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Proteo Constitucional dos Direitos Humanos
no Brasil: Evoluo Histrica e Direito Atual

Jos Afonso da Silva 4x5340

1. Direitos humanos no constitucionalismo brasileiro

1. A questo tcnica que se apresentou na evoluo das declaraes de direitos foi a de assegurar sua efetividade atravs de um conjunto de meios e recursos jurdicos, que genericamente aram a chamar-se garantias constitucionais dos direitos humanos.

Tal exigncia tcnica determinou que o reconhecimento desses direitos se fizesse segundo formulao jurdica positiva, mediante sua inscrio no texto das constituies.

2. Assim, como nota Biscaretti di Ruffia, se deu a subjetivao e a positivao dos direitos dos indivduos com sua enunciao constitucional, imprimindo s suas frmulas, at ento abstratas, o carter concreto de normas jurdicas positivas, vlidas para os indivduos dos respectivos Estados, com previso tambm de outras normas destinadas a atuar uma precisa regulamentao jurdica, de modo a no requerer ulteriormente, a tal propsito, a interveno do legislador ordinrio.1 Da por diante, as constituies democrticas aram a trazer um captulo em que so subjetivados e positivados os direitos fundamentais do homem.

3. Constituio Poltica do Imprio do Brasil, outorgada por D. Pedro I em 25.3.1824, cabe um lugar de destaque nesse processo de positivao dos direitos do homem, que ela enunciou, com as garantias pertinentes, no art. 179 e seus trinta e cinco incisos, onde se declarava garantida a inviolabilidade dos direitos de liberdade, igualdade, segurana individual e propriedade, mas, como disse Pimenta Bueno, nosso melhor constitucionalista do Imprio, no s cada um daqueles direitos se dividia em diversos ramos, mas tambm eles se combinavam entre si, e formavam outros direitos igualmente essenciais.2 A encontramos, em enunciado claro e preciso, os direitos humanos da primeira gerao at ento conhecidos no constitucionalismo americano e europeu. notria, porm, a influncia das declaraes que acompanhavam as Constituies sas do final do sculo XVIII. de ressaltar o conjunto de garantias constitucionais da liberdade, da dignidade e da privacidade que ela estatua como direito de segurana dos indivduos. Em face desse conjunto de garantias, Pimenta Bueno adiantou-se no tempo e nos brindou com a seguinte concepo do direito de segurana: "no estado social o direito que o homem tem de ser protegido pela lei e sociedade em sua vida, liberdade, propriedade, sua sade, reputao e mais bens seus. finalmente o direito de no ser sujeito seno ao da lei, de nada sofrer de arbitrrio, de ilegtimo".3

Mas a Constituio ia alm da previso dos direitos tipicamente individuais, pois garantia tambm o socorro pblico, que mereceu do citado Pimenta Bueno a concepo de que, desde que a sociedade fundada, a idia da proteo como que sinnima da de governo em favor dos associados, pois, o poder pblico tem o dever de proteger a vida da pessoa, sua segurana social e a de seus bens e direitos.4 A Constituio no parava a, avanava adiante, para garantir a todos o direito instruo primria gratuita, assim como o ensino mdio e as universidades onde seriam ensinadas as cincias e as artes.

4. Seguramente, a Constituio do Imprio do Brasil de 1824, que vigorou at 15 de novembro de 1889, continha uma das mais avanadas declaraes dos direitos humanos do sculo ado. No se pode, porm, ocultar o fato de que os direitos reconhecidos e garantidos s serviam elite aristocrtica. De fato, prometia a Constituio um regime liberal, mas o liberalismo, que se expressava na Europa da poca "as aspiraes da burguesia interessada em organizar a sociedade em bases novas, empenhada em rever valores tradicionais, em atacar os privilgios da nobreza e do clero, o poder absoluto dos reis e organizar o Estado em forma a ter o seu controle direto", no Brasil de ento significava apenas "a liqidao dos laos coloniais. No se pretendia reformar a estrutura colonial de produo, no se tratava de mudar a estrutura da sociedade: tanto assim que em todos os movimentos revolucionrios se procurou garantir a propriedade escrava".5

certo, como se afirmou acima, que a Constituio do Imprio acolheu os direitos individuais bsicos que se encontravam inscritos na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789, mas esses direitos s serviam elite aristocrtica que dominava o regime. Como bem exprime Emlia Viotti da Costa:

"Para estes homens, educados europia, representantes das categorias dominantes, a propriedade, a liberdade, a segurana garantidas pela constituio eram reais. No lhes importava se a maioria da nao se constitua de uma massa humana para a qual os preceitos constitucionais no tinham a menor eficcia. Afirmava-se a liberdade e a igualdade de todos perante a lei, mas a maioria da populao permanecia escrava. Garantia-se o direito de propriedade, mas 19/20 da populao, segundo calculava Tollenare, quando no era escrava, compunha-se de moradores vivendo nas fazendas em terras alheias, podendo ser mandados embora a qualquer hora. Garantia-se a segurana individual, mas podia-se matar impunemente um homem. Afirmava-se a liberdade de pensamento e de expresso, mas no foram raros os que como Davi Pamplona ou Lbero Badar pagaram caro por ela. Enquanto o texto da lei garantia a independncia da justia, ela se transformava num instrumento dos grandes proprietrios. Aboliam-se as torturas, mas nas senzalas, os troncos, os anjinhos, os aoites, as gargalheiras, continuavam a ser usadas, e o senhor era o supremo juiz decidindo da vida e da morte de seus homens." E conclua: "A fachada liberal construda pela elite europeizada ocultava a misria e escravido da maioria dos habitantes do pas."6

5. De fato, o regime monrquico no era democrtico. Embora se tratasse de monarquia constitucional e representativa, a verdade que os mecanismos centralizadores e definidores do poder pessoal do monarca no possibilitavam a vigncia do princpio democrtico. Sistema eleitoral censitrio, deputados e senadores eleitos indiretamente. Senado vitalcio. Organizao dos poderes segundo a formulao de Benjamin Constant, ou seja: poder legislativo, poder moderador, poder executivo e poder judicirio, onde o poder moderador era definido como a chave de toda a organizao poltica; cabia ao Imperador que tambm exercia o poder executivo por intermdio de seus Ministros. O drama dos direitos humanos no Brasil sempre residiu na falta de vigncia da democracia, como regime de garantia geral da efetiva realizao dos direitos fundamentais da pessoa humana. Tivemos muito poucos momentos democrticos ao longo de nossa histria.

