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A Utopia
Thomas Morus
THOMAS MORUS: o autor e a obra. 1r462g
LIVRO PRIMEIRO. d6l3f
LIVRO SEGUNDO. b672q
Das cidades da Utopia e
particularmente da cidade de Amaurota. 5b6q2p
Dos magistrados. 6j6a3o
Das artes e ofcios. 3a464l
Das relaes mtuas entre os
cidados. 6a34s
Das viagens dos utopianos. 2r6433
Dos escravos. zh11
Da guerra. 642711
Das religies da Utopia. 5a664
Notas. 725f5f
THOMAS MORUS: o autor e a obra 273u5q
Thomas Morus, forma alatinada por
que literariamente conhecido Thomas Moore, Grande Chanceler da Inglaterra,
nasceu em Londres em 1478 e foi a decapitado em 1535. Filho de um dos juizes
do banco dos reis, foi aos quinze anos colocado como pagem do Cardeal Morton,
Arcebispo de Canturia. Em 1497 foi terminar seus estudos em Oxford, onde
conheceu Erasmo. Fez durante trs anos o curso de Legislao, ao mesmo
tempo que se preparava para exercer a advocacia.
Pouco depois da ascenso de
Henrique VII, foi referendrio e membro do Conselho Privado (1514).
Acompanhou o rei da Inglaterra ao campo de Drap d'or em 1520. Aps a queda do
cardeal Wolsey foi nomeado Grande Chanceler (1529).
Quando Henrique VIII abjurou o catolicismo, Morus, ento ligado Igreja
Romana, pediu demisso do cargo (1532), descontentando com esse gesto o Rei.
No ano seguinte ofendeu mortalmente Ana Bolena, recusando-se a assistir sua
coroao e a prestar fidelidade a seus descendentes. Foi condenado priso
perptua e ao confisco de todos os seus bens. Pouco tempo depois foi
condenado morte por crime de alta traio e decapitado em Londres em
1535.
A "Utopia", sua obra mais divulgada, e que lhe deu renome universal,
foi editada em Basilia (Sua) por Erasmo a quem Morus estava ligado por
fortes laos de amizade e a quem revelava, em sua correspondncia
particular, a repugnncia que sentia pela vida parasitria e faustosa da
corte: "No podes avaliar", escrevia-lhe, "com que averso me
encontro envolvido nesses negcios de prncipes; no h nada mais odioso
que esta embaixada"... Referia-se embaixada diplomtica enviada pelo
Rei da Inglaterra a Flandres afim de resolver um dissdio surgido entre este
pais e o prncipe Carlos de Castela.
A "Utopia" representa a primeira crtica fundamentada do regime
burgus e encerra uma anlise profunda das particularidades inerentes ao
feudalismo em decadncia. A forma muito simples; uma conversao ntima
durante a qual Morus aborda ex-abrupto as questes mais novas e mais difceis.
Sua palavra, s vezes satrica e jovial, outras, de uma sensibilidade
comovedora, sempre cheia de fora.
A primeira parte o espelho fiel das injustias e misrias da sociedade
feudal; , em particular, o martirolgio do povo ingls sob o reinado de
Henrique VII. Entretanto, o povo ingls no era vtima unicamente da
avareza do rei; outras causas de opresso e sofrimento o atormentavam. A
nobreza e o clero possuam a maior parte do solo e das riquezas pblicas;
estes bens permaneciam estreis para a grande massa de trabalhadores. Alm
disso, nessa poca, os grandes senhores mantinham uma multido de vassalos,
seja por amor ao fausto, seja para assegurar a impunidade de seus crimes ou
ainda para utiliz-los como instrumentos de violncia contra os viles.
Esta vassalagem era o terror do campons e do trabalhador.
De outro lado, o comrcio e a indstria da Inglaterra no tinham muita
expanso antes das descobertas de Vasco da Gama e Colombo. E assim, as geraes
se sucediam sem finalidade, sem trabalho e sem po. A agricultura estava em
runas desde que a nascente indstria da l, prometendo lucros espantosos,
fez com que terras imensas fossem transformadas em pastagens para carneiros.
Em conseqncia disto uma multido de camponeses viu-se reduzida misria,
trazendo uma multiplicao de mendicidade, vagabundagem, roubos e assassnios.
Por sua vez a lei inglesa era de uma severidade inaudita, punindo com a morte,
indistintamente, o ladro, o vagabundo e o assassino.
Com semelhante panorama social diante dos olhos, compreende-se a dureza e
amargura das crticas de Morus contra uma sociedade to profundamente
desorganizada e injusta.
Thomas Morus, depois de ter na "Utopia" feito uma stira a todas as
instituies da poca, edifica uma sociedade imaginria, ideal, sem
propriedade privada, com absoluta comunidade de bens e do solo, sem
antagonismos entre a cidade e o campo, sem trabalho assalariado, sem gastos
suprfluos e luxos excessivos, com o Estado como rgo da
produo, etc.
Embora o carter essencialmente imaginrio e quimrico da
"Utopia", a obra de Morus fica na histria do socialismo como a
primeira tentativa terica da edificao de uma sociedade baseada na
comunidade dos bens. E o seu nome ficou para sempre incorporado ao vocabulrio
universal como o significado do todo sonho generoso de renovao social...
A UTOPIA 5v6cn
DISCURSO 1u5fm
DO MUITO EXCELENTE HOMEM 2m321w
RAFAEL HITLODEU 1j1o3v
SOBRE A MELHOR CONSTITUIO DE
UMA REPBLICA 4n6d49
PELO k3j48
ILUSTRE 6u2kj
THOMAS MORUS 2d4i6k
VISCONDE E CIDADO DE LONDRES 5r5e23
NOBRE CIDADE DA INGLATERRA 1l1d1s
LIVRO PRIMEIRO 3y6e43
O invencvel rei da Inglaterra,
Henrique, oitavo do nome, prncipe de um gnio raro e superior, teve, no
faz muito tempo, uma querela de certa importncia com o serenssimo Carlos,
prncipe de Castela. Eu fui, ento, enviado s Flandres, como parlamentar,
com a misso de tratar e resolver essa questo.
Tinha por companheiro e colega, o
incomparvel Cuthbert Tunstall, a quem o rei confiara a chancela do
arcebispado de Canturia, com os aplausos de todos. Nada direi, aqui, em seu
louvor. No por temer que se acuse a minha amizade de adulao; porm, a
sua doutrina e as suas virtudes esto acima dos meus elogios, e sua reputao
to brilhante que celebrar o seu mrito seria, como diz o provrbio,
chover no molhado.
Encontramos em Bruges, lugar fixado para a conferncia, os delegados do prncipe
Carlos, todos personagens distintssimos. O governador de Bruges era o chefe
e o cabea dessa deputao, e Jorge de Tomsia, preboste de Mont-Cassel,
era a boca e o corao. Este homem, que deve sua eloqncia, menos ainda
arte que natureza, ava por um dos mais sbios jurisconsultos em
questes de Estado; e sua capacidade pessoal; aliada a longa prtica dos negcios,
fazia dele um habilssimo diplomata.
A conferncia j realizara duas
sesses e no pudera ainda concordar sobre muitos artigos. Os enviados de
Espanha despediram-se, ento de ns, para ir a Bruxelas consultar o prncipe.
Aproveitei esse lazer e rend-me a Anturpia.
Durante a minha estada nesta
cidade conheci muita gente; mas nenhuma relao me foi mais agradvel que a
de Pedro Gil, antuerpiense de uma grande integridade. Este moo, que desfruta
de honrosa posio entre os seus concidados, merece, realmente, uma das
mais elevadas, j pelos seus conhecimentos, j por sua moralidade, pois, a
erudio que possui iguala qualidade do carter. Sua alma est aberta a
todos; mas nutre por seus amigos tanta benevolncia, amor, fidelidade e
devotamento que poder-se-ia qualific-lo, muito justamente, como o perfeito
modelo da amizade. Modesto e sem fingimentos, simples e prudente, sabe falar
com esprito, e seu gracejo no nunca uma injria. Em suma, a intimidade
que se estabeleceu entre ns foi to cheia de prazer e encanto, que suavizou
em mim a saudade da ptria, do lar, de minha mulher, de meus filhos, e
acalmou as inquietaes de uma ausncia de mais de quatro meses.
Um dia, estava eu na Notre-Dame, igreja da grande devoo do povo, e uma das
obras primas mais belas da arquitetura; depois de ter assistido ao ofcio
divino, dispunha-me a voltar para o hotel, quando, de repente, dou de cara com
Pedro Gil, que conversava com um estrangeiro j idoso. A tez trigueira do
desconhecido, sua longa barba, a capa, quase a cair-lhe, negligentemente, sua
aparncia e aspecto revelavam um patro de navio.
Logo que Pedro deu comigo, aproximou-se, e, saudando-me, afastou-se um pouco
de seu interlocutor que iniciava uma resposta, e, a propsito deste, me
disse:
Vede este homem, pois bem, ia lev-lo
diretamente vossa casa.
- Meu amigo, respondi-lhe, por vossa causa, ele seria benvindo.
- mesmo por causa dele, replicou Pedro, se o conhecsseis. No h sobre
a terra outro ser vivo que possa vos dar detalhes to completos e to
interessantes sobre os homens e os pases desconhecidos. Ora, eu sei que sois
excessivamente curioso por essa espcie de notcias.
- No tinha adivinhado muito mal, disse eu, ento, pois que, logo
primeira vista, tomei o desconhecido por um patro de navio.
- Enganai-vos estranhamente; ele navegou, certo; mas no como Palinuro.
Navegou como Ulisses, e at mesmo como Plato. Escutai sua histria:
Rafael
Hitiodeu (o primeiro destes nomes o de sua famlia)
conhece bastante bem o latim e domina o grego
com perfeio. O estudo da filosofia ao qual se
devotou exclusivamente, fe-lo cultivar a lngua
de Atenas de preferncia de Roma. E, por isso,
sobre assuntos de alguma importncia, s vos citar
agens de Sneca e de Ccero. Portugal o
seu pas. Jovem ainda, abandonou seu cabedal aos
irmos; e, devorado pela paixo de correr mundo,
amarrou-se pessoa e fortuna de Amrico Vespcio.
No deixou por um s instante este grande navegador,
durante as trs das quatro ltimas viagens, cuja
narrativa se l hoje em todo o mundo. Porm, no
voltou para a Europa com ele. Amrico, cedendo
aos seus insistentes pedidos, lhe concedeu fazer
parte dos VINTE E QUATRO ficaram nos confins da
NOVA-CASTELA. Foi, ento, conforme seu desejo,
largado nessa margem; pois, o nosso homem no
teme a morte em terra estrangeira; pouco se lhe
d a honra de apodrecer numa sepultura; e gosta
de repetir este apotegma: O CADVER SEM SEPULTURA
TEM O CU POR MORTALHA; H POR TODA A PARTE CAMINHO
PARA CHEGAR A DEUS. Este carter aventureiro podia
ter-lhe sido fatal, se a Providncia divina no
o tivesse protegido. Como quer que fosse, depois
da partida de Vespcio ele percorreu, com cinco
castelhanos, uma multido de pases, desembarcou
em Taprobana, como por milagre, e. da chegou
em Calicut, onde encontrou navios portugueses
que o reconduziram ao seu pas, contra todas as
expectativas.
Assim que Pedro acabou essa
narrativa, agradeci-lhe o empenho e solicitude em me fazer desfrutar conversao
com homem to extraordinrio; depois, abordei Rafael, e, aps as saudaes
e cortesias habituais num primeiro encontro, levei-o minha casa com Pedro
Gil. A, sentados no jardim, sobre um banco de relva, a conversa comeou.
Rafael me contou como, aps a
partida de Vespcio, ele e seus companheiros, com afabilidade e bons servios,
grangearam a amizade dos indgenas, e como viveram com eles em paz e na
melhor harmonia. Houve mesmo um prncipe, cujo pais e nome me escapam, que
lhes deu proteo a mais afetuosa. Sua generosidade os proveu de barcos,
carros e tudo mais de que necessitavam para continuar a viagem, Um guia fiel
teve ordem de acompanh-los e apresent-los aos prncipes com excelentes
recomendaes.
Depois de vrios dias de marcha
descobriram burgos e cidades bem istradas, naes inmeras e Estados
poderosos.
No Equador, acrescentava Hitiodeu, de uma parte e de outra, no espao
compreendido pela rbita do sol, no viram seno vastas solides
eternamente devoradas por um cu de fogo. Ai, tudo os aturdia de horror e
espanto. A terra inculta tinha apenas como habitantes os animais mais ferozes,
os reptis mais terrveis, ou homens mais selvagens que os animais.
Afastando-se do Equador, a natureza se abrandava pouco a pouco; o calor
menos abrasador, a terra se cobre de uma ridente verdura e os animais so
menos selvagens. Mais longe ainda, aparecem povos, cidades, povoaes, em
que se faz um comrcio ativo por terra e por mar, no somente no interior e
com as fronteiras, mas entre naes muito distantes.
Estas descobertas inflamavam o
ardor de Rafael e de seus companheiros. E o que alimentava essa paixo pelas
viagens era o fato de serem itidos sem dificuldade no primeiro navio a
partir, qualquer que fosse o seu destino.
As primeiras embarcaes que
viram eram chatas, as velas formadas de vimes entrelaados ou de fo1has de
papiros, e algumas de couro. Em seguida, encontraram embarcaes terminadas
em ponta, as velas feitas de cnamo; e finalmente embarcaes inteiramente
semelhantes s nossas, e hbeis nautas conhecendo muito bem o cu e o mar,
mas sem nenhuma idia da bssola.
Esses bons homens ficaram pasmados
de irao e cheios do mais vivo reconhecimento, quando nossos castelhanos
lhes mostraram uma agulha imantada. Antes, era tremendo que se aventuravam ao
mar, e, ainda assim, atreviam-se a navegar apenas no vero. Hoje, bssola em
mo, arrostam os ventos e o inverno mais confiados do que seguros; pois, se no
tomam cuidado, essa bela inveno que parecia dever trazer-lhes tantos benefcios,
poder transformar-se, por sua imprudncia, em uma fonte de males.
Seria muito extenso se elatasse,
aqui, tudo o que Rafael viu em suas viagens. Alis, no essa a finalidade
desta obra. Completarei talvez a sua narrativa num outro livro em que darei
detalhes, principalmente, dos hbitos, costumes e sbias instituies dos
povos civilizados, que freqentou Rafael.
Sobre essas graves questes ns
o importunamos com perguntas interminveis, e ele consentia, prazeirosamente,
em satisfazer a nossa curiosidade. Ns nada lhe perguntamos sobre esses
monstros famosos que j perderam o mrito da novidade: Cila (1),
Celenos, Lestriges, comedores de gente, e outras hrpias da mesma espcie
que existem em quase toda parte. O que raro, uma sociedade s e
sabiamente organizada.
Para dizer verdade, Rafael notou entre esses novos povos instituies to
ruins quanto as nossas, mas, observou tambm um grande nmero de leis
capazes de esclarecer, de regenerar as cidades, naes e reinos da velha
Europa.
Todas essas coisas, repito-o, sero
objeto de uma outra obra. Nesta, relatarei apenas o que Rafael nos contou dos
costumes e instituies do povo utopiano. Antes, quero mostrar ao leitor de
que maneira a conversa foi levada para este terreno:
Rafael entremeava a sua narrativa
com as reflexes mais profundas. Examinando cada forma de governo, analisava,
com uma sagacidade maravilhosa, o que h de bom e verdadeiro numa, de mau e
de falso noutra. Ao ouvi-lo discorrer to sabiamente sobre as instituies
e os costumes dos diferentes povos, era de pensar-se que vivera toda a vida
nos lugares por onde apenas ara. Pedro no pode conter a sua irao.
Na verdade, disse, meu caro Rafael, espanto-me que no vos tivsseis posto a
servio de algum rei. Certamente no haveria um s que no encontrasse em
vs utilidade e satisfao. Enchereis de encanto os seus lazeres com o
vosso conhecimento universal das coisas e dos homens, e os incontveis
exemplos, que podereis citar, proporcionar-lhe-iam um slido ensinamento e
conselhos preciosos. Fareis, ao mesmo tempo, uma brilhante fortuna para vs
e os vossos.
- Eu pouco me inquieto com a sorte
dos meus, retomou Hitiodeu. Creio ter cumprido sofrivelmente os meus deveres
para com eles. Os outros homens s abrem mo de seus bens j velhos e na
agonia, e ainda chorando, que renunciam ao que suas mos desfalecentes no
mais podem reter. Eu, cheio de sade e juventude, tudo dei aos meus parentes
e amigos.
- Eles no se queixaro, espero,
do meu egosmo; no exigiro que, para cumul-los de ouro, eu me faa
escravo de um rei.
- Entendamo-nos, disse Pedro, a minha inteno no foi a de que servsseis
um prncipe como lacaio e sim como ministro.
- Os prncipes, meu amigo, pem
nisto pouca diferena; e, entre estas duas palavras latinas servire e
inservire, vm apenas uma slaba a mais, ou a menos.
- Chamai a coisa como quiserdes,
respondeu Pedro; o melhor meio de ser til ao pblico, aos indivduos, e
de tornar mais feliz a prpria situao.
- Mais feliz, dizeis! mas, como aquilo que repugna ao meu sentimento, ao meu
carter, poderia fazer minha felicidade? Presentemente sou livre, vivo como
quero, e duvido que muitos dos que vestem a prpura possam dizer o mesmo.
Muita gente ambiciona os favores do trono; os reis no sentiro falta, se eu
e dois ou trs da minha tmpera no nos encontrarmos entre os cortesos.
Ento falei assim:
evidente, Rafael, que no
procurais riquezas nem poder, e no tenho menos irao e estima por um
homem como vs, do que por aquele que est frente de um imprio.
Parece-me, entretanto, que seria digno de um esprito to generoso, to filsofo,
como o vosso, aplicar todos os seus talentos na direo dos negcios pblicos,
embora houvesse que comprometer o seu bem estar pessoal; ora, a maneira de o
fazer com mais proveito, ainda a de entrar para o conselho de algum grande
prncipe; estou certo de que a vossa boca no se abrir jamais, seno para
a virtude e para a verdade. Vs o sabeis, o prncipe a fonte de onde o
bem e o mal jorram, como uma torrente, sobre o povo; e possus tanta cincia
e tantos talentos que, embora no tivsseis o hbito dos negcios, dareis,
mesmo assim, um excelente ministro para o rei mais ignorante.
- Incidis num duplo erro, caro
Morus, replicou Rafael; e no s quanto ao fato em si como quanto pessoa;
estou longe de ter a capacidade que me atribuis; e mesmo que a tivesse cem
vezes maior, o sacrifcio de meu sossego seria intil causa pblica.
Em primeiro lugar, os prncipes
cuidam somente da guerra (arte que me desconhecida e que no tenho nenhum
desejo de conhecer). Eles desprezam as artes benfazejas da paz. Trate-se de
conquistar novos reinados, e todos os meios lhes parecem bons; o sagrado e o
profano, o crime e o sangue, no os detm. Em compensao, ocupam-se muito
pouco de bem istrar os Estados submetidos sua dominao.
Quanto aos conselhos dos reis, eis
aproximadamente a sua composio:
Uns se calam por inpcia, e teriam mesmo grande necessidade de ser
aconselhados. Outros, so capazes, e sabem que o so; mas partilham sempre
do parecer do preopinante, que est em melhores graas, e aplaudem, com
entusiasmo, as pobres imbecilidades que este entende desembuchar; esses vis
parasitas s tm uma finalidade: ganhar, por uma baixa e criminosa lisonja,
a proteo do primeiro favorito. Os outros, so escravos de seu amor prprio
e escutam apenas a prpria opinio, o que no de irar, pois a
natureza insufla cada um a afagar com amor os produtos de sua inveno.
assim que o corvo sorri sua ninhada, e o macaco aos seus filhotes.
Que sucede ento no seio desses
conselhos onde reinam a inveja, a vaidade e o interesse? Intenta, algum,
apoiar uma opinio razovel na histria dos tempos ados, ou nos
costumes dos outros pases? Os outros se mostram surpresos e transtornados; e
com o amor prprio alarmado como se fossem perder a reputao de sbios e
ar por imbecis. Eles quebram a cabea at encontrar um argumento
contraditrio, e, se a memria e a lgica lhes minguam, entrincheiram-se
neste lugar comum: Nossos pais assim pensaram e assim fizeram; ah! queira Deus
que igualemos a sabedoria de nossos pais! Depois se assentam, pavoneando-se,
como se acabassem de pronunciar um orculo. Dir-se-ia, ao ouvi-los, que a
sociedade vai perecer se surgir um homem mais sbio que os seus anteados.
Enquanto isso, permaneamos indiferentes, deixando subsistir as boas instituies
que eles nos legaram; e quando surge um melhoramento novo agarramo-nos
antigidade para no acompanhar o progresso. Vi, em quase toda a parte,
desses julgadores rabugentos, insensatos ou presunosos. Aconteceu-me uma vez
na Inglaterra. -.
- Perdo, disse eu, ento, a
Rafael, estivestes tambm na Inglaterra?
- Sim, estive l alguns meses, pouco depois da guerra civil dos ingleses
ocidentais contra o rei que terminou com uma horrorosa matana dos insurretos
- Nessa ocasio, recebi enormes obsquios do reverendssimo padre Joo
Morton, cardeal-arcebispo de Canturia e chanceler da Inglaterra.
Era um homem (dirijo-me unicamente a vs, meu caro Pedro, porque Morus no
necessita dessas informaes), era um homem ainda mais venervel por seu
carter e virtude do que por suas altas dignidades. Sua estatura mediana no
se curvava ao peso da idade; sua fisionomia, sem ser dura, impunha respeito;
era de trato fcil, mas severo e majestoso. Sentia prazer em experimentar os
solicitantes com apstrofes por vezes um tanto rudes, embora nunca ofensivas,
mostrando-se encantado se percebia neles presena de esprito e respostas
prontas, mas sem impertinncia. Esta prova o ajudava a inferir do mrito de
cada qual e a classific-lo,- segundo a especialidade. Sua linguagem era pura
e enrgica; sua cincia do direito profunda, seu julgamento seleto, sua memria
prodigiosa. Essas brilhantes disposies naturais, ele as tinha ainda
desenvolvido pelo exerccio e pelo estudo. O rei fazia grande caso de seus
conselhos e o considerava como um dos mais firmes esteios do Estado - Levado
muito jovem do colgio para a corte, envolvido toda a vida nos acontecimentos
mais graves, tangido, sem descanso, pelo mar tempestuoso do destino,
adquirira, em meio de perigos sempre renovados, uma consumada prudncia, um
conhecimento to profundo das coisas que, por assim dizer, com ele prprio
se identificava.
O acaso me fez encontrar um dia,
mesa desse prelado, um leigo reputado como douto legista - Este homem, no
sei a que propsito, se ps a cumular de louvores a rigorosa justia
exercida contra os ladres. Narrava gostosamente como eles eram enforcados,
aqui e ali, s vintenas, na mesma forca.
Apesar disso, acrescentava, vejam que fatalidade! Mal escapam da forca dois ou
trs desses bandidos, e, no entanto, na Inglaterra, eles formigam por toda
parte !
Com a liberdade de palavra que gozava na casa do cardeal, disse eu, ento:
Nada disso devia surpreender-vos. Neste caso a morte uma pena injusta e intil;
bastante cruel para punir o roubo, mas bastante fraca para impedi-lo. O
simples roubo no merece a forca, e o mais horrvel suplcio no impedir
de roubar o que no dispe de outro meio para no morrer de fome. Nisto, a
justia de Inglaterra e de muitos outros pases se assemelha aos mestres que
espancam os alunos em lugar de instru-los. Fazeis sofrer aos ladres
pavorosos tormentos; no seria melhor garantir a existncia a todos os
membros da sociedade, a fim de que ningum se visse na necessidade de roubar,
primeiro, e de morrer, depois?
- A sociedade previu o fenmeno, replicou o meu legista; a indstria, a
agricultura oferecem ao povo inmeros meios de existncia; existem, porm,
seres que preferem o crime ao trabalho.
- Era a mesmo onde eu vos
esperava, respondi. No falarei dos que voltam das guerras civis ou
estrangeiras com o corpo mutilado. Quantos soldados, entretanto, na batalha de
Cornualha, ou na campanha de Frana, perderam um ou vrios membros a servio
do rei e da ptria! Esses infelizes tornaram-se fracos demais para exercer o
seu antigo ofcio e velhos demais para aprender um novo. Mas deixemos isso,
as guerras s se reacendem a longos intervalos. Olhemos o que se a cada
dia ao redor de ns. A principal causa da misria pblica reside no nmero
excessivo de nobres, zanges ociosos, que se nutrem do suor e do trabalho de
outrem e que, para aumentar seus rendimentos, mandam cultivar suas terras,
escorchando os rendeiros at carne viva. No conhecem outra economia.
Mas, tratando-se, ao contrrio, de comprar um prazer, so prdigos, ento,
at loucura e mendicidade. E no menos funesto o fato de arrastarem
consigo uma turba de lacaios e mandries sem estado e incapazes de ganhar a
vida.
