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O que o TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL 1n1ss

Comisso de Direitos Humanos Cmara dos Deputados fevereiro de 2000 295a5u


APRESENTAO

Uma das principais lutas travadas pela Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados no mbito internacional tem sido a campanha pela criao do Tribunal Penal Internacional (TPI). Em 1999 essa meta foi perseguida com a realizao de diferentes eventos e articulaes. Representantes da Comisso defenderam a aplicao mais efetiva do princpio da justia universal por meio da criao de um tribunal penal permanente, capaz de se sobrepor s jurisdies internas de cada pas. Esta nova jurisdio, preciso ressaltar, no estrangeira, mas internacional, da qual todo Estado-Parte titular. Ao itir essa jurisdio, no estaremos, portanto, sacrificando nada de nossa soberania nacional, mas complementando nossos esforos para a efetivao dos direitos humanos to valorizados em nossa Constituio.

Os tribunais temporrios ad hoc criados aps conflitos j instaurados, como o de Nuremberg, que julgou os criminosos da II Guerra Mundial, e mais recentemente, o de Ruanda e o da Ex-Iuguslvia, para apreciar os crimes ocorridos na Bsnia e Kosovo diferem-se do TPI. Este ser permanente e com jurisdio para todos os pases membros da ONU. Processar e julgar pessoas fsicas que tenham cometido crimes graves como o de genocdio, crimes de guerra, contra a humanidade e de agresso.

A globalizao ora em curso no campo econmico demanda a correspondente globalizao no campo dos Direitos Humanos. E a efetivao universal dos direitos humanos requer instncias jurdicas capazes de julgar os violadores dos direitos da pessoa humana. A importncia deste Tribunal manifesta principalmente num momento em que o mundo assiste ao ressurgimento de conflitos armados em decorrncia de questes tnicas e religiosas.

Se j existisse esta Corte Penal Internacional, o ex-general Augusto Pinochet, responsvel por uma das ditaduras mais sanguinrias da Amrica Latina, seria certamente um dos rus submetidos jurisdio internacional. Em setembro de 1973, o ex-general deu incio a um golpe militar contra o Chile do governo socialista Salvador Allende, que culminou na morte de 3.197 militantes de esquerda. A barbrie durou 15 anos, sem que a justia chilena condenasse os culpados responsveis pelo golpe e violaes que se sucederam. Foi preciso que outros pases tomassem a iniciativa em punir, visto que, pela jurisdio interna, os crimes cometidos ficariam anistiados e prescritos, dadas as contingncias polticas do Chile.

Ao que pese a idade avanada e a sade debilitada do ex-ditador, a priso de Pinochet em Londres e sua extradio significou um o importante para demonstrar a relevncia de uma justia internacional, imparcial e forte, que consiga fazer os direitos humanos soprepujarem o direito interno de cada pas. Se a justia nacional no pune seus criminosos, h de haver uma justia no plano internacional capaz de priorizar os valores da vida, liberdade e democracia. Desta forma, o Tribunal representar um expressivo avano, um freio a inibir o surgimento de carrascos e ditadores e um meio de punir os que surgirem.

Obviamente, a jurisdio ser incidente em casos raros, quando o pas demonstrar omisso em processar os acusados e desrespeitar a legislao penal e processual interna.

Em julho de 1998, na Conferncia Diplomtica de Plenipotencirios das Naes Unidas, em Roma, foi aprovado o Estatuto do Tribunal, o qual estabelece as condies de funcionamento desta jurisdio criminal internacional. O Estatuto define as regras e princpios em que o futuro Tribunal ir funcionar.

O Brasil, atravs de seu corpo diplomtico, mesmo antes desta conferncia j participava de uma Comisso Preparatria para o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional e teve atuao destacada no processo de criao deste Tribunal. Podemos dizer que nossos representantes internacionais tudo fizeram para colocar em pratica o art. 7 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias, da Constituio Federal, que preceitua: "O Brasil propugnar pela formao de um tribunal internacional dos direitos humanos".

No final de 1999, a Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados se fez representar, por este presidente, na terceira reunio da Comisso Preparatria para o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional na sede da ONU, em Nova Iorque. Convidado por uma organizao-no governamental internacional, a "Parliamentarians For Global Action", participamos desse importante evento em que debatemos como as legislaes nacionais devem se adaptar nova jurisdio internacional. Voltamos convictos de que os bices que tm sido apresentados nesse sentido podem facilmente ser removidos, caso haja vontade poltica para fazer prevalecer os valores e princpios maiores, derivados da Declarao Universal dos Direitos Humanos e claramente contemplados pela nossa Constituio.

Este, alis, foi o entendimento geral observado na Audincia Pblica realizada pela Comisso de Direitos Humanos em 2 de fevereiro de 2000. Representantes dos organismos de Estado ligados aos direitos humanos, bem como os parlamentares e ativistas presentes, no opam barreiras para a harmoniosa adaptao de nosso ordenamento jurdico jurisdio da nova corte internacional.

Em 7 de fevereiro de 2000 o Brasil assinou o tratado referente ao estatuto de Roma. Em breve, o Congresso Nacional dever apreciar a futura ratificao. Estaremos dando um o histrico decisivo na evoluo dos Direitos Humanos.

Deputado Nilmrio Miranda
Presidente da Comisso de Direitos Humanos

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PARA UMA MELHOR COMPREENSO DO PAPEL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

O leitor ter, a seguir, trs artigos extremamente instrutivos, cada qual com uma abordagem especfica, teis para uma melhor compreenso do papel a ser exercido pelo Tribunal Penal Internacional. O histrico dos debates que culminaram na estruturao da proposta do Estatuto do TPI, suas bases jurdicas e suas funes, bem como a notvel participao brasileira nas reunies preparatrias esto a relatados com confiabilidade por algumas das principais autoridades no assunto.

A Dra. Sylvia H. F. Steiner desembargadora federal, especialista em Direito Penal pela UnB e mestre em Direito Internacional pela USP, alm de membro do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais e da Associao Juzes para a Democracia.

O professor Tarciso Dal Maso Jardim especialista em Direito Internacional. Ele participou, como observador representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos, da Conferncia Diplomtica das Naes Unidas, em Roma, em 1998, quando foi aprovado o Estatuto do Tribunal.

O professor Antnio Paulo Cahapuz de Medeiros, por sua vez, consultor jurdico do Ministrio das Relaes Exteriores e doutor em Direito Internacional pela USP. Ele chefiou as delegaes brasileiras s Reunies da Comisso Preparatria do Tribunal Penal Internacional.