6. A proclamao da Repblica, em 15.11.1889, no melhorou muito essa situao. A respectiva Constituio, promulgada a 24.2.1891, estabeleceu que a Nao brasileira adotava como forma de governo a Repblica Federativa, constituda, pela unio perptua e indissolvel das suas antigas provncias, em Estados Unidos do Brasil. Cada provncia virou Estado da Federao instituda j pelo Decreto n.1, de 15.11.1891. Perfilhou-se o regime democrtico representativo. Optou-se pelo presidencialismo moda norte-americana. Rompeu com a diviso quadripartita dos poderes da Constituio do Imprio, agasalhando a doutrina tripatita de poderes(legislativo, executivo e judicirio). Firmou a autonomia dos Estados. Previu a autonomia dos Municpios. Enfim, a Constituio era um belo arcabouo formal, tecnicamente bem feita e sinttica (91 artigos, enquanto a do Imprio tinha 179). Era, no dizer de Amaro Cavalcnti, o "texto da Constituio norte-americana completado com algumas disposies das Constituies suia e argentina". Faltou-lhe, porm, vinculao com a realidade do pas. Por isso, no teve eficcia social. No regeu o meio social para o qual fora feita. Isso vale tambm para sua famosa Declarao de Direitos, constante da Seo II do Ttulo IV, onde assegurava a brasileiros e estrangeiros residentes no pas a inviolabilidade dos direitos concernentes liberdade, segurana e propriedade na forma discriminada nos 31 pargrafos do art. 72, acrescidos de algumas garantias funcionais e militares nos arts. 73 a 77, indicando no art. 78 que a enumerao no era exaustiva, regra que ou para as constituies subseqentes. No apresentou ela grande diferena em relao Constituio do Imprio. Acrescentou o direito de associao e de reunio e incluiu o habeas corpus como garantia constitucional, mas j no previu o direito ao socorro pblico, nem resistncia nem instruo pblica gratuita. S reconheceu os direitos e garantias individuais, que, no entanto, tambm no tiveram efetividade. O pas era dominado por uma poltica de governadores de Estado, que se sustentavam no coronelismo, que foi o poder real e efetivo, apesar das normas constitucionais traarem esquemas formais de organizao nacional com base na teoria da diviso de poderes. O coronelismo era um fenmeno poltico-social complexo. O coronel, no caso, no um ttulo militar. Mas proveio da influncia da Guarda Nacional que existiu durante certo perodo do Imprio. "Com efeito, alm dos que realmente ocupavam nela tal posto, o tratamento de coronel comeou desde logo a ser dado pelos sertanejos a todo e qualquer chefe poltico, a todo e qualquer patenteado." 7

O coronel era o chefe poltico local, mas no era s isso. Bem o diz Vtor Nunes Leal: "Dentro da esfera prpria de influncia, o coronel como que resume em sua pessoa, sem substitu-las, importantes instituies sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdio sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenas e proferindo, s vezes, verdadeiros arbitramentos, que os interessados respeitam. Tambm se enfeixam em suas mos, com ou sem carter oficial, extensas funes policiais, de que freqentemente se desincumbe com a sua pura ascendncia social, mas que eventualmente pode tornar efetivas com o auxlio de empregados, agregados ou capangas."8 nesse mesmo sentido a lio de Edgar Carone: "O fenmeno do coronelismo tem suas leis prprias e funciona na base da coero da fora e da lei oral, bem como de favores e obrigaes. Esta interdependncia fundamental: o coronel aquele que protege, socorre, homizia e sustenta materialmente os seus agregados; por sua vez, exige deles a vida, a obedincia e a fidelidade. por isso que coronelismo significava fora poltica e fora militar."9

O regime formava uma pirmide oligrquica, cujo sistema de dominao se apoiava em mecanismos eleitorais que deformavam a vontade popular. O coronel, como liderana local, arregimentava os eleitores e os fazia concentrar perto dos postos de votao, vigiados por sentinelas. Esses locais de concentrao dos eleitores aram a ser conhecidos como currais ou quartis eleitorais, de onde os eleitores saiam conduzidos por prepostos do coronel para votar no candidato por ele indicado. Como o voto era a descoberto (a bico de pena, como se dizia), o eleitor no tinha como escapar da vigilncia, at porque as mesas eleitorais eram tambm formadas de elementos do coronel. Outro elemento do sistema era o cabo eleitoral, ainda hoje existente com menor significao. Seu papel consistia (e consiste) em angariar votos para os candidatos, no por exposio de doutrina, mas base de distribuio de empregos ou favores pessoais.10 O sistema partidrio era unipartidista, ou seja, havia em cada Estado um partido poltico apenas, que se denominava Partido Republicano. Como cada Estado tinha o seu, tomava ele o patronmico do respetivo Estado: Partido Republicano Paulista (o do Estado de So Paulo), Partido Republicano Mineiro (o do Estado de Minas Gerais) etc. A Comisso Executiva do Partido, geralmente composta de cinco membros, dominada pela oligarquia ou por prepostos dela que decidia quem seria candidato a deputado ou senador. Se eventualmente algum no apoiado nas oligarquias dominantes conseguia candidatar-se e eleger-se, escapando das atas eleitorais falsas e outras barreiras, por certo seria degolado pelo sistema de reconhecimento de poderes, "feito em conjunto pela Cmara dos Deputados e Senado, para apurar a legalidade da eleio, examinar as atas eleitorais e somar tudo de novo, pois no havia naquela poca Tribunais Eleitorais." 11 Pois, como disse Certrio de Castro: "Eram eleitos, diplomados e reconhecidos os candidatos que as comisses executivas dos Partidos houvessem indicado em seus boletins. Sees eleitorais ao abandono, livros manipulados nas casas dos coronis que dirigiam a poltica municipal, no dia seguinte cada jornal inseria um resultado." 12

