exrcito trabalha, excetuando-se os sentinelas que velam armados em redor do campo, prontos a fazer abortar qualquer surpresa. Por esse meio, poderosas fortificaes so erguidas prontamente, abrangendo uma imensa extenso de terreno.
As armas defensivas dos utopianos so muito slidas, e, entretanto, prestam-se to bem a toda espcie de movimentos e gestos que no embaraam nem mesmo o soldado a nado. Um dos primeiros exerccios militares ensinados aos soldados da Utopia, o de nadar armado. Combatem de longe com a azagaia, que lanam com vigor e segurana, tanto cavaleiros como infantes. De perto, em lugar de espadas, combatem com machados, cujo corte ou peso ocasionam inevitavelmente a morte, qualquer que seja a direo do golpe. So extremamente engenhosos em inventar mquinas de guerra, e as novas mquinas ficam cuidadosamente secretas at o momento de ser postas em uso, por temor de que, sendo conhecidas anteriormente, se tornem mais um brinquedo ridculo do que um objeto de real utilidade. O que mais procuram, ao fabric-las, a facilidade de transporte e a aptido a girar em todos os sentidos.
Os utopianos observam to religiosamente as trguas concludas com o inimigo, que no as violam mesmo em caso de provocao No devastam as terras do pas conquistado; no queimam suas colheitas; vo at a impedir, tanto quanto possvel, que elas sejam esmagadas sob os ps dos homens e dos cavalos, na previso de que venham a necessitar delas um dia.
Nunca maltratam um homem sem armas, a menos que seja espio. Conservam as cidades que se rendem e no abandonam pilhagem as que tomam de assalto. Apenas, matam os principais chefes que pem obstculos rendio da praa,e condenam escravido o resto dos que sustentaram o stio. Quanto massa indiferente e pacfica, deixam-na em paz. Se sabem que um ou mais sitiados haviam aconselhado a capitulao, do-lhes uma parte dos bens dos condenados; a outra parte para as tropas auxiliares. No tocam no despojo.
Com a terminao da guerra, no so os aliados em favor dos quais foi a guerra empreendida que am os seus gastos; so os vencidos. Em virtude desse princpio, os utopianos exigem dos ltimos, primeiramente dinheiro, que empregam para os fins que j conheceis, em caso de guerra futura; em segundo lugar, a concesso de vastos domnios situados no territrio conquistado, domnios que trazem repblica pingues rendas.
Atualmente, esta repblica conta em vrios pases do estrangeiro com imensas rendas desta espcie; oriundas de diversas causas, foram pouco a pouco se acumulando e do hoje mais de setecentos mil ducados. O Estado envia para essas propriedades cidados com o ttulo de questores que vivem magnificamente, possuem grande squito e fornecem ainda fortes somas ao tesouro. Muitas vezes, tambm, os utopianos cedem o produto dessas propriedades ao povo do pas onde elas se acham, enquanto no sentem necessidade dele. raro que reclamem o reembolso total. Uma parte desses domnios reservada aos que, cedendo seduo, afrontam os perigos de que j vos falei.
Assim que um prncipe pegou em armas contra a Utopia e se prepara para invadir uma das terras de seu domnio, os utopianos renem imediatamente um exrcito formidvel e o expedem para atacar o inimigo fora das suas fronteiras. S em medida extrema fazem nossos insulares a guerra em sua terra; e no h necessidade no mundo que os force a deixar entrar na ilha um socorro de tropas estrangeiras.

DAS RELIGIES DA UTOPIA 26334x

As religies, na Utopia, variam no unicamente de uma provncia para outra, mas ainda dentro dos muros de cada cidade; estes adoram o sol, aqueles divinizam a lua ou outro qualquer planeta. Alguns veneram como Deus supremo um homem cuja glria e virtude brilharam outrora de um vivo brilho
No obstante, a maior parte dos habitantes, que tambm a mais sbia, repele estas idolatrias e reconhece um Deus nico, eterno, imenso, desconhecido, inexplicvel, acima das percepes do esprito humano, enchendo o mundo inteiro com sua onipotncia e no com sua vastido corprea. Este Deus chamado Pai; a ele que atribuem as origens, o crescimento, o progresso, as revolues e o fim de todas as coisas. a ele unicamente que rendem homenagens divinas.
