Proteo
Constitucional dos Direitos Humanos
no Brasil: Evoluo Histrica e Direito
Atual
Jos Afonso
da Silva 4x5340
1. Direitos
humanos no constitucionalismo brasileiro
1.
A questo tcnica que se apresentou na evoluo
das declaraes de direitos foi a de assegurar
sua efetividade atravs de um conjunto de
meios e recursos jurdicos, que genericamente
aram a chamar-se garantias constitucionais
dos direitos humanos.
Tal
exigncia tcnica determinou que o reconhecimento
desses direitos se fizesse segundo formulao
jurdica positiva, mediante sua inscrio
no texto das constituies.
2.
Assim, como nota Biscaretti di Ruffia, se
deu a subjetivao e a positivao
dos direitos dos indivduos com sua enunciao
constitucional, imprimindo s suas frmulas,
at ento abstratas, o carter concreto
de normas jurdicas positivas, vlidas
para os indivduos dos respectivos Estados,
com previso tambm de outras normas destinadas
a atuar uma precisa regulamentao jurdica,
de modo a no requerer ulteriormente, a
tal propsito, a interveno do legislador
ordinrio.1 Da por diante, as constituies
democrticas aram a trazer um captulo
em que so subjetivados e positivados
os direitos fundamentais do homem.
3.
Constituio Poltica do Imprio do Brasil,
outorgada por D. Pedro I em 25.3.1824, cabe
um lugar de destaque nesse processo de positivao
dos direitos do homem, que ela enunciou,
com as garantias pertinentes, no art. 179
e seus trinta e cinco incisos, onde se declarava
garantida a inviolabilidade dos direitos
de liberdade, igualdade, segurana individual
e propriedade, mas, como disse Pimenta Bueno,
nosso melhor constitucionalista do Imprio,
no s cada um daqueles direitos se dividia
em diversos ramos, mas tambm eles se combinavam
entre si, e formavam outros direitos igualmente
essenciais.2 A encontramos, em enunciado
claro e preciso, os direitos humanos da
primeira gerao at ento conhecidos no
constitucionalismo americano e europeu.
notria, porm, a influncia das declaraes
que acompanhavam as Constituies sas
do final do sculo XVIII. de ressaltar
o conjunto de garantias constitucionais
da liberdade, da dignidade e da privacidade
que ela estatua como direito de segurana
dos indivduos. Em face desse conjunto de
garantias, Pimenta Bueno adiantou-se no
tempo e nos brindou com a seguinte concepo
do direito de segurana: "no estado
social o direito que o homem tem de ser
protegido pela lei e sociedade em sua vida,
liberdade, propriedade, sua sade, reputao
e mais bens seus. finalmente o direito
de no ser sujeito seno ao da lei,
de nada sofrer de arbitrrio, de ilegtimo".3
Mas
a Constituio ia alm da previso dos direitos
tipicamente individuais, pois garantia tambm
o socorro pblico, que mereceu do citado
Pimenta Bueno a concepo de que, desde
que a sociedade fundada, a idia da proteo
como que sinnima da de governo em favor
dos associados, pois, o poder pblico tem
o dever de proteger a vida da pessoa, sua
segurana social e a de seus bens e direitos.4
A Constituio no parava a, avanava adiante,
para garantir a todos o direito instruo
primria gratuita, assim como o ensino mdio
e as universidades onde seriam ensinadas
as cincias e as artes.
4.
Seguramente, a Constituio do Imprio do
Brasil de 1824, que vigorou at 15 de novembro
de 1889, continha uma das mais avanadas
declaraes dos direitos humanos do sculo
ado. No se pode, porm, ocultar o fato
de que os direitos reconhecidos e garantidos
s serviam elite aristocrtica. De fato,
prometia a Constituio um regime liberal,
mas o liberalismo, que se expressava na
Europa da poca "as aspiraes da
burguesia interessada em organizar a sociedade
em bases novas, empenhada em rever valores
tradicionais, em atacar os privilgios da
nobreza e do clero, o poder absoluto dos
reis e organizar o Estado em forma a ter
o seu controle direto", no Brasil
de ento significava apenas "a liqidao
dos laos coloniais. No se pretendia reformar
a estrutura colonial de produo, no se
tratava de mudar a estrutura da sociedade:
tanto assim que em todos os movimentos
revolucionrios se procurou garantir a propriedade
escrava".5
certo, como se afirmou acima, que a Constituio
do Imprio acolheu os direitos individuais
bsicos que se encontravam inscritos na
Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado
de 1789, mas esses direitos s serviam
elite aristocrtica que dominava o regime.
Como bem exprime Emlia Viotti da Costa:
"Para
estes homens, educados europia, representantes
das categorias dominantes, a propriedade,
a liberdade, a segurana garantidas
pela constituio eram reais. No lhes
importava se a maioria da nao se constitua
de uma massa humana para a qual os preceitos
constitucionais no tinham a menor eficcia.
Afirmava-se a liberdade e a igualdade
de todos perante a lei, mas a maioria
da populao permanecia escrava. Garantia-se
o direito de propriedade, mas 19/20
da populao, segundo calculava Tollenare,
quando no era escrava, compunha-se
de moradores vivendo nas fazendas
em terras alheias, podendo ser mandados
embora a qualquer hora. Garantia-se
a segurana individual, mas podia-se
matar impunemente um homem. Afirmava-se
a liberdade de pensamento e de expresso,
mas no foram raros os que como Davi
Pamplona ou Lbero Badar pagaram caro
por ela. Enquanto o texto da lei garantia
a independncia da justia, ela se transformava
num instrumento dos grandes proprietrios.
Aboliam-se as torturas, mas nas senzalas,
os troncos, os anjinhos, os aoites,
as gargalheiras, continuavam a ser usadas,
e o senhor era o supremo juiz decidindo
da vida e da morte de seus homens."
E
conclua: "A fachada liberal
construda pela elite europeizada ocultava
a misria e escravido da maioria dos
habitantes do pas."6
5.
De fato, o regime monrquico no era democrtico.
Embora se tratasse de monarquia constitucional
e representativa, a verdade que os mecanismos
centralizadores e definidores do poder pessoal
do monarca no possibilitavam a vigncia
do princpio democrtico. Sistema eleitoral
censitrio, deputados e senadores eleitos
indiretamente. Senado vitalcio. Organizao
dos poderes segundo a formulao de Benjamin
Constant, ou seja: poder legislativo, poder
moderador, poder executivo e poder judicirio,
onde o poder moderador era definido como
a chave de toda a organizao poltica;
cabia ao Imperador que tambm exercia o
poder executivo por intermdio de seus Ministros.