Enfim, para concluir esse aspecto da organizao scio-poltica da primeira Repblica, vale a pena transcrever mais esta agem da lavra de Lencia Basbaum, que retrata, em sntese, o regime, que estava muito longe de ser uma democracia, a despeito da existncia de uma Constituio que formalmente garantia os direitos individuais e firmava uma estrutura de poder liberal e limitado, mas que, no fundo e em seu funcionamento, formava uma pirmide oligrquica:

"Era uma pirmide em cujo pice se encontrava o Presidente da Repblica, vindo logo abaixo o Partido Republicano Paulista e os partidos estaduais; e na base do arcabouo, o coronel e sua famlia, amigos, parentes e dependentes, constituindo as famosas oligarquias estaduais, pequenos Estados dentro do Estado, que centralizavam em suas mos os poderes fundamentais da Repblica: legislavam, julgavam e governavam."13

A, a democracia representativa era puramente formal e a possibilidade de representao poltica de outros setores sociais, que no as oligarquias, bastante reduzidas. E nenhuma possibilidade de vigncia efetiva dos direitos fundamentais inscritos na Carta Magna.

7. A revoluo de 1930 foi uma esperana do povo que logo se frustrou, com a supresso do regime constitucional, que s foi reconquistado mediante a convocao de Assemblia Constituinte que elaborou a Constituio de 1934, que vigorou por pouco mais de trs anos, sobrevindo o golpe de Estado de 1937 com sua Carta ditatorial, que durou at a promulgao da Constituio dos Estados Unidos do Brasil, de 18.9.1946, a qual trouxe um ttulo sobre a declarao de direitos, com captulos sobre os direitos de nacionalidade, os direitos polticos e os direitos e garantias individuais. Incorporou ela, como a de 1934, os chamados direitos humanos de segunda gerao, consubstanciados num ttulo sobre os direitos econmicos, sociais e culturais. Ela regeu o perodo de grande liberdade democrtica. verdade que o Pas j estava em franca urbanizao, com razovel desenvolvimento industrial, que reunia um operariado sindicalizado que foi tomando conscincia de sua prpria expresso poltica. Sob sua gide, contudo, sucederam-se inmeros conflitos constitucionais que encontraram um laboratrio na Escola Superior de Guerra, onde se formulou, por influncia dos Estados Unidos, a doutrina da segurana nacional que fundamentou o golpe militar de 1964, que produziu duas Constituies, nas quais tambm se previa uma declarao de direitos, mas o princpio da segurana nacional sobrepairava sobre a eficcia das demais normas constitucionais, pela criao de uma normatividade excepcional sem contemplao para com os direitos humanos mais elementares, sufocados durante vinte anos. Tudo poderiam fazer os detentores do poder: fechar as Casas Legislativas, cassar mandatos eletivos, demitir funcionrios, aposentar magistrados, suspender direitos polticos, invadir domiclios, encarcerar e at sumir com as pessoas.

8. A dialtica dos fatos, contudo, mais forte do que as formas dos regimes, pois, foi justamente sob esse regime fechado que o povo foi aprendendo que direitos humanos no devem constituir-se numa concepo imprecisa e abstrata, cumprindo mera funo de retrica poltica, mas ho que ser tidos como sinnimos de interesses populares, significando moradia, terra, sindicalizao, resistncia violncia policial cotidiana, e que as vtimas das violaes de direitos humanos so procedentes das classes populares. Refletira sobre o tema da utopia e da justia de maneira nova, no como simples ideal, mas como prtica, pois a "utopia das classes populares no o que elas pensam, o que elas fazem, o seu movimento real e concreto de luta. Sem luta a utopia no existe, como no existe a justia. A luta travada em vrios nveis pelos movimentos de direitos humanos criou novas arenas polticas e novos atores: envolveu o Judicirio, que parecia pairar acima de tudo, confrontou o Executivo ao reivindicar verbas pblicas para os chamados bens de consumo coletivo (escolas, creches, postos de sade, etc.)".14 No se reivindicava nem mesmo a positivao de situaes novas. Tratava-se de compreender, em primeiro lugar, que as declaraes de direitos individuais e sociais no constituem apenas bons conselhos, e, em segundo lugar, o reconhecimento de que as garantias dos direitos humanos no esto apenas na sua positivao, mas no modo como se aplicam as normas constitucionais e as leis. Esses movimentos sociais postularam por uma nova ordem constitucional em que os direitos humanos fossem reconhecidos numa Constituio democrtica, mas sobretudo que esses direitos declarados tivessem uma traduo concreta no cotidiano de milhes de pobres e minorias discriminadas, conscientes que ficaram de que os direitos humanos, at ento positivados em nossas Constituies, no tinham sido ainda capazes de responder s demandas formuladas pelas classes populares e de que esta dificuldade no era acidental, mas parte de um conjunto de relaes econmicas e polticas, que constituem no Brasil - e na Amrica Latina em geral - um sistema social feito para funcionar apenas para uma parcela da populao.15 Buscava-se no tanto a construo de um direito novo, mas uma forma de uso alternativo das formulaes jurdicas existentes, convertendo seu vetor elitista no rumo da satisfao dos interesses gerais do povo

2. Constituio de 1988

9. A Constituio de 1988 resultou dessa luta pela construo de um Estado Democrtico onde se assegurasse o exerccio dos direitos humanos fundamentais. Formalmente, ela cumpre integralmente esse objetivo. Seu Ttulo II contm a declarao dos direitos fundamentais do homem, expresso que ela emprega em sentido abrangente daquelas prerrogativas e instituies que se concretizam em garantias de uma convivncia digna, livre e igual de todas as pessoas. Nela se sintetizam todas as manifestaes modernas dos direitos fundamentais da pessoa humana.