De resto, apesar da diversidade de suas crenas, todos os utopianos concordam numa coisa: que existe um ser supremo, ao mesmo tempo Criador e Providncia. Este ser designado, na lngua do pas, sob o nome comum de Mitra. A dissidncia consiste em que Mitra no o mesmo para todos. Mas qualquer que seja a forma pela qual cada um represente seu Deus, cada um adora, sob esta forma, a natureza majestosa e potente, a quem somente pertence o soberano imprio de todas as coisas, por consentimento geral dos povos.
Esta variedade de supersties tende, dia a dia, a desaparecer e a converter-se numa nica religio, a qual parece muito mais razovel. mesmo provvel que a fuso j se teria operado, sem os infortnios imprevistos e pessoais que impedem a converso de um grande nmero. Muitos, em lugar de atribuir ao acaso acidentes desse jaez, metem-se a interpret-los, sob o terror supersticioso que sentem, como uma vingana do Deus que estavam prestes a abandonar. Temem que este Deus se vingue de sua apostasia.
Entretanto, quando aprenderam conosco o nome do Cristo, sua doutrina, sua vida, seus milagres, a irvel constncia de tantos mrtires, cujo sangue voluntariamente vertido submeteu lei do Evangelho a maioria das naes da terra, no podeis imaginar com que afetuosa inclinao ouviram esta revelao. Talvez que Deus agisse secretamente em suas almas; talvez o cristianismo lhes pareceu em todos os pontos conforme seita que entre eles goza de maior prestgio.
O que na minha opinio contribuiu sobretudo para inspirar-lhes estas felizes disposies foi a narrao da vida em comum dos primeiros apstolos, to cara a Jesus Cristo, e atualmente ainda em uso nas sociedades dos verdadeiros e perfeitos cristos.
Como quer que seja, muitos dentre os utopianos abraaram nossa religio e foram purificados pelas guas sagradas do batismo; infelizmente, de ns quatro (a morte de outros dois companheiros nos tinha reduzido a este nmero), nenhum era padre. Eles no puderam, portanto, ainda que j iniciados nos outros mistrios, receber os sacramentos que, entre ns, unicamente os padres tm o poder de conferir; no obstante, tm uma idia perfeitamente exata desses sacramentos e de tal modo os desejam que ouvi-os discutir acaloradamente a questo de saber se um cidado, escolhido por eles, no poderia adquirir o carter de padre. A minha partida, no tinham ainda eleito ningum, mas pareciam resolvidos a faz-lo.
Os habitantes da ilha que no crem no cristianismo, no se opem sua propagao e no maltratam de nenhuma maneira os neo-convertidos. Apenas um dos nossos nefitos foi preso em minha presena. Recm-batizado, pregava em pblico, no obstante os meus conselhos, com mais zelo que prudncia. Arrebatado por seu ardente fervor, no se contentava em elevar ao primeiro plano o cristianismo; e condenava todas as outras religies, vociferando contra seus mistrios, que classificava como profanos, contra seus sectrios, que qualificava de mpios e sacrlegos, dignos do inferno. Este nefito, depois de ter deblaterado neste tom durante muito tempo, foi preso, no sob preveno de ultraje ao culto, mas por ter provocado tumulto entre o povo. Foi a julgamento e condenado ao exlio.
Os utopianos incluem no nmero de suas mais antigas instituies a que probe prejudicar uma pessoa por sua religio. Utopus, na poca da fundao do imprio, apurou que, antes de sua chegada, os indgenas viviam em guerras contnuas por motivos religiosos. Notara tambm que tal situao lhe facilitara a conquista do pas, porque as seitas dissidentes em vez de se reunirem em massa, combatiam isoladamente e a parte. Assim que se viu vitorioso e senhor do pas, apressou-se em decretar a liberdade de religio. Entretanto, no proscreveu o proselitismo, que propaga a f pelo raciocnio, com doura e modstia; que no procura destruir pela fora bruta a religio contrria, quando no consegue persuadir; que, finalmente, no emprega a violncia nem a injria.
