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Papo
de Negro:
Algumas
Observaes sobre identidade negra e literatura no Brasil 17r5g
Manoel de Souza e
Silva
Papo
de ndio
Veio
uns Omi di saia preta
cheiu
di caixinha e p branco
qui
Eles disserum qui chamava auri
A
Eles falarum e ns fechamu a cara
depois
Eles arrepitirum e ns fechamu o corpo
A
Eles insistirum e ns comemu Eles?.
Chacal
1.
quem este me espelho?
A
busca de identidade do negro brasileiro, percebe-se,6 complicada
por variados aspectos. Entre eles, est um que julgo fundamental:
quais so suas referncias culturais se se olha para a frica?
A Europa colonialista nos ensinou a enxergar na frica o lugar
das (eras, dos canibais, da selvageria. Alis, assim que.
vez por outra o mundo civilizado olha para os outros
mundos o Brasil est, ainda que a contragosto, includo
nesses outros mundos...
A
essa dificuldade no estabelecimento de identidade, de
auto-reconhecimento, agregam-se algumas cristalizaes ideolgicas:
o negro preguioso, predisposto violncia, incapaz de
raciocinar abstratamente e, portanto, seu perfil perfeitamente
adequado condio de escravo e aos trabalhos a ele
destinados.
Esbarramos,
aqui, na falcia da substituio do escravo pelo imigrante: a
explicao racista est, naturalmente, amparada na incapacidade
do negro para certas tarefas. Sales Augusto dos Santos. examinando
a insero do negro no mercado de trabalho no Rio de Janeiro e
em So Paulo, percebe certas diferenas: no h. no Rio de
Janeiro, monoplio dos empregos mais dinmicos da estrutura
ocupacional pelos imigrantes. O contingente de trabalhadores
pretos e pardos na indstria carioca era, j em 1890,
bastante significativo (Santos. 1997). A explicao pode ser
bastante elementar: no havia mo-de-obra
branca/imigrante suficiente/disponvel para as
necessidades do mercado. A atualizao do problema pode nos
levar, por exemplo, a Camaari. Recncavo, Bahia: o que faz l
a Ford? Por que instalar-se em uma terra cuja populao negra s
pode ser comparada numericamente a poucos pases africanos? As
respostas. bvias que do, nos desobrigam de continuar tal exerccio.
Olhemos para o cu e assobiemos.
A
pergunta que surge, inevitavelmente, : por que algum. em
contexto tio adverso, reivindica a qualidade de negro? A resposta
parece apontar para duas possibilidades: primeiramente, porque a
evidncia clama: um negro um negro, assim como as rvores so
rvores e os pssaros precisam de ar; alm disso, a nica
maneira de afirmar sua humanidade usurpada pela dispora e
pela escravido afirmando sua condio de negro.
Tal
afirmao, no Brasil, parece ter sido retardada e mascarada graas
a certos traos especficos da nossa formao humana. Assim,
os nossos processou polticos e sociais incluindo-se,
naturalmente, o escravismo e sua liquidao/abrandamento
foram cadenciados pela negociao. O que
substancialmente diverso do ocorrido em outras latitudes. Frantz
Fanon observou que o negro que nunca foi tifo negro como desde que
dominado pelo Branco, quando decide dar provas de sua cultura,
fazer cultura, apercebe-se de que a histria lhe impe uni
terreno preciso, que a histria lhe aponta tona via precisa e que
ele (Os condenados da terra, s. d. :233).
Jean-PauI
Sartre, em texto que, tristemente, mantm sua atualidade,
percebeu que um judeu, branco entre os brancos, pode negar que
seja judeu, declarar-se homem entre homens. O negro no pode
negar que seja negro ou reclamar para si esta abstrata humanidade
incolor: ele preto (Sartre, 1965: 98).
2.
pode me chamar de nego
A
grande dificuldade do negro brasileiro , talvez, colocar-se na
primeira pessoa: tenho quase cinqenta e dois anos e sou negro h
mais ou menos trinta e dois. Antes da experincia com as
barreiras da cor, aconteceram os embates de origem e de classe:
ser migrante. nordestino e filho de operrio. Diante de circunstncias
em si to adversas, a auto-descoberta de uma identidade negra s
poderia dar-se de maneira agnica.