Caiam doentes esses lacaios, ou venha o seu patro a morrer, e so jogados
no olho da rua; porque prefervel nutri-los para no fazer nada, do que
aliment-los enfermos; muitas vezes o herdeiro do defunto no est em condies
de manter a domesticidade paterna.
Eis a pessoas expostas a morrer de fome se no tm o nimo de roubar. Tero
eles,, na realidade, outras possibilidades? Procurando emprego gastam a sade
e as roupas; e quando se tornam descorados pelas molstias e cobertos de
farrapos, os nobres lhes tm horror, desprezando os seus servios. Os
camponeses mesmo no os querem empregar. Os camponeses sabem que um homem
criado molemente na ociosidade e nos prazeres, habituado a trazer a cimitarra
e o broquel, a olhar superiormente os vizinhos e a desprezar todo mundo; os,
camponeses sabem que um tal homem no apto a manejar a p e a enxada, a
trabalhar, fielmente, por um salrio insignificante e uma parca alimentao,
a servio de um pobre lavrador.
Sobre esse ponto meu antagonista respondeu:
- precisamente essa espcie de gente que o Estado deve manter e
multiplicar com mais cuidado. H neles mais nimo e nobreza da alma que no
arteso e no trabalhador. So maiores e mais robustos e constituem,
portanto, a fora do exrcito na hora de combater.
- Seria o mesmo que dizer, repliquei ento, que se deve, para a glria e o
xito dos vossos exrcitos, multiplicar os ladres. Porque esses mandries
so uma sementeira inesgotvel para o exrcito. Com efeito, os ladres no
so os piores soldados, como os soldados no so os ladres mais tmidos;
h muita analogia entre esses dois ofcios. Infelizmente, esta praga social
no particular Inglaterra; corri quase todas as naes.
A Frana est infestada por uma peste ainda mais desastrosa. O seu solo est
inteiramente coberto e como que sitiado por inmeras tropas arregimentadas e
pagas pelo Estado. E isto em tempo de paz; se que se pode chamar de paz as
trguas de um momento. Este deplorvel sistema justificado pelo mesmo
motivo que vos leva a sustentar mirades de lacaios ociosos. Pareceu a esses
polticos, timoratos e aflitos, que a segurana. do Estado exigia um exrcito
numeroso, forte, permanentemente em armas, e composto de veteranos. No
confiam nos conscritos. Dir-se-ia mesmo que fazem guerras para ensinar o exerccio
ao soldado a fim de que, como escreveu Salstio, nesse grande matadouro
humano, o corao ou a mo no se lhes entorpeam no repouso.
A Frana aprende sua custa o
perigo de alimentar essa espcie de animais carnvoros. No entanto,
bastar-lhe-ia olhar os romanos, os cartagineses e muitos outros povos antigos.
Que benefcios tiraram, entretanto, de seus exrcitos imensos e sempre em p
de guerra? A devastao de suas terras, a destruio de suas cidades, a runa
de seu imprio. Se, ao menos, tivesse adiantado, aos ses, exercitar,
por assim dizer, seus soldados desde o bero! Mas os veteranos da Frana j
combateram contra os conscritos da Inglaterra, e no estou certo se se podem
gabar muitas vezes de ter levado a melhor. Eu me calo sobre esse captulo;
pareceria estar fazendo a corte aos que me ouvem.
Voltemos aos nossos soldados lacaios.
Tm eles, dizeis, mais coragem e
grandeza da alma do que os artesos e os trabalhadores. Eu, de mim, no
creio que um lacaio faa muito medo nem a uns nem a outros, a no ser queles
em que a fraqueza do corpo paralisa o vigor da alma e cuja energia foi
aniquilada pela misria. Os lacaios, dizeis ainda, so maiores e mais
robustos. Mas no uma lstima ver homens fortes e belos (porque os nobres
escolhem as vtimas de sua corrupo) consumirem-se na inao,
amolecerem-se em ocupaes de mulheres, quando fcil seria torn-los
laboriosos e teis, dando-lhes um ofcio honrado e habituando-os a viver do
trabalho de suas mos.
De qualquer maneira que se encare a questo, esta massa imensa de gente
ociosa parece-me intil ao pas, mesmo na hiptese de uma guerra, que podereis,
alis, evitar todas as vezes que o quissseis. Ela , alm do mais, o
flagelo da paz; e a paz merece que se trate dela, tanto quanto da guerra.
A nobreza e a lacaiada no so
as nicas causas dos assaltos e roubos que vos deixam desolado; h uma outra
exclusivamente peculiar vossa ilha.- E qual ela?, disse o cardeal.
- Os inumerveis rebanhos de
carneiros que cobrem hoje toda a Inglaterra. Estes animais, to dceis e to
sbrios em qualquer outra parte, so entre vs de tal sorte vorazes e
ferozes que devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as casas e as
aldeias.
De fato, a todos os pontos do
reino, onde se recolhe a l mais fina e mais preciosa, acorrem, em disputa do
terreno, os nobres, os ricos e at santos abades. Essa pobre gente no se
satisfaz com as rendas, benefcios e rendimentos de suas terras; no est
satisfeita de viver no meio da ociosidade e dos prazeres, s expensas do pblico
e sem proveito para o Estado. Eles subtraem vastos tratos de terra
agricultura e os convertem em pastagens; abatem as casas, as aldeias, deixando
apenas o templo para servir de estbulo para os carneiros. Transformam em
desertos os lugares mais povoados e mais cultivados. Temem, sem dvida, que no
haja bastantes parques e bosques e que o solo venha a faltar para os animais
selvagens.
Assim um avarento faminto enfeixa,
num cercado, milhares de geiras; enquanto que honestos cultivadores so
expulsos de suas casas, uns pela fraude, outros pela violncia, os mais
felizes por uma srie de vexaes e de questinculas que os foram a
vender suas propriedades. E estas famlias mais numerosas do que ricas
(porque a agricultura tem necessidade de muitos braos), emigram campos em
fora, maridos e mulheres, vivas e rfos, pais e mes com seus filhinhos.
Os infelizes abandonam, chorando, o teto que os viu nascer, o solo que os
alimentou, e no encontram abrigo onde refugiar-se. Ento vendem a baixo preo
o que puderam carregar de seus trastes, mercadoria cujo valor j bem
insignificante. Esgotados esse fracos recursos, o que lhes resta? O roubo, e,
depois, o enforcamento segundo as regras.
Preferem arrastar sua misria mendigando? No tardam ser atirados na priso
como vagabundos e gente sem eira nem beira. No entanto, qual o seu crime?
o de no achar ningum que queira aceitar os seus servios, ainda que
eles os ofeream com .o mais vivo empenho. E alis, como empregar esses
homens? Eles s sabem trabalhar a terra; no h ento nada a fazer com
eles, onde no h mais nem semeaduras nem colheitas. Um s pastor ou
vaqueiro suficiente, agora, a fazer com que brote, de si mesma, a terra
onde, outrora, para seu cultivo, centenas de braos eram necessrios.
Outro efeito desse fatal sistema uma grande carestia de vida em diversos
lugares.
Mas no tudo. Aps a multiplicao dos pastos, uma horrorosa epizootia
veio matar uma imensa quantidade de carneiros. Parece que Deus queria punir a
avareza insacivel dos vossos aambarcadores com esta medonha mortandade que
talvez fosse mais justo lanar sobre suas prprias cabeas. Ento, o preo
das ls subiu to alto que os operrios mais pobres no as podem
atualmente comprar. E eis a de novo uma multido de gente sem trabalho.
verdade que o nmero de carneiros cresce rapidamente todos os dias; mas nem
por isso o preo baixou; porque se o comrcio das ls no um monoplio
legal, est, na realidade, concentrado nas mos de alguns ricos aambarcadores
que nada pode constrang-los a vender a no ser com altos lucros.
As outras espcies de gado encareceram proporcionalmente pela mesma causa e
por uma causa mais forte ainda, porque a reproduo destes animais est
completamente abandonada, desde a abolio das granjas e a runa da
agricultura. Vossos grandes senhores no cuidam da criao do gado, como da
criao de seus carneiros. Vo comprar, distante, animais magros, quase por
nada, engordam-nos nos seus campos e os revendem a preos extraordinrios.
Temo bastante que a Inglaterra no tenha sofrido todos os efeitos desses
deplorveis abusos. At agora os engordadores de gado s provocaram a
carestia nos lugares onde vendem; mas fora de transportar o gado do lugar
onde compram, sem lhe dar tempo de reproduzir, o seu nmero acabar por
diminuir, insensivelmente, e o pas acabar por cair numa horrvel penria.
Assim, o que devia fazer a riqueza de vossa ilha far a misria, devido
avareza de um punhado de miserveis.
A escassez geral obriga todo o mundo a restringir sua despesa e sua criadagem.
E os que so despedidos, para onde vo? Mendigar ou roubar, se tm coragem.
A estas causas de misria ajuntam-se ainda o luxo e as despesas insensatas.
Lacaios, operrios, camponeses, todas as classes da sociedade, ostentam um
luxo inaudito nas vestes e na alimentao. Que direi dos lugares de
prostituio, dos vergonhosos antros de embriaguez e devassido, das
infames casas de tavolagem de todos os jogos, do baralho, do dado, do jogo da
pla e da conca, que devoram o dinheiro de seus freqentadores, e os impelem
diretamente ao roubo para reparar as perdas?
Arrancai de vossa ilha essas pestes pblicas, esses germes do crime e da misria.
Obrigai os vossos nobres demolidores a reconstruir as quintas e burgos que
destruram, ou a ceder os terrenos para os que quiserem reconstruir sobre as
runas. Colocai um freio ao avarento egosmo dos ricos; tirai-lhes o direito
do aambarcamento e monoplio. Que no haja mais ociosos entre vs. Dai
agricultura um grande desenvolvimento; criai a manufatura da l e a de outros
ramos de indstria, para que venha a ser ocupada utilmente esta massa de
homens que a misria transformou em ladres, vagabundos ou lacaios, o que
aproximadamente a mesma coisa.
Se no remediardes os males que vos assinalo, no vos vanglorieis de vossa
justia; ela uma mentira feroz e estpida.
Abandonais milhes de crianas aos estragos de uma educao viciosa e
imoral. A corrupo emurchece, vossa vista, essas jovens plantas que
poderiam florescer para a virtude, e, vs as matais, quando, tornadas homens,
cometem os crimes que germinavam desde o bero em suas almas. E, no entanto,
que que fabricais? Ladres, para ter o prazer de enforc-los.
Enquanto eu assim falava, o meu adversrio preparava a rplica. Ele se
dispunha a seguir a pomposa dialtica desses polemistas categricos, que
repetem mais do que respondem e que fazem ponto de honra de uma discusso os
exerccios de memria.
Falastes muito bem, disse-me ele, sobretudo vs que sois estrangeiro e que no
podeis conhecer estas matrias seno de outiva. Eu vos darei melhores
esclarecimentos. Eis a ordem do meu discurso: antes de tudo, recapitularei
tudo o que vos disse; em. seguida realarei os erros a que vos induziu a
ignorncia dos fatos; finalmente, refutarei os vossos argumentos e pulveriz-los-ei.
Comeo, pois, como o prometi. Tendes, se no me engano, enumerado quatro...
- Eu vos detenho a, interrompeu bruscamente o cardeal, o exrdio me faz
temer que o discurso seja um pouco longo. Ns vos pouparemos hoje desta
fadiga. Mas no vos dou. por desembaraado dessa arenga; guardai-a
integralmente para a prxima entrevista que tiverdes com vosso adversrio.
Desejo que estejam ambos aqui, amanh, a menos que vs, ou Rafael, estejais
na impossibilidade de vir. Enquanto isso, meu caro Rafael, far-me-eis o obsquio
de explicar por que o roubo no merece a morte, e por que outra pena a
substituireis de forma a garantir melhor a segurana pblica. Como no
pensais que se deva tolerar o roubo, e se a forca no hoje uma barreira
para o banditismo, que terror exercereis, sobre os celerados quando eles
tiverem a certeza de no perder a vida? Que sano bastante forte dareis
lei? Uma pena mais branda no seria um prmio de incitamento ao crime?
Minha convico ntima, eminncia, que injusto matar-se um homem por
ter tirado dinheiro de outrem, desde que a sociedade humana no pode ser
organizada de modo a garantir para cada um uma igual poro de bens.
Podem objetar-me, sem dvida, que a sociedade, tirando-lhe a vida, vinga a
justia e as leis, e no pune somente uma miservel subtrao de
dinheiro. Responderei com este axioma: Summum jus, summa injuria, O supremo
direito uma injustia suprema. A vontade do legislador no to infalvel
e absoluta que seja necessrio desembainhar a espada menor infrao aos
seus decretos. A lei no to rgida e estica que coloque, no mesmo nvel,
todos os delitos e crimes, e no estabelea nenhuma diferena entre matar
um homem e roub-lo. Se a eqidade no uma palavra c, h entre essas
duas aes um abismo.
E como! Deus proibiu o assassnio e ns, ns matamos to facilmente por
causa do furto de algumas moedas!
Algum dir, talvez: Deus, com esse mandamento, tirou o poder de matar ao
homem privado, mas no ao magistrado que condena aplicando as leis da
sociedade.
Mas se assim, quem impede os homens de fazer outras leis igualmente contrrias
aos preceitos divinos, e de legalizar o estupro, o adultrio e o perjrio.?
Como!... Deus nos proibiu tirar a vida no somente ao nosso prximo mas tambm
a ns mesmos; e ns poderamos legitimamente convencionar em degolarmo-nos
em virtude de algumas sentenas jurdicas! E esta conveno atroz
colocaria juizes e carrascos por cima da lei divina, dando-lhes o direito de
mandar morte os que o cdigo penal condena a morrer!
Resultaria disso esta conseqncia monstruosa: a justia divina tem
necessidade de ser legalizada e autorizada pela justia humana; e que, em
todos os casos possveis, cabe ao homem determinar quando deve obedecer ou no
aos mandamentos de Deus.
A prpria lei de Moiss, lei de terror e vingana, feita para escravos e
homens embrutecidos, no punia de morte o simples roubo. Evitemos pensar que,
sob a lei crist, lei de perdo e caridade, em que Deus ordena como pai, ns
temos o direito de ser mais desumanos, e de derramar, sob qualquer pretexto, o
sangue de nosso irmo.
Tais so os motivos que me persuadem que injusto aplicar ao ladro o
mesmo castigo que ao assassino. Poucas palavras vos faro compreender como
esta penalidade absurda em si mesma e como perigosa segurana pblica.
O celerado v que no h menos a temer furtando do que assassinando; ento,
ele mata aquele a quem apenas despojara; e mata-o para a sua prpria segurana.
Assim agindo, ele se descarta do seu principal denunciador, e tem maior
probabilidade de esconder o crime. Eis o belo efeito desta justia implacvel:
aterrorizando o ladro com a expectativa da forca, fez dele um assassino!
Chego, agora, soluo deste problema to controvertido: Qual o melhor
sistema penitencirio?
Na minha opinio, era mais fcil encontrar o melhor do que o pior.
Primeiramente, todos vs conheceis a penalidade adotada pelos romanos, povo to
adiantado na cincia de governar. Eles condenavam os grandes criminosos
escravatura perptua, aos trabalhos forados nas pedreiras ou nas minas.
Esse modo de represso parece-me conciliar a justia com a utilidade pblica.
Entretanto, para vos dizer o meu modo de pensar sobre esse ponto, no conheo
nada de comparvel ao que v nos polileritas, nao dependente da Prsia.
aquele um pas bastante povoado, e `s suas instituies no falta
sabedoria. Alm do tributo anual que pagam ao rei da Prsia, gozam de
liberdade e se governam por suas prprias leis. Longe do mar, cercados de
montanhas, se satisfazem com os produtos do seu solo feliz e frtil; vo
raramente a outros lugares e raramente outros vm ao seu pas. Fiis aos
princpios e costumes dos seus anteados, no procuram nunca estender as
suas fronteiras, e nada tm a temer de fora. Suas montanhas, e o tributo que
pagam, anualmente, ao monarca, pem-nos ao abrigo de uma invaso. Vivem
comodamente na paz e na abundncia, sem exrcito e sem nobreza, ocupados com
sua felicidade e despreocupados de qualquer v celebridade; pois, seu nome,
desconhecido no resto da terra, talvez o seja mesmo aos seus vizinhos.
Quando ali um indivduo apanhado em furto, obrigam-no, primeiro, a
restituir o objeto roubado ao proprietrio e no ao prncipe, como de
uso em outras partes. Os polileritas julgam que o furto no destri o
direito de propriedade. Se o objeto foi danificado ou perdido, o valor dele
descontado dos bens do autor do furto, deixando-se o que sobrar do desconto
sua mulher e filhos. Ele condenado aos trabalhos pblicos; e se o furto no
acompanhado de circunstncias agravantes, o seu autor no jogado no
calabouo nem posto a ferros; trabalha, o corpo livre, e sem entraves.
Para forar os preguiosos e os rebeldes, empregam-se os castigos corporais
de preferncia s correntes. Os que cumprem bem o seu dever no sofrem
nenhum mau trato. De tarde se faz a chamada nominal dos condenados,
encerrando-os nas celas onde am a noite. Alis, a nica pena que podem
vir a sofrer a continuidade do trabalho; porque lhes so fornecidas todas
as coisas necessrias vida; uma vez que trabalham para a sociedade, a
sociedade que os mantm.
Os costumes, nesse ponto, variam segundo as localidades. Em certas provncias,
o produto das esmolas e das coletas reservado aos condenados; este recurso,
precrio por si mesmo, , na rea1idade, o mais fecundo devido humanidade
dos habitantes. Em outros pases destina-se, para este fim, uma parte das
rendas pblicas, ou ento um tributo particular e pessoal.
H mesmo regies em que os condenados no so empregados nos trabalhos pblicos.
Todo indivduo que tem necessidade de operrios, ou de carregadores, vem
alug-los por dia, pagando-lhes salrio pouco menor que o de um homem livre.
A lei d ao patro o direito de bater nos preguiosos. Dessa forma, os
condenados no faltam nunca ao trabalho; ganham roupas e alimentao cada
dia contribuem com alguma coisa para o Tesouro.
Eles so reconhecveis facilmente pela cor de seu uniforme, igual para todos
e s a eles reservado. A cabea no raspada, exceto um pouco acima das
orelhas, uma das quais mutilada. Os amigos podem lhes dar de beber, comer,
e uma roupa. Mas um presente em dinheiro acarreta a morte tanto do que d
como do que recebe. Um homem livre no pode, sob nenhum pretexto, receber
dinheiro de um escravo ( assim que so chamados os condenados). O escravo no
pode tocar em armas. Estes dois ltimos crimes so punidos de morte.
Cada provncia marca seus escravos com um sinal particular e caracterstico.
Faz-lo desaparecer para eles um crime capital, assim como transpor a
fronteira e falar com os escravos de uma outra provncia. O simples projeto
de fugir no menos perigoso que a prpria fuga. Por ter-se envolvido em
semelhante trama o escravo perde a vida e o homem livre, a liberdade. Ainda
mais, a lei confere recompensas ao delator; dinheiro, se este livre;
liberdade, se escravo; impunidade, se cmplice, a fim de que o malfeitor no
se sinta mais seguro perseverando num mau desgnio, do que arrependendo-se.
Eis a as, penalidades correspondentes ao roubo entre os polileritas. No
difcil divisar nelas uma grande humanidade aliada a um grande senso utilitrio.
Se a lei castiga, para matar o crime, conservando o homem. Trata o
condenado com tanta benignidade e justia, que o fora a se tornar honesto e
a reparar, durante o resto de sua vida, todo o mal que fez sociedade.
Tambm extremamente raro que os condenados voltem aos seus antigos hbitos.
Os cidados no tm nenhum medo deles, e mesmo comum, entre os que
empreendem qualquer viagem, escolher seus guias entre os escravos que so
trocados de uma provncia a outra. Na verdade, o que Se pode temer? A lei
tira ao escravo a possibilidade, e at o pensamento, do roubo; suas mos esto
desarmadas; o dinheiro para ele um crime capital; se aprisionado, a morte
bem prxima e a fuga impossvel. Como quereis que um homem vestido
diferentemente dos outros possa dissimular a sua fuga? E se fugisse
completamente nu? Mas mesmo assim a sua orelha meio cortada o trairia.
impossvel igualmente que os escravos possam urdir uma conspirao
contra o Estado. A fim de assegurar revolta alguma probabilidade de xito,
os cabeas teriam necessidade de incitar e arrastar para o seu lado os
escravos de diversas provncias. Ora, isto impraticvel. Uma conspirao
no fcil a pessoas que, sob pena de morte, no se podem reunir, se
falar, dar ou retribuir uma saudao. Ousariam mesmo confiar seu projeto aos
camaradas que conhecem o perigo do silncio e a enorme vantagem da denncia?
Por outro lado, todos alimentam a esperana de recobrar, um dia, a liberdade,
mostrando-se submissos e resignados, dando, por seu bom comportamento,
garantias para o futuro; alis, no h um ano sequer em que grande nmero
deles, transformados em boas pessoas, no seja reabitado e emancipado.
Por que, acrescentei ento no se estabeleceria na Inglaterra uma penalidade
semelhante? Isso valeria infinitamente mais do que esta justia que desperta
to exaltado entusiasmo ao meu sbio antagonista.
- Um semelhante estado de coisas, respondeu este, no poderia jamais se
estabelecer na Inglaterra, sem acarretar a dissoluo e a runa do imprio.
Depois sacudiu a cabea, mordeu os lbios, e calou.
Todos os ouvintes aplaudiram com arrebatamento esta magnfica sentena, at
que o cardeal fez a seguinte reflexo:
No somos profetas para saber, antes de experimentar, se a legislao
polilerita convm ou no ao nosso pas. Todavia, parece-me que depois do
pronunciamento da sentena de morte, o prncipe poderia decretar o sursis, a
fim de experimentar este novo sistema de represso, abolindo, ao mesmo tempo,
os privilgios dos lugares de asilo. Se a experincia desse bons resultados,
adotaramos o sistema; se no, que os condenados continuem a ser levados ao
suplcio. Essa maneira de proceder apenas suspende o curso da justia e no
oferece nenhum perigo no intervalo. Irei mesmo alm, creio que seria muito til
tomar medidas igualmente moderadas e sbias para reprimir e acabar com a
vagabundagem. Temos acumulado leis sobre leis contra este flagelo e o mal
hoje pior do que nunca.
Apenas terminara o cardeal, os louvores mais exagerados acolheram as opinies
expendidas por Sua Eminncia, as quais no tinham encontrado seno desprezo
e desdm quando sozinho as sustentara. O incenso das louvaminhas envolvia
particularmente as idias do prelado referentes vagabundagem.
No sei se seria prefervel suprimir o resto da conversao; coisas bem
ridculas l foram ditas. Entretanto, vou relat-las; no eram de todo
ruins e se relacionam com o assunto.
Havia na mesa um desses parasitas, cuja honra provm do ofcio de fazer o
louco. A esse respeito a semelhana era to perfeita, que poderia ser
facilmente tomada a srio. Seus gracejos eram to estpidos e inspidos
que o riso era provocado mais a mido pela prpria pessoa do que por suas
graas. Mas, de vez em quando escapavam-lhe algumas palavras bastante razoveis.
Um dos convivas observou que eu procurava remediar a sorte dos ladres e o
cardeal a dos vagabundos; mas que existiam ainda duas classes de infelizes s
quais a sociedade devia assegurar a existncia, porque so incapazes de
trabalhar para viver: os doentes e os velhos.
Deixai-me falar, disse o bufo, possuo a este respeito um plano soberbo. Para
falar francamente, grande o meu desejo de poupar-me ao espetculo desses
miserveis e enclausur-los longe de todos os olhos. eles me fatigam com as
suas lamrias, suspiros e lamentveis splicas, embora deva convir que esta
lgubre msica ainda no conseguiu arrancar-me um cntimo; alis, sempre
acontece comigo uma destas duas coisas: ou quando posso dar no o quero, ou
quando quero no o posso. Tambm agora j se mostram bastante avisados:
quando me vm ar se calam para no perder tempo. Sabem que de mim h
tanto a esperar quanto de um padre.
Eis ento o decreto que sugiro:
Todos os mendigos velhos e doentes sero distribudos e classificados como
se segue: os homens entraro para os conventos dos beneditinos na qualidade
de irmos leigos; as mulheres tornar-se-o religiosas. Tal o meu bom
desejo.
O cardeal sorriu desse repente, aprovou-o como um rasgo de esprito, enquanto
os demais ouvintes o tomaram como uma sentena sria e grave. Causou
particular bom humor a um irmo telogo que ali se achava. Este reverendo,
desfranzindo um pouco a carrancuda fisionomia, riu-se maliciosamente, custa
dos padres e frades, e depois, dirigindo-se ao bufo, falou:
No tereis suprimido a mendicidade, se no provirdes subsistncia de ns
mesmos, frades mendicantes.
- Sua eminncia, o cardeal, proveu perfeitamente, quando disse que se devia
encerrar os vagabundos e faze-los trabalhar. Ora, os freis mendicantes so os
maiores vagabundos do mundo.