Utopus, decretando a liberdade religiosa, no tinha unicamente em vista a manuteno da paz outrora perturbada por combates contnuos e dios implacveis; pensava ainda que o prprio interesse da religio exigia tal medida. Nunca ousou ele estatuir temerariamente qualquer coisa, em matria de f, na incerteza de que o prprio Deus no tenha inspirado aos homens as diversas crenas no intuito de experimentar, por assim dizer, esta grande variedade de cultos. Quanto ao emprego da violncia e de ameaas para constranger algum a adotar a mesma crena que outrem, pareceu-lhe tirnico e absurdo. Previa que se todas as religies fossem falsas, exceo de uma, tempo viria em que, com o auxlio da doura e da razo, a verdade se desprenderia espontaneamente, luminosa e triunfante, da noite do erro
Ao contrrio, quando a controvrsia se faz pelo tumulto e de armas na mo, dado que os piores homens so os mais teimosos, sucede que a melhor e mais santa das religies acabaria sepultada sob uma multido de vs supersties, como uma bela seara coberta pelo mato e os espinhos.
Foi por isto que Utopus deixou a cada um inteira liberdade de conscincia e de f
No obstante, castigou severamente, em nome da moral, o homem que degrada a dignidade de sua natureza a ponto de pensar que a alma morre com o corpo ou que o mundo marcha ao lu sem que exista alguma providncia
Os utopianos crem, pois, numa vida futura, onde castigos so preparados para os crimes e recompensas para as virtudes. No do o nome de homem quele que nega estas verdades e que rebaixa a natureza sublime de sua alma vil condio de um corpo de animal; com mais forte razo, no o honram com o ttulo de cidado, persuadidos de que, se o tal no estivesse amarrado pelo temor, calcaria aos ps como flocos de neve os hbitos e as instituies sociais. Quem pode duvidar, com efeito, que um indivduo que no tem outro freio seno o cdigo penal, outra esperana que a matria e o nada, no encontra prazer em iludir, astuciosa e secretamente, as leis de seu pas, ou viol-las pela fora, desde que satisfaa a sua paixo e o seu egosmo?
A esses materialistas no se rendem homenagens, no se confiam magistraturas ou cargos pblicos. So desprezados como seres de natureza inerte e impotente. Entretanto, no so condenados a pena, na convico generalizada de que no est no poder de ningum sentir segundo sua fantasia. No se fazem ameaas para obrig-los a dissimular a prpria opinio. A dissimulao proscrita na Utopia e a mentira detestada tanto quanto a trapaa. Unicamente no tm o direito de sustentar seus princpios em pblico perante o vulgo; podendo faz-lo, entretanto, em particular, junto aos padres e outras graves personagens. So mesmo insistentemente convidados para essas conferncias, na esperana de que seu delrio ceda enfim razo.
Grande nmero de utopianos professa um sistema diametralmente oposto ao materialismo; e como suas idias no so perigosas nem totalmente desprovidas de bom senso, a propaganda no lhes proibida. Estes ltimos, caindo no extremo oposto, pretendem que as almas dos animais so imortais como as nossas, ainda que muito inferiores quanto ao quinho da dignidade e da felicidade que lhes so destinadas.
Todos os utopianos, a parte pequena minoria, alimentam a convico ntima de que uma felicidade imensa aguarda o homem alm tmulo. por isto que choram pelos doentes e jamais pelos mortos, excetuado o caso em que o moribundo deixa a vida inquieto ou a contragosto. O temor da morte para eles um mau augrio; parece-lhes que este temor no existe seno nas almas sem esperana e cujas conscincias intranqilas tremem diante da eternidade, como se sentissem j o aproximar do suplcio. Alm disso acreditam que Deus no recebe com prazer o homem que no acorre de bom grado ao seu chamado, mas pela morte arrastado sua presena entre rebelde e aflito.
Aqueles que vm algum morrer assim tomam-se de horror; levam o defunto, tristes e silenciosos; e aps suplicar divina clemncia perdo s suas fraquezas, enterram-no.

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