10. No desceremos a pormenores, que o tempo no nos permite, basta uma sntese, para lembrar que a Constituio consagra: a) os direitos fundamentais do homem-indivduo, que so aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo iniciativa e independncia aos indivduos diante dos demais membros da sociedade e do prprio Estado; por isso so reconhecidos como direitos individuais, ou seja: direitos vida, privacidade, igualdade, liberdade e propriedade, especificados no art. 5, mas, de acordo com o 2 desse mesmo artigo, os direitos e garantias nele previstos no excluem outros decorrentes dos princpios e do regime adotado pela Constituio e dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte; b) os direitos fundamentais do homem-nacional, que so os que tm por objeto a definio da nacionalidade e suas prerrogativas (art. 12); c) os direitos fundamentais do homem-cidado, que so os direitos polticos (arts. 14-17), os direitos de participao poltica; d) os direitos fundamentais do homem-social, que constituem os direitos assegurados ao homem em suas relaes scio-econmicas e culturais, de acordo com os arts. 6 a 11, que podem ser agrupados em trs classes: 1) direitos sociais relativos ao trabalhador (art. 7 e seus incisos), com regras sobre direito ao trabalho e garantia do emprego, direitos sobre as condies de trabalho (negociaes coletivas), direitos relativos ao salrio (salrio mnimo, salrio noturno superior ao diurno, irredutibilidade do salrio), direitos relativos ao repouso e inatividade do trabalhador, direitos relativos aos dependentes do trabalhador, participao nos lucros e co-gesto; direito de associao sindical e direito de greve (arts. 8 e 9); 2) direitos sociais relativos seguridade (art. 6), compreendendo os direitos sade, previdncia e assistncia social (arts. 6 e 194 a 204); 3) direitos sociais relativos educao e cultura (arts. 6); d) direitos fundamentais do homem-membro da coletividade, de que participam alguns tradicionais direitos de expresso coletiva como os de associao e de reunio, mas os direitos coletivos como espcies dos direitos fundamentais do homem comeam a forjar-se e a merecer considerao constitucional, assim so os direitos coletivos informao (art. 5, XIV e XXXIII, o qual no se confunde com a liberdade de informao, direito individual) e representao associativa; direitos do consumidor (arts. 5, XXXII, e 170, VI) e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida (art. 225).

11. V-se, por essa sntese apertada, que a Constituio incorporou tambm os chamados direitos humanos de terceira gerao, integrados com os de segundo e os de primeira. Ela suplanta a tendncia para entender os direitos individuais como contrapostos aos direitos sociais e coletivos, que as Constituies anteriores, de certo modo, justificavam. Tratava-se de deformao de perspectiva, pois s o fato de estabelecer-se um rol de direitos econmicos, sociais e culturais j importava em conferir contedo novo quele conjunto de direitos chamados liberais. Ela agora fundamenta o entendimento de que as categorias de direitos humanos, nela previstos, integram-se num todo harmnico, mediante influncias recprocas, com o que se transita de uma democracia de contedo basicamente poltico-formal para uma democracia de contedo social, pois a anttese inicial entre direitos individuais e direitos sociais tende a resolver-se numa sntese de autntica garantia da vigncia do princpio democrtico, na medida em que os ltimos forem enriquecendo-se de contedo e eficcia.

3. Garantias constitucionais

12. A afirmao dos direitos humanos no direito constitucional positivo reveste-se de transcendental importncia, mas no basta que um direito seja reconhecido e declarado, necessrio garanti-lo, porque viro ocasies em que ser discutido e violado. Ruy Barbosa j dizia que uma coisa so os direitos, outra as garantias, pois devemos separar, "nos textos da lei fundamental, as disposies meramente declaratrias, que so as que imprimem existncia legal aos direitos reconhecidos, e as disposies assecuratrias, que so as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias: ocorrendo no raro juntar-se, na mesma disposio constitucional, ou legal, a fixao da garantia, com a declarao do direito".16

13. No cabe aqui uma discusso terica sobre o tema. Basta observar que o sistema brasileiro define como garantias todas as prescries constitucionais que conferem, aos titulares dos direitos fundamentais, meios, tcnicas, instrumentos ou procedimentos para impor o respeito e a exigibilidade desses direitos, compreendendo garantias individuais, coletivas, sociais e polticas, tendo em vista a natureza do direito garantido. Seria fastidioso arrolar aqui todos os princpios de proteo dos direitos humanos que a Constituio prescreve, cujo conjunto constitui os direitos constitucionais de segurana, como os princpios da legalidade, da proteo judiciria e do contraditrio; o direito de ampla defesa nos processos judiciais e istrativos, o direito ao devido processo legal, a estabilidade dos direitos subjetivos (art. 5), e as diversas garantias penais etc.17 at porque no raro a eficcia de algumas dessas garantias depende do uso de outros remdios constitucionais, parecendo, assim, mais proveitoso ar ao exame daqueles que nossa Constituio acolheu. Alguns so de natureza poltica que revelam importante faceta da democracia participativa, como a iniciativa legislativa popular, o referendo e o plebiscito. Mais relevantes, porm, so as garantias constitucionais de natureza processual, como a justia constitucional e os meios da chamada jurisdio constitucional da liberdade, que nos merecero um pouco de ateno em seguida.