A vivacidade da resposta, todos os olhos se fixaram sobre o cardeal, que, no
entanto, no pareceu se formalizar; o epigrama foi ento ruidosamente
aplaudido. Quanto ao frei reverendo, ficou petrificado. O dardo satrico que
acabava de lhe ser lanado ao rosto, acendeu subitamente a sua clera; e,
vermelho como fogo, desatou numa torrente de injrias, tratando o engraado
de velhaco, caluniador, tagarela, ameaando-o de danao, tudo temperado
com as ameaas mais aterradoras da Santa Escritura.
Ento o nosso bufo gracejou com seriedade, e, levando a melhor, replicou:
No nos zanguemos, carssimo irmo. Est escrito:
Com pacincia dominareis as vossas almas.
O telogo recomeou, no mesmo instante, e foram estas as suas expresses:
No me agasto, pcaro; ou pelo menos no peco; porque o salmista diz: --
Encolerizai-vos mas no pequeis.
O cardeal, numa oestao cheia de doura, convida, ento, o frade a
moderar os seus transportes.
No, monsenhor, exclamou, no, no posso Calar-me, no o devo. um zelo
divino que me exalta, e os homens de Deus tiveram destas santas cleras. Est
escrito: O ZELO DE TUA CASA ME CONSOME. No se ouve cantar nas igrejas:
AQUELES QUE ZOMBAVAM DE ELISEU ENQUANTO ELE SUBIA PARA A CASA DE DEUS SOFRERAM
A CLERA DO CALVO? A mesma punio castigar talvez esse gracejador, esse
bufo, esse devasso.
- Sem dvida, disse o cardeal, a vossa inteno boa. Mas. me parece que
procedereis mais sabiamente, seno mais santamente, evitando
comprometer-vos com um louco numa querela ridcula.
- Monsenhor, meu comportamento no poderia ser mais sbio. Salomo, o mais
sbio dos homens, disse: RESPONDEI AO LOUCO CONFORME A SUA LOUCURA. Pois bem,
isso o que fao. Mostro-lhe o abismo onde vai se precipitar, se no se
cuida. Aqueles que riam de Eliseu eram em grande nmero, e foram todos
punidos por terem zombado de um nico calvo. Qual ser, pois, o castigo do
nico homem que ridiculariza um to grande nmero de frades, entre os quais
h tantos calvos? Mas o que deve, sobretudo, faz-lo tremer que temos
uma. bula do papa que excomunga aqueles que escarnecem de ns.
O cardeal, vendo que o caso no acabava, despediu, com um aceno, o bufo
parasita, e mudou prudentemente o curso da conversao. Logo depois
levantou-se da mesa para dar audincia a seus vassalos, e despediu todos os
convivas.
Caro Morus, fatiguei-vos com a narrativa de uma histria bastante longa.
Estaria verdadeiramente envergonhado de t-la prolongado tanto se no fosse
por ter cedido s vossas instncias, e se a ateno que prestastes aos
detalhes no me tivesse obrigado a no omitir nenhum. Poderia ter abreviado,
mas quis esclarecer-vos sobre o esprito e o carter dos convivas. Enquanto,
sozinho, desenvolvi minhas idias, foi com o desprezo geral que foram
acolhidas as minhas palavras; mas assim que o cardeal me trouxe o seu beneplcito
o elogio substituiu o desprezo. Suas cortesanices iam ao ponto de achar
judiciosas e sublimes as bufonerias de um bobo, que o cardeal tolerava como
uma brincadeira frvola.
Julgai ainda que as pessoas da corte levariam em grande considerao minha
pessoa e meus conselhos?.
Respondi a Rafael: Vossa narrativa fez-me experimentar uma grande alegria. Ela
reunia o interesse e a atrao a uma profunda sabedoria. Escutando-vos, eu
me acreditava na Inglaterra; porque fui educado desde criana no palcio
desse bom cardeal, e sua lembrana me reconduz aos primeiros anos da vida. J
vos tinha dado a minha amizade, mas todo o bem que dissestes memria do
piedoso arcebispo, torna-vos ainda mais caro ao meu corao. De resto,
persisto na mesma opinio a vosso respeito, estando persuadido de que vossos
conselhos seriam de uma alta utilidade pblica, se quissseis vencer o
horror que vos inspiram os reis e as cortes. E no um dever para vs,
como para todo bom cidado, sacrificar ao interesse geral as suas ojerizas
particulares? Plato disse: A humanidade. ser feliz um dia, quando os filsofos
forem reis, ou quando os reis forem filsofos. Ai! Como est longe de ns
esta felicidade quando os filsofos nem ao menos se dignam assistir os reis
com seus conselhos!
Caluniais os sbios, replicou-me Rafael; eles no so bastante egostas
para esconder a verdade; muitos a tm revelado em seus escritos; e se os
senhores do mundo estivessem preparados para receber a luz, poderiam ver e
compreender. Infelizmente cega-os uma venda fatal, a venda dos preconceitos e
dos falsos princpios, em que se formaram e dos quais foram inficionados j
na infncia. Plato no ignorava isso; sabia, como ns, que os reis nunca
seguiam os conselhos dos filsofos, se eles prprios j no o eram tambm.
Plato teve disso a triste experincia na corte de Diniz, o Tirano. (2).
Suponhamos pois que eu seja ministro de um rei. Proponho-lhe os decretos mais
salutares; esforo-me por arrancar de seu corao e de seu imprio todos
os germes do mal. Acreditais que no me expulsar da corte ou que no me
expor ao riso dos cortesos?
Suponhamos, por exemplo, que eu seja ministro do rei de Frana. Eis-me
sentado mesa do Conselho, ao o que, no fundo do palcio, o monarca
preside, em pessoa, as deliberaes dos mais judiciosos polticos do reino.
Essas nobres e poderosas cabeas esto procurando laboriosamente por quais
maquinaes e intrigas, o rei, seu senhor, conservar o ducado de Milans,
recobrar o reino de Npoles, sempre a fugir, e como, em seguida, destruir
a. repblica de Veneza e submeter a Itlia toda; finalmente, como reunir
sua coroa a Flandres, o Brabante, a Borgonha inteira, e outras naes que
sua ambio j invadiu e conquistou h muito tempo.
Este prope concluir com os venezianos um tratado que durar enquanto no
houver interesse em romp-lo. Para melhor dissipar suas desconfianas,
acrescenta o mesmo, comunicar-lhes-emos as primeiras palavras do enigma;
podemos mesmo deixar com eles uma parte do saque; fcil nos ser retom-la
depois da execuo completa do plano.
Aquele aconselha aliciar alemes; um terceiro, que se atraiam os suos com
dinheiro. Um outro pensa que se deve tornar propcio o deus imperial,
sacrificando-lhe ouro em expiao; aquele julga oportuno entrar em
entendimentos com o rei de Arago, abandonando-lhe, como garantia de paz, o
reino da Navarra, que no lhe pertence. Outro ainda quer engodar o prncipe
de Castela com a esperana de uma aliana, e manter, em sua corte, algumas
inteligncias, pagando gordas penses a alguns grandes personagens.
Depois, vem a questo difcil e insolvel, a questo da Inglaterra,
verdadeiro n grdio poltico. A fim de se prevenir contra qualquer
eventualidade, tomam-se as seguintes resolues:
Negociar com essa potncia as condies de paz, e apertar mais
estreitamente os laos de uma unio sempre vacilante; dar-lhe, publicamente,
o nome de melhor amiga da Frana, e, no fundo, dela desconfiar como de seu
inimigo mais poderoso.
Manter os escoceses permanentemente de guarda, como sentinelas avanadas,
atentas a tudo, e, ao primeiro sintoma de movimento na Inglaterra, lan-los
imediatamente como um exrcito de vanguarda.
Manter secretamente (por causa dos tratados que se opem a uma proteo
aberta) algum grande personagem exilado, animando-o a fazer valer os seus
direitos coroa da Inglaterra, e, assim, pr em cheque o prncipe reinante
de quem se receia os desgnios...
Ento, se, no meio dessa assemblia real onde se agitam to vastos
interesses, na presena desses profundos homens de Estado, a concluir, unnimes,
pela guerra, se eu, homem do nada, me levantasse para transtornar suas combinaes
e clculos, e dissesse:
Deixemos a Itlia em sossego e fiquemos na Frana; a Frana j grande
demais para ser bem istrada por um s homem e o rei no deve cuidar em
aument-la. Escutai, senhores, o que aconteceu aos acorianos numa situao
semelhante, e a deciso que ento tomaram:
Esta nao, situada em frente ilha da Utopia, nas margens do Euronston,
fez, outrora, a guerra, porque seu rei pretendia a sucesso de um reinado
vizinho, em virtude de antiga aliana. O reino vizinho foi subjugado, mas
cedo se reconheceu que a conservao da conquista era mais difcil e
onerosa do que a prpria conquista.
A todo momento havia revoltas internas a reprimir, ou tropas a enviar para o
pas conquistado; a cada instante era-se forado a combater pr ou contra
os novos sditos. Em conseqncia, o exrcito tinha que ser mantido de p,
e os cidados eram esmagados pelos impostos; o dinheiro fugia para fora; e,
para lisonjear a vaidade de um s homem, o sangue corria em borbotes. Os
curtos instantes de paz no eram menos desastrosos do que a guerra. A dissoluo
das tropas lanara a corrupo nos costumes; o soldado voltava ao lar com o
amor da pilhagem e a audcia do assassinato, resultado adquirido no trato da
violncia nos campos de batalha.
Essas desordens, esse desprezo geral pelas leis, provinham de que o prncipe,
ao dividir sua ateno e cuidados entre dois reinos, no podia bem
istrar nem um nem outro. Os acorianos quiseram pr um termo a tantos
males; reuniram-se em conselho nacional, e, polidamente, deram ao monarca a
escolher entre os dois Estados, declarando-lhe que no podia mais carregar
duas coroas, e que era absurdo que um grande povo. fosse governado por uma
metade de rei, quando ningum desejava um almocreve que estivesse ao mesmo
tempo a servio de outro patro.
Esse bom prncipe resolveu-se: cedeu o novo reino a um dos seus amigos, que
foi expulso dali logo depois, e contentou-se com seu antigo domnio.
Volto minha hiptese. Se fosse mais longe ainda; se, dirigindo-me ao prprio
monarca, o fizesse ver que essa paixo de guerrear, que transtorna as naes,
depois de ter esgotado as finanas e arruinado o povo, poderia ocasionar
Frana as conseqncias mais fatais; se lhe dissesse:
Senhor, aproveitai a paz que um feliz acaso vos concede, cultivai o reino de
vossos pais, fazei nele florescer a felicidade, a riqueza e a fora; amai
vossos sditos, e que o amor deles faa a vossa alegria; vivei como pai no
meio deles e no comandai nunca como dspota; deixai em paz os outros
reinos; aquele que vos coube por herana suficientemente grande para vs.
Dizei-me, caro Morus, com que espcie de bom ou mau humor seria acolhida
semelhante arenga?
- Com pssimo mau humor, respondi.
- E no tudo, continuou Rafael; amos em revista a poltica exterior
dos ministros de Frana; a glria era ento o de que necessitava o seu
senhor ; agora o dinheiro. Vejamos um instante os seus novos princpios de
governo e justia.
Este, prope elevar o valor da moeda quando se trate de reembolsar um emprstimo,
e de faz-lo descer muito abaixo do par quando se trate de tornar a encher o
tesouro. Com esse duplo expediente, o prncipe poder cobrir suas enormes dvidas,
e, sem trabalho, fazer uma grande colheita em recursos.
Aquele, aconselha simular uma guerra prxima. Este pretexto legitimar um
novo imposto. Depois da arrecadao do tributo extraordinrio, o prncipe
far subitamente a paz; ordenar a celebrao desse feliz acontecimento
por meio de aes de graa nos templos e de todas as pompas das cerimnias
religiosas. A. nao ficar deslumbrada, e o reconhecimento pblico elevar
at aos cus as virtudes de um rei to humanamente avaro do sangue de seus
sditos.
Um outro vem, e exuma velhas leis carcomidas pelas traas e cadas em desuso
pelo tempo. Como todo mundo ignora sua existncia, todo mundo as transgride.
Restaurando, assim, as multas pecunirias contidas nessas leis, criar-se-ia
uma fonte de renda lucrativa e at honrada, pois que se agiria em nome da
justia.
Um terceiro pensa que no seria de menos proveito lanar, sob pena de
pesadas multas, uma, multido de novas proibies, a maioria delas em benefcio
do povo. O rei, mediante soma considervel, dispensaria aqueles cujos
interesses privados fossem comprometidos por estas proibies. Dessa maneira
o rei ver-se-ia cumulado das bnos do povo e faria dupla receita,
recebendo, ao mesmo tempo, dinheiro dos contraventores e dos privilegiados. O
melhor do negcio que quanto mais exorbitante fosse o preo das dispensas
tanto mais Sua Majestade ganharia em estima e considerao.
Vejam, diriam, como este bom prncipe violenta seu corao ao vender to
caro o direito de prejudicar o povo.
Outro ainda, enfim, aconselha ao monarca ter disposio juizes sempre
dispostos a sustentar, em todas as ocasies, os direitos. da coroa. Vossa
Majestade, acrescenta ele, deveria cham-los corte, e persuadi-los a
discutir, perante a vossa augusta pessoa, os prprios negcios reais. Por
pior que seja uma causa, haver sempre um juiz para julg-la boa, seja pela
mania da contradio, seja por amor da novidade e do paradoxo, seja para
agradar o soberano. Ento, uma discusso se trava; a multiplicidade e o
conflito de opinies embrulham uma coisa de si mesma muito clara, e a verdade
posta em dvida. Vossa Majestade aproveita o momento para resolver a
dificuldade, interpretando o direito em proveito prprio. Os dissidentes se
submetem opinio real por timidez ou por temor, e o julgamento dado,
segundo as formalidades, com franqueza e sem escrpulo. Faltaro jamais ao
juiz, que d uma sentena a favor do prncipe, os necessrios consideranda?
No h o texto da lei, a liberdade de interpretao, e, acima das leis,
para um juiz religioso e fiel, a prerrogativa real?
Ouvi os axiomas de moral poltica proclamados unanimemente pelos membros do
nobre conselho:
O rei que sustenta um exrcito nunca tem dinheiro bastante.
O rei no poderia fazer o mal mesmo que o quisesse.
O rei o proprietrio universal e absoluto dos bens e pessoas de todos os
seus sditos; nada possuem seno como usufruturios pelas boas graas do
rei.
A pobreza do povo o baluarte da monarquia.
A riqueza e a liberdade conduzem insubordinao e ao desprezo da
autoridade; o homem livre e rico a com impacincia um governo injusto e
desptico.
A indigncia e a misria degradam os caracteres, embrutecem as almas,
habituam-nas ao sofrimento e escravido, comprimindo-as a ponto de lhes
tirar a energia necessria para sacudir o jugo.
Se outra vez me erguesse, e falasse assim a esses poderosos senhores:
Vossos conselhos so infames, vergonhosos para o rei, funestos para o povo. A
honra de vosso senhor e a sua felicidade consistem na riqueza de seus sditos
mais ainda do que na sua prpria. Os homens fizeram os reis para os homens e
no para os reis; colocaram chefes sua frente para que pudessem viver
comodamente ao abrigo das violncias e dos ultrajes; o dever mais sagrado do
prncipe velar pela felicidade do povo antes de velar pela sua prpria;
como um pastor fiel, deve dedicar-se a seu rebanho, e conduzi-lo s pastagens
mais frteis.
Sustentar que a misria pblica a melhor salvaguarda da monarquia,
sustentar um erro grosseiro e evidente; onde se vm mais querelas e rixas do
que entre os mendigos?
Qual o homem que mais deseja uma revoluo? No ser aquele cuja existncia
atual miservel? Qual o homem que revelar maior audcia em subverter o
Estado? No ser aquele que com isso s pode ganhar por nada ter a perder?
Um rei que provocasse o dio e o desprezo dos cidados e cujo governo no
pudesse se manter seno pelas vexaes, pela pilhagem, pelo confisco e pela
misria universal, deveria descer do trono e depor o poder supremo.
Empregando estes meios tirnicos, talvez pudesse conservar o nome de rei, mas
de rei no teria mais nem o nimo nem a majestade. A dignidade real no
consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes.
Fabricius, (3) esta grande alma,
estava todo penetrado desse sublime sentimento quando respondeu: Prefiro
governar ricos do que eu mesmo ser rico. E, de fato, nadar em delcias,
saciar-se de voluptuosidades em meio s dores e gemidos de um povo, no
manter um reino e sim uma cadeia.
O mdico que s sabe curar as molstias de seus clientes dando-lhes molstias
mais graves, a por ignaro e imbecil; confessai, pois, - vs que no
sabeis governar seno arrebatando aos cidados a subsistncia e as
comodidades da vida! - confessai que sois indignos e incapazes de dirigir
homens livres! Ou ento corrigi vossa ignorncia, vosso orgulho e vossa
preguia: isso o que excita o dio e o desprezo pelo soberano. Vivei de
vosso patrimnio, segundo a justia; medi vossas despesas na proporo de
vossas rendas; detei as torrentes do vcio; criai instituies de benemerncia,
que previnam o mal e o estiolem no germe, ao em vez de inventar suplcios
contra os infelizes que uma legislao absurda e brbara impele ao crime e
morte
No ressusciteis leis carunchosas cadas no olvido e no esquecimento, lanando
sobre os vossos sditos toda a sorte de obstculos. No eleveis o preo de
um delito a uma taxa que o juiz condenaria, como injusta e vergonhosa, entre
simples particulares. Tende sempre diante dos olhos este belo hbito dos
macarianos.
Nesta nao, vizinha da Utopia, no dia em que o rei toma posse do imprio,
oferece sacrifcios divindade, comprometendo-se, por um juramento sagrado,
a no ter nunca em seus cofres mais do que mil libras de ouro ou a soma em
dinheiro de valor equivalente. Este uso foi introduzido por um prncipe que
tinha mais desejo de trabalhar pela prosperidade do Estado, do que de acumular
mi1bes. Quis desse modo pr um freio avareza dos seus sucessores e
impedi-los de enriquecer pelo empobrecimento de seus sditos. Mil libras de
ouro lhe pareceram uma quantia suficiente para um caso de guerra civil ou
estrangeira, mas demasiado fraca para apoderar-se da fortuna da nao. Foi
principalmente este ltimo motivo que o induziu a decretar esta lei; mas
visava ele ainda duas outras finalidades: em primeiro lugar, ter em reserva,
para os tempos de crise, a quantidade de dinheiro necessria circulao
e s transaes quotidianas dos cidados; em segundo lugar, limitar as
cifras dos impostos e da lista civil no intuito de impedir que o prncipe
empregasse o excesso da dotao legal em semear a corrupo e cometer
injustias. Um rei como este o terror dos maus e a venerao das pessoas
de bem.
Mas, dizei-me, caro Morus, pregar uma tal moral a homens que por interesse e
por sistema se orientam por princpios diametralmente opostos, no contar
histrias a surdos?
- E a surdos como portas, respond. Mas isto no me espanta., e, para vos
revelar o meu modo de pensar, perfeitamente intil dar conselhos quando se
tem a certeza de que sero repelidos, quer na forma, quer no fundo. Ora, os
ministros e os polticos de hoje, esto impregnados de erros e preconceitos;
como quereis bruscamente modificar suas crenas e fazer penetrar, de chofre,
em suas cabeas e em seu corao, a verdade e a justia? Esta filosofia
escolstica est no seu lugar em uma conversao familiar, entre amigos;
est fora de propsito nos conselhos dos reis, onde grandes coisas so
tratadas com grande autoridade e em face do poder supremo.
- Era isto o que vos dizia ainda agora, retrucou Rafael, a filosofia no tem
o na corte dos prncipes.
- Dizeis a verdade se vos referis a esta filosofia de escola, que ataca de
frente, e cegamente, os tempos, os lugares, e as pessoas. Mas, existe uma
filosofia menos selvagem; esta conhece o teatro em que atua, e, na pea que
deve representar, desempenha seu papel com decncia e harmonia. esta a que
deveis empregar.
Suponhamos que, durante a representao de uma comdia de Plauto, no
momento em que os escravos esto de bom humor, irrompeis em cena, em trajes
de filsofo, declamando a agem de Otvio, em que Sneca repreende e
prega moral a Nero; duvido muito que fsseis aplaudido. Certamente, tereis
agido com mais acerto se vos tivsseis limitado ao papel de um personagem
mudo do que oferecer ao pblico este drama tragicmico. Um monstruoso amlgama
destes estragaria todo o espetculo, mesmo que a vossa citao valesse cem
vezes mais do que a pea. Um bom ator pe todo seu talento no papel que vai
representar, qualquer que ele seja; e no perturba o conjunto, porque lhe
ocorre fantasia declamar uma tirada magnfica e pomposa.
Da mesma maneira convm agir quando se delibera acerca dos negcios do
Estado, no seio do conselho real; Se no se pode desarraigar de uma s vez
as mximas perversas, nem abolir os costumes imorais, no isto razo
para se abandonar a causa pblica. O piloto no abandona o navio diante da
tempestade porque no pode domar o vento.
Falais a homens imbudos de princpios contrrios aos vossos; que caso
podero fazer de vossas palavras, se lhes atirais face a contradita e o
desmentido? Segui o caminho oblquo - ele vos conduzir mais seguramente
meta. Aprendei a dizer a verdade com propriedade e a propsito; e, se vossos
esforos no puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para
diminuir a intensidade do mal; porque tudo s ser bom e perfeito, quando os
prprios homens forem bons e perfeitos; e at l, os sculos aro.
Rafael respondeu:
Quereis saber o que me sucederia se assim procedesse? Ao querer curar a
loucura dos outros, acabaria demente tambm. Mentiria, se falasse doutra
maneira da que vos falei. A mentira talvez permitida a certos filsofos,
mas no est em minha natureza.. Sei que minha linguagem parecer dura e
severa aos conselheiros do rei; apesar disso, no vejo por que sua novidade
seja de tal modo estranha que toque ao absurdo. Se me referisse s teorias da
repblica de Plato, ou aos usos atualmente em vigor entre os utopianos,
coisas melhores e infinitamente superiores s nossas idias e costumes, ento,
poder-se-ia crer que eu vinha de outro mundo, porque aqui o direito de possuir
de seu pertence a cada um, enquanto que l todos os bens so comuns. Mas, o
que disse eu que no fosse conveniente e mesmo necessrio de se divulgar.
Minha moral mostra o perigo e dele salva o, homem. ponderado; no fere seno
o insensato que se atira de olhos fechados ao abismo.
H covardia ou m f em calar as verdades que condenam a perversidade
humana, sob o pretexto de que sero escarnecidas como novidades absurdas ou
quimeras impraticveis. De outra forma, seria necessrio deitar um vu
sobre o Evangelho e dissimular aos cristos a doutrina de Jesus. Mas Jesus
proibia a seus apstolos o silncio e o mistrio; repetia-lhes sempre: O
que vos digo em voz baixa e ao ouvido, pregai pr toda parte, em voz alta e
s claras. Ora, a moral de Cristo est muito mais em contradio aos
costumes deste mundo, do que os nossos discursos.
Os Pregadores, homens sagazes, seguiram o caminho oblquo de que me falastes
h pouco; vendo que repugnava aos homens acomodar seus maus costumes
doutrina crist, torceram o Evangelho, como se fosse uma lei de chumbo, para
model-lo segundo os maus costumes dos homens. Onde os conduziu esta hbil
manobra? A dar ao vcio a calma e a segurana da virtude.
Quanto a mim, no obteria melhor resultado nos conselhos dos prncipes,
porque, ou minha opinio contrria opinio geral, e, nesse caso, no
seria tomada em considerao, ou coincide com a opinio geral, e ento,
deliro tambm com os loucos, segundo a expresso de Micion, a personagem de
Terncio. Assim, no vejo aonde pode levar o vosso caminho retorcido.
Dizeis: Quando no se pode atingir a perfeio, deve-se, ao menos, atenuar
o mal. Mas aqui, a dissimulao impossvel e a conivncia um crime,
pois se trata de aprovar as propostas mais execrveis, de votar decretos mais
perigosos que a peste, e, neste caso, aprovar perfidamente deliberaes
infames como essas, seria comportar-se tal qual um espio e um traidor.
No h, pois, nenhuma maneira de ser til ao Estado nessas altas regies.
O ar que a se respira corrompe a prpria virtude. Os homens que vos cercam,
longe de corrigir-se com os vossos ensinamentos, vos depravam com seu contato
e pela inf1uncia de sua perverso; e se conservais vossa alma pura e
incorruptvel, servireis de manto s suas imoralidades e loucuras. No h,
pois, esperana de transformar o mal em bem, trilhando o vosso caminho oblquo,
aplicando os vossos meios indiretos.
Agora, caro Morus, vou revelar-vos o fundo de minha alma, e dizer-vos, os meus
pensamentos mais ntimos. Em toda a parte onde a propriedade for um direito
individual, onde todas as coisas se medirem pelo dinheiro, no se poder
jamais organizar nem a justia nem a prosperidade. social, a menos que
denomineis justa a sociedade em que o que h de melhor a partilha dos
piores, e que considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a fortuna pblica
a presa de um punhado de indivduos insaciveis de prazeres, enquanto a
massa devorada pela misria.