A Comisso de Direitos Humanos solicitou aos trs professores artigos que resumem palestras por eles pronunciadas em audincia pblica acerca do tema, os quais transcrevemos a seguir.

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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E A CONSTITUIO BRASILEIRA
Antnio Paulo Cachapuz de Medeiros

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional uma conveno multilateral, celebrada com o propsito de constituir um tribunal internacional, dotado de personalidade jurdica prpria, com sede na Haia.

O Estatuto compe-se de prembulo e treze partes (I-estabelecimento do Tribunal; II-competncia, issibilidade e direito aplicvel; III-princpios gerais de Direito Penal; IV-composio e istrao do Tribunal; V-inqurito e ao penal; VI-processo; VII-penas; VIII-recurso e reviso; IX-cooperao internacional e auxlio judicirio; X-execuo da pena; XI-Assemblia dos Estados Partes; XII-financiamento; XIII-clusulas finais), com um total de 128 artigos.

O prembulo proclama a determinao dos Estados em criar um Tribunal Penal Internacional, com carter permanente e independente, complementar das jurisdies penais nacionais, que exera competncia sobre indivduos, no que respeita aos crimes mais graves que afetem o conjunto da comunidade internacional.

Esses crimes, que no prescrevem, so os seguintes: crime de genocdio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agresso. O Tribunal s ter competncia relativamente aos referidos crimes cometidos aps a entrada em vigor do Estatuto. Se um Estado se tornar Parte no Estatuto depois da sua entrada em vigor, o Tribunal s poder exercer a sua competncia em relao aos crimes cometidos depois da entrada em vigor do Estatuto nesse Estado.

Segundo o Estatuto, o Tribunal ser pessoa de Direito Internacional e ter a capacidade jurdica necessria ao desempenho de suas funes e realizao de seus objetivos. Seu vnculo s Naes Unidas se dar mediante um acordo, a ser aprovado pela Assemblia dos Estados Partes no Estatuto e assinado pelo Presidente do Tribunal em nome deste.

Inicialmente, o Tribunal Penal Internacional ser integrado por 18 juzes, nmero que poder ser aumentado ou diminudo por proposta do Presidente, mediante aprovao da Assemblia dos Estados Partes. esta tambm que eleger os juzes, de nacionalidades diferentes, para um mandato de nove anos, vedada a reeleio. No primeiro escrutnio, um tero dos juzes ser eleito para mandato de trs anos, um tero para mandato de seis e um tero para mandato de nove anos. Um juiz eleito para mandato de trs anos ou para prover vaga em perodo igual ou inferior a trs anos, poder ser reeleito para mandato completo de nove anos. Os juzes sero independentes no desempenho de suas funes.

O Tribunal ser composto pelos seguintes rgos: a) A Presidncia; b) Uma Seo de Recursos, uma Seo de Primeira Instncia e uma Seo de Questes Preliminares; c) o Gabinete do Promotor; d) a Secretaria.

Destaca-se na composio do Tribunal a figura do Promotor, que ser eleito em escrutnio secreto por maioria absoluta de votos pela Assemblia dos Estados Partes, para mandato de nove anos, vedada a reeleio. Caber ao Promotor recolher comunicaes e qualquer outro tipo de informao, devidamente corroborada, sobre crimes da competncia do Tribunal, a fim de os examinar, investigar e de exercer a ao penal junto ao Tribunal. Cumprir suas funes com toda a imparcialidade e liberdade de conscincia, assim como os juizes.

Os Estados Partes no Estatuto devero cooperar plenamente como Tribunal na investigao e no julgamento de crimes de sua competncia, bem como assegurar-se de que seu Direito Interno preveja procedimentos aplicveis a todas as formas de cooperao especificadas no Estatuto.

O Tribunal decidir sobre a no issibilidade de um caso, se este for objeto de inqurito ou de processo no Estado que tiver jurisdio sobre o mesmo, salvo se este no estiver disposto a levar a cabo a investigao ou o processo ou no tiver capacidade para o fazer; ou se o caso tiver sido objeto de inqurito pelo Estado que tiver jurisdio sobre o mesmo e este decidiu no continuar a ao penal contra a pessoa em causa, a menos que esta deciso resulte do fato de que esse Estado no est disposto a levar a cabo o processo ou da sua incapacidade para o fazer; ou a pessoa em causa tiver sido j julgada pelo comportamento a que se refere a denncia; ou o caso no for suficientemente grave que justifique a adoo de outras medidas pelo Tribunal.

Para determinar se um Estado demonstra ou no vontade de agir em um determinado caso, o Tribunal verifica se o processo foi instaurado ou est pendente, ou se a deciso nacional foi adotada com o propsito de subtrair a pessoa em causa sua responsabilidade penal por crimes da competncia do Tribunal; se houve demora injustificada no processo que, dadas as circunstncias, seja incompatvel com a inteno de fazer comparecer a pessoa em causa ao Tribunal; ou, se o processo no foi ou no est sendo conduzido de maneira independente ou imparcial, mas de uma maneira que, dadas as circunstncias, seja incompatvel com a inteno de fazer comparecer a pessoa em causa ao Tribunal.

Acima de tudo, a fim de determinar a issibilidade de um caso, o Tribunal verifica se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva istrao nacional da Justia ou indisponibilidade desta, no est em condies de fazer comparecer em juzo o acusado, de reunir os meios de prova e depoimentos necessrios, ou no est, por outros motivos, em condies de concluir o processo.

O Estatuto confere ao Conselho de Segurana das Naes Unidas a faculdade de solicitar ao Tribunal, mediante resoluo aprovada nos termos do disposto no Captulo VII da Carta da ONU, que no inicie ou que suspenda, por um prazo no superior a doze meses, o inqurito ou o processo que tiver sido iniciado. O pedido pode ser renovado por perodos iguais e o Tribunal fica obrigado a no iniciar o inqurito ou a suspender o processo.

Existir uma Assemblia dos Estados Partes, que se reunir na sede do Tribunal ou na sede da ONU uma vez por ano, ou, extraordinariamente, sempre que as circunstncias o exigirem. Cada Estado Parte ter um voto na Assemblia. Suas funes concentram-se no estabelecimento de linhas de orientao geral no que toca istrao do Tribunal e no exame e aprovao do oramento do mesmo.

As despesas do Tribunal sero financiadas pelas quotas dos Estados Partes e pelos fundos provenientes da ONU.