Trs
homens negros, fundamentalmente, contriburam para to difcil
descoberta e/ou escolha: um jogador de futebol, Pel, que ainda
hoje no tem certeza se negro; um escritor, Lima Barreto, que
sabia que era negro num pas que queria ser europeu, e por ele
achincalhado, especialmente em Os Bruzundangas. Afilhado do
Visconde de Ouro Preto, chefe do ltimo gabinete de imprio, viu
aos sete anos - Lima nasceu em 13 de maio de 1881, uma sexta-feira
treze - seu padrinho partir com o deposto Imperador Pedro II. No
Brasil, como se sabe, pobre sem padrinho ou negro sem padrinho
no funciona ... O terceiro negro era um boxeador, Cassius
Marcelus Clay, que atirou fora seu nome de escravo e se tornou
Muhamed Ali. Rebelou-se contra a mquina de guerra da Amrica
que o queria no Vietn. Recusou-se. Foi preso. Execrado. Aprendi,
tambm com ele, que havia homens no Vietn e na frica, partes
miserveis e desprezveis da humanidade.
3.
tu s assim?
O
exame mais ligeiro da produo literria brasileira desvela, de
maneira inequvoca, as linhas fortes que vincam o retrato do
brasileiro afro-descendente. J no sculo XVII, a obra de Gregrio
de Matos revela o quo perturbadora pode ser a presena negra. O
poema JUZO ANATMICO DOS ACHAQUES QUE PADECIA O CORPO DA REPBLICA,
EM TODOS OS MEMBROS, E INTEIRA DEFINIO DO QUE EM TODOS OS
TEMPOS A BAHIA vergasta, embebido em rejeio e escrnio:
Quais
so os seus doces objetos?....... Pretos.
Tem
outros bens mais macios? ......... Mestios.
Quais
destes lhe so mais gratos? ...... Mulatos.
Dou
ao demo os insensatos,
Dou
ao demo a gente asnal,
Que
estima por cabedal
Pretos,
mestios, mulatos.
Um
dos exemplos mais elucidativos a respeito da imagem do
afro-brasileiro pode ser encontrado na obra de padre Antnio
Vieira. O seu XXVII Sermo, pregado irmandade Nossa Senhora
do Rosrio, que congregava os homens pretos, uma
impressionante tentativa de buscar equilbrio em uma situao
que , por essncia, desequilibrada a escravido. Assim,
quando o bom Vieira fala das agruras do cativeiro, procura ser
claro:
Vs
porm que viestes, ou fostes trazidos das vossas ptrias para
estes desterros, alm da Segunda e universal transmigrao,
tendes outra, que da Babilnia, em que mais ou menos moderado.
continuais o vosso cativeiro. E para que saibais como vos deveis
portar nele, e no sejais vs mesmos os que o acrescenteis, vos
quero, primeiro que tudo, explicar qual ele e em que consiste.
Procurarei que seja com tal clareza, que todos me entendais. Mas
quando assim no suceda <porque a matria pede maior
capacidade da que podeis ter todos) ao menos como dizia Santo
Agostinho na vossa frica, contentar-me-ei que me entendam vossos
senhores e senhoras; para que eles mais devagar vos ensinem o que
a vs e tambm a eles muito importa saber.
A
retrica vai at onde necessrio que v, nem que chegue ao
paroxismo:
Sabei
pois, todos os que sois chamados escravos, que no escravo
tudo o que sou.
Todo
o homem composto de corpo e alma; mas o que e se chama
escravo, no todo o homem, seno s metade dele.
Torna-se
necessrio no estar a matria suficientemente clara?
reiterar:
De
maneira, irmos pretos, que o cativeiro que padeceis, por mais
duro e spero que seja ou vos parea, no cativeiro total ou
de tudo que sois, seno meio cativeiro. Sois cativos naquela
ametade exterior e mais vil de vs mesmos, que o corpo; porm
na outra ametade interior e nobilssima, que a alma,
principalmente no que a ela pertence, no sois cativos, mas
livres.
A
tentativa de harmonizao, via aplainamento das contradies,
valer-se-, no extremo, das promessas celestiais:
Os
que vos ho de servir no Cu, no ho de ser vossos
senhores, que muito pode ser que no vo l; mas quem vos h
de servir o mesmo Deus em pessoa. Deus do que vos h de servir
no Cu, porque vs o servistes na terra. Ouvi agora com ateno.