Tambm, quando comparo as instituies utopianas com as dos outros pases,
no me canso de irar a sabedoria e a humanidade de uma parte, e deplorar,
da outra, o desvario e a barbaria.
Na Utopia, as leis so pouco numerosas; a istrao distribui
indistintamente seus benefcios por todas as classes de cidados. O mrito
ali recompensado; e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional to igualmente
repartida que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida.
Alhures, o princpio do teu e do meu consagrado por uma organizao cujo
mecanismo to complicado quo vicioso. H milhares de leis, e que ainda
no bastam, para que um indivduo possa adquirir uma propriedade, defend-la
e distingu-la da propriedade de outrem. A prova o nmero infinito de
processos que surgem todos os dias e no terminam nunca. Quando me entrego a
esses pensamentos, fao inteira justia a Plato e no me iro mais que
ele tenha desdenhado legislar para os povos que no aceitam a comunidade dos
bens. Esse grande gnio previra facilmente que o nico meio de organizar a
felicidade pblica, fora a aplicao do princpio da igualdade. Ora, a
igualdade , creio, impossvel num Estado em que a posse particular e
absoluta; porque cada um se apoia em diversos ttulos e direitos para atrair
para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por
cair na posse de um reduzido nmero de indivduos que deixam aos outros
apenas indigncia e misria.
Muitas vezes at a sorte do rico deveria caber ao pobre. No h ricos
avaros, imorais, inteis, e pobres simples, modestos, cujo engenho e trabalho
trazem proveito ao Estado mas no, o trazem a si mesmos?
Eis o que invencivelmente me persuade que o nico meio de distribuir os bens
com igualdade e justia, e de fazer a felicidade do gnero humano, a
abolio da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento
do edifcio social, a esse mais numerosa e mais estimvel no ter por
quinho seno misria, tormentos e desesperos.
Sei que existem remdios que podem aliviar o mal; mas estes remdios so
impotentes para cur-lo. Por exemplo:
Decretar um mximo de posse individual em terras e dinheiro
Premunir-se por meio de severas leis contra, o despotismo e a anarquia.
Denunciar e castigar a ambio e a intriga. No traficar as magistraturas.
Suprimir o fausto e a representao nos altos cargos, a fim de que o funcionrio,
para sustentar sua posio, no se entregue fraude e rapina; ou, a
fim de que no seja obrigado a dar aos mais ricos os cargos que deveriam
caber aos mais capazes.
Estes meios, repito-o, so excelentes paliativos que podem adormecer a dor e
aliviar as chagas do corpo social; mas no espereis com isto devolver-lhe a
fora e a sade, enquanto cada um possuir solitariamente e absolutamente
seus bens; podeis cauterizar uma lcera, mas inflamareis todas as outras;
curareis um doente, e matareis um homem so; porque o que acrescentais ao
haver de um indivduo tirais ao de seu vizinho.
Disse eu, ento, a Rafael:
Longe de compartilhar vossas convices, penso, ao contrrio, que o pas
em que se estabelecesse a comunidade de bens seria o mais miservel de todos
os pases. Com efeito, como produzir para as necessidades do consumo? Todo
mundo fugiria do trabalho e descansaria dos cuidados com sua existncia sobre
o trabalho dos outros. E, mesmo que a misria perseguisse os preguiosos,
desde que a lei no mantm inviolavelmente, para e contra todos, a
propriedade de cada um a rebelio rugiria, sem cessar, esfomeada e ameaadora,
e a matana ensangentaria vossa repblica.
Que barreira oporeis anarquia? Vossos magistrados tm apenas uma
autoridade nominal; esto despidos, despojados de tudo que impe o temor e o
respeito. No chego nem mesmo a conceber a possibilidade de governo nesse
povo de niveladores que repele toda espcie de superioridade.
No me espanto que penseis assim, replicou Rafael. Vossa imaginao no
poderia fazer a. menor idia de uma tal repblica, ou dela tem apenas uma idia
falsa. Se tivsseis estado na Utopia, se tivsseis assistido ao espetculo
de suas instituies e de seus costumes, como eu, que l ei cinco anos
de minha vida, e que no me decidi a sair seno para revelar esse novo mundo
ao antigo, confessareis que em nenhuma outra parte existe sociedade
perfeitamente organizada.
Pedro Gil disse ento, dirigindo-se a Rafael:
- No me persuadireis jamais que haja nesse novo mundo povos melhor constitudos
do que neste. A natureza no produz entre ns espritos de tmpera
inferior. Temos, alm disso, o exemplo de uma civilizao mais antiga, e
uma srie de descobertas, que o tempo fez brotar, para as necessidades ou
para o luxo da vida. No me refiro s invenes nascidas do acaso, e que o
gnio mais sutil no teria podido imaginar.
- A questo da antigidade, respondeu Rafael, vs a discutireis com mais
solidez se tivsseis lido as histrias desse novo mundo. Ora, segundo essas
histrias, l houve cidades, antes que aqui houvesse homens. Pelo que se
refere s descobertas devidas ao gnio ou ao acaso, elas podem igualmente
surgir em todos os continentes. ito que tenhamos sobre esses povos a
superioridade da inteligncia; em compensao, eles nos deixam bem atrs
em matria de atividade e engenho. Ides ter a prova:
Seus anais testemunham que no tinham jamais ouvido falar de nosso mundo,
antes de nossa chegada; somente, h aproximadamente mil e duzentos anos, um
navio impelido pela tempestade afundou em frente ilha da Utopia. As ondas
jogaram praia alguns egpcios e romanos, que, desde ento, s com vida,
queriam deixar o pas. Os utopianos tiraram desse acontecimento um partido
enorme; na escola dos nufragos aprenderam tudo que estes conheciam das cincias
e artes espalhadas no imprio romano. Mais tarde, esses primeiros germes se
desenvolveram, e o pouco que os utopianos tinham aprendido, levou-os a
descobrir o resto. Assim, um nico ponto de contato com o mundo antigo bastou
para transmitir-lhes a indstria e o gnio.
possvel que depois desse naufrgio, a mesma sorte tenha levado alguns
dos nossos Utopia; mas a lembrana disso est completamente apagada.
Talvez a posteridade tambm esquea a minha estadia nesta ilha afortunada,
estadia esta que foi infinitamente preciosa para os seus habitantes, pois, por
este meio, puderam apropriar-se das mais belas invenes da Europa.
Mas para ns, quantos sculos nos sero precisos para aprender deles o que
h de perfeito em suas instituies? Eis o que lhes d a superioridade do
bem-estar material e social, embora os igualemos em inteligncia e riqueza:
essa atividade do esprito dirigida incessantemente para a pesquisa, o
aperfeioamento e a aplicao, das coisas teis.
- Pois ento, disse eu a Rafael, fazei-nos a descrio desta ilha
maravilhosa. No suprimais nenhum detalhe, suplico-vos. Descrevei-nos os
campos, os rios, as cidades, os homens, os costumes, as instituies, as
leis, tudo o que pensais que desejamos saber, e, acreditai-me, esse desejo
abarca tudo que ignoramos.
- Com muito gosto, respondeu
Rafael; essas coisas esto sempre presentes minha memria; mas a
narrativa exige tempo.
- Nesse caso, disse-lhe, vamos ento jantar, primeiro; teremos depois todo o
tempo necessrio.
- Perfeitamente, acrescentou
Rafael. Entramos ento em casa para jantar, e depois voltamos ao jardim, onde
sentamo-nos no mesmo banco. Recomendei particularmente aos criados afastar os
importunos, pois havia associado minhas instncias s de Pedro, para que
Rafael cumprisse sua promessa. Sentindo a nossa curiosidade, vida e atenta,
recolheu-se, um instante, no silncio e meditao, e comeou com estas
palavras.
LIVRO SEGUNDO 705y4c
O QUE g1q53
VOS DIGO 6lw6r
EM VOZ BAIXA 3n2j54
PREGAI-O w4o5r
ABERTAMENTE 582i3v
A ilha da Utopia tem duzentos mil os em sua maior largura, situada
na parte mdia. Esta largura diminui gradual e sistematicamente do centro
para as duas extremidades, de maneira que a ilha inteira se arredonda em um
semicrculo de quinhentas milhas de arco, apresentando a forma de um
crescente, cujos cornos esto afastados onze mil os aproximadamente.
O mar enche esta imensa bacia; as terras adjacentes que se estendem em
anfiteatro quebram o furor dos ventos, mantendo as guas calmas e pacificas,
e dando a esta grande massa lqida a aparncia de um lago tranqilo. Esta
parte cncava da ilha como um nico e vasto porto vel aos navios
em todos os pontos.
A entrada do golfo perigosa por causa dos bancos de areia de um lado, e dos
escolhos, do outro. No meio se levanta um rochedo visvel de muito longe, e
que por isto no oferece nenhum perigo, Os utopianos construram uma
fortaleza, defendida por uma boa guarnio. Outros rochedos ocultos pela gua
oferecem armadilhas inevitveis aos navegantes. Unicamente os nativos
conhecem as agens navegveis e por esse justo motivo ningum pode entrar
no estreito sem ser guiado por um piloto utopiano. Esta precauo seria
ainda insuficiente, se os faris dispostos pela costa no indicassem o rumo
a seguir. A simples transposio desses faris seria suficiente para
destruir a frota mais numerosa, dando-lhe uma falsa direo.
Na parte oposta da ilha, encontram-se diversos portos, e a arte e a natureza
fortificaram de tal forma as costas, que um punhado de homens poderia impedir
o desembarque de um grande exrcito.
Se se der crdito s tradies, alis plenamente justificadas pela
configurao do pas, esta terra no foi sempre uma ilha. Chamava-se
antigamente Abraxa e se ligava ao continente; Utopus apoderou-se dela, e
deu-lhe seu nome
Este conquistador teve bastante gnio para humanizar uma populao
grosseira e selvagem e para formar um povo que ultraa hoje todos os outros
em civilizao. Desde que a vitria o fez dono deste pas, mandou cortar
um istmo de quinze mil os que o ligava ao continente; e a terra de Abraxa
tornou-se, assim, a ilha da Utopia. Utopus empregou, no acabamento dessa obra
gigantesca, os soldados do seu exrcito, assim como os indgenas, a fim de
que estes no olhassem. o trabalho imposto pelo vencedor como uma humilhao
e um ultraje. Milhares de braos foram ento postos em movimento e o xito,
em breve, coroava o empreendimento. Os povos vizinhos que, antes, haviam
taxado esta obra de vaidade e loucura, tomaram-se de espanto e de terror.
A ilha da Utopia tem cinqenta e quatro cidades espaosas e magnficas. A
linguagem, os hbitos, as instituies, as leis so perfeitamente idnticas.
As cinqenta e quatro cidades so edificadas sobre o mesmo plano e possuem
os mesmos estabelecimentos e edifcios pblicos, modificados segundo as exigncias
locais. A menor distncia entre essas cidades de vinte e quatro milhas, a
maior de uma jornada a p.
Todos os anos, trs velhos experientes e capazes so nomeados deputados por
cada cidade e se congregam em Amaurota, a fim de tratar dos negcios do pas.
Amaurota a capital da ilha; sua posio central transformou-a em ponto de
reunio mais conveniente para todos os deputados.
Um mnimo de vinte mil os de terra destinado em cada cidade produo
dos artigos de consumo e lavoura. Em geral, a extenso do territrio
proporcional ao afastamento das cidades. Estas felizes cidades no procuram
aumentar os limites fixados pela lei. Os habitantes se olham mais como
rendeiros do que como proprietrios do solo.
H pelos campos casas comodamente construdas, providas de toda a espcie
de instrumentos de agricultura, e que servem de morada aos exrcitos de
trabalhadores que a cidade envia periodicamente. ao campo.
A famlia agrcola se compe pelo menos de quarenta indivduos, homens e
mulheres, e de dois escravos. Est sob a direo de um pai e de uma me de
famlia, pessoas graves e prudentes.
Trinta famlias so dirigidas por um filarca (4).
Todos os anos vinte cultivadores de cada famlia regressam cidade; so os
que terminaram seus dois anos de servio agrcola. So substitudos, ento,
por vinte indivduos que ainda no serviram. Os recm-chegados recebem
instruo dos que j trabalharam um ano no campo, e, no ano seguinte, se
tornam instrutores por sua vez. Assim os cultivadores no so, nunca, todos
de uma vez, ignorantes e novatos, e a subsistncia pblica no tem nada a
temer da impercia dos cidados encarregados de mant-la.
Esta renovao anual tem ainda outra finalidade que a de no consumir
por muito tempo a vida dos cidados nos trabalhos materiais e penosos.
Entretanto, alguns tomam naturalmente gosto pela agricultura e obtm autorizao
de ar vrios anos no campo.
Os agricultores cultivam a terra, criam animais, juntam madeira e transportam
os aprovisionamentos para a cidade vizinha, por gua ou por terra. Eles usam
de um processo extremamente engenhoso para conseguir grande quantidade de
pintos: no deixam s galinhas a tarefa de chocar os ovos, mas fazem-nos
romper a casca por meio de um calor artificial convenientemente temperado. E,
quando o pinto quebra a casca, o homem que lhe serve de me, que o guia e
sabe reconhec-lo. Criam poucos cavalos, e somente rdegos, destinados a
corridas, e no tm outra aplicao que a de exercitar a juventude na
equitao.
Os bois so empregados exclusivamente na lavoura e no transporte. O boi,
dizem os utopianos, no tem a vivacidade do cavalo, mas o sobrepuja em pacincia
e fora; menos sujeito a molstias, custa menos para ser nutrido, e
quando no serve mais para o trabalho serve ainda para a mesa.
Os utopianos convertem em po os cereais; bebem o suco da uva, da ma, da
pra; bebem tambm gua pura ou fervida com mel e alcauz, que possuem em
abundncia.
A quantidade de vveres necessria ao consumo de cada cidade e de seus
territrios determinada da maneira mais precisa. No obstante, os
habitantes no deixam de semear o gro e criar gado, muito alm das
necessidades do consumo. O excedente posto em reserva, para os pases
vizinhos.
Quanto aos mveis, utenslios domsticos, e outros objetos que no podem
ser encontrados no campo, os agricultores vo procur-los na cidade. Eles se
dirigem aos magistrados urbanos que lhes mandam entregar sem remunerao nem
atraso. Todos os meses se renem para celebrar uma festa.
Quando chega o tempo da colheita os filarcas das famlias agrcolas
comunicam aos magistrados das cidades quantos braos auxiliares necessitam; e
enxames de ceifadores chegam no momento convencionado e, se o cu est plcido,
a colheita feita quase num s dia.
DAS CIDADES DA UTOPIA E
PARTICULARMENTE DA CIDADE DE AMAUROTA 406n5m
-
Quem conhece uma cidade, conhece todas, porque todas so exatamente
semelhantes, tanto quanto a natureza do lugar o permita. Poderia portanto
descrever-vos indiferentemente a primeira que me ocorresse; mas escolherei de
preferncia a cidade de Amaurota, porque a sede do governo e do senado,
fato que lhe d preeminncia sobre as demais. Alm disso, a cidade que
melhor conheo, pois habitei-a cinco anos inteiros.
Amaurota se estende em doce declive sobre a
vertente de uma colina. Sua forma de quase um quadrado. Comea a
estender-se um pouco acima do cume da colina, prolonga-se cerca de dois mil
os sobre as margens do rio Anidra, alargando-se medida que vai
margeando o rio.
A nascente do Anidra pouco abundante; est
situada a oitenta milhas acima de Amaurota. A fraca corrente se engrossa na
sua marcha com o encontro de numerosos rios, entre os quais se distinguem dois
de grandeza mdia. Ao chegar diante de Amaurota, o Anidra mede quinhentos
os de largo. A partir da, segue se avolumando sempre at desembocar no
mar, aps ter percorrido uma extenso de sessenta milhas.
Dentro de todo o espao compreendido entre a
cidade e o mar, e algumas milhas acima da cidade, o fluxo e o refluxo da mar,
que duram seis horas por dia, modificam singularmente o curso do rio. mar
crescente, o oceano invade o leito do Anidra numa extenso de trinta milhas,
rechaando-o para a nascente. Ento a vaga salina comunica seu amargor ao
rio; mas este, pouco a pouco, se purifica, e leva cidade uma gua doce e
potvel, e a reconduz inalterada at perto de sua embocadura, quando a mar
baixa. As duas margens do Anidra esto ligadas por uma ponte de pedra,
construda em arcadas maravilhosamente curvas. Esta ponte se encontra na
extremidade da cidade mais afastada do mar, a fim de que os navios possam
ancorar em todos os pontos da baa.
Um outro rio, pequeno verdade, mas belo e
tranqilo, corre tambm no permetro de Amaurota. Este ribeiro brota a
pouca distncia da cidade, na montanha sobre que est assentada; e, depois
de a ter cortado ao meio, vem unir suas guas s do Anidra. Os amaurotanos
cercaram a nascente de fortificaes que a ligam aos arrabaldes. Desta
forma, no caso de cerco, o inimigo no poder envenenar o rio, nem barrar ou
desviar-lhe o curso. Do ponto mais elevado, ramificam-se em todos os sentidos
canos de barro que conduzem a gua aos quarteires baixos da cidade. Onde
este meio impraticvel, vastas cisternas recolhem as guas pluviais para
os diversos usos dos habitantes.
Uma cadeia de altas e largas muralhas circunda a
cidade e, a pequenas distncias, erguem-se torres e fortalezas. As muralhas,
dos trs lados, esto cercadas de fossos sempre secos, mas largos e
profundos, atravancados de sebes e espinheiros. O quarto lado tem por fossa o
prprio rio.
As ruas e as praas so convenientemente
dispostas, seja para o transporte, seja para abrigar-se do vento. Os edifcios
so construdos confortavelmente; brilham de elegncia e de conforto e
formam duas fileiras contguas, acompanhando de longo as ruas, cuja largura
de vinte ps.
Atrs, e entre as casas, abrem-se vastos
jardins. Em cada casa h uma porta que d para a rua e outra para o jardim.
Estas duas portas se abrem facilmente com um ligeiro toque, e deixam entrar o
primeiro que chega.
Os habitantes da Utopia aplicam aqui o princpio
da posse comum. Para abolir a idia da propriedade individual e absoluta,
trocam de casa todos os dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na
partilha.
Os habitantes das cidades tratam de seus jardins
com desvelo; cultivam a vinha, os frutos, as flores. e toda a sorte de
plantas. Pem nessa cultura tanta cincia e gosto que jamais vi em outra
parte maior fertilidade e abundncia combinadas num conjunto mais gracioso. No
o prazer o nico motivo que os incita arte da jardinagem; h emulao
entre os diferentes quarteires da cidade, que lutam porfia por quem ter
o jardim mais bom cultivado. Na verdade, nada se pode conceber mais agradvel,
nem mais til aos cidados que esta ocupao. O fundador do imprio bem o
compreendeu, quando tantos esforos envidou para encaminhar os espritos
nessa direo.
Os utopianos atribuem a Utopus o plano. geral de
suas cidades. Este grande legislador no teve tempo de concluir as construes
e embelezamentos que tinha projetado; isso demandava o trabalho de muitas geraes.
Assim, legou posteridade o cuidado de continuar e aperfeioar sua obra.
L-se nos anais da Utopia, conservados
religiosamente desde a conquista da ilha e que abarcam a histria de mil
setecentos e sessenta anos; l-se que, no comeo. as casas eram muito
baixas, no havia seno choupanas, cabanas de madeira, com paredes de barro
e tetos de palha, terminados em ponta. As casas, hoje, so elegantes edifcios
de trs andares, com paredes externas de pedra ou de tijolo e paredes
internas de calia. Os tetos so chatos, recobertos de uma matria moda e
incombustvel, que no custa nada e protege melhor que o chumbo dos danos do
tempo. As janelas envidraadas (faz-se na ilha grande uso do vidro) abrigam
do vento. Algumas vezes substitui-se o vidro por um tecido de uma finura
extrema revestido de mbar ou leo transparente, o que oferece ainda a
vantagem de deixar ar a luz e evitar o vento.
DOS MAGISTRADOS 1t535o
Trinta
famlias fazem, todos os anos, a eleio de um magistrado, chamado
sifogrante na antiga linguagem do pas e filarca na moderna.
Dez sifograntes e suas trezentas famlias
obedecem a um protofilarca, antigamente denominado tranbora.
Finalmente os sifograntes, em nmero de mil e
duzentos, aps o juramento de dar os seus votos ao cidado mais virtuoso e
mais capaz, escolhem por escrutnio secreto e proclamam prncipe um dos
quatro cidados propostos pelo povo; porque a cidade sendo dividida em quatro
sees, cada quarteiro apresenta seu candidato ao senado.
O principado vitalcio, a menos que recaia
sobre o prncipe a suspeita de aspirar tirania. Os tranboras so
nomeados todos os anos, mas s por graves motivos so eles mudados. Os
outros magistrados so renovados anualmente.
Todos os trs dias, e ainda mais freqentemente
se o caso exige, os tranboras se renem em conselho com o prncipe para
deliberar sobre os negcios do pais e terminar rapidamente os processos que
surgem entre os particulares, processos alis excessivamente raros. Dois
sifograntes assistem a cada uma das sesses do senado, e esses dois
magistrados populares so alternados em cada sesso.
A lei quer que as moes de interesse geral
sejam discutidas no senado trs dias antes de ir a votao e de ser
convertido em decreto o projeto.
Reunir-se fora do senado e das assemblias do
povo para deliberar sobre os negcios pblicos um crime punido com a
morte.
Estas instituies tm por finalidade impedir
o prncipe e os tranboras de conspirarem juntos contra a liberdade, de
oprimir o povo com leis tirnicas e de mudar a forma do governo. A constituio
de tal modo vigilante a este propsito que as questes de alta importncia
so relatadas nos comcios dos sifograntes, que as comunicam s suas famlias.
O caso ento examinado em assemblia popular; depois, os sifograntes, aps
terem deliberado, transmitem ao senado seu parecer e a vontade do povo.
Algumas vezes mesmo a opinio de toda a ilha consultada.
Entre os regulamentos do senado, o seguinte
merece assinalado. Quando uma proposta feita, proibido discuti-la no
mesmo dia; a discusso transferida sesso seguinte.
Desta maneira ningum fica exposto a
desembuchar levianamente as primeiras coisas que lhe em pela cabea, e a
defender, em seguida, a sua opinio antes do que o bem geral; pois no
freqente acontecer que se recue diante da vergonha de uma retratao e do
reconhecimento de um erro irrefletido? Ento, sacrifica-se o bem pblico
para salvar a reputao. Este perigo funesto da precipitao foi previsto,
e aos senadores dado o tempo suficiente para refletir.
DAS ARTES E OFCIOS 5uf5r
H
uma arte comum a todos os utopianos, homens e mulheres, e da qual ningum tem
o direito de isentar-se, a agricultura. As crianas aprendem a teoria nas
escolas e a prtica nos campos vizinhos da cidade aonde so levadas em
eios recreativos. A assistem a trabalhar e trabalham tambm, e este
exerccio traz ainda a vantagem de desenvolver as suas foras fsicas.
Alm da agricultura, que, repito-o, um dever
imposto a todos, ensina-se a cada um um ofcio especial. Uns tecem a l ou o
linho; outros so pedreiros ou oleiros; outros trabalham a madeira ou os
metais. So esses os principais ofcios.
As roupas tm a mesma forma para todos os
habitantes da ilha; esta forma invarivel, e apenas distingue o homem da
mulher, o solteiro do casado. Estas vestes renem a elegncia comodidade;
facilitam todos os movimentos do corpo, defendem-no contra os calores do vero
e do frio do inverno. Cada famlia confecciona seus prprios vestidos.
Todos, homens e mulheres, sem exceo, so
obrigados a aprender um dos ofcios mencionados acima. As mulheres, sendo
mais fracas, trabalham apenas a l e o linho, os homens so encarregados das
coisas mais penosas.
Em geral, cada um adestrado na profisso de
seus pais, porque habitualmente a natureza que inspira o gosto desta
profisso. Entretanto, se algum sente mais aptido e atrado por
outra, a a fazer parte, por adoo, de uma das famlias que a exercem.
Seu pai, de acordo com o magistrado, trata de coloc-lo a servio de um pai
de famlia honesto e respeitvel.
Se algum, tendo j uma profisso, quer
aprender outra, pode aprend-la nas condies precedentes. Deixa-se-lhe a
liberdade de exercer a que melhor lhe convier, a menos que a cidade no lhe
designe uma por motivo de utilidade pblica.
A funo principal e quase nica dos
sifograntes a de velar por que ningum se entregue ociosidade e
preguia e todos exeram com nimo a sua profisso. No se deve crer que
os utopianos se atrelem ao. trabalho como bestas de carga desde a madrugada at
noite. Esta vida embrutecedora para o esprito e para o corpo, seria pior
que a tortura e a escravido. E no entretanto, tal , em outra qualquer
parte, a triste sorte do operrio!