O Estatuto veda expressamente a possibilidade de sua ratificao com reservas.

Est aberto de todos os Estados na sede da ONU, em Nova York, at 31 de dezembro de 2000.

Entrar em vigor no primeiro dia do ms seguinte ao termo de um prazo de 60 dias aps a data do depsito do sexagsimo instrumento de ratificao, de aceitao, de aprovao ou de adeso junto ao Secretrio-Geral das Naes Unidas.

Sete anos aps a entrada em vigor do Estatuto, o Secretrio-Geral das Naes Unidas convocar uma Conferncia de Reviso, para examinar eventuais alteraes ao texto.

Esto ainda pendentes de aprovao os elementos dos crimes, que ajudaro o Tribunal a interpretar e aplicar as regras do Estatuto que tipificam os crimes; as regras de processo e prova; e a definio do crime de agresso. Os elementos dos crimes e as regras de processo e prova sero objeto de aprovao por maioria de dois teros da Assemblia dos Estados Partes. Por isso, continua em atividade a PrepCom, visando preparar esses componentes essenciais ao funcionamento do Tribunal.

A criao de um tribunal internacional permanente para processar e julgar indivduos acusados de cometer graves crimes que constituam infraes ao prprio Direito Internacional genocdio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agresso constitui antiga aspirao da sociedade internacional.

Os atentados hediondos praticados contra a dignidade do ser humano durante a Segunda Guerra Mundial exigiram que fossem institudos os tribunais de Nurembergue e de Tquio. Recentemente, o Conselho de Segurana das Naes Unidas, com a participao e o voto favorvel do Brasil, impulsionou a criao de mais dois tribunais criminais temporrios: um para julgar as atrocidades praticadas no territrio da antiga Iugoslvia e outro para julgar crimes de idntica gravidade cometidos em Ruanda.

No obstante a conscincia coletiva de que atos monstruosos contra a humanidade merecem a devida punio, os tribunais acima mencionados no ficaram imunes crticas contundentes em virtude de seu carter temporrio. Referindo-se ao Direito Internacional Penal, Celso de Albuquerque Mello assevera no seu Curso de Direito Internacional Pblico: de se salientar que este Direito extremamente fraco devido ausncia de uma justia internacional penal.[1]

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional pretende suprir essa lacuna apontada pelos maiores expoentes da doutrina do Direito Internacional.

Uma das principais qualidades do Estatuto reside na afirmao do princpio da responsabilidade penal de indivduos pela prtica de delitos contra o Direito Internacional. Situar o indivduo como sujeito de direitos e deveres no plano internacional constitui idia corrente desde os tempos em que Hugo Grotius lanou as bases do moderno Direito das Gentes. O grande jurista holands divergiu da noo corrente no sculo ado com vertentes ainda vivas na atualidade de que o Direito Internacional deve restringir-se a disciplinar as relaes entre os Estados. A evoluo acelerada da proteo internacional dos Direitos Humanos aps a Segunda Guerra Mundial conduziu a profundas alteraes sobre o papel do indivduo no cenrio internacional, enfatizando , primeiramente, os direitos, e, a seguir, os deveres individuais. Destarte, a idia de que os indivduos devem ser responsabilizados no plano internacional em virtude de crimes contra o prprio Direito das Gentes no nova. O Estatuto de Roma agrega, porm, um contexto surpreendente. Pela primeira vez s definies dos crimes, um tratado internacional acrescenta princpios gerais de Direito Penal e claras regras de Processo Criminal. Esse acrscimo supre lacuna das Convenes de Genebra de 1949, sempre criticadas por terem dado muito pouca ateno s normas substantivas e adjetivas da Cincia Jurdica Penal.

Na Conferncia de Roma, realizada entre 15 de junho e 17 de julho de 1998, que resultou na adoo do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, a delegao brasileira foi chefiada pelo Embaixador Gilberto Sabia, com ampla experincia em negociaes multilaterais.

Segundo Roy S. Lee, pesquisador imparcial, que recentemente publicou a extensa obra The International Criminal Court The Making of the Rome Statute (The Hague: Kluwer, 1999), o Brasil permanentemente expressou seu firme apoio ao estabelecimento da nova jurisdio. Durante a Conferncia, coordenou dois grupos informais de negociaes sobre tpicos relevantes para o futuro funcionamento do tribunal. Um desses grupos dedicou-se aos poderes do Promotor, particularmente aos poderes ex-officio. O outro grupo examinou a questo capital das armas arroladas na definio de crimes de guerra.[2]

Ao final da Conferncia, o Brasil somou-se aos 120 Estados que votaram a favor da adoo do Estatuto de Roma ( houve 7 votos contrrios e 21 abstenes).

Nas palavras do Subsecretrio-Geral de Assuntos Polticos do Itamaraty, Embaixador Ivan Cannabrava, em depoimento Comisso de Relaes Exteriores e Defesa Nacional da Cmara dos Deputados, no dia 20 de maio do corrente ano, no entendimento do Governo brasileiro, o texto aprovado contm os elementos necessrios ao estabelecimento de uma Corte penal eficiente, imparcial e independente.

Pelo ngulo do ordenamento constitucional brasileiro, os pontos contidos no Estatuto de Roma que merecem considerao, com vistas a afastar qualquer hiptese de incompatibilidade com o texto da Lei Suprema de 1988, so os seguintes: entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional; pena de priso perptua; imunidades em geral e relativas ao foro por prerrogativa de funo.

Segundo o art. 58 do Estatuto de Roma, aps iniciada uma investigao e se o Promotor requerer, poder ser expedido um mandado de priso pela Cmara de Questes Preliminares, sempre que esta estiver convencida de que existe base razovel para acreditar que o acusado tenha efetivamente cometido um crime sob a jurisdio do Tribunal e a priso for necessria para que o acusado comparea em juzo. Com base no mandado de priso da Cmara de Questes Preliminares, o Tribunal poder requerer ao Estado Parte no Estatuto ou a priso provisria do acusado ou a priso e entrega do acusado.

essencial para que se garanta a efetiva istrao da Justia Penal Internacional que esta tenha a faculdade de determinar que os acusados da prtica dos crimes reprimidos pelo Estatuto sejam colocados disposio do Tribunal. Seria intil o esforo de criar o Tribunal Penal Internacional caso no se conferisse ao mesmo o poder de determinar que os acusados sejam compelidos a comparecer em juzo.