O drama dos direitos humanos no Brasil sempre
residiu na falta de vigncia da democracia,
como regime de garantia geral da efetiva
realizao dos direitos fundamentais da
pessoa humana. Tivemos muito poucos momentos
democrticos ao longo de nossa histria.
6.
A proclamao da Repblica, em 15.11.1889,
no melhorou muito essa situao. A respectiva
Constituio, promulgada a 24.2.1891, estabeleceu
que a Nao brasileira adotava como forma
de governo a Repblica Federativa,
constituda, pela unio perptua e indissolvel
das suas antigas provncias, em Estados
Unidos do Brasil. Cada provncia virou
Estado da Federao instituda j pelo Decreto
n.1, de 15.11.1891. Perfilhou-se o regime
democrtico representativo. Optou-se pelo
presidencialismo moda norte-americana.
Rompeu com a diviso quadripartita dos poderes
da Constituio do Imprio, agasalhando
a doutrina tripatita de poderes(legislativo,
executivo e judicirio). Firmou a autonomia
dos Estados. Previu a autonomia dos Municpios.
Enfim, a Constituio era um belo arcabouo
formal, tecnicamente bem feita e sinttica
(91 artigos, enquanto a do Imprio tinha
179). Era, no dizer de Amaro Cavalcnti,
o "texto da Constituio norte-americana
completado com algumas disposies das Constituies
suia e argentina". Faltou-lhe,
porm, vinculao com a realidade do pas.
Por isso, no teve eficcia social. No
regeu o meio social para o qual fora feita.
Isso vale tambm para sua famosa Declarao
de Direitos, constante da Seo II do
Ttulo IV, onde assegurava a brasileiros
e estrangeiros residentes no pas a inviolabilidade
dos direitos concernentes liberdade,
segurana e propriedade na
forma discriminada nos 31 pargrafos do
art. 72, acrescidos de algumas garantias
funcionais e militares nos arts. 73 a 77,
indicando no art. 78 que a enumerao no
era exaustiva, regra que ou para as
constituies subseqentes. No apresentou
ela grande diferena em relao Constituio
do Imprio. Acrescentou o direito de associao
e de reunio e incluiu o habeas corpus
como garantia constitucional, mas j no
previu o direito ao socorro pblico, nem
resistncia nem instruo pblica gratuita.
S reconheceu os direitos e garantias
individuais, que, no entanto, tambm
no tiveram efetividade. O pas era dominado
por uma poltica de governadores de Estado,
que se sustentavam no coronelismo,
que foi o poder real e efetivo, apesar das
normas constitucionais traarem esquemas
formais de organizao nacional com base
na teoria da diviso de poderes. O coronelismo
era um fenmeno poltico-social complexo.
O coronel, no caso, no um ttulo militar.
Mas proveio da influncia da Guarda Nacional
que existiu durante certo perodo do Imprio.
"Com efeito, alm dos que realmente
ocupavam nela tal posto, o tratamento de
coronel comeou desde logo a ser dado
pelos sertanejos a todo e qualquer chefe
poltico, a todo e qualquer patenteado."
7
O
coronel era o chefe poltico local, mas
no era s isso. Bem o diz Vtor Nunes Leal:
"Dentro da esfera prpria de influncia,
o coronel como que resume em sua pessoa,
sem substitu-las, importantes instituies
sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla
jurisdio sobre seus dependentes, compondo
rixas e desavenas e proferindo, s vezes,
verdadeiros arbitramentos, que os interessados
respeitam. Tambm se enfeixam em suas mos,
com ou sem carter oficial, extensas funes
policiais, de que freqentemente se desincumbe
com a sua pura ascendncia social, mas que
eventualmente pode tornar efetivas com o
auxlio de empregados, agregados ou capangas."8
nesse mesmo sentido a lio de Edgar Carone:
"O fenmeno do coronelismo tem suas
leis prprias e funciona na base da coero
da fora e da lei oral, bem como de favores
e obrigaes. Esta interdependncia fundamental:
o coronel aquele que protege, socorre,
homizia e sustenta materialmente os seus
agregados; por sua vez, exige deles a vida,
a obedincia e a fidelidade. por isso
que coronelismo significava fora poltica
e fora militar."9
O
regime formava uma pirmide oligrquica,
cujo sistema de dominao se apoiava em
mecanismos eleitorais que deformavam a vontade
popular. O coronel, como liderana
local, arregimentava os eleitores e os fazia
concentrar perto dos postos de votao,
vigiados por sentinelas. Esses locais de
concentrao dos eleitores aram a ser
conhecidos como currais ou quartis
eleitorais, de onde os eleitores saiam
conduzidos por prepostos do coronel para
votar no candidato por ele indicado. Como
o voto era a descoberto (a bico de pena,
como se dizia), o eleitor no tinha como
escapar da vigilncia, at porque as mesas
eleitorais eram tambm formadas de elementos
do coronel. Outro elemento do sistema era
o cabo eleitoral, ainda hoje existente
com menor significao. Seu papel consistia
(e consiste) em angariar votos para os candidatos,
no por exposio de doutrina, mas base
de distribuio de empregos ou favores pessoais.10
O sistema partidrio era unipartidista,
ou seja, havia em cada Estado um partido
poltico apenas, que se denominava Partido
Republicano. Como cada Estado tinha
o seu, tomava ele o patronmico do respetivo
Estado: Partido Republicano Paulista
(o do Estado de So Paulo), Partido Republicano
Mineiro (o do Estado de Minas Gerais)
etc. A Comisso Executiva do Partido,
geralmente composta de cinco membros, dominada
pela oligarquia ou por prepostos dela
que decidia quem seria candidato a deputado
ou senador. Se eventualmente algum no
apoiado nas oligarquias dominantes conseguia
candidatar-se e eleger-se, escapando das
atas eleitorais falsas e outras barreiras,
por certo seria degolado pelo sistema
de reconhecimento de poderes, "feito
em conjunto pela Cmara dos Deputados e
Senado, para apurar a legalidade da eleio,
examinar as atas eleitorais e somar tudo
de novo, pois no havia naquela poca Tribunais
Eleitorais." 11 Pois, como disse
Certrio de Castro: "Eram eleitos,
diplomados e reconhecidos os candidatos
que as comisses executivas dos Partidos
houvessem indicado em seus boletins. Sees
eleitorais ao abandono, livros manipulados
nas casas dos coronis que dirigiam a poltica
municipal, no dia seguinte cada jornal inseria
um resultado." 12
Enfim,
para concluir esse aspecto da organizao
scio-poltica da primeira Repblica, vale
a pena transcrever mais esta agem da
lavra de Lencia Basbaum, que retrata, em
sntese, o regime, que estava muito longe
de ser uma democracia, a despeito da existncia
de uma Constituio que formalmente garantia
os direitos individuais e firmava uma estrutura
de poder liberal e limitado, mas que, no
fundo e em seu funcionamento, formava uma
pirmide oligrquica:
"Era
uma pirmide em cujo pice se encontrava
o Presidente da Repblica, vindo logo
abaixo o Partido Republicano Paulista
e os partidos estaduais; e na base do
arcabouo, o coronel e sua famlia,
amigos, parentes e dependentes, constituindo
as famosas oligarquias estaduais, pequenos
Estados dentro do Estado, que centralizavam
em suas mos os poderes fundamentais
da Repblica: legislavam, julgavam e
governavam."13
A,
a democracia representativa era puramente
formal e a possibilidade de representao
poltica de outros setores sociais, que
no as oligarquias, bastante reduzidas.