14. Antes porm, cumpre dizer que expressiva a garantia constante do art. 5o., 1, segundo o qual as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata, o que consagra a vinculao positiva das autoridades pblicas s normas e investe o Judicirio no dever de aplicar diretamente as normas constitucionais em matria de direitos fundamentais ainda quando se refiram a uma normatividade posterior.18

4. Justia constitucional

15. A justia constitucional consiste na entrega, a rgo do Poder Judicirio, da misso de solucionar conflitos constitucionais. Compreende toda atuao dos tribunais judicirios destinados a assegurar a observncia das normas constitucionais, ou, como preleciona o Mestre Fix-Zamudio, "compreende los diversos instrumentos calificados como garantias constitucionales, y que en su conjunto son objeto de estudio de la disciplina que se denomina "Derecho Procesal Constitucional".19

16. S nos ateremos a dois aspectos do tema, que assumiram destacada importncia na defesa dos direitos humanos no Brasil: o do controle da constitucionalidade dos atos do Poder Pblico e aquele setor que Cappelletti denominou de jurisdio constitucional da liberdade.

17. O controle de constitucionalidade, no Brasil, hoje, o resultado da experincia histrica que propiciou o surgimento de um sistema peculiar que combina os critrios de controle difuso e de controle concentrado. Este ltimo se apresenta mais adequado defesa dos direitos humanos, por via de ao direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, que, embora no seja um Tribunal Constitucional segundo o modelo europeu, ou a ter competncia apenas de jurisdio constitucional, competindo-lhe, precipuamente, a guarda da Constituio. S isso, porm, no seria suficiente para a organizao de um sistema eficaz de proteo aos direitos humanos, pois tal competncia j lhe cabia no regime das Constituies anteriores, e no raro, lamentavelmente, suas decises sustentaram o arbtrio do regime militar. Por outro lado, anteriormente, a legitimao para a ao direta de inconstitucionalidade pertencia apenas ao Procurador-Geral da Repblica, que era de livre nomeao e, pior, de livre exonerao pelo Presidente da Repblica, de sorte que s promovia as aes de convenincia do regime. Isso mudou. Hoje, a legitimao para propor a ao direta de inconstitucionalidade compete a vrias autoridades e instituies: I - o Presidente da Repblica; II - a Mesa (Comisso Diretora) do Senado Federal; III - a Mesa (Comisso Diretora) da Cmara dos Deputados; IV - a Mesa (Comisso Diretora) de Assemblia Legislativa, que o nome do rgo do poder legislativo dos Estados-membros; V - o Governador do Estado; VI - o Procurador-Geral da Repblica; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido poltico com representao no Congresso Nacional; IX - confederao sindical ou entidade de classe de mbito nacional. Essas instituies, especialmente, a Ordem dos Advogados, tm utilizado esse instrumento na defesa da legalidade em geral e da Constituio em particular. Mas, o que mais importante, que a Procuradoria-Geral da Repblica adquiriu autonomia, de modo que, j por vrias vezes, props ao direta de inconstitucionalidade de medidas da Presidncia da Repblica com relativo xito, a despeito de o Supremo Tribunal Federal ainda no ter assumido plenamente a sua nova misso constitucional.

19. Inovao da Constituio na matria foi a previso da inconstitucionalidade por omisso, por influncia da Constituio portuguesa, que tema relacionado com a problemtica da eficcia e aplicabilidade das normas constitucionais. Tem mesmo por objetivo tornar efetiva a aplicao da Constituio contra a inrcia dos Poderes Constitudos. Como a omisso constitucional s se caracteriza pela falta ou insuficincia de medidas legislativas e de adoo de medidas polticas ou de governo, normalmente exigidas em normas constitucionais definidoras da ao positiva do Estado em favor das classes desfavorecidas, bem se pode aquilatar da importncia do seu controle para a efetivao de pondervel categoria dos direitos humanos. Nossa experincia ainda pequena nesse campo.

5. Jurisdio constitucional da liberdade

20. Mais rica nossa experincia no uso dos instrumentos da chamada jurisdio constitucional da liberdade. Alm dos meios tradicionais como o habeas corpus, o mandado de segurana, a ao popular, a nova Constituio brinda-nos com novidades, como o mandado de segurana coletivo, o mandado de injuno, o habeas-data e a ao civil pblica. So meios processuais constitucionais que objetivam o amparo dos direitos humanos.

21. Habeas corpus - Segundo o art. 5, LXVIII, da Constituio, "conceder-se- habeas corpus sempre que algum sofrer ou se achar ameaado de sofrer violncia ou coao em sua liberdade de locomoo, por ilegalidade ou abuso de poder". Constitui meio de invocar a atividade jurisdicional, portanto uma ao judicial, que visa salvaguardar o direito fundamental de ir, vir e ficar, em que se consubstancia a liberdade de locomoo.

ite-se, na doutrina como na jurisprudncia, que o habeas corpus meio processual idneo para invocar a jurisdio constitucional, objetivando a declarao de inconstitucionalidade de lei ou ato que servir de base atuao restritiva da liberdade de locomoo.

22. O mandado de segurana surgiu como evoluo da doutrina brasileira do habeas corpus, realizada pela jurisprudncia, sob a gide do Supremo Tribunal Federal, na Primeira Repblica, para no deixar sem remdio certas situaes jurdicas que no encontravam no quadro das nossas aes a proteo adequada.20 Evoluo interrompida pela reforma constitucional de 1926. Ento, j se desenvolvia a idia de um remdio apto a amparar direitos lesados pelo poder pblico, similar ao recurso de amparo mexicano. Foi assim que o mandado de segurana foi institudo pelo art. 113, n 23, da Constituio de 1934, perdurando nas posteriores, como um remdio processual-constitucional destinado a proteger direito individual, lquido e certo, lesado ou ameaado de leso por autoridade.