O Estatuto de Roma fixou um regime de cooperao entre os Estados Partes e o Tribunal Penal Internacional, fundamental para a viabilidade e o xito da instituio. Os Estados Partes esto obrigados a cooperar plenamente com o Tribunal na investigao e no julgamento dos crimes previstos no Estatuto. Integra este dever de cooperao a obrigao de prender e entregar os acusados ao Tribunal. Para assegurar que o Direito Interno facilite a capacidade do Estado para atender s solicitaes do Tribunal, o Estatuto requer que os Estados Partes garantam que no Direito Interno existam procedimentos aplicveis a todas as formas de cooperao especificadas no Estatuto (art. 88, IX). Os Estados devem ser capazes de proporcionar ao Tribunal uma cooperao expedita, sujeita a menos formalidades do que usualmente se aplica cooperao judiciria entre Estados.

Importante sublinhar que o Tribunal Penal Internacional no ser uma jurisdio estrangeira, mas uma jurisdio internacional, de cuja construo o Brasil participa, e ter, portanto, um vnculo muito mais estreito com a Justia nacional.

Segundo o art. 89, 1, do Estatuto, os Estados Partes cumpriro os pedidos de priso e entrega segundo os procedimentos do Estatuto e do Direito Interno. Por conseguinte, os procedimentos nacionais para priso de indivduos continuaro sendo aplicados, mas eventuais princpios e normas sobre privilgios referentes a cargos oficiais e de no-extradio de nacionais no sero causas que desculpem a falta de cooperao dos Estados Partes.

Por isso, o Estatuto distingue claramente entre extradio de um Estado para outro e entrega de um Estado para o Tribunal.

A diferena fundamental consiste em ser o Tribunal uma instituio criada para processar e julgar os crimes mais atrozes contra a dignidade humana de uma forma justa, independente e imparcial. Na condio de rgo internacional, que visa realizar o bem-estar da sociedade mundial, porque reprime crimes contra o prprio Direito Internacional, a entrega ao Tribunal no pode ser comparada extradio.

Ademais, uma das principais causas da no-extradio de nacionais a idia de que no haver imparcialidade na Justia estrangeira no se aplica ao Tribunal Penal Internacional, porque neste os crimes esto nitidamente cominados no Estatuto, suas normas processuais so as mais avanadas do Mundo e qualquer tendncia a politizar o processo ser controlada por garantias rigorosas.

Logo, a previso de entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional, estabelecida no Estatuto de Roma, no fere, salvo melhor juzo, o artigo 5, LII, da Constituio da Repblica, que prescreve que nenhum brasileiro ser extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalizao, ou de comprovado envolvimento em trfico ilcito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.

J o artigo 77 do Estatuto de Roma prev a pena de priso perptua quando justificada pela extrema gravidade do crime e as circunstncias pessoais do condenado, enquanto o artigo 5, XLVII, b, da Constituio da Repblica, estabelece que no haver penas de carter perptuo.

A Constituio ptria prev at mesmo a pena de morte em caso de guerra declarada (art. 5, XLVII, a), mas probe a pena de carter perptuo.

Contudo, na vigncia da Constituio de 1988, o Supremo Tribunal Federal tem deferido extradies, sem ressalva, para Estados onde est prevista a pena de priso perptua para os crimes imputados aos extraditandos. Entende o pretrio excelso que a esfera da nossa lei penal interna. Se somos benevolentes com nossos delinqentes, isso s diz bem com os sentimentos dos brasileiros. No podemos impor o mesmo tipo de benevolncia aos Pases estrangeiros.

A proibio constitucional da pena de carter perptuo restringe apenas o legislador interno brasileiro. No constrange nem legisladores estrangeiros, nem aqueles que labutam na edificao do sistema jurdico internacional.

No momento histrico em que foi promulgada a Constituio brasileira vigente (1988) no existia o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998). No poderia, pois, o constituinte ter se debruado sobre a questo da pena de priso perptua aplicada por tribunal internacional. Mas a Constituio foi sbia, porque sustentou o princpio da dignidade da pessoa humana como fundamento da Repblica brasileira ( art. 1, III) e propugnou pela formao de um tribunal internacional de direitos humanos ( ADCT, art. 7).

Parece-me, pois, convincente a tese que sustenta que a coliso entre o Estatuto de Roma e a Constituio da Repblica, no que diz respeito pena de priso perptua, aparente, no s porque aquele visa a reforar o princpio da dignidade da pessoa humana, mas porque a proibio prescrita pela Lei Maior dirigida ao legislador interno para os crimes reprimidos pela ordem jurdica ptria, e no aos crimes contra o Direito das Gentes, reprimidos por jurisdio internacional.

A questo, ainda assim, polmica, merecendo maiores e mais profundas reflexes. Embora o Estatuto de Roma no ita a possibilidade de ser ratificado com reservas, poder-se-ia estudar a elaborao de uma declarao interpretativa a ser efetuada por ocasio da ratificao.

Finalmente, as imunidades em geral e as prerrogativas de foro por exerccio de funo so os pontos que talvez menos polmica despertem. Crimes de guerra, contra a humanidade, genocdio, agresso - constituem delitos quase sempre praticados sombra de autoridades que segundo o ordenamento interno de seus Pases desfrutam de prerrogativa de foro ou de imunidades.

Poderia um genocida alegar prerrogativa de foro porque exercia uma funo pblica ? Certamente no, na tica do Direito Internacional.


[1] Mello, Celso de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Pblico. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. 10 ed. 2 vol. p. 766.

[2] p. 577-78.

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O Tribunal Penal Internacional e sua Importncia para os Direitos Humanos
Tarciso Dal Maso Jardim

A criao do Tribunal Penal Internacional TPI: marco diplomtico 6y1ug

O TPI foi criado na Conferncia Diplomtica de Plenipotencirios das Naes Unidas sobre o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional, realizada na cidade de Roma, entre os dias 15 de junho a 17 de julho de 1998. Precisamente, essa criao ocorreu no ltimo dia da Conferncia, mediante a aprovao do Estatuto do Tribunal (Rome Statute of the International Criminal Court, doravante Estatuto), que possui a natureza jurdica de tratado e entrar em vigor aps sessenta Estados manifestarem o consentimento em vincularem-se ao TPI (art. 126 do Estatuto), de acordo com suas normas de competncia interna para a celebrao de tratados.