E nenhuma possibilidade de vigncia efetiva
dos direitos fundamentais inscritos na Carta
Magna.
7.
A revoluo de 1930 foi uma esperana do
povo que logo se frustrou, com a supresso
do regime constitucional, que s foi reconquistado
mediante a convocao de Assemblia Constituinte
que elaborou a Constituio de 1934,
que vigorou por pouco mais de
trs anos, sobrevindo o golpe de Estado
de 1937 com sua Carta ditatorial, que durou
at a promulgao da Constituio dos
Estados Unidos do Brasil, de 18.9.1946,
a qual trouxe um ttulo sobre
a declarao de direitos, com captulos
sobre os direitos de nacionalidade, os
direitos polticos e os direitos e garantias
individuais. Incorporou ela, como a
de 1934, os chamados direitos humanos de
segunda gerao, consubstanciados num ttulo
sobre os direitos econmicos, sociais e
culturais. Ela regeu o perodo de grande
liberdade democrtica. verdade
que o Pas j estava em franca urbanizao,
com razovel desenvolvimento industrial,
que reunia um operariado sindicalizado que
foi tomando conscincia de sua prpria expresso
poltica. Sob sua gide, contudo, sucederam-se
inmeros conflitos constitucionais que encontraram
um laboratrio na Escola Superior de Guerra,
onde se formulou, por influncia dos Estados
Unidos, a doutrina da segurana nacional
que fundamentou o golpe militar de 1964,
que produziu duas Constituies, nas quais
tambm se previa uma declarao de direitos,
mas o princpio da segurana nacional sobrepairava
sobre a eficcia das demais normas constitucionais,
pela criao de uma normatividade excepcional
sem contemplao para com os direitos humanos
mais elementares, sufocados durante vinte
anos. Tudo poderiam fazer os detentores
do poder: fechar as Casas Legislativas,
cassar mandatos eletivos, demitir funcionrios,
aposentar magistrados, suspender direitos
polticos, invadir domiclios, encarcerar
e at sumir com as pessoas.
8.
A dialtica dos fatos, contudo, mais forte
do que as formas dos regimes, pois, foi
justamente sob esse regime fechado que o
povo foi aprendendo que direitos humanos
no devem constituir-se numa concepo imprecisa
e abstrata, cumprindo mera funo de retrica
poltica, mas ho que ser tidos como sinnimos
de interesses populares, significando moradia,
terra, sindicalizao, resistncia violncia
policial cotidiana, e que as vtimas das
violaes de direitos humanos so procedentes
das classes populares. Refletira sobre o
tema da utopia e da justia de maneira nova,
no como simples ideal, mas como prtica,
pois a "utopia das classes populares
no o que elas pensam, o que elas fazem,
o seu movimento real e concreto de luta.
Sem luta a utopia no existe, como no existe
a justia. A luta travada em vrios nveis
pelos movimentos de direitos humanos criou
novas arenas polticas e novos atores: envolveu
o Judicirio, que parecia pairar acima de
tudo, confrontou o Executivo ao reivindicar
verbas pblicas para os chamados bens de
consumo coletivo (escolas, creches,
postos de sade, etc.)".14 No
se reivindicava nem mesmo a positivao
de situaes novas. Tratava-se de compreender,
em primeiro lugar, que as declaraes de
direitos individuais e sociais no constituem
apenas bons conselhos, e, em segundo lugar,
o reconhecimento de que as garantias dos
direitos humanos no esto apenas na sua
positivao, mas no modo como se aplicam
as normas constitucionais e as leis.
Esses movimentos sociais postularam
por uma nova ordem constitucional em que
os direitos humanos fossem reconhecidos
numa Constituio democrtica, mas sobretudo
que esses direitos declarados tivessem uma
traduo concreta no cotidiano de milhes
de pobres e minorias discriminadas, conscientes
que ficaram de que os direitos humanos,
at ento positivados em nossas Constituies,
no tinham sido ainda capazes de responder
s demandas formuladas pelas classes populares
e de que esta dificuldade no era acidental,
mas parte de um conjunto de relaes econmicas
e polticas, que constituem no Brasil -
e na Amrica Latina em geral - um sistema
social feito para funcionar apenas para
uma parcela da populao.15 Buscava-se no
tanto a construo de um direito novo, mas
uma forma de uso alternativo das formulaes
jurdicas existentes, convertendo seu vetor
elitista no rumo da satisfao dos interesses
gerais do povo
2. Constituio
de 1988
9.
A Constituio de 1988 resultou dessa luta
pela construo de um Estado Democrtico
onde se assegurasse o exerccio dos direitos
humanos fundamentais. Formalmente, ela cumpre
integralmente esse objetivo. Seu Ttulo
II contm a declarao dos direitos fundamentais
do homem, expresso que ela emprega
em sentido abrangente daquelas prerrogativas
e instituies que se concretizam em garantias
de uma convivncia digna, livre e igual
de todas as pessoas. Nela se sintetizam
todas as manifestaes modernas dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
10.