Os utopianos dividem o intervalo de um dia e de
uma noite em vinte e quatro horas iguais. Seis horas so empregadas nos
trabalhos materiais; eis a sua distribuio.
Trs horas de trabalho antes do meio dia,
depois almoam. Depois de meio dia, duas horas de repouso, trs de trabalho,
em seguida jantam.
Contam uma hora onde contamos meio dia,
deitam-se s nove e reservam nove horas para o sono.
O tempo compreendido entre o trabalho, as refeies
e o sono, cada qual livre de empregar sua vontade. Longe de abusar
dessas horas de lazer, abandonando-se ociosidade e preguia, descansam
variando suas ocupaes e trabalhos. Esto aptos a assim fazer, graas a
uma instituio verdadeiramente irvel.
Todas as manhs, antes do sol se levantar, os
cursos pblicos so abertos. Somente os indivduos especialmente destinados
s letras, so obrigados a seguir esses cursos; mas todo mundo tem direito a
assisti-los, as mulheres como os homens, quaisquer que sejam as suas profisses.
O povo acorre em massa; e cada um se apega ao ramo de ensino que tem mais relao
com sua indstria e seus gostos.
Alguns, durante as horas de liberdade,
entregam-se de preferncia ao exerccio de sua profisso. So os homens
cujo esprito no tem o gosto das especulaes abstratas. Longe de serem
contrariados nessa preferncia, so, ao contrrio, aplaudidos, pois se
tornam, assim, constantemente teis a seus concidados.
A noite, depois da ceia, os utopianos se
entregam, durante uma hora, aos divertimentos; no vero, pelos jardins, e no
inverno, nas salas comuns onde fazem suas refeies. Fazem msica ou se
distraem conversando. Desconhecem os dados, o baralho e todos os outros jogos
de azar, to estpidos como perigosos. Praticam entretanto duas espcies de
jogos, que tm. muita semelhana com o nosso xadrez; um a batalha aritmtica,
na qual o nmero pilha o nmero; o outro o combate das vcios e das
virtudes. Este ltimo mostra, com destaque, a anarquia dos vcios entre si,
o dio que os divide e, contudo, seu perfeito acordo quando se trata de
atacar as virtudes. Faz ver ainda quais so os vcios opostos a cada uma das
virtudes, como aqueles atacam a estas pela violncia e a descoberto, ou pela
astcia e meios sinuosos; como a virtude repele os assaltos do vcio,
derruba-o e aniquila seus esforos; e como, finalmente, a vitria se decide
por um ou outro lado.
Aqui espero uma sria objeo e apresso-me em
rebat-la.
Dir-se- talvez: Seis horas de trabalho por dia
no so suficientes para as necessidades do consumo pblico, e a Utopia
deve ser um pas muito miservel.
Mas no este realmente o caso. Ao contrrio,
as seis horas de trabalho produzem abundantemente para todas as necessidades e
comodidades da vida, e ainda um suprfluo bem superior s exigncias do
consumo.
Compreendereis facilmente se refletirdes no
grande nmero de pessoas ociosas existentes nas outras naes. Antes de
tudo, so essas quase todas as mulheres, que em si j constituem a metade da
populao, e a maioria dos homens, ali onde as mulheres trabalham. Em
seguida, esta imensa multido de padres e religiosos vagabundos. Somai ainda
todos esses ricos proprietrios vulgarmente chamados nobres e senhores;
acrescentai tambm as nuvens de lacaios e outro tanto de malandros de libr;
e o dilvio de mendigos robustos e vlidos que escondem sua preguia sob o
disfarce de enfermidades. E achareis, em resumo, que o nmero dos que, por
seu trabalho, provm ao gnero humano de todas as necessidades bem menor
do que imaginais.
Considerai tambm como so poucos aqueles que
a trabalhar esto empregados em coisas verdadeiramente necessrias. Porque,
neste sculo de dinheiro, onde o dinheiro o deus e a medida universal,
grande o nmero das artes frvolas e vs que se exercem unicamente a
servio do luxo e do desregramento. Mas se a massa atual dos trabalhadores
estivesse repartida pelas diversas profisses teis, de maneira a produzir
mesmo com abundncia tudo o que exige o consumo, o preo da mo de obra
baixaria a um ponto que o operrio no poderia mais viver de seu salrio.
Suponde, pois, que se faa trabalhar utilmente
aqueles que no produzem seno objetos de luxo e os que nada produzem,
embora comam o trabalho e o quinho de dois bons operrios; ento,
concebereis, sem dificuldade, que disporo de mais tempo do que necessitam
para prover s necessidades e mesmo aos prazeres da vida, quero dizer, os que
se fundam na natureza e na verdade.
Ora, o que afirmo aqui, na Utopia est provado
pelos fatos. Em toda a extenso de uma cidade utopiana, inclusive seu territrio,
no mais de quinhentos indivduos, compreendidos os homens e mulheres na
idade e fora de trabalhar, existem isentos por lei. Neste nmero esto os
sifograntes; mas mesmo esses magistrados trabalham como os outros cidados a
fim de estimul-los pelo exemplo. Este privilgio se estende tambm aos
jovens que o povo destina s cincias e s artes, por recomendao dos
padres e conforme os sufrgios secretos dos sifograntes. Se um desses eleitos
ilude a esperana pblica, transferido para a classe dos operrios. Se,
ao contrrio, e o caso freqente, um operrio consegue adquirir uma
instruo suficiente consagrando suas horas de lazer aos estudos
intelectuais, fica isento do trabalho mecnico e sobe classe dos letrados.
entre os letrados que se escolhem os
embaixadores, os padres, os tranboras e o prncipe, chamado antigamente
barzame e hoje demo. O resto da populao continuamente ativa no exerce
seno profisses teis e produz, em pouco tempo, uma massa considervel de
trabalhos perfeitamente executados.
O que contribui ainda para abreviar o trabalho
que, tudo sendo bem estabelecido e conservado, h muito menos o que fazer
na Utopia do que entre ns.
Nas outras partes, a construo e a reparao
dos edifcios exigem trabalhos contnuos. A razo disto que o pai, aps
ter edificado a sua casa com grandes sacrifcios, deixa seus bens a um filho
negligente e dissipador, em cujas mos tudo se deteriora pouco a pouco; o
resultado que o herdeiro deste ltimo no pode empreender reparaes
sem fazer despesas enormes. Freqentemente acontece mesmo que um mais
requintado no luxo desdenha as construes paternas, e se pe a construir,
com maiores despesas ainda, noutro terreno, enquanto a casa de seu pai cai em
runas.
Na Utopia, tudo est to bem previsto e
organizado que raro -se obrigado a construir em novos terrenos. Os estragos
so consertados no momento em que aparecem, e os que esto iminentes so
prevenidos. Assim, as construes se conservam com pouco gasto e trabalho. A
maior parte do tempo, os operrios permanecem em casa para, desbastando os
materiais, talhar a madeira e a pedra. Quando h uma construo a fazer, os
materiais esto todos prontos e a obra rapidamente terminada.
Ides ver como dispendem pouco os utopianos para
se vestirem.
No trabalho, vestem de couro ou de pele; este
trajo pode durar sete anos. Em pblico, cobrem-se de um casaco ou sobretudo
que tapa a roupa grosseira do trabalho. O casaco de cor natural, e igual
para todos. Desta sorte usam muito menos casemira do que em qualquer outra
parte, e a l lhes vem por menor preo. O linho de uso muito difundido,
porque exige menos trabalho. Eles no do preo seno brancura do
linho, nitidez e limpeza da l, sem considerar a fineza ou delicadeza
da fiao. Um s trajo dura de ordinrio dois anos; enquanto que alhures,
cada pessoa carece de quatro a cinco roupas de diferentes cores, outras tantas
vestimentas de seda e os mais elegantes no se satisfazem com uma dezena. Os
utopianos no vm motivo para possuir um to grande nmero; no se
sentiriam por isso nem mais cmoda nem mais elegantemente vestidos.
Assim, todo mundo, na Utopia, vive ocupado em.
artes e ofcios realmente teis. O trabalho material de curta durao e
mesmo assim produz a abundncia e o suprfluo. Quando h acmulo de
produtos, os trabalhos dirios so suspensos e a populao transportada
em massa para reparar as estradas esburacadas e estragadas. Na falta de obras
comuns ou extraordinrias a realizar, um decreto autoriza uma diminuio
nas horas de trabalho, porque o governo no procura fatigar seus cidados em
labores inteis.
O fim das instituies sociais na Utopia
de prover antes de tudo s necessidades do consumo pblico e individual; e
deixar a cada um o maior tempo possvel para libertar-se da servido do
corpo, cultivar livremente o esprito, desenvolvendo suas faculdades
intelectuais pelo estudo das cincias e das letras. neste desenvolvimento
completo que eles pem a verdadeira. felicidade.
DAS RELAES MTUAS ENTRE OS
CIDADOS 3l4j13
Agora
o a expor as relaes dos cidados entre si, seu comrcio e a lei da
distribuio das coisas necessrias vida.
A cidade se compe de famlias, na sua maioria
unidas pelos laos de parentesco.
Desde que uma moa nbil, -lhe dado um
marido, e ela vai morar com ele.
Os vares, filhos e netos, no deixam as suas
famlias. O membro mais antigo de uma famlia o chefe, e se os anos
enfraqueceram sua inteligncia, substitudo por aquele que mais se
aproxima de sua idade.
As seguintes disposies mantm o equilbrio
da populao, impedindo-a de tornar-se muito rara em certos pontos, muito
densa em outros.
Cada cidade deve ser constituda de seis mil
famlias. Cada famlia ,no pode conter seno de dez a dezesseis mancebos
na idade da puberdade. O nmero de crianas impberes ilimitado.
Quando uma famlia cresce alm da medida, o
excedente colocado entre as famlias menos numerosas.
Quando h numa cidade mais gente do que deve
conter, o excedente vai preencher os claros das cidades menos povoadas.
Finalmente, se a ilha inteira se visse
sobrecarregada de habitantes, seria decretada a emigrao geral. Os
emigrantes iriam fundar uma colnia no continente mais prximo, onde os indgenas
dispem de mais terreno do que cultivam.
A colnia se governa segundo as leis utopianas,
e chama a si os nativos que queiram partilhar de seus trabalhos e gnero de
vida.
Se os colonos encontram um povo que aceita suas
instituies e costumes, formam com ele uma mesma comunidade social, e esta
unio benfica a todos. Pois, a viver todos, assim, utopiana, uma
terra que, outrora, era ingrata e estril para um nico povo, toma-se
produtiva e fecunda para dois povos ao mesmo tempo.
Mas se os colonos encontram uma nao que
repele as leis da Utopia, eles expulsam esta nao da regio do pas que
querem colonizar, e, se preciso, empregam, para tal, a fora das armas.
Segundo os seus princpios, a guerra mais justa aquela que se faz a um
povo que possui imensos territrios incultos e que os conserva desertos e estreis,
notadamente quando este mesmo povo interdiz a sua posse e o seu uso aos que vm
para cultiv-los e deles se nutrir, conforme a lei imprescritvel da
natureza.
Se acontecesse (e este foi o caso, por duas
vezes, em conseqncia de pestes horrveis) que a populao do lugar
diminusse a ponto de no poder ser restabelecida sem romper o equilbrio e
a constituio das outras partes da ilha, os colonos regressariam Utopia.
Nossos insulares prefeririam deixar que as colnias perecessem a permitir que
decrescesse uma nica cidade da me-ptria.
Mas voltemos s relaes mtuas entre os
cidados.
O mais idoso, como j o disse, preside a famlia.
As mulheres servem a seus maridos; as crianas, a seus pais e mes; os mais
jovens, aos mais velhos.
A cidade inteira se divide em quatro quarteires
iguais. No centro de cada quarteiro, encontra-se o mercado das coisas necessrias
vida. So depositados a os diferentes produtos do trabalho de todas as
famlias. Esses produtos, depositados primeiramente nos entrepostos, so em
seguida classificados nas lojas de acordo com sua espcie.
Cada pai de famlia vai procurar no mercado
aquilo de que tem necessidade para si e os seus. Tira o que precisa sem que
seja exigido dele nem dinheiro nem troca. Jamais se recusa alguma coisa aos
pais de famlia. A abundncia sendo extrema, em todas as coisas, no se
teme que algum tire alm de sua necessidade. De fato, aquele que tem a
certeza de que nada faltar jamais, no procurar possuir mais do que
preciso. O que torna, em geral, os animais cpidos e rapaces, o temor das
privaes no futuro. No homem em particular, existe uma outra causa de
avareza - o orgulho, que o excita a ultraar em opulncia os seus iguais e
a deslumbr-los pelo aparato de um luxo suprfluo. Mas as instituies
utopianas tornam este vcio impossvel.
Os mercados de que acabo de falar esto juntos
dos mercados de comestveis, onde se depositam os legumes, as frutas, o po,
o peixe, as aves domsticas e as partes de se comer dos animais quadrpedes.
Fora da cidade, existem os matadouros onde se
abatem os animais destinados ao consumo. Esses matadouros so mantidos sempre
limpos graas a correntes de gua que arrastam o sangue e as imundcies
dos animais. da que levada ao mercado a carne limpa e retalhada pelas
mos dos escravos: pois a lei probe aos cidados o ofcio de carniceiro,
temerosa que o hbito da matana destrua pouco a pouco o sentimento de
humanidade, o sentimento mais nobre do corao do homem. Esses aougues so
situados fora da cidade no intuito de evitar tambm aos cidados um espetculo
hediondo, ao mesmo tempo que desembaraa a cidade das sujeiras e matrias
animais cuja putrefao poderia provocar molstias.
Em cada rua amplos palcios esto dispostos a
igual distncia, distinguindo-se uns dos outros por nomes particulares. a
que moram os sifograntes; suas trinta famlias esto alojadas nos dois
lados, quinze direita e quinze esquerda; no palcio do sifogrante
que elas vo fazer as refeies em comum.
Os provedores se renem no mercado a uma hora
fixa e requerem uma quantidade de vveres proporcional ao nmero de bocas
que tm de nutrir. Comea-se sempre por servir os doentes, que so alojados
em enfermarias pblicas.
Em torno da cidade e um pouco alm de seus
muros esto situados quatro hospitais de tal forma espaosos, que poderiam
ser tomados por quatro burgos considerveis. Evita-se assim a acumulao e
o atravancamento dos doentes, inconvenientes que retardam a cura; alm disto,
quando um homem atingido por uma molstia contagiosa, pode-se isol-lo
completamente. Esses hospitais possuem com abundncia todos os remdios e
todas as coisas necessrias ao restabelecimento da sade. Os doentes so a
tratados com um cuidado afetuoso e assduo, sob a direo dos mais hbeis
mdicos. Ningum obrigado a ir para l; entretanto, no h quem, em
caso de doena, no prefira tratar-se no hospital do que em sua casa.
Depois que os provedores dos hospitais recebem o
que pediram, segundo as prescries dos mdicos, o que h de melhor no
mercado distribudo, sem distino, entre todos os refeitrios,
proporcionalmente ao nmero dos comedores. Serve-se, ao mesmo tempo, o prncipe,
o pontfice, os tranboras, os embaixadores, os estrangeiros, se os h, o
que muito raro. Estes ltimos, ao chegarem cidade, encontram os seus
alojamentos j preparados e providos de todas as coisas de que podem
necessitar.
Uma trombeta marca a hora das refeies. Ento
toda a sifograntia encaminha-se para o refeitrio comum, com exceo dos
indivduos acamados em casa ou no hospital. permitido ir ao mercado
procura de vveres para o consumo particular, mas s depois que as mesas pblicas
estiverem completamente providas. Os utopianos, porm, no se utilizam
jamais desse direito, a no ser por graves motivos: se cada qual livre de
comer em sua casa, ningum encontra prazer em faz-lo. Ademais, seria
loucura dar-se ao trabalho de preparar um mau jantar, quando se pode ter um
bem melhor a alguns os.
Os escravos so encarregados dos trabalhos de
cozinha mais sujos e penosos. As mulheres cozinham os alimentos, temperam os
guisados e servem e tiram as mesas. Revezam-se nestes misteres, famlia por
famlia.
Preparam-se trs mesas ou mais, de acordo com o
nmero de convivas. Os homens assentam-se do lado da parede; as mulheres
ficam dispostas em frente, a fim de que, se alguma for acometida de uma
indisposio sbita, o que acontece freqentemente s mulheres grvidas,
possam se retirar sem incomodar ningum, e ir para os aposentos das amas.
As amas se sentam a parte com as crianas de
peito, em salas particulares, sempre aquecidas e providas de gua limpa e beros;
desta maneira elas podem deitar as criancinhas, desenfaix-las e faz-las
brincar prximo do fogo.
Cada me aleita seu filho, exceto em caso de
morte ou de doena. Nestes dois casos, as mulheres dos sifograntes procuram
imediatamente uma ama, o que no difcil encontrar. As mulheres em situao
de prestar este servio so as primeiras a se oferecer. Alis, esta funo
uma das mais honrosas, e a criana pertence tanto sua ama de leite como
sua me.
Na sala das amas vivem tambm as crianas que
no tm ainda cinco anos completos. Os meninos e as meninas, da idade da
puberdade at a do casamento servem a mesa. Os mais jovens e que no tm
fora para servir, conservam-se de p e em silncio; comem o que lhes
dado pelos que esto mesa, e no tm outro momento para fazer suas refeies.
O sifogrante e sua mulher so colocados no
centro da primeira mesa. Esta mesa ocupa a extremidade do fundo da sala e de l
se descortina, num golpe de vista, toda a assemblia. Dois velhos, escolhidos
entre os mais velhos e mais respeitveis, assentam-se com o sifogrante, e,
assim, todos os convivas so servidos e comem quatro a quatro. Se h um
templo na sifograntia, o sacerdote e sua mulher substituem os dois velhos,
presidindo a refeio.
Dos dois lados da sala esto enfileirados
alternativamente dois jovens e dois indivduos mais idosos. Esta disposio
aproxima os iguais e mistura, ao mesmo tempo, todas as idades; e alm disso
preenche uma finalidade moral. Como nada se pode dizer ou fazer que no seja
percebido pelos vizinhos, assim a gravidade da velhice, o respeito que ela
inspira, contm a petulncia dos jovens, impedindo-os sair da medida tanto
nas palavras como nos gestos.
A mesa do sifogrante servida em primeiro
lugar; em seguida as outras, segundo sua posio. Os melhores pedaos so
dados aos velhos das famlias que ocupam lugares fixos e de destaque. Todos
os demais so servidos com uma igualdade perfeita. As pores desses bons
velhos no lhes so bastante grandes para dar a todo o mundo; mas eles as
repartem, como entendem, com os vizinhos mais prximos. Assim, rende-se
velhice a honra que lhe devida, e esta homenagem volve ao bem de todos.
Os almoos e os jantares comeam pela leitura
de um livro de moral; esta leitura breve para que no aborrea. Quando
terminada, os mais idosos encetam conversaes honestas, mas cheias de
jovialidade e alegria. Longe de falar exclusivamente, eles gostam de escutar
os jovens; provocam mesmo seus repentes, a fim de apreciar-lhes a natureza do
carter e do esprito. Ao calor e liberdade reinantes nas horas de refeio,
essa natureza facilmente se trai.
O almoo rpido; a ceia demorada; porque
ao almoo seguem-se os trabalhos, enquanto que depois da ceia, vm o sono e
o repouso da noite. Ora, os utopianos acreditam que o sono da noite mais
favorvel do que o trabalho a uma boa digesto. A ceia no se realiza sem msica
e sem uma sobremesa copiosa e delicada. Os perfumes, as essncias mais
recendentes, nada poupado para o bem estar e o gozo dos convivas. Poder-se-,
talvez, por isto, acusar os utopianos de uma tendncia excessiva ao prazer?
Eles tm por princpio que a volpia que no engendra nenhum mal
perfeitamente legtima.
assim que vivem entre si os utopianos das
cidades. Aqueles que trabalham no campo esto muito apartados uns dos outros
para comer em comum; tomam suas refeies em casa, individualmente. De
resto, as famlias agrcolas tm assegurada uma alimentao abundante e
variada. Nada lhes falta: no so elas as provedoras, as mes nutrizes das
cidades?
DAS VIAGENS DOS
UTOPIANOS i6d5m
Quando
um cidado deseja ir ver um amigo que mora noutra cidade, ou quer
simplesmente ter o prazer de uma viagem, os sifograntes e os tranboras
consentem de boa vontade em sua partida se no houver impedimento razovel.
Os viajantes Se renem para partir em conjunto;
munem-se de uma carta do prncipe que um certificado de licena e que
fixa o dia de regresso. Fornecem-lhes uma carruagem e um escravo para guiar a
carruagem e cuidar dos animais. Mas habitualmente, a menos que levem mulheres
em sua companhia, os viajantes dispensam o carro como um obstculo. No se
provm de nada durante o percurso; porque nada lhes pode faltar e em qualquer
lugar esto em sua casa.
Se um viajante a mais de um dia numa
localidade, tem que trabalhar no seu ofcio e recebe o mais carinhoso
acolhimento dos operrios de sua profisso.
Aquele que por sua prpria vontade se permite
franquear os limites de sua provncia, tratado como criminoso; apanhado
sem a licena do prncipe, reconduzido como desertor e severamente punido
Em caso de reincidncia, perde a liberdade.
Se algum cidado deseja fazer excurso nos
campos que dependem de sua cidade, pode faz-lo com o consentimento de sua
mulher e do pai de famlia. Mas necessrio que compre e pague o seu
sustento trabalhando antes do almoo e da ceia tanto quanto os que a moram.
Sob esta condio, cada indivduo tem o direito de sair da cidade e
percorrer o territrio adjacente, porque ele to til ali como aqui.
Vede que na Utopia a ociosidade e a preguia so impossveis. No se vm
nem tabernas, nem lugares de prostituio, nem oportunidade para deboches,
nem antros ocultos, nem assemblias secretas. Cada um, continuamente exposto
ao olhar de todos, se sente na feliz contingncia de trabalhar e de repousar,
conforme as leis e os costumes do pas. A abundncia de todas as coisas o
fruto desta vida pura e ativa. O bem estar se reparte igualmente por todos os
membros desta irvel sociedade; a mendicidade e a misria so a
monstros desconhecidos.
J disse que cada cidade da Utopia enviava trs
deputados ao senado de Amaurota. As primeiras sesses do senado so
consagradas a levantar a estatstica econmica das diversas partes da ilha.
Desde que se verifica os pontos onde h demais e os pontos onde no h
bastante, o equilbrio restabelecido enchendo-se a carncia das cidades
infelizes com a superabundncia das cidades mais favorecidas. Esta compensao
gratuita. A cidade que d nada recebe em troca da parte que entrega; e,
reciprocamente, recebe de graa de uma outra cidade qual nada deu.
Assim, toda a repblica utopiana como uma nica
e mesma famlia.
A ilha sempre abastecida por dois anos, na
incerteza de uma boa ou m colheita para o ano seguinte. Exportam-se para
fora da ilha os gneros suprfluos, tais como trigo, mel, l, linho,
madeiras, matrias para tinturas, peles, cera, sebo, animais. A stima parte
dessas mercadorias distribuda aos pobres do pas para onde se exporta; o
resto vendido a um preo moderado. Este comrcio permite Utopia
importar no somente objetos de necessidade, o ferro, por exemplo, como, tambm,
uma massa considervel de ouro e prata.
Desde que os utopianos praticam este negcio
que acumularam uma quantidade incrvel de riquezas. por isso que lhes
indiferente, hoje, vender a vista ou a prazo. Habitualmente, recebem vales em
pagamento; mas no se fiam em s individuais. Os vales devem estar
revestidos das formas legais e garantidos f e selo da cidade que os
aceita. No dia do vencimento, a cidade signatria exige o reembolso aos
devedores particulares; o dinheiro depositado no tesouro pblico e o seu
valor garantido at que os credores utopianos o reclamem.
Estes no reclamam quase nunca o pagamento da dvida
inteira; acreditariam cometer uma injustia, tirando a um outro uma coisa que
lhe necessria e que para ele intil. Entretanto, h casos em que
retiram toda a soma que lhes devida; isto acontece quando querem se servir
desta para emprestar a uma nao vizinha ou para empreender uma guerra.
Neste ltimo caso, juntam todas suas riquezas para fazer como que uma
trincheira de metal contra os perigos urgentes e imprevistos. Estas riquezas so
destinadas a engajar e a pagar copiosamente as tropas estrangeiras; porque o
governo da Utopia prefere expor morte os estrangeiros que os seus cidados.
Ele sabe tambm que o inimigo mais encarniado se vende algumas vezes, se o
preo da venda est altura de sua cobia; sabe que, em geral, o dinheiro
o nervo da guerra, quer para comprar traies, quer para combater
abertamente.
Para tais fins, os utopianos tm sempre sua
disposio imensos tesouros; mas, longe de conserv-los com uma espcie de
culto religioso, como fazem outros povos, eles os empregam em coisas que mal
ouso dizer-vos. Temo que no acrediteis, pois eu mesmo, confesso-vos
francamente, se no tivesse visto a coisa no acreditaria sobre palavra.