Antigamente,
entre os deuses dos gentios, havia um que se chamava Saturno, o
qual era o deus dos escravos, e quando vinham as festas de
Saturno, que por isso se chamavam saturnal,, uma das solenidades
era que os escravos naqueles dias eram os senhores que estavam
assentados, e os senhores os escravos que os serviam em p. Mas
acabada a festa tambm se acabava a representao daquela comdia,
e cada um ficava como de antes era. No Cu no assim; porque
tudo l eterno e as festas no tm fim. E quais sero no Cu
as festas dos escravos? Muito melhores que as saturnais.
Porque todos aqueles escravos que neste mundo servirem a seus
senhores como a Deus, no so os senhores da terra os que os ho
de servir no Cu, seno o mesmo Deus em pessoa o que os h de
servir
Lima
Barreto, em Vida e morte de M. J. Gonzaga de S (So Paulo:
Brasiliense, 1956), d o mais bem acabado exemplo da fragilidade
de nossa democracia racial. O romance, publicado em 1919,
omite cena da verso original provavelmente escrita em
19061907 em que Aleixo Manuel, afilhado de Gonzaga de S,
entra em casa, aos prantos, dizendo que me chamaram de
macaco. Um exame ligeiro das ofensas raciais no Brasil de hoje,
mostraria que estamos muito mais prximos de 1906-1907 do que
sonha nossa dileta fraternidade humana.
A
obra potica do modernista Oswald de Andrade pode ser de extrema
valia, se se quer apreender as mudanas na percepo das
imagens negras brasileiras. Nos seus "Poemas da colonizao,
por exemplo, o motivo da formao da alma brasileira to
caro pelo menos desde o sculo XVIII, com a poesia nativista
ser trabalhado de maneira bastante distinta das manifestaes
anteriores e/ou mesmo contemporneas a Oswald. A par da
experimentao formal, Oswald injetou nos poemas componentes que
vo agregar-se ao que ele parece compreender como tal alma
brasileira. Assim, a escravido e suas vicissitudes recebem
tratamento que vai atribuir ao homem negro-africano papel
fundamental na consolidao de tal anima. O cotidiano do
escravo ser vasculhado. formando uma espcie de afresco:
Negro
fugido
O
Jernimo estava numa outra fazenda
Sovando
pilo na cozinha
Entraram
Grudaram
mie/e
O
pilo tombou
Ele
tropeou
E
caiu
Montaram
nele
Tal
cotidiano perde. em Oswald, o trao endulcorante:
Cena
O
canivete voou
E
o negro comprado na cadeia
Estatelou
de costas
E
bateu coa cabea mia pedra
A
recuperao a, por vezes, pelo trao antropolgico:
A
roa
Os
cem negros da fazenda
Comiam
feijo e angu
Abbora
chicria e cainhuquira
Pegavam
uma roda de carro
Nos
braos
De
nossa alma, "crivada de raas, Oswald vai relevar
nossas abuses, nossos medos:
Caso
A
mulatinha morreu
E
apareceu
Berrando
no moinho
Sacando
pilo
E
mesmo a crueldade, cantada to heroicamente por Castro Alves
leia-se, por exemplo, Tragdia no lar, tornar-se- maior
porque soprada pelo minimalismo oswaldiano:
Medo
da senhora
A
escrava pegou a filhinha nascida
Nas
costas
E
se atirou no Paraba
Para
que a criana no fosse judiada
Oswald,
reconhea-se a dvida, graas sua prodigiosa capacidade de
polemizar, graas ao seu esprito de porco, faz o Brasil,
aspirante a nao europia, debruar-se sobre sua alma negra e
nela perceber os imensos caudais de contradio, violncia e
beleza que nos geraram.
O
capoeira
-
Qu apanh sordado?
-
O qu?
-
Qu apanh?
Pernas
e cabeas na calada
Pode-se
afirmar. sem grandes sobressaltos, que toda a obra do Mrio de
Andrade ambiciona apreender o Brasil e os seres que o habitam
e que gostam de caninha, da pimenta e de amar
suspirado. Momento alto da composio de tal retrato pode ser
encontrado no captulo Piaim, de Macunama. Em dois
momentos, subsequentes, somos confrontados com o quem
somos. O teor mtico da narrativa, tingida por tons farsescos,
quer ser revelador.
Uma
feita a Sol cobrira os trs manos duma escaminha de suor e Macunama
se lembrou de tomar banho. Porm no rio era impossvel por causa
das piranhas to vorazes que de quando em quando na luta pra
pegar um naco da irm espedaada, pulavam aos cachos pra fora
metro e mais. Ento Macunama enxergou numa lapa bem no meio do
rio uma cova cheia dgua. E a cova era que-nem a marca dum p-gigante.