No desceremos a pormenores, que o tempo
no nos permite, basta uma sntese, para
lembrar que a Constituio consagra: a)
os direitos fundamentais do homem-indivduo,
que so aqueles que reconhecem autonomia
aos particulares, garantindo iniciativa
e independncia aos indivduos diante dos
demais membros da sociedade e do prprio
Estado; por isso so reconhecidos como direitos
individuais, ou seja: direitos vida,
privacidade, igualdade, liberdade
e propriedade, especificados no
art. 5, mas, de acordo com o 2 desse
mesmo artigo, os direitos e garantias nele
previstos no excluem outros decorrentes
dos princpios e do regime adotado pela
Constituio e dos tratados internacionais
em que a Repblica Federativa do Brasil
seja parte; b) os direitos fundamentais
do homem-nacional, que so os que
tm por objeto a definio da nacionalidade
e suas prerrogativas (art. 12); c) os
direitos fundamentais do homem-cidado,
que so os direitos polticos (arts.
14-17), os direitos de participao
poltica; d) os direitos fundamentais do
homem-social, que constituem os direitos
assegurados ao homem em suas relaes scio-econmicas
e culturais, de acordo com os arts. 6 a
11, que podem ser agrupados em trs classes:
1) direitos sociais relativos ao trabalhador
(art. 7 e seus incisos), com regras sobre
direito ao trabalho e garantia do emprego,
direitos sobre as condies de trabalho
(negociaes coletivas), direitos relativos
ao salrio (salrio mnimo, salrio noturno
superior ao diurno, irredutibilidade do
salrio), direitos relativos ao repouso
e inatividade do trabalhador, direitos
relativos aos dependentes do trabalhador,
participao nos lucros e co-gesto; direito
de associao sindical e direito de greve
(arts. 8 e 9); 2) direitos sociais
relativos seguridade (art. 6), compreendendo
os direitos sade, previdncia e assistncia
social (arts. 6 e 194 a 204); 3)
direitos sociais relativos educao
e cultura (arts. 6); d) direitos
fundamentais do homem-membro da coletividade,
de que participam alguns tradicionais direitos
de expresso coletiva como os de associao
e de reunio, mas os direitos coletivos
como espcies dos direitos fundamentais
do homem comeam a forjar-se e a merecer
considerao constitucional, assim so os
direitos coletivos informao (art. 5,
XIV e XXXIII, o qual no se confunde com
a liberdade de informao, direito individual)
e representao associativa; direitos
do consumidor (arts. 5, XXXII, e 170, VI)
e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial sadia
qualidade de vida (art. 225).
11.
V-se, por essa sntese apertada, que a
Constituio incorporou tambm os chamados
direitos humanos de terceira gerao, integrados
com os de segundo e os de primeira. Ela
suplanta a tendncia para entender os direitos
individuais como contrapostos aos direitos
sociais e coletivos, que as Constituies
anteriores, de certo modo, justificavam.
Tratava-se de deformao de perspectiva,
pois s o fato de estabelecer-se um rol
de direitos econmicos, sociais e culturais
j importava em conferir contedo novo quele
conjunto de direitos chamados liberais.
Ela agora fundamenta o entendimento de que
as categorias de direitos humanos, nela
previstos, integram-se num todo harmnico,
mediante influncias recprocas, com o que
se transita de uma democracia de contedo
basicamente poltico-formal para uma democracia
de contedo social, pois a anttese inicial
entre direitos individuais e direitos sociais
tende a resolver-se numa sntese de autntica
garantia da vigncia do princpio democrtico,
na medida em que os ltimos forem enriquecendo-se
de contedo e eficcia.
3. Garantias
constitucionais
12.
A afirmao dos direitos humanos no direito
constitucional positivo reveste-se de transcendental
importncia, mas no basta que um direito
seja reconhecido e declarado, necessrio
garanti-lo, porque viro ocasies em que
ser discutido e violado. Ruy Barbosa j
dizia que uma coisa so os direitos,
outra as garantias, pois devemos
separar, "nos textos da lei fundamental,
as disposies meramente declaratrias,
que so as que imprimem existncia legal
aos direitos reconhecidos, e as disposies
assecuratrias, que so as que, em defesa
dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem
os direitos; estas, as garantias: ocorrendo
no raro juntar-se, na mesma disposio
constitucional, ou legal, a fixao da garantia,
com a declarao do direito".16
13.
No cabe aqui uma discusso terica sobre
o tema. Basta observar que o sistema brasileiro
define como garantias todas as prescries
constitucionais que conferem, aos titulares
dos direitos fundamentais, meios, tcnicas,
instrumentos ou procedimentos para impor
o respeito e a exigibilidade desses direitos,
compreendendo garantias individuais, coletivas,
sociais e polticas, tendo em vista a natureza
do direito garantido. Seria fastidioso arrolar
aqui todos os princpios de proteo dos
direitos humanos que a Constituio prescreve,
cujo conjunto constitui os direitos constitucionais
de segurana, como os princpios da
legalidade, da proteo judiciria e do
contraditrio; o direito de ampla defesa
nos processos judiciais e istrativos,
o direito ao devido processo legal, a
estabilidade dos direitos subjetivos
(art. 5), e as diversas garantias penais
etc.17 at porque no raro a eficcia de
algumas dessas garantias depende do uso
de outros remdios constitucionais, parecendo,
assim, mais proveitoso ar ao exame daqueles
que nossa Constituio acolheu. Alguns so
de natureza poltica que revelam importante
faceta da democracia participativa, como
a iniciativa legislativa popular, o referendo
e o plebiscito. Mais relevantes, porm,
so as garantias constitucionais de natureza
processual, como a justia constitucional
e os meios da chamada jurisdio constitucional
da liberdade, que nos merecero um pouco
de ateno em seguida.
14.
Antes porm, cumpre dizer que expressiva
a garantia constante do art. 5o., 1,
segundo o qual as normas definidoras
dos direitos e garantias fundamentais tm
aplicao imediata, o que consagra a
vinculao positiva das autoridades pblicas
s normas e investe o Judicirio no dever
de aplicar diretamente as normas constitucionais
em matria de direitos fundamentais ainda
quando se refiram a uma normatividade posterior.18
4. Justia
constitucional
15.