Isto muito natural; quanto mais os costumes estrangeiros so opostos aos
nossos, menos estamos dispostos a acreditar neles. Contudo, o homem sbio que
julga judiciosamente, ao saber que os utopianos pensam e agem de modo
exatamente contrrio aos outros povos, no se surpreender que eles
empreguem o ouro e a prata de modo inteiramente diverso de ns. Na Utopia no
se utiliza jamais dinheiro em moeda nas transaes mtuas; so elas
reservadas para os acontecimentos crticos sempre possveis, ainda que
incertos.
O ouro e a prata no tm, nesse pas, mais
valor do que lhes deu a natureza. Esses dois metais so ali considerados bem
abaixo do ferro, o qual to necessrio ao homem quanto a gua e o fogo.
Com efeito, o ouro e a prata no tm nenhuma virtude, nenhum uso, nenhuma
propriedade cuja privao acarrete um inconveniente natural e verdadeiro.
Foi a loucura humana que ps tanto valor em sua raridade.
A natureza, esta excelente me, escondeu-os em
grandes profundidades, como produtos inteis e vos, enquanto que expe a
descoberto a gua, o ar, a terra, e tudo o que h de bom e realmente til.
Os utopianos no escondem seus tesouros nas
torres, ou em outros lugares fortificados e inveis. O vulgo, numa
extravagante malcia, poderia suspeitar que o prncipe e o senado enganassem
o povo, enriquecendo-se e pilhando a fortuna pblica. Com o ouro e a prata no
se fabricam nem vasos, nem obras artisticamente trabalhadas. Porque, se
houvesse necessidade de um dia fundi-los, para pagar o exrcito em caso de
guerra, os que tivessem posto sua afeio e suas delcias nesses objetos de
arte e de luxo, sentiriam, ao perd-los, uma dor amarga.
A fim de prevenir esses inconvenientes, os
utopianos imaginaram um uso perfeitamente em harmonia com o restante de suas
instituies, mas em completo desacordo com as do nosso continente, onde o
ouro adorado como um Deus, procurado como o bem supremo. Eles comem e bebem
em loua de barro ou vidro, que se elegante na forma, , no entanto,
despida do menor valor; o ouro e a prata so destinados aos usos mais vis,
tanto nas residncias comuns, como nas casas particulares; so feitos com
eles at os vasos noturnos. Forjam-se cadeias e correntes para os escravos, e
marcas de oprbrio para os condenados que cometeram crimes infames. Estes ltimos
levam anis de ouro nos dedos e nas orelhas, um colar de ouro no pescoo, um
freio de ouro na cabea.
Assim, tudo concorre para manter o ouro e a
prata na ignominia. Entre outros povos a perda da fortuna um sofrimento to
cruel como um dilaceramento de entranhas; mas quando se arrancasse nao
utopiana todas suas imensas riquezas ningum pareceria ter perdido um cntimo.
Os utopianos recolhem prolas na sua costa,
diamantes e pedras preciosas em certos rochedos. Sem ir cata desses objetos
raros, eles gostam de polir os que a sorte os presenteia, a fim de adornar os
seus filhinhos, que ficam todo orgulhosos de trazer esses ornamentos. Mas,
medida que crescem, percebem logo que estas frivolidades no convm seno
s crianas pequenas. Ento, no esperam pela observao dos pais;
espontaneamente e por amor prprio livram-se desses enfeites. como entre ns,
quando as crianas que vo crescendo, abandonam as bolas e as bonecas.
Estas instituies, to diferentes das dos
outros povos, gravam no corao do utopiano sentimentos e idias
inteiramente contrrias s nossas. Fiquei singularmente chocado com esta
diferena por ocasio de uma embaixada anemoliana. Os enviados de Anemlia
vieram a Amaurota quando eu l estava, e como deviam tratar de negcios de
alta importncia, o senado esteve reunido na capital. At ento, os
embaixadores das naes limtrofes que tinham vindo Utopia, a levaram
a vida mais simples e modesta, porque estavam j ao par dos costumes
utopianos. Sabiam que o luxo de seus atavios no tem l nenhum valor, a seda
desprezada e o ouro uma coisa infame.
Mas, os anemolianos, muito mais afastados da
ilha, tinham tido muito poucas relaes com ela. Ao saberem que os seus
habitantes vestiam-se de modo grosseiro e uniforme, imaginaram que esta
extrema simplicidade era causada pela misria, e, mais vaidosos do que
sagazes, resolveram apresentar-se com a magnificncia digna de enviados
celestes e ofuscar esses miserveis insulares com o brilho de um fausto
deslumbrante.
Os trs ministros, que eram grandes senhores de
Anemlia, ao entrar em Amaurota, faziam-se seguidos de cem pessoas, vestidas
de trapos de seda de diversas cores. Os prprios embaixadores traziam uma
vestimenta rica e suntuosa; trajavam uma roupa de l tecida com ouro, traziam
colares e brincos de ouro nas orelhas, anis de ouro nos dedos e os seus chapus
resplandeciam de pedrarias. Enfim, estavam cobertos do que na Utopia constitui
o suplcio do escravo, a marca vergonhosa da infmia, o brinquedo da criana.
Era divertido ver a orgulhosa satisfao dos
embaixadores e das pessoas do seu squito, que, comparavam o luxo de seus
paramentos s vestes simples e negligentes do povo utopiano, espalhado em
massa sua agem. De outro lado, no era menos curioso observar a
atitude da populao, e como esses estrangeiros se enganavam em sua
expectativa, e como estavam longe de despertar a estima e as honras que tinham
imaginado.
A parte um pequeno nmero de utopianos, que
tinha viajado no exterior por graves motivos, todos os outros olhavam com
piedade todo este aparato suntuoso; os utopianos saudavam os mais nfimos
lacaios do cortejo, tomando-os por embaixadores, e deixavam ar os
embaixadores, sem lhes dar mais ateno do que aos lacaios, porque os viam
carregados de cadeias de ouro como seus escravos.
As crianas que j tinham abandonado os
diamantes e as prolas e que as viam nos chapus dos embaixadores, puxavam
suas mes, gritando:
Veja este grandalho que ainda traz pedrarias
como se fosse pequenino.
E as mes respondiam gravemente:
Calai-vos, meu filho, , eu penso, um dos bufes
da embaixada.
Muitos criticavam a forma dessas correntes de
ouro.
Elas so, diziam, muito finas, e poderiam ser
quebradas facilmente; alm disso, no esto bem fechadas e apertadas, e o
escravo poderia se desembaraar delas, se quisesse, e fugir.
Dois dias depois de sua entrada em Amaurota, 08
embaixadores compreenderam que os utopianos desprezavam o ouro tanto quanto
ele era venerado no seu pas. Tiveram ocasio de observar no corpo de um
escravo mais ouro e prata do que o que trazia toda a sua escolta. Ento,
humilhados em sua vaidade e envergonhados da mistificao de que tinham sido
vtimas, despojaram-se apressadamente do fausto que to orgulhosamente
tinham exposto. As relaes ntimas que entretiveram na Utopia,
ensinaram-lhes quais eram os princpios e os costumes de seus habitantes.
Os utopianos iram-se de que seres razoveis
possam se deleitar com a luz incerta e duvidosa de uma pedra ou de uma prola,
quando tm os astros e o sol com que encher os olhos. Encaram como louco
aquele que se acredita mais nobre e mais estimvel s porque est coberto
de uma l mais fina, l tirada das costas de um carneiro, e que foi usada
primeiro por este animal. iram-se que o ouro, intil por sua prpria
natureza, tenha adquirido um valor fictcio to considervel que seja muito
mais estimado do que o homem; ainda que somente o homem lhe tenha dado este
valor e dele se utilize, conforme seus caprichos.
Espantam-se tambm que um rico, de inteligncia
de chumbo, estpido como uma acha de lenha, to tolo quanto imoral, mantenha
em sua dependncia uma multido de homens sbios e virtuosos, apenas porque
a sorte lhe deixou algumas pilhas de escudos.
Mas, dizem, a fortuna pode tra-lo e a lei (que
tanto quanto a sorte precipita freqentemente o homem do pinculo ao lodo)
pode arrancar-lhe o dinheiro, fazendo-o ar s mos do mais ignbil de
seus lacaios. Ento, este mesmo rico se sentir feliz em ar tambm, na
companhia de seu dinheiro, a servio de seu antigo criado.
H uma outra loucura que os utopianos detestam
ainda mais, e que dificilmente concebem, a loucura dos que rendem
homenagens quase divinas a um homem porque rico, sem serem, entretanto, nem
seus devedores nem seus sditos. Os insensatos sabem, no obstante, como
srdida a avareza desses Cresos egostas; sabem, perfeitamente, que nunca
tero um vintm de todos os tesouros destes ltimos.
Nossos insulares adquirem semelhantes
sentimentos, parte no estudo das letras, parte na educao que recebem no
seio de uma repblica cujas instituies so formalmente opostas a todas
as nossas espcies e gneros de extravagncia. verdade que um nmero
muito pequeno dispensado dos trabalhos materiais, entregando-se
exclusivamente cultura do esprito. So, como j disse, aqueles que,
desde a infncia, demonstraram aptides raras, um gnio penetrante, vocao
cientfica. Mas nem por isso se deixa de dar uma educao liberal a todas
as crianas; e a grande massa dos cidados - homens e mulheres - consagra,
cada dia, seus momentos de repouso e liberdade aos trabalhos intelectuais.
Os utopianos aprendem as cincias em sua prpria
lngua, rica e harmoniosa, intrprete fiel do pensamento; ela difundida,
mais ou menos alterada, sobre uma grande extenso do globo.
Antes de nossa chegada, os utopianos nunca
tinham ouvido falar nesses filsofos to famosos no nosso mundo; entretanto,
fizeram as mesmas descobertas que ns, no terreno da msica, da aritmtica,
da dialtica, da geometria. Se igualam em quase tudo os nossos antigos, so
bastante inferiores aos dialticos modernos, porque ainda no inventaram
nenhuma dessas regras sutis de restrio, amplificao, suposio, que
se ensinam juventude nas escolas de lgica. Ainda no aprofundaram as idias
segundas; e, quanto ao homem em geral, ou universal, segundo a gria metafsica,
este colosso, o maior dos gigantes, que nos mostram aqui, ningum na Utopia
pode ainda perceb-lo.
Em compensao, conhecem de uma maneira
precisa o curso dos astros e o movimento dos corpos celestes. Imaginaram mquinas
que representam com grande exatido os movimentos e as posies respectivas
do sol e da lua e dos astros visveis acima do seu horizonte. Quanto aos dios
e s amizades dos planetas e s demais imposturas de adivinhao pelo cu,
nem mesmo em sonhos disso se ocupam. Sabem prever, por indcios confirmados
por uma longa experincia, a chuva, o vento e as outras revolues do ar.
Fazem apenas conjecturas sobre as causas desses fenmenos, sobre o fluxo e o
refluxo do mar, sobre a composio salina dessa imensa massa lqida, a
origem e a natureza do cu e do mundo. Seus sistemas coincidem em certos
pontos com os dos nossos antigos filsofos; e em outros, se afastam. Mas, nas
novas teorias que imaginaram, h dissidncias entre eles, como entre ns.
Em filosofia moral, agitam as mesmas questes
que os nossos doutores. Procuram na alma do homem, no seu corpo e nos objetos
exteriores, o que pode contribuir para sua felicidade; perguntam, procuram
saber se o nome de Bem convm indiferentemente a todos os elementos da
felicidade material e intelectual, ou s ao desenvolvimento das faculdades do
esprito. Dissertam sobre a virtude e o prazer; mas a primeira e principal de
suas controvrsias tem por fito determinar a condio nica, ou as
diversas condies da felicidade do homem.
Talvez possais acus-los de propender demais
para o epicurismo, porque, se a volpia no , para eles, o nico elemento
da felicidade, um dos mais essenciais. E, fato singular, invocam em apoio
dessa moral voluptuosa a religio to grave e severa, to triste e rgida.
Tm por princpio no discutir jamais sobre o bem e o mal, sem partir dos
axiomas da religio e da filosofia; de outra maneira, temeriam raciocinar em
bases falhas e edificar falsas teorias.
Eis aqui seu catecismo
religioso:
A alma imortal: Deus que bom, criou-a para
ser feliz. Depois da morte, as recompensas coroam a virtude, suplcios
atormentam o crime.
Embora esses dogmas pertenam religio, os
utopianos pensam que a razo pode induzir a crer neles e aceit-los No
hesitam em declarar que, na ausncia desses princpios, fora preciso ser estpido
para no procurar o prazer por todos os meios possveis, criminosos ou legtimos.
A virtude consistiria, ento, em escolher, entre duas volpias, a mais
deliciosa, a mais picante; e em fugir dos prazeres a que se seguissem dores
mais vivas do que o gozo que tivessem proporcionado.
Mas praticar virtudes severas e difceis,
renunciar aos prazeres da vida, sofrer voluntariamente a dor e nada esperar
depois da morte em recompensa s mortificaes da terra, , aos olhos dos
nossos insulares, o cmulo da loucura.
A felicidade, dizem, no est em toda espcie
de voluptuosidade; est unicamente nos prazeres bons e honestos. para
esses prazeres que tudo, at a prpria virtude, arrasta irresistivelmente a
nossa natureza; so eles que constituem a felicidade.
Os utopianos definem a virtude: viver segundo a
natureza. Deus, criando o homem, no lhe deu outro destino.
O homem que segue o impulso da natureza,
aquele que obedece voz da razo, em seus dios e seus apetites. Ora, a
razo inspira, em primeiro lugar, a todos os mortais o amor e a adorao da
majestade divina, qual ns devemos o ser e o bem estar. Em segundo lugar,
ela nos ensina e nos instiga a viver alegremente e sem lamentaes, e a
proporcionar aos nossos semelhantes, que so nossos irmos, os mesmos benefcios.
De fato, o mais enfadonho e o mais fantico
zelador da virtude, o inimigo mais odiento do prazer, ao vos propor imitar
seus trabalhos, suas viglias e mortificaes, ordena-vos, tambm,
mitigar, com todas as vossas foras, a misria e as aflies dos outros.
Esse moralista severo cumula de elogios, em nome da humanidade, o homem que
consola e que salva o homem; e cr, assim, que a virtude mais nobre e mais
humana, em qualquer terreno, consiste em suavizar os sofrimentos do prximo,
arranc-lo ao desespero e tristeza, restituir-lhe as alegrias da vida, ou,
em outros termos, faz-lo ter parte tambm na volpia.
E por que a natureza no induziria cada um de ns
a se fazer, a si mesmo, o mesmo bem que aos outros? Pois, das duas uma: ou uma
existncia agradvel, isto , a volpia, um bem ou um mal. Se um
mal, no somente no se deve ajudar seus semelhantes a fru-la, mas ainda
deve-se arranc-la como coisa perigosa e condenvel. Se um bem, pode-se e
deve-se procur-la para si prprio como para os outros. Por que iramos ter
menos compaixo de ns do que dos outros? A natureza, que inspira em ns a
caridade por nossos irmos, no ordena que sejamos cruis conosco mesmos.
Eis o que leva os utopianos a afirmarem que uma
vida honestamente agradvel quer dizer que a volpia o fim de todas as
nossas aes; que tal a vontade da natureza e que obedecer a esta vontade
ser virtuoso.
A natureza, dizem eles, convida todos os homens
a se ajudarem mutuamente e a partilharem em comum do alegre festim da vida.
Este preceito justo e razovel, pois no h indivduo to altamente
colocado acima do gnero humano que somente a Providncia deva cuidar dele.
A natureza deu a mesma forma a todos; aqueceu-os todos com o mesmo calor,
envolve todos com o mesmo amor; o que ela reprova, aumentar o prprio bem
estar agravando a infelicidade de outrem.
por isto que os utopianos pensam que
necessrio observar no s as convenes privadas entre simples cidados,
mas ainda as leis pblicas, que regulam a distribuio das comodidades da
vida, em outros termos, que distribuem a matria do prazer, quando estas leis
foram justamente promulgadas por um bom prncipe, ou sancionadas pelo
consentimento geral de um povo, nem oprimido pela tirania, nem embado pelo
artifcio.
A sabedoria reside em procurar a felicidade sem
violar as leis. A religio trabalhar pelo bem geral. Calcar aos ps a
felicidade de outrem, em busca da sua, uma ao injusta.
Ao contrrio, privar-se de algum prazer, para
comunic-lo a outrem, indcio de um corao nobre e humano, e que, alis,
torna a ach-lo muito superior ao prazer sacrificado. Primeiro que tudo, esta
boa ao recompensada pela reciprocidade dos servios; em seguida, o
testemunho da conscincia, a lembrana e o reconhecimento dos que foram
obsequiados causam alma delcia maior que no poderia ter dado ao corpo o
objeto de que se foi privado. Finalmente, o homem que tem f nas verdades
religiosas, deve estar firmemente persuadido de que Deus recompensa a privao
voluntria de um prazer efmero e ageiro, com alegrias inefveis e
eternas
Assim, em ltima anlise, os utopianos reduzem
todas as aes e mesmo todas as virtudes ao prazer, como finalidade.
Eles chamam volpia todo o estado ou todo
movimento da alma e do corpo, nos quais o homem experimenta uma deleitao
natural. No sem razo que eles acrescentam a palavra natural, porque no
semente a sensualidade, tambm a razo que nos atrai para as coisas
naturalmente deleitveis; e por isto devemos compreender os bens que se podem
procurar sem injustia, os gozos que no privem de um prazer mais vivo, e
que no arrastem consigo nenhum mal.
H coisas fora da natureza, que
os homens, por uma conveno absurda, intitulam prazeres (como se tivessem o
poder de transformar a essncia to facilmente como modificam as palavras).
Essas coisas, longe de contribuir para a felicidade, so outros tantos obstculos
em seu caminho; aos que seduzem, elas impedem gozarem satisfaes puras e
verdadeiras; viciam o esprito, preocupando-o com a idia de um prazer
imaginrio. H, com efeito, uma quantidade de coisas, s quais a natureza no
juntou nenhuma doura, as quais ela chegou at a misturar de amargura e que,
no entanto, os homens olham como altas volpias de algum modo necessrias
vida, apesar de, na sua maioria, serem essencialmente ms e s estimular as
paixes perversas.
Os utopianos classificam nessa espcie de
prazeres bastardos, a vaidade daqueles de que j falei, que se crem
melhores porque usam uma roupa mais bonita. A vaidade desses tolos
duplamente ridcula.
Em primeiro lugar, consideram suas roupas acima
de suas pessoas; pois, quanto ao que de uso, em que, vos pergunto, uma l
mais fina prevalece sobre uma l mais grossa? Entretanto, os insensatos, como
se se distinguissem da multido pela excelncia de sua natureza, e no pela
loucura de seu comportamento, erguem orgulhosamente a cabea, imaginando
valer um grande preo. Exigem, em virtude da rica elegncia de suas vestes,
honras que no ousariam esperar com um traje simples e comum; mostram-se
indignados quando se olha a sua roupa com um olhar de indiferena.
Em segundo lugar, esses mesmos homens no so
menos estpidos por se alimentarem de honras sem realidade e sem proveitos.
natural e verdadeiro o prazer que se sente em frente de um adulador que
tira o chapu e dobra humildemente o joelho? Uma genuflexo cura algum da
febre ou da gota?
Entre aqueles que ainda seduz uma falsa imagem
do prazer, esto os nobres que se comprazem com orgulho e amor no pensamento
de sua nobreza. E de que se gabam? Do acaso que os fez nascer em uma longa srie
de ricos anteados, e, sobretudo, de ricos proprietrios (porque a nobreza
de hoje a riqueza). Todavia, se esses insensatos nada tivessem herdado de
seus pais, ou tivessem devorado todo seu patrimnio, ainda assim no se
sentiriam, por isso, diminudos na sua nobreza de um s cabelo.
Os utopianos classificam os amadores de
pedrarias na categoria dos manacos de nobreza. Os homens que tm essa paixo,
julgam-se uns pequenos deuses, quando encontram uma pedra bela e rara,
particularmente apreciada na sua poca e no seu pas, pois. a mesma pedra no
conserva sempre e por toda a parte o mesmo valor. O amador de pedras as compra
nuas e sem ouro; leva mesmo a precauo a ponto de exigir do vendedor uma
cauo e at o juramento que o diamante, o rubi, o topzio so de bom
quilate, de tal modo teme que um falso brilhante impressione os seus olhos!
Que prazer h, pois, em olhar uma pedra natural de preferncia a uma
artificial, desde que o olho no apreende a diferena? Tanto uma como outra
no tm realmente mais valor para um que enxerga do que para um cego.
Que dizer dos avarentos que acumulam dinheiro e
mais dinheiro, no para seu uso, mas para se consumir na contemplao de
uma enorme quantidade de metal? O prazer desses ricos miserveis no pura
quimera? Ser mais feliz aquele que, por uma extravagncia mais estpida
ainda, enterra os seus escudos? Este ltimo nem ao menos v o seu tesouro, e
o medo de perd-lo faz que o perca de fato. Mas enterrar ouro no o mesmo
que roubar a si prprio e aos outros? No entanto, o avarento sente-se tranqilo,
salta de alegria quando enterrou bem suas riquezas. Agora, suponhamos que algum
se apodere desse depsito confiado terra, e que o nosso Harpago
sobreviva dez anos sua runa, sem o saber; eu vos pergunto, que lhe
importou nesse intervalo, ter conservado ou perdido o tesouro? Enterrado ou
roubado, ele lhe deu exatamente a mesma serventia.
Os utopianos encaram tambm como imaginrios
os prazeres da caa e dos jogos de azar. Dos ltimos no conhecem os
desatinos seno de nome, no os praticando jamais. Que divertimento podereis
encontrar, dizem eles, em jogar um dado sobre a mesa? E supondo que houvesse
nisso qualquer prazer, vs j vos fartastes tantas vezes dele que deve
ter-se tornado enfadonho e inspido
No mais fatigante do que agradvel ouvir
os ces ladrarem e ganirem? Em que mais divertido ver correr um co atrs
de uma lebre do que v-lo atrs de outro cachorro? Entretanto, se a
corrida que faz o prazer, a corrida existe nos dois casos. Mas no antes a
expectativa da morte ou a espera da carniceria o que apaixonam os homens pela
caa? E como no abrir a alma piedade, como no ter horror a esta matana,
em que o co forte, cruel e audaz, dilacera a lebre fraca, tmida e
fugitiva?
por isso que os nossos insulares probem a
caa aos homens livres, como um exerccio indigno deles; ela s
permitida aos magarefes, que so todos escravos. E mesmo na opinio deles, a
caa a parte mal vil da arte de matar os animais; as outras partes desse
ofcio so muito mais consideradas, porque trazem maior lucro e porque nelas
s matam os animais por necessidade, enquanto que o caador procura no
sangue e na morte um divertimento estril.
Os utopianos desprezam todas essas alegrias, e
muitas outras semelhantes em nmero quase infinito, e que o vulgo considera
como bens supremos, mas cuja suavidade aparente no se encontra na natureza.
Mesmo que esses prazeres enchessem os sentidos da mais deliciosa embriaguez (o
que parece ser o efeito natural da volpia) os utopianos sustentam que os
mesmos nada tm de comum com a verdadeira voluptuosidade; porque, dizem, esse
prazer sensual no vem da prpria natureza do objeto, o fruto de hbitos
depravados que fazem achar doce o que amargo. assim que as mulheres grvidas,
cujo gosto est corrompido, acham a resina e o sebo mais doces que o mel.
Os utopianos distinguem diversas espcies de
prazeres verdadeiros: uns se relacionam com o corpo, outros com a alma.
Os prazeres da alma esto no desenvolvimento da
inteligncia e nas puras delcias que acompanham a contemplao da
verdade. Nossos insulares acrescentam ainda o testemunho de uma vida irreprochvel
e a esperana certa de uma imortalidade bem-aventurada.
Eles dividem em duas espcies as
voluptuosidades do corpo:
A primeira espcie compreende todas volpias
que exercem sobre os sentidos uma impresso atual, manifesta, e cuja causa
o restabelecimento dos rgos consumidos pelo calor interno. Essa impresso
nasce de um lado, da ao de beber e comer que devolve as foras perdidas;
de outro lado, das funes animais que expelem do corpo as matrias suprfluas.
Tais so as secrees intestinais, o coito, e o alvio de uma comicho
qualquer, ao esfregar-se ou ao coar-se.
Algumas vezes o prazer dos sentidos no provm
das funes animais que reparam os rgos esgotados, ou os aliviam de uma
exuberncia penosa; mas pelo efeito de uma fora interior e indefinvel que
comove, encanta e seduz; tal o prazer que nasce da msica.
A segunda espcie de volpia sensual consiste
no equilbrio estvel e perfeito de todas as partes do corpo, isto , numa
sade isenta de mal estar. Com efeito, o homem que no afetado pela dor,
experimenta em si um certo sentimento de bem estar, mesmo que nenhum objeto
exterior agite agradavelmente os seus rgos. verdade que esta espcie
de volpia no afeta nem atordoa os sentidos, como por exemplo os prazeres
da mesa; apesar disso, muitos a colocam em primeiro lugar; e quase todos os
utopianos declaram que ela a base e o fundamento da verdadeira felicidade.