A Constituio de 1988 deu-lhe nova formulao, concebendo dois tipos: o mandado de segurana individual e o mandado de segurana coletivo. O primeiro consta do art. 5, LXIX: "conceder-se- mandado de segurana para proteger direito lquido e certo, no amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsvel pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pblica ou agente de pessoa jurdica no exerccio de atribuies pblicas". O segundo est previsto no inciso LXX do mesmo art. 5: " o mandado de segurana coletivo pode ser impetrado por: a) partido poltico com representao no Congresso Nacional; b) organizao sindical, entidade de classe ou associao legalmente constituda e em funcionamento h pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados". O conceito de mandado de segurana coletivo assenta-se em dois elementos: a) um institucional caracterizado pela atribuio da legitimao processual a instituies associativas para a defesa de interesses de seus membros ou associados; outro objetivo consubstanciado no uso do remdio para a defesa de interesses coletivos.

Em qualquer caso, o mandado de segurana uma ao pela qual o lesado defende seu direito lquido e certo ou direito coletivo ou individual do associados e, nessa defesa, pode argir a inconstitucionalidade da lei ou ato ofensivo ao direito em causa. Ento, sim, o mandado pode ser concedido, declarando-se a inconstitucionalidade da lei ou decreto em que a autoridade fundamentou o ato ou o provimento impugnado.

23. O mandado de injuno um instituto novo no sistema brasileiro consubstanciado no art. 5, LXXI, com o seguinte enunciado: "conceder-se- mandado de injuno sempre que a falta de normas regulamentadoras torne invivel o exerccio de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes nacionalidade, soberania e cidadania". Constitui, pois, uma ao constitucional posta disposio de quem se considere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas, inviveis por falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituio. Sempre sustentamos que o direito reclamado teria que ser concreto e pessoal. Tambm sempre sustentamos que o reconhecimento da falta de normas regulamentadoras do direito, liberdade ou prerrogativa reclamados teria que ser diretamente suprida pelo Judicirio. No entanto, julgados do Supremo Tribunal Federal reduziram o mandado de injuno a uma espcie de ao de inconstitucionalidade por omisso, de sorte que a deciso simplesmente recomenda a elaborao das normas reguladoras prevista na Constituio, o que , no nosso sentir, tornar praticamente intil o instituto.21

24. O objeto do habeas data consiste em assegurar: a) o direito de o e conhecimento de informaes relativas pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais e de entidades de carter pblico; b) o direito retificao desses dados, importando isso em atualizao, correo e at a supresso, quando incorretos. Consta do art. 5, LXXII, da Constituio.

25. A ao popular brasileira consta do art. 5, LXXIII, nos termos seguintes: qualquer cidado parte legtima para propor ao popular que vise a anular ato lesivo ao patrimnio pblico ou de entidade de que o Estado participe, moralidade istrativa, ao meio ambiente e ao patrimnio histrico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada m-f, isento de custas judiciais e do nus da sucumbncia. , como se nota, um instrumento de defesa de direitos coletivos.

26. Outro meio processual importante a ao civil pblica, que fora disciplinada em uma lei de 1985, mas agasalhada pela Constituio, quando, no art. 129, III, prev, como um das funes institucionais do Ministrio Pblico, promover a ao civil pblica, para a proteo do patrimnio pblico e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, sem prejuzo da legitimao de terceiros. A Lei 7347/85 prev a legitimao das pessoas jurdicas estatais, autrquicas e paraestatais, assim como das associaes destinadas proteo do meio ambiente ou defesa do consumidora, alm do Ministrio Pblico, para proporem a ao civil pblica, que, segundo a mesma lei, o instrumento processual adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artstico, esttico, histrico e paisagstico.22 Percebe-se que esta ao, assim como a ao popular, so meios processuais constitucionais de defesa dos chamados direitos humanos de terceira gerao, o que os retira do limbo das normas constitucionais puramente programticas.

6. Proteo especial

27. No esqueceu a Constituio de consignar proteo especial: a) famlia fundada no casamento, mas tambm unio estvel entre homem e mulher como entidade familiar (art. 226); b) mulher com afirmar sua insofismvel igualdade aos homens (arts. 5, I, e 226, 3; c) aos portadores de deficincia (arts. 203, V, e 227, II); d) aos idosos (arts. 203, V, e 230); e) aos ndios, reconhecendo sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens; f) criana e aos adolescente, em termo expressivos que veremos adiante.

7. Apreciao

28. Essa sntese mostra que a Constituio formula e garante os direitos humanos de maneira ampla e moderna. Mas, como j acenamos antes, a questo dos direitos humanos no est apenas em sua formulao constitucional. J no basta sua positivao e subjetivao para que sejam efetivados no cotidiano da maioria do povo, pois a experincia brasileira tem demonstrado que sua reiterada afirmao nos textos constitucionais no tem sido garantia necessria e suficiente de sua efetividade.23 O povo tem enorme confiana, por exemplo, no mandado de segurana. Mas muitos raramente tm a oportunidade de us-lo, pois milhes de pessoas esto to margem da ordem jurdica que nunca dispem de direito lquido e certo a ser defendido por aquele instrumento. A estrutura social do Pas no favorece a existncia real dos direitos humanos. Estamos vivendo, sim, um momento histrico de amplas liberdades polticas, o que extraordinariamente saudvel e condio necessria para a luta pela a efetivao da promessa de nossa Constituio, quando, no prembulo, se prope a instituir um Estado Democrtico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, e quando afirma, no art. 1, que a Repblica Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrtico de Direito que tem como fundamento, entre outros, a dignidade da pessoa humana.