A justia constitucional consiste
na entrega, a rgo do Poder Judicirio,
da misso de solucionar conflitos constitucionais.
Compreende toda atuao dos tribunais judicirios
destinados a assegurar a observncia das
normas constitucionais, ou, como preleciona
o Mestre Fix-Zamudio, "compreende
los diversos instrumentos calificados como
garantias constitucionales, y que en su
conjunto son objeto de estudio de la disciplina
que se denomina "Derecho Procesal Constitucional".19
16.
S nos ateremos a dois aspectos do tema,
que assumiram destacada importncia na defesa
dos direitos humanos no Brasil: o do
controle da constitucionalidade dos atos
do Poder Pblico e aquele setor que
Cappelletti denominou de jurisdio constitucional
da liberdade.
17.
O controle de constitucionalidade,
no Brasil, hoje, o resultado da experincia
histrica que propiciou o surgimento de
um sistema peculiar que combina os critrios
de controle difuso e de controle
concentrado. Este ltimo se apresenta
mais adequado defesa dos direitos humanos,
por via de ao direta de inconstitucionalidade
perante o Supremo Tribunal Federal, que,
embora no seja um Tribunal Constitucional
segundo o modelo europeu, ou a ter competncia
apenas de jurisdio constitucional, competindo-lhe,
precipuamente, a guarda da Constituio.
S isso, porm, no seria suficiente para
a organizao de um sistema eficaz de proteo
aos direitos humanos, pois tal competncia
j lhe cabia no regime das Constituies
anteriores, e no raro, lamentavelmente,
suas decises sustentaram o arbtrio do
regime militar. Por outro lado, anteriormente,
a legitimao para a ao direta de inconstitucionalidade
pertencia apenas ao Procurador-Geral da
Repblica, que era de livre nomeao e,
pior, de livre exonerao pelo Presidente
da Repblica, de sorte que s promovia as
aes de convenincia do regime. Isso mudou.
Hoje, a legitimao para propor a ao direta
de inconstitucionalidade compete a vrias
autoridades e instituies: I - o Presidente
da Repblica; II - a Mesa (Comisso Diretora)
do Senado Federal; III - a Mesa (Comisso
Diretora) da Cmara dos Deputados; IV -
a Mesa (Comisso Diretora) de Assemblia
Legislativa, que o nome do rgo do poder
legislativo dos Estados-membros; V - o Governador
do Estado; VI - o Procurador-Geral da Repblica;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil; VIII - partido poltico com representao
no Congresso Nacional; IX - confederao
sindical ou entidade de classe de mbito
nacional. Essas instituies, especialmente,
a Ordem dos Advogados, tm utilizado esse
instrumento na defesa da legalidade em geral
e da Constituio em particular. Mas, o
que mais importante, que a Procuradoria-Geral
da Repblica adquiriu autonomia, de modo
que, j por vrias vezes, props ao direta
de inconstitucionalidade de medidas da Presidncia
da Repblica com relativo xito, a despeito
de o Supremo Tribunal Federal ainda no
ter assumido plenamente a sua nova misso
constitucional.
19.
Inovao da Constituio na matria foi
a previso da inconstitucionalidade por
omisso, por influncia da Constituio
portuguesa, que tema relacionado
com a problemtica da eficcia e aplicabilidade
das normas constitucionais. Tem mesmo por
objetivo tornar efetiva a aplicao da Constituio
contra a inrcia dos Poderes Constitudos.
Como a omisso constitucional s se
caracteriza pela falta ou insuficincia
de medidas legislativas e de adoo de medidas
polticas ou de governo, normalmente exigidas
em normas constitucionais definidoras
da ao positiva do Estado em favor das
classes desfavorecidas, bem se pode aquilatar
da importncia do seu controle para a efetivao
de pondervel categoria dos direitos humanos.
Nossa experincia ainda pequena nesse
campo.
5. Jurisdio
constitucional da liberdade
20.
Mais rica nossa experincia no uso dos
instrumentos da chamada jurisdio constitucional
da liberdade. Alm dos meios tradicionais
como o habeas corpus, o mandado de segurana,
a ao popular, a nova Constituio
brinda-nos com novidades, como o mandado
de segurana coletivo, o mandado de injuno,
o habeas-data e a ao civil pblica.
So meios processuais constitucionais
que objetivam o amparo dos direitos humanos.
21.
Habeas corpus - Segundo o art. 5,
LXVIII, da Constituio, "conceder-se-
habeas corpus sempre que algum sofrer ou
se achar ameaado de sofrer violncia ou
coao em sua liberdade de locomoo, por
ilegalidade ou abuso de poder".
Constitui meio de invocar a atividade jurisdicional,
portanto uma ao judicial, que visa salvaguardar
o direito fundamental de ir, vir
e ficar, em que se consubstancia
a liberdade de locomoo.
ite-se,
na doutrina como na jurisprudncia, que
o habeas corpus meio processual
idneo para invocar a jurisdio constitucional,
objetivando a declarao de inconstitucionalidade
de lei ou ato que servir de base atuao
restritiva da liberdade de locomoo.
22.
O mandado de segurana surgiu
como evoluo da doutrina brasileira do
habeas corpus, realizada pela jurisprudncia,
sob a gide do Supremo Tribunal Federal,
na Primeira Repblica, para no deixar sem
remdio certas situaes jurdicas que no
encontravam no quadro das nossas aes a
proteo adequada.20 Evoluo interrompida
pela reforma constitucional de 1926. Ento,
j se desenvolvia a idia de um remdio
apto a amparar direitos lesados pelo
poder pblico, similar ao recurso de amparo
mexicano. Foi assim que o mandado de
segurana foi institudo pelo art. 113,
n 23, da Constituio de 1934, perdurando
nas posteriores, como um remdio processual-constitucional
destinado a proteger direito individual,
lquido e certo, lesado ou ameaado de leso
por autoridade.
A
Constituio de 1988 deu-lhe nova formulao,
concebendo dois tipos: o mandado de segurana
individual e o mandado de segurana
coletivo. O primeiro consta do art.
5, LXIX: "conceder-se- mandado
de segurana para proteger direito lquido
e certo, no amparado por habeas corpus
ou habeas data, quando o responsvel pela
ilegalidade ou abuso de poder for autoridade
pblica ou agente de pessoa jurdica no
exerccio de atribuies pblicas".