Porque, dizem, s uma sade perfeita torna a condio da vida humana tranqila
e apetecvel; sem sade, no h voluptuosidade possvel; sem ela, a prpria
ausncia da dor no um bem, a insensibilidade do cadver.
Uma viva disputa travou-se outrora na Utopia a
este respeito. Alguns pretendiam que no se devia contar no nmero dos
prazeres uma sade estvel e tranqila, porque esta no d a perceber um
gozo atual e diferente, como as sensaes que nos vem de fora. Mas hoje,
todos, com pequenssima exceo, concordam em proclamar a sade como uma
volpia essencial. Com efeito, para eles, a dor que, na molstia, a
inimiga implacvel do prazer; ora, a molstia igualmente inimiga da sade;
por que ento no haveria prazer na sade, da mesma forma que h dor na
molstia? Pouco importa que a doena seja a dor ou que a dor seja inerente
molstia, desde que os resultados so de todo semelhantes. Ainda que se
considere a sade como a prpria voluptuosidade, ou como a causa que a
produz necessariamente, assim como o fogo produz necessariamente o calor, o
homem de sade inaltervel deve nos dois casos experimentar um certo prazer.
Quando comemos, perguntam os utopianos, no a sade que, comeando a
desfalecer, luta contra a fome com a ajuda dos alimentos? Estes avanam,
repelindo o seu inimigo cruel e do ao homem a alegria que acompanha o
retorno do seu vigor normal. Mas a sade que lutara com tanto gosto, no
teria o direito de rejubilar-se aps a vitria? O que ela procurava na luta
era a sua fora primitiva; e obtido este resultado, issvel que venha
a cair num entorpecimento estpido, sem conhecer e apreciar a prpria
felicidade?
Em conseqncia disto, os utopianos rejeitam
completamente a opinio de que o homem sadio no tem conscincia de seu
estado. Segundo eles, necessrio estar-se doente ou adormecido para no
sentir que se est so; seria preciso ser-se de pedra, ou estar-se atacado
de letargia, para no se comprazer de uma sade perfeita, e nisso sentir
encanto. Ora, este encanto, esta satisfao, que outra coisa seno a
voluptuosidade?
Eles se entregam acima de tudo aos prazeres do
esprito, que encaram como o principal e mais essencial de todos os prazeres;
colocam no plano dos mais puros e mais desejveis, a prtica da virtude e a
conscincia de uma vida sem mancha. Entre as volpias corporais do preferncia
sade porque no se deve procurar a boa mesa e os outros prazeres da vida
animal, seno visando a conservao da sade, visto que essas coisas no
so deleitveis em si mesmas, mas unicamente em virtude de se oporem
invaso secreta da molstia.
O homem prudente previne o mal, de preferncia
a empregar os remdios; evita a dor antes de recorrer aos alvios. De
conformidade com essas normas, os utopianos usam de todos os prazeres
corporais, para cuja privao fosse preciso o emprego de meios curativos.
Mas no depositam toda sua felicidade nesses prazeres; do contrrio, o cmulo
da felicidade humana seria a fome e a sede permanentes, pois que seria preciso
ento comer e beber sem cessar. Certamente semelhante vida seria to miservel
quo ignbil.
Os prazeres animais so os mais vis, os menos
puros, e sempre uma dor os acompanha. No est presa a fome ao prazer de
comer, e isto em propores desiguais? Com efeito, a sensao da fome a
mais violenta; ela tambm a mais durvel pois nasce antes do prazer e no
morre seno com ele.
Os utopianos, formados nesses princpios,
pensam que se no deve dar importncia s volpias carnais seno na
medida em que so teis. Todavia, eles se entregam alegremente a elas,
agradecidos natureza, que, ao cuidar do homem, tem a ternura de uma me e
mistura impresses to doces e suaves com as funes indispensveis da
vida.
Que triste destino seria o
nosso, se nos fosse preciso expulsar, fora de venenos e drogas amargas, a
fome e a sede de cada dia, como expulsamos as molstias que nos assaltam de
longe em longe!
Eles mantm e cultivam de boa vontade a beleza,
o vigor, a agilidade do corpo, os dons mais agradveis e felizes da natureza.
item tambm os prazeres que a natureza criou exclusivamente para o homem e
que fazem a graa e o encanto da vida. Porque o animal no demora a olhar
sobre a magnificncia da criao, sobre a ordem e o arranjo do universo.
Sente o odor para distinguir a alimentao, mas no saboreia a delcia dos
perfumes; no conhece as relaes dos sons, e no aprecia a dissonncia
nem a harmonia.
Finalmente, em toda espcie de satisfaes
sensuais, os utopianos no esquecem jamais esta regra prtica:
Fugir volpia que impede gozar uma; volpia
maior ou que seguida de qualquer dor. Ora, a dor , a seus olhos, a conseqncia
inevitvel de toda volpia desonesta.
Eis ainda um de seus princpios:
Desprezar a beleza do corpo, enfraquecer suas
foras, converter sua agilidade em entorpecimento, esgotar seu temperamento
pelo jejum e pela abstinncia, arruinar a sade, em uma palavra, repelir
todos os favores da natureza, no intuito de devotar-se mais eficazmente
felicidade humana, na esperana de que Deus venha recompensar essas penas de
um dia por xtases de alegria eterna, dar mostra de religio sublime. Mas
crucificar a carne, sacrificar-se por um vo fantasma de virtude, ou para
habituar-se antecipadamente a misrias que talvez no aconteam nunca,
dar mostra de loucura, de uma covarde crueldade para consigo mesmo, de
orgulhosa ingratido para com a natureza. pisar aos ps os benefcios do
Criador, como desdenhando ser-lhe obrigado em alguma coisa.
Tal a teoria utopiana no que se refere
virtude, e ao prazer. A menos que uma revelao descida do cu inspire ao
homem qualquer coisa de mais santo, eles crem que a razo humana no pode
conceber nada de mais verdadeiro.
Esta moral boa, m? o que no
discutirei; no tenho tempo para tanto e no , alis, necessrio ao meu
objetivo; fao apenas histria e no uma apologia. O que certo para mim,
que o povo da Utopia, graas s suas instituies, o primeiro de
todos os povos, e que no existe em parte alguma repblica mais feliz.
O utopiano gil e nervoso; sem ser de
pequeno talhe, mais vigoroso do que parece exteriormente. A ilha no de
igual fertilidade em todos os lugares; o ar no em toda a parte igualmente
puro e salubre. Os habitantes combatem pela temperana as influncias
funestas da atmosfera; corrigem o solo por meio de uma excelente cultura; de
modo que em nenhuma outra parte vi jamais gado to robusto, nem mais
abundantes colheitas. Em pais nenhum a vida do homem mais longa e as molstias
menos numerosas.
No somente os cidados agricultores executam
com grande perfeio os trabalhos que fertilizam uma terra naturalmente
ingrata; mas o povo em massa empregado algumas vezes em extirpar florestas
mal situadas para a comodidade de transporte, e plantar novas perto do mar,
dos rios ou das cidades; porque de todos os produtos do solo, a madeira o
mais difcil de transportar por terra.
O povo utopiano espiritual, amvel,
engenhoso, ama o lazer, paciente no trabalho, quando o trabalho necessrio;
sua paixo favorita o exerccio e o desenvolvimento do esprito. Durante
a nossa estada na ilha tivemos a ocasio de dizer algo aos seus habitantes
das letras e cincias da Grcia. Era verdadeiramente curioso ver o ardor com
que esses bons insulares nos suplicavam interpretar-lhes os autores gregos; no
lhes falamos dos latinos, pensando que no apreciariam desses ltimos seno
os historiadores e poetas. Afinal foi foroso ceder s suas splicas; e,
confessar-vos-ei, foi de nossa parte um ato de pura complacncia de que no
espervamos tirar grande proveito. Mas, depois de algumas lies, tnhamos
razo em nos felicitar pelo xito do empreendimento. Ficamos maravilhados da
facilidade com que os meus discpulos copiavam a forma das letras, da nitidez
de sua pronncia, da presteza de sua memria e da fidelidade de suas tradues.
verdade que a maior parte dos que se tinham entregue a esse estudo, a princpio,
espontaneamente, com to belo ardor, depois foi obrigada a faz-lo por um
decreto do senado; eram eles os sbios mais notveis da classe dos letrados,
e homens de idade madura. Em menos de trs anos no havia nada nas obras dos
bons autores que no compreendessem perfeitamente simples leitura, exceto
as dificuldades provenientes de erros tipogrficos.
Sou de opinio que a grande facilidade com que
aprenderam o grego prova que esta lngua no lhes era inteiramente
desconhecida. Creio que so gregos de origem e ainda que o seu idioma se
aproxime muito do persa, nos nomes das suas cidades e magistraturas
encontram-se alguns traos da lngua grega.
Quando de minha
quarta viagem Utopia, em lugar de mercadorias, embarquei com um lindssimo
pacote de livros, resolvido que estava de s regressar Europa depois de
longo tempo. Ao deixar os utopianos, leguei-lhes minha biblioteca; ficaram
assim, por meu intermdio, com quase todas as obras de Plato, um grande nmero
das de Aristteles, o livro de Teofrasto sobre as Plantas, que estava rasgado
em vrias agens, o que lastimo infinitamente.
Durante a travessia descuidei-me dele e por
infelicidade um macaco deu com o livro, e ps-se a divertir-se arrancando-lhe
as folhas ao acaso. Dentre os gramticos, s pude dar aos nossos insulares o
Lascarias, por no ter trazido o grande Teodoro; em matria de dicionrios
dei-lhes o Hesichius e o Dioscrido.
Plutarco o autor favorito deles; a
jovialidade, a seduo de Luciano os encantam. Entre os poetas possuem Aristfanes,
Homero, Eurpedes e Sfocles. Como historiadores, deixei-lhes Tucdides,
Herdoto e Herodiano.
De medicina, tm algumas obras de Hipcrates e
o Microtecn, de Galeno, que meu companheiro .de viagem, Tricius Apinas,
levara consigo. Os dois ltimos livros so muito apreciados entre eles
porque se no h pas algum onde a medicina seja menos necessria do que
na Utopia, em compensao em parte alguma mais respeitada. Os utopianos a
situam entre as partes mais teis e mais nobres da filosofia natural. O mdico,
costumam dizer, que se aplica em penetrar os mistrios da vida, no somente
tira deste estudo irveis prazeres, como ainda se torna agradvel ao
divino obreiro, autor da vida. Nas idias utopianas, o Criador, assim como os
operrios da terra, expe sua mquina do mundo aos olhos do homem, nico
ser capaz de compreender esta bela imensidade. Deus olha com amor aquele que
ira essa grande obra e procura descobrir suas molas e leis; olha com
piedade o que permanece frio e estpido perante esse maravilhoso espetculo,
como um animal sem alma.
fcil compreender agora por que os
utopianos, cujo esprito cultivado incessantemente pelo estudo das cincias
e das letras, so to dotados para as artes e invenes teis ao bem
estar da vida. Devem a ns a imprensa e a fabricao do papel; mas nisto
seu prprio gnio lhes serviu tanto quanto as nossas lies, pois no
conhecamos bem a fundo nenhuma dessas duas artes. No fizemos seno
mostrar as invenes tipogrficas dos Aldos e falar-lhes em termos vagos da
matria empregada na fabricao do papel, e demais processos de impresso.
Logo adivinharam o que apenas havamos indicado.
Antes escreviam em peles, cascas, folhas de
papiros; ensaiaram logo depois fabricar papel e imprimir. Estas primeiras
tentativas foram estreis, mas fora de experincias mil vezes repetidas
chegaram a obter um xito completo; e se tivessem mo todos os
manuscritos gregos poderiam tirar numerosas edies. Eles no possuem hoje
outros livros alm dos deixados por mim; mas estes livros j foram
multiplicados por milhares de exemplares.
O estrangeiro que aporta Utopia bem
recebido, se se recomenda por um mrito real, ou se longas viagens lhe deram
uma cincia exata dos homens e das coisas.
Foi por este ltimo ttulo que fomos recebidos
de braos abertos ali, onde enorme a curiosidade de conhecer-se o que se
a no estrangeiro. O comrcio com a ilha atrai pouca gente; porque,
exceo do ferro, o que se pode levar a Utopia? Ouro? Prata? Mas quem o
fizesse certamente seria obrigado a voltar com um e outro. Quanto ao comrcio
de exportao, so os prprios utopianos que o fazem; e ao faz-lo tm
em vista dois objetivos: primeiro, pr-se ao corrente de tudo que se a no
exterior; e depois, manter e aperfeioar sua navegao.
DOS ESCRAVOS 62s15
Nem
todos os prisioneiros de guerra so indistintamente entregues escravido;
mas unicamente os indivduos pegados de armas na mo.
Os filhos de escravos no so escravos. O
escravo estrangeiro torna-se livre ao tocar na terra da Utopia.
A servido recai particularmente sobre os cidados
culpveis de grandes crimes e sobre os condenados morte pertencentes ao
estrangeiro. Estes so muito numerosos na Utopia; os utopianos vo mesmo
procur-los no exterior onde os compram a vil preo; algumas vezes obtm-nos
at de graa.
Todos os escravos so submetidos a um trabalho
contnuo, e trazem correntes. Os que so tratados, porm, com mais rigor, so
os indgenas, que so tidos como os mais miserveis dos celerados, dignos
de servir de exemplo aos outros por uma pior degradao. Com efeito, eles
receberam todos os germes da virtude; aprenderam a ser felizes e bons, e, no
entanto, abraaram o crime.
H ainda uma outra espcie de escravos, os
trabalhadores pobres das regies vizinhas que vm se oferecer
voluntariamente para trabalhar. So em tudo tratados como cidados; apenas so
obrigados a trabalhar um pouco mais, uma vez que tm o hbito de fadiga
maior. So livres de partir quando querem e nunca so devolvidos de mos
vazias.
J disse dos cuidados afetuosos que tm os
utopianos pelos enfermos; nada poupado que possa contribuir para sua cura,
quer em remdios, quer em alimentos.
Os infelizes afetados de males incurveis
recebem todos os consolos, todas as atenes, todos os alvios morais e fsicos,
capazes de lhes tornar a vida mais vel. Mas quando a esses males incurveis
se juntam sofrimentos atrozes, que ningum pode suprimir ou suavizar, os
padres e magistrados se apresentam ao paciente e lhe levam a exortao
suprema.
Mostram-lhe que ele est despojado dos bens e
das funes da vida; que no faz seno sobreviver prpria morte,
tornando-se assim um peso para si e os outros. Persuadem-no, ento, a no
alimentar mais o mal que o devora, e a morrer com resoluo, uma vez que a
existncia no para ele seno uma horrenda tortura.
Confiai - dizem-lhe - quebrai as cadeias que vos
amarram, e desprendei-vos, por vossas prprias mos, da masmorra da vida; ou
pelo menos consenti que outros dela vos libertem. Vossa morte no uma mpia
repulsa aos benesses da existncia, mas o termo de um cruel suplcio.
Obedecer, neste caso, voz dos padres, intrpretes
da divina vontade, fazer obra religiosa e santa.
Os que se deixam persuadir pem fim a seus dias
pela abstinncia voluntria ou so adormecidos por meio de um narctico
mortal, e morrem sem se aperceber. Os que no querem a morte, nem por isso
am a receber menos atenes e cuidados; quando cessam de viver a opinio
pblica honra sua memria.
O homem que se mata sem motivo reconhecido pelo
magistrado e pelo padre, julgado indigno da terra e do fogo; seu corpo
privado de sepultura e atirado ignominiosamente nos pntanos.
As raparigas no se podem casar antes dos
dezoito anos; os rapazes, antes dos vinte e dois.
Os indivduos de um e doutro sexo, convictos de
se terem entregue ao prazer antes do casamento, so veis de uma censura
severa; e o casamento lhes completamente interdito, a menos que o prncipe
releve a falta. O pai e a me de famlia, em cuja casa foi o delito
praticado, ficam desonrados por no terem velado com bastante cuidado pelo
comportamento de seus filhos.
res garantias de probidade poltica.
O utopiano no se deixar corromper pelos atrativos da riqueza, por mais
brilhante que ela possa ser, porque dentro de pouco j lhe no serviria para
nada: quando tivesse de retornar ptria dentro de poucos anos ou meses. To
pouco o utopiano deixar-se-ia levar pelo amor ou pelo dio, pois
completamente desconhecido dos seus istrados.
Infeliz do pas onde a avareza e as afeies
privadas sentam-se no banco do magistrado! Adeus justia! a mola mais firme
dos Estados!
A repblica utopiana reconhece como aliados os
povos que lhe vm pedir chefes, e por amigos os que lhe devem um benefcio.
Quanto aos tratados que as outras naes assinam to freqentemente para
romp-los e renov-los em seguida, ela nunca os assina.
Para que servem os tratados? interrogam os
utopianos. No uniu a natureza o homem ao homem por laos bastante indissolveis?
Aquele que despreza esta aliana ntima e sagrada ter escrpulo em violar
um protocolo?
Consolida-os nesta opinio o fato de que nas
terras desse novo mundo raro que as convenes entre prncipes sejam
observadas de boa f
Na Europa, e principalmente nas regies onde
reinam a f e a religio do Cristo, a majestade dos tratados santa e
inviolvel. Isso decorre em parte da justia e da bondade dos monarcas, em
parte do temor e do respeito que lhes inspiram os soberanos pontfices. Os
papas em nada se comprometem que no executem religiosamente; por isso
obrigam os outros soberanos a cumprirem exatamente as suas promessas,
empregando o interdito pastoral e a severidade cannica para forar os que
tergiversam. Os papas crem com razo que seria vergonhoso para a
cristandade ver aqueles que se glorificam acima de tudo do nome de Fiis, se
mostrarem infiis As suas prprias convenes.
Mas, nesse novo mundo separado do nosso, menos
ainda pelo crculo equatorial do que pelos usos e costumes, no se presta
nenhuma confiana aos tratados. Uma repentina ruptura segue de ordinrio os
juramentos de paz mais solenes e que receberam a consagrao das mais santas
cerimnias. muito fcil descobrir matria para chicana no texto de uma
aliana; os negociadores insinuam de m f, nos textos, manhosas escapatrias,
a fim de que o prncipe no fique jamais indissoluvelmente preso, e possa
encontrar sempre uma sada secreta para seus compromissos.
E, entretanto, este mesmo ministro que se
vangloria de falsificar assim as negociaes, por conta do rei, seu senhor,
se percebesse que semelhantes embustes, ou melhor, velhacarias, eram
introduzidas num contrato entre simples particulares, este mesmo diplomata,
franzindo o sobrolho do alto de sua probidade, condenaria a fraude como um
sacrilgio digno da forca.
Por este exemplo, dir-se-ia que a justia
uma virtude plebia e de baixo nvel, a rastejar muito abaixo dos tronos dos
reis. A menos que se distingam duas espcies de justias: uma boa para o
povo, que anda a p e de cabea baixa, encerrada numa estreita muralha que no
pode transpor; outra, para uso dos reis, infinitamente mais augusta e mais
elevada, infinitamente mais livre, e a qual s est inibida de fazer o que no
quer.
Sou levado a pensar que a deslealdade dos prncipes
nesses pases longnquos a causa que determina os utopianos a no
nenhuma espcie de conveno diplomtica. Mudariam talvez de opinio
se morassem na Europa.
Contudo, em tese, encaram como um mal a introduo
de tratados entre os povos, mesmo que fossem observados religiosamente. Este
uso habitua os homens a se considerarem mutuamente inimigos, nascidos para se
guerrearem sempre e para legitimamente se entredevorarem, na falta de um
tratado de paz; como se no houvesse mais uma sociedade natural entre duas naes
s porque uma colina ou. um rio as separa.
Ainda se as alianas garantissem a amizade dos
confederados, mas, na realidade, nunca eliminam elas todos os pretextos de
rompimento, e por conseguinte, de saque e de guerra, dada a leviandade dos
diplomatas que redigem os artigos. raro que os plenipotencirios possam
abarcar todos os casos possveis de proibies e compromissos, ou que os
formulem de uma forma perfeitamente clara e precisa.
Os utopianos tm por princpio que no se
deve ter por inimigo seno aquele que se torna culpado de injustia ou violncia.
A comunho na mesma natureza parece-lhes um lao mais indissolvel do que
todos os tratados.
O homem, afirmam, est unido ao homem de uma
maneira mais ntima e mais forte pelo corao e pela caridade do que pelas
palavras e protocolos.
DA GUERRA s6w1p
Os
utopianos abominam a guerra como uma coisa puramente animal e que o homem, no
entanto, pratica mais freqentemente do que qualquer espcie de animal
feroz. Contrariamente aos costumes de quase todas as naes, nada existe de
to vergonhoso na Utopia como procurar a glria nos campos de batalha. No
se quer dizer com isto que eles no se exercitem com muita assiduidade na
disciplina militar; as prprias mulheres so a isto obrigadas tanto quanto
os homens; certos dias so fixados para os exerccios, a fim de que ningum
fique sem habilitao para o combate quando chegar o momento de combater.
Mas os utopianos no fazem a guerra sem graves
motivos. S a empreendem para defender suas fronteiras ou repelir uma invaso
inimiga nas terras de seus aliados, ou ainda para libertar da escravido e do
jugo de um tirano um povo oprimido. Neste caso, no consultam os seus
interesses; vm apenas o bem da humanidade.
A repblica da Utopia presta gratuitamente
socorros a seus amigos, no s no caso de agresso armada, mas tambm para
vingar e obter reparao de uma injria. Entretanto, no caso, ela s age
assim quando foi consultada antes da declarao de guerra; examina ento
conscienciosamente a justia da causa, e se o povo que cometeu o dano no o
quer reparar, , ento, declarado o nico autor e o nico responsvel
pelos males da guerra.
Os utopianos tomam esta deliberao extrema
todas as vezes que se d um saque em conseqncia de uma invaso armada.
Mas a sua clera nunca to terrvel como quando os negociantes de uma nao
amiga, sob o pretexto de algumas leis inquas, ou de conformidade com uma
interpretao prfida de leis justas, sofreram no estrangeiro vexaes
injustas em nome da justia.
Tal foi a origem da guerra que empreenderam
pouco antes da atual gerao contra os alaoplitas e a favor dos nefelgitas.
Os alaoplitas, no dizer dos nefelgitas, causaram a alguns de seus
comerciantes prejuzos considerveis, sob um pretexto legal qualquer. Fosse
ou no a queixa fundamentada, o fato que resultou uma guerra atroz. Aos dios
e s foras dos dois inimigos principais, juntaram-se as paixes e os
socorros dos pases vizinhos. Naes poderosas foram violentamente
sacudidas, outras derrocadas. Esta deplorvel sucesso de males s terminou
com a derrota completa e a escravido dos alaoplitas. Estes ltimos foram
submetidos dominao dos nefelgitas, dado que a guerra no envolvia
interesse direto dos utopianos. Entretanto, os nefelgitas estavam longe da
situao florescente dos primeiros.
com tamanho vigor que os nossos insulares
vingam o ultraje feito a seus amigos, mesmo que esteja em jogo apenas o
dinheiro destes ltimos. So menos ciosos quanto a seus prprios negcios.
E se acontece que alguns de seus cidados so despojados de seus bens no
estrangeiro, vtimas de alguma trapaa, vingam-se do povo que cometeu o
ultraje cessando todo comrcio com ele, a menos que tenha havido atentado
contra as pessoas.
No que tenham menos apego aos interesses de
seus concidados do que aos de seus aliados; porm am com menos pacincia
as trapaas praticadas em prejuzo desses ltimos, porque o negociante que
no utopiano perde ento uma parte de sua fortuna privada, e esta perda
representa para ele uma pura desgraa, ao o que o utopiano no perde seno
para a fortuna pblica, ou. melhor, para a abundncia e o suprfluo de seu
pas; e, ento, a exportao proibida. por isso que as perdas em
dinheiro s debilmente afetam na Utopia os indivduos. Eles julgam, e com
razo, que seria demasiado cruel vingar, com a morte de um grande nmero de
pessoas, um dano que no pode afetar nem a vida, nem o bem estar de seus
concidados.
Alis, caso um utopiano seja maltratado ou
morto injustamente, em conseqncia de deliberao pblica ou premeditao
privada, a repblica encarrega seus embaixadores de verificarem o fato; pede
que lhe sejam entregues os culpados e, no caso de recusa, somente a imediata
declarao de guerra pode apazigu-la. No caso contrrio, os autores do
crime so punidos com a morte ou com a escravido.
Os utopianos choram amargamente sobre os louros
de uma vitria sangrenta; envergonham-se mesmo, considerando absurdo comprar
as mais brilhantes vantagens ao preo do sangue humano. Para eles, o mais
belo ttulo de glria o de ter vencido o inimigo fora de habilidade
e artifcio. ento quando celebram os triunfos pblicos e erguem os trofu;
como aps uma ao herica; ento quando se vangloriam de ter agido
como homens e como heris, uma vez que venceram unicamente pela fora da razo,
coisa de que no capaz nenhum animal, exceto o homem. Os lees, dizem, os
ursos, os javalis, os lobos, os ces e outros animais ferozes no sabem
empregar no combate seno as foras corporais; a maioria deles nos sobrepuja
em audcia e vigor, mas todos, no entretanto, se dobram ao imprio da
inteligncia e da razo
Fazendo a guerra, os utopianos no tm outra
finalidade seno obter o que lhes teria evitado declar-la, caso suas
reclamaes fossem satisfeitas antes da ruptura da paz. Quando toda satisfao
impossvel, vingam-se sobre os provocadores, de forma a impedir, no
futuro, pelo terror, os que ousassem tentar repetir semelhantes acometimentos.