29. Essa dignidade no ser, porm, autntica e real, enquanto no se construrem as condies econmicas, sociais, culturais e polticas que assegurem a efetividade dos direitos humanos, num regime de justia social. O Pas vive, sim, num regime de amplas liberdades, mas no vive ainda num regime democrtico, se entendermos por democracia um processo de realizao de valores essenciais de convivncia humana, que se traduzem basicamente nos direitos humanos, regime que no pode existir verdadeiramente num pas de grandes misrias, mormente quando este pas o quarto produtor de alimentos do mundo, regime que no pode tolerar a extrema desigualdade, as enormes distncias sociais, onde os 10% mais ricos se apropriam da metade da renda nacional, os 50% mais pobres ficam com apenas 13,6% dessa riqueza, 1% mais rico tem participao praticamente igual (13,13%), onde 65% vivem na pobreza ou misria, dos quais 54% so crianas, 24 milhes de crianas vivem na misria, 23 milhes na pobreza, 33% das famlias ganham menos que um salrio mnimo, e este fica em torno da quantia de 100 dlares mensais.24 O empobrecimento da populao cresce assustadoramente na medida em que uma forte poltica recessiva aplicada, inicialmente, para atender a exigncia de instituies financeiras internacionais e credores de uma dvida externa, contrada irresponsavelmente durante a ditadura militar e por estmulo dos prprios prestadores de dinheiro, e mais recentemente para manter a estabilidade da moeda, com taxas de juros elevadas, que dificultam os investimentos e criao de empregos. A mortalidade infantil aumenta na razo direta da queda dos salrios, do desemprego em massa: na dcada de 80 eram 100 por 1000, hoje a taxa atinge a cerca 170 mortes para cada 1000 nascidos vivos,25 ainda que com o programa do real haja uma tendncia de melhora.

30. Um triste captulo do desrespeito aos direitos humanos, no pas, sempre foi a violncia policial. Durante a ditadura militar essa violncia foi instrumentada, especialmente pela ao das polcias militares dos Estados, j que as Secretarias de Segurana estaduais eram dirigidas por representantes das foras armas, do exrcito principalmente, com a incumbncia de manter a ordem nos Estados em funo do regime. A violncia contra civis era estimulada, criaram-se mecanismos ou unidades policiais com o propsito de eliminar delinqentes civis. Em So Paulo, os Secretrios de Segurana que dirigiram o aparelho policial nos anos de 1970 e incio de 1980 estimularam a violncia da polcia militar mediante atribuio de prmios de bravura, quando o policial eliminava civis, geralmente pobres e negros. H ex-policiais daquele tempo que ainda se gabam de ter matado mais de 50 civis, tidos como bandidos, no raro por mera execuo, e se orgulham das promoes por bravura que receberam. Os anos de 1987 a 1994 foram de grande violncia da polcia militar em So Paulo. S para dar alguns nmeros estarrecedores: no ano de 1991, a polcia militar de So Paulo eliminou mais de 900 civis, cerca de 75 por ms; no ano de 1992, essa mdia subiu para cerca de 100 por ms, sem contar os 111 mortos, de uma s vez, na Casa de Deteno de So Paulo. Quando assumimos a Secretaria de Segurana do Estado de So Paulo, a 1 de janeiro de 1995, a mdia estava em torno de 50. Empreendemos ali, desde o incio, uma luta rdua para reverter esse quadro. Propusemos ao Governador, no primeiro dia de gesto, a criao da Ouvidoria da Polcia Paulista, uma espcie de Ombudsman, destinada a receber denncias, reclamaes e queixas contra abuso de autoridade e corrupo das polcias civil e militar do Estado, o que foi feito por decreto publicado no primeiro dia de governo (1.1.1995). O Ouvidor assumiu em novembro do mesmo ano. Embora combatido pelos maus policiais e por todos aqueles que defendem a violncia policial, j se reconhece que vem prestando enorme servios ao aperfeioamento da ao policial. Criamos, em setembro de 1995, o PROAR-Programa de Acompanhamento de Policial Militar envolvidos em ocorrncias de Alto-Risco, que consiste em retirar do policiamento de rua o policial que tenha eliminado um civil, submetendo-o a uma acompanhamento psicolgico e a uma reciclagem profissional, para que se refaa do trauma em que esteve envolvido. Com isso, a morte de civis que era por volta de 34 mensais (na Capital), ou a ser em torno de 8,5. Do mesmo modo, caiu substancialmente o nmero de policiais mortos em ao. Outra providncia de grande alcance de nossa gesto foi a criao de um seguro, pago inteiramente pelos cofres pblicos, para amparar a famlia de policiais mortos ou invalidados em servio. O prmio do seguro est em torno de 50.000 mil dlares.

31. Outra questo constrangedora, para quem sustenta os valores da dignidade da pessoa humana, est no sistema carcerrio. Em So Paulo, sob a responsabilidade de uma Secretaria especializada (a Secretaria de istrao Penitenciria), temos 43 penitencirias que comportam cerca de 24.000 condenados, incluindo os sistemas fechado e semi-aberto, mas abrigam hoje cerca de 34.000 presos. Pior do que isso, porm, so as carceragens dos distritos policiais e cadeias pblicas, sob a istrao da Secretaria de Segurana Pblica, que dispem de cerca de 14.000 vagas para presos processuais, presos provisrios, mas tm hoje quase 34.000 presos, dos quais cerca de 17.000 so condenados, e, portanto, deveriam estar no sistema penitencirio. H distritos policiais e cadeias com at cinco vezes mais a sua lotao. Tudo isso so problemas que se acumularam nesses ltimos 30 anos, sem que se construssem estabelecimentos adequados para o cumprimento de penas impostas pelo Judicirio. Para corrigir isso, o Governador Mrio Covas, do Estado de So Paulo, por nossa proposta conjuntamente com o Secretrio da istrao Penitenciria, est empreendendo um vasto programa de construo de penitencirias. Talvez um dos programas mais arrojados no mundo nessa matria, pois s se tem notcia de coisa semelhante na Frana, onde um programa desses construiu estabelecimentos prisionais para cerca de 13.000 vagas. Pois, o Governo de So Paulo est construindo 21 penitencirias com mais de 17.000 vagas, e o Governo Federal promete construir mais 13, com cerca de 5.000 vagas. Com isso, estaremos propiciando melhores condies de vida carcerria aos presos, que tm direito a que sua pena no seja agravada com as pssimas condies de encarceramento.