O segundo est previsto no inciso LXX
do mesmo art. 5: " o mandado de
segurana coletivo pode ser impetrado por:
a) partido poltico com representao no
Congresso Nacional; b) organizao sindical,
entidade de classe ou associao legalmente
constituda e em funcionamento h pelo menos
um ano, em defesa dos interesses de seus
membros ou associados". O conceito
de mandado de segurana coletivo assenta-se
em dois elementos: a) um institucional
caracterizado pela atribuio da legitimao
processual a instituies associativas para
a defesa de interesses de seus membros ou
associados; outro objetivo consubstanciado
no uso do remdio para a defesa de interesses
coletivos.
Em
qualquer caso, o mandado de segurana
uma ao pela qual o lesado defende seu
direito lquido e certo ou direito coletivo
ou individual do associados e, nessa defesa,
pode argir a inconstitucionalidade da lei
ou ato ofensivo ao direito em causa. Ento,
sim, o mandado pode ser concedido, declarando-se
a inconstitucionalidade da lei ou decreto
em que a autoridade fundamentou o ato ou
o provimento impugnado.
23.
O mandado de injuno um instituto
novo no sistema brasileiro consubstanciado
no art. 5, LXXI, com o seguinte enunciado:
"conceder-se- mandado de injuno
sempre que a falta de normas regulamentadoras
torne invivel o exerccio de direitos e
liberdades constitucionais e das prerrogativas
inerentes nacionalidade, soberania e
cidadania". Constitui, pois,
uma ao constitucional posta disposio
de quem se considere titular de qualquer
daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas,
inviveis por falta de norma regulamentadora
exigida ou suposta pela Constituio. Sempre
sustentamos que o direito reclamado teria
que ser concreto e pessoal. Tambm
sempre sustentamos que o reconhecimento
da falta de normas regulamentadoras do direito,
liberdade ou prerrogativa reclamados
teria que ser diretamente suprida pelo Judicirio.
No entanto, julgados do Supremo Tribunal
Federal reduziram o mandado de injuno
a uma espcie de ao de inconstitucionalidade
por omisso, de sorte que a deciso simplesmente
recomenda a elaborao das normas reguladoras
prevista na Constituio, o que , no nosso
sentir, tornar praticamente intil o instituto.21
24.
O objeto do habeas data consiste
em assegurar: a) o direito de o e conhecimento
de informaes relativas pessoa do impetrante,
constantes de registros ou bancos de dados
de entidades governamentais e de entidades
de carter pblico; b) o direito retificao
desses dados, importando isso em atualizao,
correo e at a supresso, quando incorretos.
Consta do art. 5, LXXII, da Constituio.
25.
A ao popular brasileira consta
do art. 5, LXXIII, nos termos seguintes:
qualquer cidado parte legtima para
propor ao popular que vise a anular ato
lesivo ao patrimnio pblico ou de entidade
de que o Estado participe, moralidade
istrativa, ao meio ambiente e ao patrimnio
histrico e cultural, ficando o autor, salvo
comprovada m-f, isento de custas judiciais
e do nus da sucumbncia. , como se
nota, um instrumento de defesa de direitos
coletivos.
26.
Outro meio processual importante a ao
civil pblica, que fora disciplinada
em uma lei de 1985, mas agasalhada pela
Constituio, quando, no art. 129, III,
prev, como um das funes institucionais
do Ministrio Pblico, promover a ao civil
pblica, para a proteo do patrimnio pblico
e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos, sem prejuzo
da legitimao de terceiros. A Lei 7347/85
prev a legitimao das pessoas jurdicas
estatais, autrquicas e paraestatais, assim
como das associaes destinadas proteo
do meio ambiente ou defesa do consumidora,
alm do Ministrio Pblico, para proporem
a ao civil pblica, que, segundo a mesma
lei, o instrumento processual adequado
para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente,
ao consumidor, a bens e direitos de valor
artstico, esttico, histrico e paisagstico.22
Percebe-se que esta ao, assim como a ao
popular, so meios processuais constitucionais
de defesa dos chamados direitos humanos
de terceira gerao, o que os retira do
limbo das normas constitucionais puramente
programticas.
6. Proteo
especial
27.
No esqueceu a Constituio de consignar
proteo especial: a) famlia fundada
no casamento, mas tambm unio estvel
entre homem e mulher como entidade familiar
(art. 226); b) mulher com afirmar
sua insofismvel igualdade aos homens (arts.
5, I, e 226, 3; c) aos portadores
de deficincia (arts. 203, V, e 227,
II); d) aos idosos (arts. 203, V,
e 230); e) aos ndios,
reconhecendo sua organizao social, costumes,
lnguas, crenas e tradies, e os direitos
originrios sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo Unio demarc-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus
bens; f) criana e aos adolescente,
em termo expressivos que veremos adiante.
7. Apreciao
28.
Essa sntese mostra que a Constituio formula
e garante os direitos humanos de maneira
ampla e moderna. Mas, como j acenamos antes,
a questo dos direitos humanos no est
apenas em sua formulao constitucional.
J no basta sua positivao e subjetivao
para que sejam efetivados no cotidiano da
maioria do povo, pois a experincia brasileira
tem demonstrado que sua reiterada afirmao
nos textos constitucionais no tem sido
garantia necessria e suficiente de sua
efetividade.23 O povo tem enorme confiana,
por exemplo, no mandado de segurana. Mas
muitos raramente tm a oportunidade de us-lo,
pois milhes de pessoas esto to margem
da ordem jurdica que nunca dispem de direito
lquido e certo a ser defendido por aquele
instrumento. A estrutura social do Pas
no favorece a existncia real dos direitos
humanos. Estamos vivendo, sim, um momento
histrico de amplas liberdades polticas,
o que extraordinariamente saudvel e condio
necessria para a luta pela a efetivao
da promessa de nossa Constituio, quando,
no prembulo, se prope a instituir um Estado
Democrtico, destinado a assegurar o exerccio
dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento,
a igualdade e a justia como valores supremos
de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, e quando afirma, no art.
1, que a Repblica Federativa do Brasil
se constitui em Estado Democrtico de Direito
que tem como fundamento, entre outros, a
dignidade da pessoa humana.
29.