Tal o fito dos utopianos na execuo dos seus projetos, fito que se esforam
por atingir com presteza, procurando antes evitar o perigo que colher uma fama
intil.
Uma vez declarada a guerra, eles tratam de
mandar pregar, secretamente, no mesmo dia, nos lugares mais visveis do pas
inimigo, proclamaes revestidas com o selo do Estado. Essas proclamaes
prometem magnficas recompensas ao assassino do prncipe inimigo; outras
recompensas menos considerveis, ainda que bastante sedutoras, pelas cabeas
de um certo nmero de indivduos, cujos nomes so escritos nessas fatais
proclamaes. Os utopianos proscrevem, desta maneira, os conselheiros ou os
ministros, que so, depois do prncipe, os principais autores da ofensa.
O preo prometido pelo homicdio dobrado
para quem entregar vivo um dos proscritos. Mesmo aqueles cujas cabeas foram
postas a prmio so convidados a trair seus partidrios por oferecimento de
iguais recompensas e pela promessa de impunidade.
Esta medida tem por efeito colocar imediatamente
os chefes do partido adverso em estado de suspeio mtua. No h mais
confiana entre eles, e no se sentem mais seguros; temem uns aos outros e
este temor no quimrico. No raro acontecer que muitos tm sido trados,
sobretudo o prncipe, por aqueles em que depositavam mais confiana. Tal
o poder que tem o ouro para arrastar ao crime! Tambm, os utopianos no
poupam dinheiro nessa circunstncia. Recompensam com a gratido mais
generosa queles que impelem aos perigos da traio; eles tm o cuidado de
fazer com que a grandeza do perigo seja largamente compensada pela magnificncia
do prmio.
por isso que prometem aos traidores no s
imensas somas em dinheiro, mas ainda a propriedade perptua de terras de
grande rendimento situadas em lugar seguro no pas aliado. E cumprem
fielmente a palavra.
O uso de negociar os seus prprios inimigos,
pondo suas cabeas a prmio, reprovado nos outros pases como uma infmia
digna unicamente de almas degradadas. Os utopianos, porm, se gabam disso
como de uma ao de alta sabedoria que termina sem combate as guerras mais
terrveis. Honram-se disso como de uma ao humanitria e misericordiosa,
que resgata, ao preo da morte de um punhado de culpados, a vida de vrios
milhares de inocentes, de um como de outro lado, destinados a morrer nos
campos de batalha. A piedade dos utopianos tambm se estende aos soldados de
todas as bandeiras; sabem que o soldado no vai por sua prpria vontade
guerra, mas arrastado pelas ordens e pelos furores dos prncipes.
Se os meios precedentes no do resultados, os
nossos insulares semeiam e alimentam a discrdia, dando ao irmo do prncipe
ou a alguma outra personagem a esperana de se apoderar do trono. Se as faces
internas definham amortecidas ento eles instigam as naes vizinhas do
inimigo, jogando-as contra ele, exumando mesmo alguns desses velhos ttulos
que nunca faltam aos reis; ao mesmo tempo, prometem socorros aos novos
aliados, dando-lhes dinheiro em caudal, mas os seus cidados no lhes
entregam seno muito poucos.
Os cidados so para a repblica da Utopia o
tesouro mais caro e mais precioso: a considerao que os habitantes da ilha
tm uns pelos outros de tal modo elevada que no consentiriam de bom
grado em trocar qualquer dos seus por um prncipe inimigo. Prodigalizam ouro
sem pena porque este no empregado seno para os usos j referidos e
porque nenhum deles seria exposto a viver menos comodamente, mesmo que lhes
fosse necessrio gastar o ltimo escudo.
Alis, alm das riquezas guardadas na ilha, so
os utopianos ainda, creio j vos t-lo dito, credores para muitos Estados de
imensos capitais. com parte deste dinheiro que eles alugam soldados de
todos os pases e principalmente do pas dos zapoletas, situado a leste da
Utopia, numa distncia de quinhentos mil os.
O zapoleta, povo brbaro, feroz e selvagem, no
sabe viver seno no meio das florestas e rochedos em que foi nutrido.
Calejado na fadiga, a pacientemente o frio, o calor, o trabalho. As delcias
da vida lhe so desconhecidas; menospreza a agricultura, a arte de bem morar
e de bem vestir. No possui outra indstria que a criao dos rebanhos, e,
as mais das vezes, no conhece outros meios de vida alm da caa e da
pilhagem.
Nascidos exclusivamente para a guerra, os
zapoletas procuram avidamente e no perdem nenhuma oportunidade de faz-la;
ento descem aos milhares das montanhas e vendem a baixo preo seus servios
primeira nao que deles necessita. O nico ofcio que sabem exercer
o que d a morte; batem-se com bravura e incorruptvel fidelidade a servio
dos que os contratam. Nunca se alistam por tempo determinado; e sempre sob a
condio de ar no dia seguinte para o inimigo se lhe oferecer melhor
paga, ou voltar primeira bandeira se a lhes concedem ligeiro aumento no
soldo.
raro haver uma guerra nessas regies sem que
haja zapoletas nos dois campos. tambm comum ver-se parentes muito prximos,
amigos estreitamente ligados, enquanto serviam a mesma causa, combatendo-se
com o mais vivo encarniamento, desde que a sorte os dispersou pelas fileiras
das duas partes contrrias. Eles esquecem famlia, amizade e se matam
furiosamente s pelo fato de dois soberanos inimigos pagarem alguns patacos
por seu sangue e seu furor. A paixo do dinheiro entre eles to forte que
um vintm a mais no soldo dirio basta para faz-los mudar de campo. Esta
paixo degenerou numa avareza desenfreada, mas intil; porque o que o
zapoleta ganha pelo sangue derramado, gasta-o na devassido.
Este povo faz a guerra pelos utopianos, contra
todo o mundo, porque em parte alguma encontra melhor pagamento. De seu lado,
os utopianos, que tratam a gente sria convenientemente, ajustam com muito
gosto essa infame soldadesca para engan-la e destru-la. Quando precisam
dos zapoletas comeam por seduzi-los com brilhantes promessas; depois expem-nos
sempre nos postos mais perigosos. A maior parte perece e no volta para
reclamar o que se lhes prometera; os que sobrevivem recebem exatamente o preo
convencionado e esta rgida boa f anima-os a afrontar outra vez o perigo
com a mesma audcia. Aos utopianos pouco se lhes d perder grande nmero
desses mercenrios, pois esto persuadidos de que tero bem merecido do gnero
humano se puderem um dia expurgar a terra desta raa impura de bandidos.
Alm dos zapoletas, os utopianos empregam
ainda, em tempo de guerra, as tropas dos Estados de que tomam a defesa, e mais
as legies auxiliares de seus outros aliados; s depois, por ltimo,
recorrem a seus prprios concidados, entre os quais escolhem um homem de
talento .e coragem para colocar frente de todo o exrcito
Este general-chefe tem sob suas ordens dois
lugares-tenentes que no possuem nenhum poder enquanto ele pode comandar.
Assim que o general morto ou aprisionado, um dos seus dois lugares-tenentes
lhe sucede como por direito de herana; este ltimo , por sua vez substitudo
por um terceiro. Resulta disto que os perigos a que est exposto pessoalmente
o general, sujeito como qualquer um aos azares da guerra, no podero jamais
comprometer a sorte do exrcito.
Cada cidade recruta e exercita suas tropas
formadas pelos que se alistam voluntariamente. Ningum alistado contra a
vontade para as expedies longnquas, pois um soldado naturalmente
medroso, em lugar de se comportar valorosamente, no pode seno infundir em
seus camaradas a prpria covardia. Entretanto, em caso de invaso, em caso
de guerra no interior, todos os poltres robustos e vlidos so utilizados;
enquanto uns so postos entre os melhores soldados, a bordo dos navios do
Estado, os outros so disseminados pelas praas fortes. A, no h
possibilidade de retirada; o inimigo est a dois os, a fuga impossvel,
e os camaradas os observam. Esta posio extrema sufoca o temor da morte; e
muitas vezes o excesso do perigo faz leo o mais covarde dos homens.
Se a lei no obriga ningum a marchar contra
sua vontade para a fronteira, permite s mulheres que o queiram, acompanhar
seus maridos no exrcito. Longe de serem impedidas, so, ao contrrio,
estimuladas a seguir, constituindo tal gesto para elas brilhante ttulo de
honra. Durante o combate, os esposos so colocados no mesmo posto, cercados
de seus filhos, de seus aliados e parentes, a fim de que se prestem um mtuo
e rpido socorro, os que a natureza impele a se protegerem entre si com maior
afinco.
A desonra e a infmia esperam o esposo que
volta sem a mulher e o filho sem o pai. Tambm quando os utopianos so forados
a ar s vias de fato e o inimigo resiste, uma longa e lgubre refrega
precipita a carnificina e a morte. Lanam mo de todos os meios para no se
expor pessoalmente ao combate e terminar a guerra apenas por meio dos
auxiliares que mantm s suas custas. Mas se surge a necessidade imperiosa
de entrar realmente em combate, sua intrepidez, na ao, no menor do
que a prudncia despendida quando era possvel.
No pem todo o entusiasmo no primeiro choque.
A resistncia e a durao de uma batalha reforam pouco a pouco o seu
valor, exaltando-os a ponto de tornar-se mais fcil mat-los que faz-los
recuar.
O que lhes inspira este valor sublime, esse
desprezo pela morte e pela vitria a certeza de ter, sempre, em sua terra,
de que viver perfeitamente, sem carecer inquietar-se sobre a sorte da famlia,
inquietao essa que, em todos os outros lugares, alquebra as almas mais
generosas. O que ainda lhes aumenta a confiana a habilidade extrema na ttica
militar; enfim, acima de tudo, a excelente educao que recebem, desde a
infncia, nas escolas e instituies da repblica. Desde cedo aprendem a no
desdenhar tanto a vida, para esbanj-la estouvadamente; mas tambm a no am-la
tanto para guard-la com vergonhosa avareza, quando a honra exige que seja
arriscada.
No mais forte da peleja, um troo seleto de
jovens, conjurados e devotados at morte, tem por objetivo perseguir a
todo o transe o chefe do exrcito inimigo. Ataca-o de surpresa ou a
descoberto, de perto ou de longe. Esta pequena tropa disposta em tringulo no
faz alto nem conhece repouso. continuamente renovada com novos recrutas
perfeitamente descansados que substituem os soldados fatigados; raro que no
consiga o seu fim, isto , matar o general inimigo ou aprision-lo, a menos
que este no escape pela fuga.
Os utopianos, uma vez vitoriosos, no matam
inutilmente os vencidos. Preferem prender a matar os fugitivos, e nunca os
perseguem sem ter ao mesmo tempo um corpo de reserva disposto em ordem de
batalha e preparado. Salvo no caso em que, desbaratadas as suas primeiras
linhas, a retaguarda arrebate a vitria, os utopianos preferem deixar escapar
todos os inimigos a ter que correr atrs deles e a habituar, com isso, os
soldados a romperem as prprias filas, desordenadamente. No se esquecem que
muitas vezes deveram sua salvao a esta ttica.
Realmente, muitas vezes o inimigo, depois de ter
derrotado completamente o grosso do exrcito utopiano, tem-se arremessado,
sem ordem, embriagado pelo triunfo, no encalo dos fugitivos. Nesse momento
uma pequena reserva, atenta s oportunidades, pode mudar rapidamente a face
do combate, atacando os vencedores de improviso, quando estes, dispersos aqui
e ali, se esquecem de toda a precauo por excesso de confiana. Desta
forma, a vitria mais segura tem sido algumas vezes arrebatada das mos que
a detinham e, por seu turno, os vencidos batem os vencedores
difcil
afirmar-se se os utopianos so mais hbeis em armar emboscadas do que
prudentes em evit-las Acreditareis que preparam uma fuga quando preparam
justamente o contrrio; e, reciprocamente, se tinham inteno de fugir no
o podereis adivinhar. Quando se sentem bastante inferiores em posio ou
em nmero, levantam o acampamento de noite, em profundo silncio, ou, ento,
contornam o perigo com qualquer outro estratagema. Algumas vezes retiram-se em
pleno dia mas em to boa ordem que no menos perigoso atac-los durante
a retirada do que quando oferecem batalha.
Tm o maior cuidado em defender o prprio
campo com fossas grandes e profundas; os entulhos so jogados no interior do
campo. Estas construes no so entregues a operrios mas aos prprios
soldados; todo o exrcito trabalha, excetuando-se os sentinelas que velam
armados em redor do campo, prontos a fazer abortar qualquer surpresa. Por esse
meio, poderosas fortificaes so erguidas prontamente, abrangendo uma
imensa extenso de terreno.
As armas defensivas dos utopianos so muito slidas,
e, entretanto, prestam-se to bem a toda espcie de movimentos e gestos que
no embaraam nem mesmo o soldado a nado. Um dos primeiros exerccios
militares ensinados aos soldados da Utopia, o de nadar armado. Combatem de
longe com a azagaia, que lanam com vigor e segurana, tanto cavaleiros como
infantes. De perto, em lugar de espadas, combatem com machados, cujo corte ou
peso ocasionam inevitavelmente a morte, qualquer que seja a direo do
golpe. So extremamente engenhosos em inventar mquinas de guerra, e as
novas mquinas ficam cuidadosamente secretas at o momento de ser postas em
uso, por temor de que, sendo conhecidas anteriormente, se tornem mais um
brinquedo ridculo do que um objeto de real utilidade. O que mais procuram,
ao fabric-las, a facilidade de transporte e a aptido a girar em todos
os sentidos.
Os utopianos observam to religiosamente as trguas
concludas com o inimigo, que no as violam mesmo em caso de provocao No
devastam as terras do pas conquistado; no queimam suas colheitas; vo at
a impedir, tanto quanto possvel, que elas sejam esmagadas sob os ps dos
homens e dos cavalos, na previso de que venham a necessitar delas um dia.
Nunca maltratam um homem sem armas, a menos que
seja espio. Conservam as cidades que se rendem e no abandonam pilhagem
as que tomam de assalto. Apenas, matam os principais chefes que pem obstculos
rendio da praa,e condenam escravido o resto dos que sustentaram
o stio. Quanto massa indiferente e pacfica, deixam-na em paz. Se sabem
que um ou mais sitiados haviam aconselhado a capitulao, do-lhes uma
parte dos bens dos condenados; a outra parte para as tropas auxiliares. No
tocam no despojo.
Com a terminao da guerra, no so os
aliados em favor dos quais foi a guerra empreendida que am os seus
gastos; so os vencidos. Em virtude desse princpio, os utopianos exigem dos
ltimos, primeiramente dinheiro, que empregam para os fins que j conheceis,
em caso de guerra futura; em segundo lugar, a concesso de vastos domnios
situados no territrio conquistado, domnios que trazem repblica
pingues rendas.
Atualmente, esta repblica conta em vrios pases
do estrangeiro com imensas rendas desta espcie; oriundas de diversas causas,
foram pouco a pouco se acumulando e do hoje mais de setecentos mil ducados.
O Estado envia para essas propriedades cidados com o ttulo de questores
que vivem magnificamente, possuem grande squito e fornecem ainda fortes
somas ao tesouro. Muitas vezes, tambm, os utopianos cedem o produto dessas
propriedades ao povo do pas onde elas se acham, enquanto no sentem
necessidade dele. raro que reclamem o reembolso total. Uma parte desses domnios
reservada aos que, cedendo seduo, afrontam os perigos de que j vos
falei.
Assim que um prncipe pegou em armas contra a
Utopia e se prepara para invadir uma das terras de seu domnio, os utopianos
renem imediatamente um exrcito formidvel e o expedem para atacar o
inimigo fora das suas fronteiras. S em medida extrema fazem nossos insulares
a guerra em sua terra; e no h necessidade no mundo que os force a deixar
entrar na ilha um socorro de tropas estrangeiras.
DAS RELIGIES DA UTOPIA 26334x
As
religies, na Utopia, variam no unicamente de uma provncia para
outra, mas ainda dentro dos muros de cada cidade; estes adoram
o sol, aqueles divinizam a lua ou outro qualquer planeta. Alguns
veneram como Deus supremo um homem cuja glria e virtude brilharam
outrora de um vivo brilho
No obstante, a maior parte dos
habitantes, que tambm a mais sbia, repele estas idolatrias
e reconhece um Deus nico, eterno, imenso, desconhecido, inexplicvel,
acima das percepes do esprito humano, enchendo o mundo inteiro
com sua onipotncia e no com sua vastido corprea. Este Deus
chamado Pai; a ele que atribuem as origens, o crescimento,
o progresso, as revolues e o fim de todas as coisas. a ele
unicamente que rendem homenagens divinas.
De resto, apesar da diversidade
de suas crenas, todos os utopianos concordam numa coisa: que
existe um ser supremo, ao mesmo tempo Criador e Providncia. Este
ser designado, na lngua do pas, sob o nome comum de Mitra.
A dissidncia consiste em que Mitra no o mesmo para todos.
Mas qualquer que seja a forma pela qual cada um represente seu
Deus, cada um adora, sob esta forma, a natureza majestosa e potente,
a quem somente pertence o soberano imprio de todas as coisas,
por consentimento geral dos povos.
Esta variedade de supersties tende,
dia a dia, a desaparecer e a converter-se numa nica religio,
a qual parece muito mais razovel. mesmo provvel que a fuso
j se teria operado, sem os infortnios imprevistos e pessoais
que impedem a converso de um grande nmero. Muitos, em lugar
de atribuir ao acaso acidentes desse jaez, metem-se a interpret-los,
sob o terror supersticioso que sentem, como uma vingana do Deus
que estavam prestes a abandonar. Temem que este Deus se vingue
de sua apostasia.
Entretanto, quando aprenderam conosco
o nome do Cristo, sua doutrina, sua vida, seus milagres, a irvel
constncia de tantos mrtires, cujo sangue voluntariamente vertido
submeteu lei do Evangelho a maioria das naes da terra, no
podeis imaginar com que afetuosa inclinao ouviram esta revelao.
Talvez que Deus agisse secretamente em suas almas; talvez o cristianismo
lhes pareceu em todos os pontos conforme seita que entre eles
goza de maior prestgio.
O que na minha opinio contribuiu
sobretudo para inspirar-lhes estas felizes disposies foi a narrao
da vida em comum dos primeiros apstolos, to cara a Jesus Cristo,
e atualmente ainda em uso nas sociedades dos verdadeiros e perfeitos
cristos.
Como quer que seja, muitos dentre
os utopianos abraaram nossa religio e foram purificados pelas
guas sagradas do batismo; infelizmente, de ns quatro (a morte
de outros dois companheiros nos tinha reduzido a este nmero),
nenhum era padre. Eles no puderam, portanto, ainda que j iniciados
nos outros mistrios, receber os sacramentos que, entre ns, unicamente
os padres tm o poder de conferir; no obstante, tm uma idia
perfeitamente exata desses sacramentos e de tal modo os desejam
que ouvi-os discutir acaloradamente a questo de saber se um cidado,
escolhido por eles, no poderia adquirir o carter de padre. A
minha partida, no tinham ainda eleito ningum, mas pareciam resolvidos
a faz-lo.
Os habitantes da ilha que no crem
no cristianismo, no se opem sua propagao e no maltratam
de nenhuma maneira os neo-convertidos. Apenas um dos nossos nefitos
foi preso em minha presena. Recm-batizado, pregava em pblico,
no obstante os meus conselhos, com mais zelo que prudncia. Arrebatado
por seu ardente fervor, no se contentava em elevar ao primeiro
plano o cristianismo; e condenava todas as outras religies, vociferando
contra seus mistrios, que classificava como profanos, contra
seus sectrios, que qualificava de mpios e sacrlegos, dignos
do inferno. Este nefito, depois de ter deblaterado neste tom
durante muito tempo, foi preso, no sob preveno de ultraje ao
culto, mas por ter provocado tumulto entre o povo. Foi a julgamento
e condenado ao exlio.
Os utopianos incluem no nmero de
suas mais antigas instituies a que probe prejudicar uma pessoa
por sua religio. Utopus, na poca da fundao do imprio, apurou
que, antes de sua chegada, os indgenas viviam em guerras contnuas
por motivos religiosos. Notara tambm que tal situao lhe facilitara
a conquista do pas, porque as seitas dissidentes em vez de se
reunirem em massa, combatiam isoladamente e a parte. Assim que
se viu vitorioso e senhor do pas, apressou-se em decretar a liberdade
de religio. Entretanto, no proscreveu o proselitismo, que propaga
a f pelo raciocnio, com doura e modstia; que no procura destruir
pela fora bruta a religio contrria, quando no consegue persuadir;
que, finalmente, no emprega a violncia nem a injria.
Utopus, decretando a liberdade religiosa,
no tinha unicamente em vista a manuteno da paz outrora perturbada
por combates contnuos e dios implacveis; pensava ainda que
o prprio interesse da religio exigia tal medida. Nunca ousou
ele estatuir temerariamente qualquer coisa, em matria de f,
na incerteza de que o prprio Deus no tenha inspirado aos homens
as diversas crenas no intuito de experimentar, por assim dizer,
esta grande variedade de cultos. Quanto ao emprego da violncia
e de ameaas para constranger algum a adotar a mesma crena que
outrem, pareceu-lhe tirnico e absurdo. Previa que se todas as
religies fossem falsas, exceo de uma, tempo viria em que,
com o auxlio da doura e da razo, a verdade se desprenderia
espontaneamente, luminosa e triunfante, da noite do erro
Ao contrrio, quando a controvrsia
se faz pelo tumulto e de armas na mo, dado que os piores homens
so os mais teimosos, sucede que a melhor e mais santa das religies
acabaria sepultada sob uma multido de vs supersties, como
uma bela seara coberta pelo mato e os espinhos.
Foi por isto que Utopus deixou a
cada um inteira liberdade de conscincia e de f
No obstante, castigou severamente,
em nome da moral, o homem que degrada a dignidade de sua natureza
a ponto de pensar que a alma morre com o corpo ou que o mundo
marcha ao lu sem que exista alguma providncia
Os utopianos crem, pois, numa vida
futura, onde castigos so preparados para os crimes e recompensas
para as virtudes. No do o nome de homem quele que nega estas
verdades e que rebaixa a natureza sublime de sua alma vil condio
de um corpo de animal; com mais forte razo, no o honram com
o ttulo de cidado, persuadidos de que, se o tal no estivesse
amarrado pelo temor, calcaria aos ps como flocos de neve os hbitos
e as instituies sociais. Quem pode duvidar, com efeito, que
um indivduo que no tem outro freio seno o cdigo penal, outra
esperana que a matria e o nada, no encontra prazer em iludir,
astuciosa e secretamente, as leis de seu pas, ou viol-las pela
fora, desde que satisfaa a sua paixo e o seu egosmo?
A esses materialistas no se rendem
homenagens, no se confiam magistraturas ou cargos pblicos. So
desprezados como seres de natureza inerte e impotente. Entretanto,
no so condenados a pena, na convico generalizada de que no
est no poder de ningum sentir segundo sua fantasia. No se fazem
ameaas para obrig-los a dissimular a prpria opinio. A dissimulao
proscrita na Utopia e a mentira detestada tanto quanto a trapaa.
Unicamente no tm o direito de sustentar seus princpios em pblico
perante o vulgo; podendo faz-lo, entretanto, em particular, junto
aos padres e outras graves personagens. So mesmo insistentemente
convidados para essas conferncias, na esperana de que seu delrio
ceda enfim razo.
Grande nmero de utopianos professa
um sistema diametralmente oposto ao materialismo; e como suas
idias no so perigosas nem totalmente desprovidas de bom senso,
a propaganda no lhes proibida. Estes ltimos, caindo no extremo
oposto, pretendem que as almas dos animais so imortais como as
nossas, ainda que muito inferiores quanto ao quinho da dignidade
e da felicidade que lhes so destinadas.
Todos os utopianos, a parte pequena
minoria, alimentam a convico ntima de que uma felicidade imensa
aguarda o homem alm tmulo. por isto que choram pelos doentes
e jamais pelos mortos, excetuado o caso em que o moribundo deixa
a vida inquieto ou a contragosto. O temor da morte para eles
um mau augrio; parece-lhes que este temor no existe seno nas
almas sem esperana e cujas conscincias intranqilas tremem diante
da eternidade, como se sentissem j o aproximar do suplcio. Alm
disso acreditam que Deus no recebe com prazer o homem que no
acorre de bom grado ao seu chamado, mas pela morte arrastado
sua presena entre rebelde e aflito.
Aqueles que vm algum morrer assim
tomam-se de horror; levam o defunto, tristes e silenciosos; e
aps suplicar divina clemncia perdo s suas fraquezas, enterram-no.