Haveria alguma previso para o Tribunal comear suas atividades? Evidentemente, no podemos prever, mas apenas lembrar que a Conveno de Montego Bay, sobre o direito do mar, tambm previa o quorum de sessenta Estados e levou doze anos para entrar em vigor (de 1982 a 1994). Cremos que o Estatuto do Tribunal pode entrar em vigor em um perodo bem inferior a doze anos, principalmente pela atuao das Organizaes No-Governamentais e pelo clamor internacional diante incessantes atentados conscincia da humanidade. Atualmente, seis Estados ratificaram o Estatuto e noventa e quatro j am-no (o que significa que acordaram com o texto final do mesmo e iro submet-lo a procedimentos internos que objetivam o comprometimento do Estado em relao a esse tratado). O Brasil, no ltimo dia 7 de fevereiro, justamente foi o nonagsimo quarto Estado a .

Com futura sede em Haia Holanda (art. 3 do Estatuto), o Tribunal ter personalidade jurdica internacional, podendo exercer sua capacidade jurdica para o exerccio de suas funes e para a manuteno de suas finalidades (art. 4 do Estatuto), o que inclui a possibilidade de celebrar tratados com outras organizaes internacionais ou com Estados.

2. A importncia do TPI 56233

Desde o fim da Primeira Guerra Mundial pretende-se consagrar a responsabilidade penal internacional, quando o Tratado de Versalhes clamou, sem sucesso, pelo julgamento do Kaiser Wilhelm II, por ofensa moralidade e inviolabilidade dos tratados, e o Tratado de Svres, jamais ratificado, previa a responsabilidade do Governo Otomano pelo massacre dos armnios. As razes para essa pretenso no eram imparciais ou universais, mas unilaterais, fundadas em um critrio principal: s o vencido pode ser julgado. Esse critrio tambm seria o institudo, de maneira preliminar, pelo Acordo de Londres (London Agreement[1]) e pelo Control Council Law N. 10[2] ao estabelecerem o chamado Tribunal de Nuremberg. Com isso, evidentemente, no se pretende defender que no houvesse o julgamento de nazistas como Hermann Gring, Rudolf Hess, Joachim von Ribbentrop, Erich Raeder, entre os 24 primeiros a serem julgados (a partir de 20 de novembro de 1945, sob a gide do London Agreement), ou o julgamento de mdicos que produziam experincias em campos de concentrao, entre os outros 185 indivduos julgados, nos prximos 12 julgamentos que seguiram (sob a gide do Control Council Law N. 10). Tambm no se pretende abonar japoneses julgados pelo segundo Tribunal Militar Internacional[3] institudo aps a Segunda Guerra Mundial[4]. Defende-se, ao contrrio, a inexistncia de seletividade na conduo de julgamentos e atitudes internacionais, bem como lembrar que o princpio da reciprocidade no deve ser aplicado na esfera da proteo internacional da pessoa humana. Assim, os responsveis pelo lanamento de armas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki ou pela manuteno dos Gulags deveriam, tambm, serem julgados, alm de outros criminosos de ambos os lados.

Um ano antes da ltima sesso do Tribunal do Japo, a Assemblia Geral das Naes Unidas solicitou CDI, mediante a resoluo n 177 (II), de 21 de novembro de 1947, que formulasse os princpios de direito internacional reconhecidos pelos instrumentos e julgamentos do Tribunal de Nuremberg, bem como preparar um draft de Cdigo de ofensas contra a paz e segurana da humanidade. Em 1950 a CDI adotou a formulao desses princpios, submetendo Assemblia Geral, e em 1954 submeteu o projeto de Cdigo, sendo esse ltimo inviabilizado por no haver acordo sobre a definio de agresso resoluo n 897 (IX) de 4 de dezembro de 1954. O consenso sobre a definio de agresso s aconteceria vinte anos depois, com a resoluo da Assemblia n 3314 (XXIX), de 14 de dezembro de 1974, mas a viabilidade poltica da instalao da responsabilidade penal s seria realidade no final do sculo XX, aps muitos relatrios e resolues. Entretanto, importantes instrumentos internacionais sobre essa temtica foram elaborados nessa segunda metade de sculo, como, por exemplo, a Conveno para a Preveno e a Sano do Delito de Genocdio (1948), as quatro Convenes de Genebra sobre o direito humanitrio (1949) e seus dois protocolos adicionais (1977), a Conveno sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa Humanidade (1968) e os Princpios de Cooperao Internacional para Identificao, Deteno, Extradio e Castigo dos Culpveis de Crimes de Guerra ou de Crimes de Lesa Humanidade (1973).

Mas, afinal, qual a importncia desse longo processo de formulao de um Tribunal Penal Internacional permanente? Em resposta essa indagao, a ONG nova-iorquina Lawyers Comittee for Human Rights apontou seis pontos. Primeiro, acabar com a impunidade dos grandes violadores dos direitos da pessoa humana, em termos repressivos e preventivos. Segundo, proporcionar a reconciliao social e a tranqilidade e confiana s vtimas, suas famlias, e comunidade afetada, mediante a investigao e o julgamento dos responsveis pelos crimes internacionais. Terceiro, sanar possveis insucessos de Cortes Nacionais, que deixam impunes os criminosos, principalmente quando esses so autoridades polticas ou militares, o que se verifica com freqncia em casos de crimes de guerra ou de desestruturao do sistema legal interno. Quarto, remediar limitaes polticas e jurdicas inerentes aos tribunais internacionais criminais ad hoc, como a instalao em alguns casos e no em outros, o vis poltico das escolhas do Conselho de Segurana para instaura-los (alm do questionamento de sua autoridade para tanto) e o perigo do excesso de tribunais instaurados (tribunal fatigue), sem consistncia na interpretao e aplicao do direito internacional, j que so criados para um situao especfica e com um corpo de juizes distinto. Quinto, criar um mecanismo com poder para condenar pessoas que ofendem gravemente os direitos humanos e o direito humanitrio. E, por fim, o sexto ponto seria tornar o Tribunal Penal Internacional um modelo de justia penal e de julgamento justo, constituindo um patamar institucional (standard-setting institution) para a implementao interna ou internacional das normas de proteo da pessoa humana[5].