Abicaram. O heri depois de muitos gritos por causa do frio da gua
entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a gua era encantada
porque aquele buraco na lapa era marca do pezo do Sum, do
tempo em que andava pregando evangelho de Jesus pr indiada
brasileira. Quando o heri saiu do banho estava branco louro e de
olhos azuizinhos. gua lavara o pretume dle. E ningum no
seria capaz de indicar nle um filho da tribo retinta dos
Tapanhumas.
Nem
bem Jigu percebeu o milagre, se atirou na marca do pezo do Sum.
Porm a gua j estava muito suja da negrura do heri e por
mais que Jigu esfregasse feito maluco atirando gua pra todos
os lados s conseguiu ficar da cr do bronze novo. Macunama
teve d e consolou:
-
Olhe, mano Jigu, branco voc ficou no, porm pretume foi-se
e antes fanhoso que sem nariz.
Maanape
ento que foi se lavai; mas ligue esborrfara toda gua para
fora da cova. Tinha s um bocado l no fundo e Moanape conseguiu
molhar s a palma dos ps e das mos. Por isso ficou negro
bem filho da tribo dos Tapanhumas. S que as palmas das mos e
dos ps dle so vermelhas por serem se limpado na gua santa.
Macunama leve d e consolou:
-
No se a vexe. mano Maanape. no se avexe no, mais sofreu
nosso tio Judas!
O
momento seguinte, com sua poesia encantatria, desgua na
concluso: no h concluso. no h sntese possvel.
Resta-nos, portanto, continuar a busca de nossa imagem nossa
identidade, nosso auto-reconhecimento abrindo mio desta nossa
obsesso.
E
estava lindssima na Sol da lapa os trs manos um louro um
vermelho outro negro, de p bem erguidos e nus. Todos os seres do
mato espiavam assombrados. O jacarena, o jacartinga, o jacar-au
o jacar-ururau de papo amarelo, todos Esses jacars botaram os
olhos de rochedo pra fora dgua. Nos ramos das igzeiras das
aningas das mamoranas das embabas dos catauaris de beira-rio o
macaco-prego o macaco-de-cheiro o guariba o bugio o cuat o
barrigudo o coxi o cairara, todos os quarentas macacos do
Brasil, todos, espiavam babando de inveja. E os sabis. o sabicia
o sabipoca o sabiuna o sabipiranga o sabigonga que quando
come no me d, o sabi-barranco o sabi-tropeiro o sabi-laranjeira
o sabi-gute todos Esses ficaram pasmos e esqueceram de acabar
o trinado, vozeando vozeando com eloquncia. Macunaima teve dio.
Botou as mos nas ancas e gritou pr natureza:
-
Nunca viu no!
Ento
os seres naturais debandavam vivendo e os trs manos seguiram
caminho outra vez.
Se
a cultura letrada brasileira lida com certas precaues. acaba
por evidenciar traou de nossa formao que as ideologias
oficiais preferem escamotear. A abordagem de exemplares de
cultura popular pode fornecer pistas muito ricas para a
presente discusso. Fiquemos, a ttulo de exemplo, com dois
sambas: Padilha e O neguinho e asenhorita. No
primeiro deles, Chico Cabeleira, que se diz estivador, barrado
por policiais. Somos informados de que o her6i vinha l da
gafieira, com sua nega Ceclia. A truculncia policial
a pelos pescoes e xingamentos: Chico Cabeleira
tratado como salafra e achacado?, enquanto Ceclia
recebe os eptetos de mina, macaca, tiziu. O
desenlace , estranhamente, travado trgico e cmico
mesclando-se, imperfeita mistura.
O
segundo exemplar mais revelador, uma vez que, nele, os
mecanismos de obliterao do mais sofisticados. O neguinho da
cano um pobre que vive na colina no se pronuncie a
palavra maldita: morro. A senhorita, filha da madame, abandona seu
meio e vai viver na colina com o seu neguinho comprovando que o
amor tudo vence, etc. Lida, entretanto, com alguma maldade,
acaba por revelar, inequivocamente, a tentativa de apagamento de
nossa propalada convivncia harmnica, fraterna, etc.
5. Campos de
Carvalho edifica a concluso:
S
H UMA VERDADE ABSOLUTA:
TODO
RACISTA UM FILHO DA PUTA.
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