32. justo ressaltar o esforo que o Governo Federal e alguns Governos Estaduais (como o de So Paulo) vm desenvolvendo no sentido de criar mecanismos de proteo aos direitos humanos. O Governo Federal lanou um importante Programa Nacional dos Direitos Humanos e criou no Ministrio da Justia uma Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que vem trabalhando com afinco na efetivao daquele Programa. O Governo de So Paulo tambm, por sua Secretaria da Justia e Defesa da Cidadania, tambm lanou o Programa Estadual dos Direitos Humanos, que vem implementando inclusive com medidas reparatrias de danos pessoais decorrentes de violao de direitos humanos.

33. Vale ainda o texto que escrevemos h algum tempo, ou seja: "A Constituio estrutura um regime democrtico consubstanciando esses objetivos de igualizao por via dos direitos sociais e da universalizao de prestaes sociais (seguridade, sade, previdncia e assistncia sociais, educao e cultura).26 A democratizao dessas prestaes, ou seja, a estrutura de modos democrticos (universalizao e participao popular), constitui fundamentos do Estado Democrtico de Direito, institudo no art. 1. Resta, evidentemente, esperar que essa normatividade constitucional se realize na prtica".27

34. A Constituio tem um dos mais expressivos textos sobre os direitos da criana (art. 227), segundo o qual " dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-la a salvo de toda a forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso". Belo texto, que se l com tristeza diante do quadro que acabamos de mostrar. Assegura o direito alimentao e milhes vivem na extrema desnutrio; garante o direito vida e sade, mas a cada minuto no Brasil morre uma criana que no completou um ano de vida, por deficincia de saneamento bsico e por desnutrio.28 Coloca a criana e o adolescente a salvo da violncia, da crueldade e da opresso, mas, para sentir o contraste, nem necessrio referir-se violncia policial e de grupos de extermnio, basta essa violncia silenciosa da misria que destri milhes.

35. Mas, Senhores, a criana brasileira no precisa de lgrimas, como lembram Drexel e Iannone: ela precisa de comida, remdio, escola, casa, salrio justo para os pais e respeito, como ser humano que . A criana brasileira no precisa de piedade! Ela necessita, isto sim, que lhe sejam devolvidos seus direitos e, como no pode reclam-los sozinha, precisa de todos ns, na posse de nossos deveres e obrigaes de cidados, para que reivindiquemos por ela.29 Precisa, sobretudo, que a comunidade financeira internacional nos deixe trabalhar e produzir para dar vigncia ao dispositivo constitucional que declara que a ordem econmica tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, observado, entre outros princpios, a reduo das desigualdades regionais e sociais.

8. Concluso

36. Gostaria muito, Senhores, de trazer aqui um quadro dos direitos humanos que refletisse, com preciso, a formosa e rica formulao que deles faz a Constituio de 1988. Seria lindo se me ativesse apenas s suas formas que nos confortam na previso de uma sociedade fraterna. Seria mesmo extasiante se eu j pudesse dizer que est inteiramente cumprido o objetivo fundamental da Repblica Federativa do Brasil, previsto no art. 3, I, da Constituio, o de construir uma sociedade livre, justa e solidria. Seria, porm, falso diz-lo agora, mas a utopia um exerccio da mente humana que impulsiona movimentos capazes de atingir metas aparentemente inatingveis. E os dez anos de vigncia da Constituio Federal de 5.10.1988 tm propiciado enorme desenvolvimento da cidadania. Essa conscincia cidad a melhor garantia de que os direitos humanos aram a ter considerao popular, a fazer parte do cotidiano das pessoas, o que o melhor instrumento de sua eficcia, mais cedo ou mais tarde, com repulsa conseqente do arbtrio e do autoritarismo. Se certo que ainda h bolses de desrespeito dos direitos fundamentais do homem e que muitas manifestaes desses direitos ainda no se efetivam na prtica, a conscincia popular deles constitui, indubitavelmente, a melhor garantia de sua vigncia.

37. Muitos perguntam: "O que significa cidadania num pas onde a vida humana perdeu a dignidade?" "Que valor pode ter para um homem o direito de voto, a liberdade de expresso e locomoo, se seus filhos esto raquticos e sem perspectivas de vida?"30 A essas indagaes preciso responder, sem vacilao, que a previso constitucional dos direitos humanos, ainda que no efetivados satisfatoriamente, vale como conjunto de normas jurdicas fundamentais com base nas quais se pode invocar a atividade jurisdicional em busca de amparo efetivo; vale como pauta de valores de convivncia humana que orienta e fundamenta movimentos sociais reivindicatrios da construo da prometida sociedade livre, justa e solidria; vale para que o Ministrio Pblico e outras instituies tenham instrumentos jurdicos em que fundamentem suas aes em favor de categorias desfavorecidas ou discriminadas. Vale para que esse mesmo Ministrio Pblico, a Cmara dos Deputados, as Assemblias Legislativas dos Estados, a Ordem dos Advogados e outras entidades, como as Universidades de So Paulo e de Braslia, possam criar Comisses e Ncleos de defesa dos direitos humanos e contra a violncia, no apenas para estudos tericos, mas para ao prtica, como vem acontecendo, s vezes at com sacrifcios de vida. Sem luta, como vimos antes, a utopia no existe, como no existe a justia, no a justia-princpio absoluto, mas a justia concreta, o fazer justia, a justia como relao justa. Nada mais.

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