Essa dignidade no ser, porm, autntica
e real, enquanto no se construrem as condies
econmicas, sociais, culturais e polticas
que assegurem a efetividade dos direitos
humanos, num regime de justia social. O
Pas vive, sim, num regime de amplas liberdades,
mas no vive ainda num regime democrtico,
se entendermos por democracia um processo
de realizao de valores essenciais de convivncia
humana, que se traduzem basicamente nos
direitos humanos, regime que no pode existir
verdadeiramente num pas de grandes misrias,
mormente quando este pas o quarto produtor
de alimentos do mundo, regime que no pode
tolerar a extrema desigualdade, as enormes
distncias sociais, onde os 10% mais ricos
se apropriam da metade da renda nacional,
os 50% mais pobres ficam com apenas 13,6%
dessa riqueza, 1% mais rico tem participao
praticamente igual (13,13%), onde 65% vivem
na pobreza ou misria, dos quais 54% so
crianas, 24 milhes de crianas vivem na
misria, 23 milhes na pobreza, 33% das
famlias ganham menos que um salrio mnimo,
e este fica em torno da quantia de 100 dlares
mensais.24 O empobrecimento da populao
cresce assustadoramente na medida em que
uma forte poltica recessiva aplicada,
inicialmente, para atender a exigncia de
instituies financeiras internacionais
e credores de uma dvida externa, contrada
irresponsavelmente durante a ditadura militar
e por estmulo dos prprios prestadores
de dinheiro, e mais recentemente para manter
a estabilidade da moeda, com taxas de juros
elevadas, que dificultam os investimentos
e criao de empregos. A mortalidade infantil
aumenta na razo direta da queda dos salrios,
do desemprego em massa: na dcada de 80
eram 100 por 1000, hoje a taxa atinge a
cerca 170 mortes para cada 1000 nascidos
vivos,25 ainda que com o programa do real
haja uma tendncia de melhora.
30.
Um triste captulo do desrespeito aos direitos
humanos, no pas, sempre foi a violncia
policial. Durante a ditadura militar essa
violncia foi instrumentada, especialmente
pela ao das polcias militares dos Estados,
j que as Secretarias de Segurana estaduais
eram dirigidas por representantes das foras
armas, do exrcito principalmente, com a
incumbncia de manter a ordem nos Estados
em funo do regime. A violncia contra
civis era estimulada, criaram-se mecanismos
ou unidades policiais com o propsito de
eliminar delinqentes civis. Em So Paulo,
os Secretrios de Segurana que dirigiram
o aparelho policial nos anos de 1970 e incio
de 1980 estimularam a violncia da polcia
militar mediante atribuio de prmios de
bravura, quando o policial eliminava civis,
geralmente pobres e negros. H ex-policiais
daquele tempo que ainda se gabam de ter
matado mais de 50 civis, tidos como bandidos,
no raro por mera execuo, e se orgulham
das promoes por bravura que receberam.
Os anos de 1987 a 1994 foram de grande violncia
da polcia militar em So Paulo. S para
dar alguns nmeros estarrecedores: no ano
de 1991, a polcia militar de So Paulo
eliminou mais de 900 civis, cerca de 75
por ms; no ano de 1992, essa mdia subiu
para cerca de 100 por ms, sem contar os
111 mortos, de uma s vez, na Casa de Deteno
de So Paulo. Quando assumimos a Secretaria
de Segurana do Estado de So Paulo, a 1
de janeiro de 1995, a mdia estava em torno
de 50. Empreendemos ali, desde o incio,
uma luta rdua para reverter esse quadro.
Propusemos ao Governador, no primeiro dia
de gesto, a criao da Ouvidoria da Polcia
Paulista, uma espcie de Ombudsman, destinada
a receber denncias, reclamaes e queixas
contra abuso de autoridade e corrupo das
polcias civil e militar do Estado, o que
foi feito por decreto publicado no primeiro
dia de governo (1.1.1995). O Ouvidor assumiu
em novembro do mesmo ano. Embora combatido
pelos maus policiais e por todos aqueles
que defendem a violncia policial, j se
reconhece que vem prestando enorme servios
ao aperfeioamento da ao policial. Criamos,
em setembro de 1995, o PROAR-Programa de
Acompanhamento de Policial Militar envolvidos
em ocorrncias de Alto-Risco, que consiste
em retirar do policiamento de rua o policial
que tenha eliminado um civil, submetendo-o
a uma acompanhamento psicolgico e a uma
reciclagem profissional, para que se refaa
do trauma em que esteve envolvido. Com isso,
a morte de civis que era por volta de 34
mensais (na Capital), ou a ser em torno
de 8,5. Do mesmo modo, caiu substancialmente
o nmero de policiais mortos em ao. Outra
providncia de grande alcance de nossa gesto
foi a criao de um seguro, pago inteiramente
pelos cofres pblicos, para amparar a famlia
de policiais mortos ou invalidados em servio.
O prmio do seguro est em torno de 50.000
mil dlares.
31.
Outra questo constrangedora, para quem
sustenta os valores da dignidade da pessoa
humana, est no sistema carcerrio. Em So
Paulo, sob a responsabilidade de uma Secretaria
especializada (a Secretaria de istrao
Penitenciria), temos 43 penitencirias
que comportam cerca de 24.000 condenados,
incluindo os sistemas fechado e semi-aberto,
mas abrigam hoje cerca de 34.000 presos.
Pior do que isso, porm, so as carceragens
dos distritos policiais e cadeias pblicas,
sob a istrao da Secretaria de Segurana
Pblica, que dispem de cerca de 14.000
vagas para presos processuais, presos provisrios,
mas tm hoje quase 34.000 presos, dos quais
cerca de 17.000 so condenados, e, portanto,
deveriam estar no sistema penitencirio.
H distritos policiais e cadeias com at
cinco vezes mais a sua lotao. Tudo isso
so problemas que se acumularam nesses ltimos
30 anos, sem que se construssem estabelecimentos
adequados para o cumprimento de penas impostas
pelo Judicirio. Para corrigir isso, o Governador
Mrio Covas, do Estado de So Paulo, por
nossa proposta conjuntamente com o Secretrio
da istrao Penitenciria, est empreendendo
um vasto programa de construo de penitencirias.
Talvez um dos programas mais arrojados no
mundo nessa matria, pois s se tem notcia
de coisa semelhante na Frana, onde um programa
desses construiu estabelecimentos prisionais
para cerca de 13.000 vagas. Pois, o Governo
de So Paulo est construindo 21 penitencirias
com mais de 17.000 vagas, e o Governo Federal
promete construir mais 13, com cerca de
5.000 vagas. Com isso, estaremos propiciando
melhores condies de vida carcerria aos
presos, que tm direito a que sua pena no
seja agravada com as pssimas condies
de encarceramento.