Os pontos argumentativos levantados pelo Lawyers Comittee so de extrema pertinncia, mas a eficcia das argumentaes depender de uma srie de fatores, como a dificuldade de atingir a ratificao universal do Estatuto. Creio, independente disto, que a criao do TPI, mediante a participao equnime dos Estados em uma conferncia internacional e no por ato unilateral do Conselho de Segurana ou de vencedores de conflitos, um marco na histria do direito internacional e da diplomacia. Trata-se, realmente, de uma oportunidade de acabar com a seletividade na determinao de quem so os criminosos; de eliminar de forma definitiva o argumento de competncia nacional exclusiva em matria de proteo internacional da pessoa humana; de evitar ou sancionar o terrorismo estatal em matria de direitos humanos e de direito humanitrio, geralmente aliciados por atos de poder internos, como represso militar ou leis de anistia; de constituir no plano internacional, na matria em tela, um e aos mtodos de superviso e investigao e um aprimoramento dos sistemas de petio ou comunicao; de representar o complemento dos sistemas regionais de direitos humanos (como o interamericano); de frear atitudes desumanas durante conflitos armados; de ser base para o princpio da legalidade ou simbolicamente representar o rechao s grandes violaes dignidade humana.

3. A diferena entre a jurisdio universal e a do TPI 3j3u2x

A jurisdio universal consiste, a princpio, na possibilidade de a jurisdio interna poder julgar crimes de guerra ou contra a humanidade cometidos em territrios alheios. Trata-se, portanto, de extraterritorialidade, que pode ser itida em razo de o criminoso (ver art. 7, II, b, do Cdigo Penal brasileiro) ou as vtimas serem nacionais ou residentes (ver art. 7, 3, do ), ou o local do crime possuir regime internacional (pirataria em alto mar, por exemplo, ver art. 7, II, c, do ), ou o crime atingir interesses nucleares do Estado (ver art. 7, I, a, b e c, do ) ou, por fim, se os fatos envolverem violaes graves ao direito internacional, atingindo a conscincia universal (ver art. 7, I, d, e II, a, do ). A jurisdio universal seria a isso desta ltima hiptese, independente se no crime esto envolvidos nacionais ou interesses internos. No Brasil, o art. 7, II, a, do seria expresso da jurisdio universal, ao itir que esto sujeitos lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes que, por tratado ou conveno, o Brasil se obrigou a reprimir.

A jurisdio universal tem sido itida desde o fim da Segunda Guerra Mundial, quando as cortes dos Aliados aram a julgar os crimes de guerra e contra a humanidade cometidos durante o grande conflito (Austrlia, Canad, Israel, Reino Unido, por exemplo, julgaram muitas pessoas), sendo atualmente itida para muitos outras situaes. O caso recente mais clebre , sem dvida, o do general Pinochet, quando se itiu que a tortura um crime internacional e que a Conveno contra a Tortura[6] conferiu jurisdio universal a seus Estados partes.

Segundo a Anistia Internacional, a prtica da jurisdio universal pelos Estados seria de extrema importncia para preencher vcuos deixados pelo Estatuto do TPI[7]. Lembre-se que o art. 12 do Estatuto consagrou, como condio prvia ao exerccio da competncia do TPI, a necessidade de ser parte do Estatuto (art. 12, 2, a) o Estado em cujo territrio, incluindo navios ou aeronaves por ele matriculados, teve lugar a conduta ou (art. 12, 2, b) o Estado a que pertena o acusado do crime. Tais restries s se aplicariam para as hipteses de o Estado comunicar ao Promotor uma situao que envolveria crimes, de competncia do TPI (art. 13, a do Estatuto), ou o prprio Promotor instaure um inqurito (art. 13, c do Estatuto). Se for o Conselho de Segurana que comunicar ao Promotor uma situao, entretanto, tal ato estar sob a gide do captulo VII da Carta das Naes Unidas, o que significa abrangncia universal (no esquea que tal poder possibilitou a criao dos tribunais ad hoc para Ruanda e Ex-Iugoslvia). Alm disso, um Estado no Parte pode, mediante declarao, aceitar a jurisdio do TPI para casos especficos (art. 12, 3, do Estatuto).

De qualquer forma, h um vcuo, pois o Conselho de Segurana age sob seletividade poltica. A proposta da Repblica da Coria, no aprovada in toto na Conferncia de Roma, envolveria tambm as alternativas, como condio ao exerccio de jurisdio, de a vtima ser nacional de um Estado Parte ou, ainda, se o suspeito estiver sob custdia em um Estado Parte. Entretanto, como tais alternativas no foram aprovadas, defende a Anistia Internacional a jurisdio universal.

Ademais, o TPI complementar s jurisdies penais nacionais (prembulo e art. 1 do Estatuto). A jurisdio no retroativa[8] do TPI est submetida, em nome da complementaridade, a requisitos de issibilidade. Esse mecanismo concede, como de praxe no direito internacional, a oportunidade de as cortes internas solucionarem o caso de forma satisfatria. As autoridades e cortes nacionais tero a responsabilidade primria de investigar e solucionar o caso. Entretanto, se o Estado no for capaz ou no esteja disposto a levar a cabo a investigao ou o processo, ou teve o propsito de no responsabilizar penalmente o acusado, o TPI poder exercer sua jurisdio, desde que o caso seja grave (ver art. 17 c/c 20 do Estatuto). Na verdade, como veremos, a competncia material do TPI gira somente sobre crimes considerados graves.

Incapacidade ou impossibilidade para investigar ou processar determinado caso significa, segundo o pargrafo 3 do art. 17, que o Estado no pode, devido ao colapso total ou substancial de seu sistema judicirio nacional ou por indisponibilidade deste, fazer comparecer o acusado, reunir os meios de prova e os depoimentos necessrios ou no est, por outras razes, em condies de levar a cabo o processo. J a verificao da vontade de agir ou no, em determinado caso, depende de o processo ter o propsito de no responsabilizar penalmente a pessoa em questo por crimes de competncia do TPI (impunidade); ou de demora injustificada no processo ou de ausncia de independncia e imparcialidade, em ambos relevando as circunstncias fticas (pargrafo 2 do art. 17).