32.
justo ressaltar o esforo que o Governo
Federal e alguns Governos Estaduais (como
o de So Paulo) vm desenvolvendo no sentido
de criar mecanismos de proteo aos direitos
humanos. O Governo Federal lanou um importante
Programa Nacional dos Direitos Humanos e
criou no Ministrio da Justia uma Secretaria
Nacional de Direitos Humanos, que vem trabalhando
com afinco na efetivao daquele Programa.
O Governo de So Paulo tambm, por sua Secretaria
da Justia e Defesa da Cidadania, tambm
lanou o Programa Estadual dos Direitos
Humanos, que vem implementando inclusive
com medidas reparatrias de danos pessoais
decorrentes de violao de direitos humanos.
33.
Vale ainda o texto que escrevemos h algum
tempo, ou seja: "A Constituio
estrutura um regime democrtico consubstanciando
esses objetivos de igualizao por via dos
direitos sociais e da universalizao de
prestaes sociais (seguridade, sade, previdncia
e assistncia sociais, educao e cultura).26
A democratizao dessas prestaes, ou seja,
a estrutura de modos democrticos (universalizao
e participao popular), constitui fundamentos
do Estado Democrtico de Direito, institudo
no art. 1. Resta, evidentemente, esperar
que essa normatividade constitucional se
realize na prtica".27
34.
A Constituio tem um dos mais expressivos
textos sobre os direitos da criana (art.
227), segundo o qual "
dever da famlia, da sociedade e do Estado
assegurar criana e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito vida,
sade, alimentao, educao, ao lazer,
profissionalizao, cultura, dignidade,
ao respeito, liberdade e convivncia
familiar e comunitria, alm de coloc-la
a salvo de toda a forma de negligncia,
discriminao, explorao, violncia, crueldade
e opresso". Belo texto, que se
l com tristeza diante do quadro que acabamos
de mostrar. Assegura o direito alimentao
e milhes vivem na extrema desnutrio;
garante o direito vida e sade, mas
a cada minuto no Brasil morre uma criana
que no completou um ano de vida, por deficincia
de saneamento bsico e por desnutrio.28
Coloca a criana e o adolescente a salvo
da violncia, da crueldade e da opresso,
mas, para sentir o contraste, nem necessrio
referir-se violncia policial e de grupos
de extermnio, basta essa violncia silenciosa
da misria que destri milhes.
35.
Mas, Senhores, a criana brasileira no
precisa de lgrimas, como lembram Drexel
e Iannone: ela precisa de comida,
remdio, escola, casa,
salrio justo para
os pais e respeito,
como ser humano que . A criana brasileira
no precisa de piedade! Ela necessita, isto
sim, que lhe sejam devolvidos seus direitos
e, como no pode reclam-los sozinha, precisa
de todos ns, na posse de nossos deveres
e obrigaes de cidados, para que reivindiquemos
por ela.29 Precisa, sobretudo, que a comunidade
financeira internacional nos deixe trabalhar
e produzir para dar vigncia ao dispositivo
constitucional que declara que a ordem econmica
tem por fim assegurar a todos existncia
digna, conforme os ditames da justia social,
observado, entre outros princpios, a reduo
das desigualdades regionais e sociais.
8. Concluso
36.
Gostaria muito, Senhores, de trazer aqui
um quadro dos direitos humanos que refletisse,
com preciso, a formosa e rica formulao
que deles faz a Constituio de 1988. Seria
lindo se me ativesse apenas s suas formas
que nos confortam na previso de uma sociedade
fraterna. Seria mesmo extasiante se eu j
pudesse dizer que est inteiramente cumprido
o objetivo fundamental da Repblica Federativa
do Brasil, previsto no art. 3, I, da Constituio,
o de construir uma sociedade livre, justa
e solidria. Seria, porm, falso diz-lo
agora, mas a utopia um exerccio da mente
humana que impulsiona movimentos capazes
de atingir metas aparentemente inatingveis.
E os dez anos de vigncia da Constituio
Federal de 5.10.1988 tm propiciado enorme
desenvolvimento da cidadania. Essa conscincia
cidad a melhor garantia de que os direitos
humanos aram a ter considerao popular,
a fazer parte do cotidiano das pessoas,
o que o melhor instrumento de sua eficcia,
mais cedo ou mais tarde, com repulsa conseqente
do arbtrio e do autoritarismo. Se certo
que ainda h bolses de desrespeito dos
direitos fundamentais do homem e que muitas
manifestaes desses direitos ainda no
se efetivam na prtica, a conscincia popular
deles constitui, indubitavelmente, a melhor
garantia de sua vigncia.
37.
Muitos perguntam: "O que significa
cidadania num pas onde a vida humana perdeu
a dignidade?" "Que valor pode
ter para um homem o direito de voto, a liberdade
de expresso e locomoo, se seus filhos
esto raquticos e sem perspectivas de vida?"30
A essas indagaes preciso responder,
sem vacilao, que a previso constitucional
dos direitos humanos, ainda que no efetivados
satisfatoriamente, vale como conjunto de
normas jurdicas fundamentais com base nas
quais se pode invocar a atividade jurisdicional
em busca de amparo efetivo; vale como pauta
de valores de convivncia humana que orienta
e fundamenta movimentos sociais reivindicatrios
da construo da prometida sociedade livre,
justa e solidria; vale para que o Ministrio
Pblico e outras instituies tenham instrumentos
jurdicos em que fundamentem suas aes
em favor de categorias desfavorecidas ou
discriminadas. Vale para que esse mesmo
Ministrio Pblico, a Cmara dos Deputados,
as Assemblias Legislativas dos Estados,
a Ordem dos Advogados e outras entidades,
como as Universidades de So Paulo e de
Braslia, possam criar Comisses e Ncleos
de defesa dos direitos humanos e contra
a violncia, no apenas para estudos tericos,
mas para ao prtica, como vem acontecendo,
s vezes at com sacrifcios de vida. Sem
luta, como vimos antes, a utopia no existe,
como no existe a justia, no a justia-princpio
absoluto, mas a justia concreta, o fazer
justia, a justia como relao justa. Nada
mais.
|