A competncia material do TPI: da poltica da intencionalidade a conquistas parciais das Organizaes No-Governamentais 1z216j

4.1. Crime de genocdio 5b435b

O sculo XX transborda violncias contra massas. Como pontuou Hobsbawn,

[...] o mundo acostumou-se expulso e matana compulsrias em escala astronmica, fenmenos to conhecidos que foi preciso inventar novas palavras para eles: sem Estado (aptrida) ou genocdio. A Primeira Guerra Mundial levou matana de um incontvel nmero de armnios pela Turquia o nmero mais habitual de 1,5 milho , que pode figurar como a primeira tentativa moderna de eliminar toda uma populao. Foi seguida depois pela mais conhecida matana nazista de cerca de 5 milhes de judeus [..][9]

Independente dos nmeros, que ainda permanecem em discusso, a destruio tnica apavorou a humanidade. No por acaso que o genocdio foi uma das principais preocupaes aps a Segunda Guerra Mundial, sendo tal animus convertido em instrumento internacional em 9 de dezembro de 1948: a Conveno para a Preveno e a Sano do Delito de Genocdio[10]. Essa Conveno, em seu Art. 2, identifica o genocdio em qualquer ato, em tempo de paz ou de guerra[11], com a inteno de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, tnico, racial ou religioso, tal como o assassinato ou dano grave integridade fsica ou mental de membros do grupo; subjugao intencional do grupo a condies de existncia que lhe ocasione a destruio fsica total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e a transferncia forada de crianas do grupo para outro grupo.

No estudo de especialistas sobre a implementao de instrumentos como a Conveno Internacional sobre a Eliminao e a Punio do Crime do Apartheid, incluindo a idia de estabelecer um tribunal internacional[12], divide-se os instrumentos conexos com essa Conveno de 1973 em duas categorias. A primeira composta por instrumentos que declaram direitos humanos especficos sob a gide do direito internacional dos direitos humanos, como a Declarao Universal dos Direito do Homem, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos e a Conveno Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial. A segunda categoria englobaria convenes que implicariam criminalizar violaes de direitos humanos nos direitos internos, investigar os violadores ou alternativamente prever a extradio; inclusive algumas considerando condutas como crime sob o direito internacional. Nessa ltima categoria seriam exemplos as Convenes de Genebra sobre o direito humanitrio e a Conveno de 1948 sobre o genocdio. Entretanto, as semelhanas entre a Conveno sobre o Apartheid de 73 e a do Genocdio de 48 no se concentram somente no fato de pertencerem a mesma categoria, segundo os experts, mas tambm por vaticinarem a criao de um tribunal penal internacional nos artigos V e VI respectivamente.

Antes da Conferncia de Roma, apesar de um grande nmero de delegaes apoiarem o conceito da Conveno de 1948, houve a crtica de que essa tipificao era limitada. Primeiro, por no incluir a proteo de grupos sociais e polticos, ou de grupos destacados de um grupo, em que no h homogeneidade (por exemplo, as elites culturais), embora houvesse o reconhecimento da conexo dessa extenso conceitual com Crimes de Lesa Humanidade. Outra sugesto seria esclarecer, como elemento de caracterizao, a inteno especfica de quem planeja ou decide da inteno genrica ou conhecimento de quem comete atos de genocdio, pois a dificuldade da prova sobre esses elementos de intencionalidade concederia argumento a dirigentes ou a quem obedece ordens. Ento foi sugerido, de um lado, que a inteno de destruir um grupo, total ou parcialmente, fosse considerada como sendo a inteno concreta de destruir alm de um grupo reduzido de pessoas, analisando-se a escala da ofensa ou o nmero de vtimas. Ou, de outro lado, que a questo da intencionalidade fosse trabalhada genericamente para todos os crimes. Ademais, houve a observao a respeito de estender a idia da alnea e, sobre a transferncia de crianas de um grupo a outro, tambm para transferncias de pessoas em geral, no esquecendo de incluir a idia de membros de um grupo particular[13].

De qualquer forma, por ser itida como norma costumeira (idia consolidada na Corte Internacional de Justia[14]) e includa em muitas legislaes internas, durante as reunies preparatrias a Conferncia de Roma o crime de genocdio foi discutido por representaes governamentais com base na referida Conveno. E as principais consideraes das delegaes acabaram sendo ligadas a clarificaes de termos, como o significado de destruio em parte de um grupo, de leses mentais e de medidas destinadas a impedir nascimentos (sugeriu-se os termos preventing births within the group).[15]

Entretanto, apesar dessas discusses, consagrou-se os termos da Conveno de 1948 no artigo 6 do Estatuto, como uma espcie de presente pelo cinqentenrio da mesma.

4.2. Crimes de Lesa Humanidade 4p1qm

A origem do termo crimes against humanity, aqui traduzido por Crimes de Lesa Humanidade, est ligado, curiosamente, ao caso de genocdio dos armnios, provocado pelos turcos na Primeira Guerra Mundial, que Hobsbawn colocou como sendo a primeira tentativa moderna de eliminar toda uma populao. Refiro-me Declarao para o Imprio Otomano, feita pelos governos russo, francs e britnico em maio de 1915 (Petrogrado), qualificando o massacre como crimes da Turquia contra a humanidade e a civilizao.[16] Posteriormente, esse conceito de forma gradativa assume o carter de norma costumeira, de carter imperativo (jus cogens), reportando-se a graves violaes da dignidade humana. O Tribunal de Nuremberg reconheceu esse tipo de violaes, confirmado sobre a forma de princpio pela resoluo da Assemblia Geral na resoluo 95 (I) de 11 de dezembro de 1946.

Em relao ao TPI, o 1, do art. 7 do Estatuto, dispe que por Crimes de Lesa Humanidade teramos os seguintes atos: a. assassinato; b. extermnio; c. escravido; d. deportao ou traslado forado de populaes; e. encarceramento ou outra privao grave da liberdade fsica em violao de normas fundamentais de direito internacional; f. tortura; g. violao, escravido sexual, prostituio forada, gravidez forada, esterilizao forada ou outros abusos sexuais de gravidade comparada; h. perseguio de um grupo ou coletividade com identidade prpria fundada em motivos polticos, raciais, nacionais, tnicos, culturais, religiosos, de gnero ou outros motivos universalmente reconhecidos como inaceitveis pelo direito internacional, em conexo com qualquer ato mencionado no presente pargrafo ou com qualquer crime de competncia do Tribunal; i. desaparecimento forado de pessoas[17]; j. apartheid; k. outros atos desumanos de carter similar que causem intencionalmente grandes sofrimentos ou atentem gravemente contra a integridade fsica ou sade mental ou fsica. Esses atos, para serem considerados como um Crime de Lesa Humanidade, devem ser cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemtico contra uma populao civil e com o conhecimento de tal ataque, conforme prescreve o 1, do art. 7 do Estatuto. J o 2, do mesmo artigo, aclara que por ataque contra uma populao civil entende-se uma linha de conduta que implique a comisso mltipla de atos, mencionados no 1, contra uma populao civil, sendo tais atos cometidos ou promovidos por polticas de um Estado ou de uma organizao.

Esse conceito de Crime de Lesa Humanidade, cujos termos j estavam presentes no pacote de acordos do dia 6 de julho de 1998, ou tambm por muitas controvrsias. O Projeto Final de Estatuto sintetizava tais controvrsias em duas opes, repletas de colchetes. A primeira opo afirmando que crime de lesa humanidade qualquer dos atos (enumerados nas alneas) que se cometam: [como parte da comisso generalizada [e] [ou] sistemtica de tais atos contra qualquer populao]. E a segunda opo: [como parte de um ataque generalizado [e] [ou] sistemtico contra uma populao [civil] [em escala macia] [em um conflito armado] [por motivos polticos, filosficos, nacionais, tnicos ou religiosos ou por qualquer outro motivo arbitrariamente definido]. Os pontos especficos, que estavam sendo discutidos sobre o conceito de crime de lesa humanidade, poderiam ser traduzidos nas seguintes indagaes: Conceituar ou no o que se entende por generalizado e sistemtico? Essa categoria de crimes seria aplicada para situaes de paz e de guerra? Incluir ou no motivaes para conceituar essa categoria de crimes?

O conceito final, consagrado no Art. 7 do Estatuto, , em parte, produto dessas controvrsias. O conceito de ataque contra uma populao civil, exposto na alnea a, do 2 do Art. 7, a sntese dos conceitos de generalizado (widespread) e sistemtico (sistematic) trabalhados nas reunies preparatrias (ver, por exemplo, o Relatrio do Comit Preparatrio, volume II, compilao de propostas[18]). Por generalizado entendia-se o ataque macio em natureza e dirigido contra um grande nmero de pessoas. Por sistemtico entendia-se o ataque constitudo, ao menos em parte, por atos cometidos ou promovidos por uma poltica ou um plano, ou por uma prtica repetida por um perodo de tempo. Ora, o conceito de generalizado est assegurado na chamada comisso mltipla de atos e, por sua vez, o conceito de sistemtico est consagrado no que se chamou de linha de conduta ou de atos cometidos ou promovidos por polticas de um Estado ou de uma organizao. Ento, embora o conceito do 1, do Art. 7 do Estatuto, enquadra o crime de lesa humanidade a partir de atos cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemtico, na realidade deve ser entendido como parte de um ataque generalizado e sistemtico, pois o que se infere da alnea a, do 2 do Art. 7 do Estatuto.

Outra questo seria se tal crime ocorre em poca de paz ou tambm em de guerra. Creio que a possibilidade de se cometer esse tipo de crime reporta-se a qualquer situao, desde que as vtimas sejam civis, e no militares. Para estes ltimos, tem-se a proteo em relao aos crimes de guerra (Art. 8 do Estatuto). Embora o direito internacional no proteja somente militares fora de combate, seu plano de proteo possui lgica e nveis diferentes da proteo dos direitos humanos, no Estatuto representada especialmente pelo Crimes de Lesa Humanidade. Vejam que o Tribunal Penal Internacional significa um ponto de unio entre os direitos humanos e o direito humanitrio, fato que tambm se comprova pela incluso, na competncia desse Tribunal, dos crimes de guerra ocorridos em conflitos internos, e no somente em conflitos internacionais.

A ltima questo, diz respeito a motivaes especficas (polticas, filosficas, de nacionalidade, tnicas ou religiosas ou por qualquer outra arbitrariamente definida) que, felizmente, no foram includas no Estatuto. Entretanto, tem-se no Art. 7 do Estatuto os indesejveis termos com o conhecimento do ataque, no caso, generalizado ou sistemtico contra uma populao civil. Seria o conhecimento do plano ou da poltica estatal ou de uma organizao? Seria o conhecimento de todos os crimes envolvidos na noo de generalizado? Do nosso ponto de vista, esse contedo do crime de lesa humanidade deve ser deslocado para a anlise dos elementos subjetivos do crime. O Art. 30 do Estatuto, que versa sobre tais elementos de intencionalidade, determina que os elementos materiais do crime devem ser cometidos com inteno e conhecimento, sendo esse ltimo definido como a conscincia de que as circunstncias existem ou que a conseqncia ocorrer no curso ordinrio dos fatos.

4.3. Crimes de Guerra 2f2p1j

Os crimes de guerra so, sem dvida, preocupaes milenares que confluem, hoje, no estabelecimento de um TPI. Timothy McCormack, por exemplo, demonstra que desde o sculo VI a.C., com o guerreiro chins Sun Tzu, h preocupaes com o comportamento dos beligerantes no conflito. O Cdigo de Manu (direito hindu feito cerca de 200 a. C.), por exemplo, emblemtico ao fixar armas proibidas (como flechas envenenadas) ou pessoas que no deveriam ser mortas (como espectadores) [19].

O Estatuto, em seu artigo 8, consagra esta longa evoluo do direito internacional humanitrio que, desde o sculo ado, vem sendo impulsionado pelo Comit Internacional da Cruz Vermelha. Os crimes aqui mencionados so, primeiro, as chamadas infraes graves consagradas nas quatro Convenes de Genebra de 12 de agosto de 1949; segundo, outras violaes graves a leis e costumes pertinentes a conflitos armados internacionais e, terceiro, violaes graves em conflitos de carter no internacional.

Para o primeiro grupo[20], as infraes graves seriam: i. homicdio doloso; ii. tortura ou tratamento desumano, inclusive as experincias biolgicas; iii. provocar grandes sofrimentos ou atentar gravemente contra a integridade fsica ou a sade; iv. a destruio e a apropriao de bens, no justificadas por necessidades militares e executadas de maneira ilcita e arbitrria; v. compelir um prisioneiro de guerra ou outro indivduo protegido a servir em foras inimigas; vi. privar um prisioneiro de guerra ou outro indivduo dos direitos de um imparcial e regular julgamento; vii. submeter deportao, transferncia ou confinamento ilegais e; viii. tomar refns.

Para o segundo, as violaes seriam: i. dirigir ataques contra a populao civil enquanto tal ou civis que no participem diretamente das hostilidades; ii. dirigir ataques contra bens civis; iii. dirigir ataques contra pessoal, instalaes, material, unidades ou veculos participantes de uma misso de manuteno da paz ou de assistncia humanitria, em conformidade com a Carta das Naes Unidas; iv. lanar ataque sabendo que causar perdas de vidas, leses em civis ou danos a bens de carter civil ou danos extensos, duradouros e graves ao meio ambiente que sejam excessivos em relao vantagem militar geral, concreta e direta prevista; v. atacar ou bombardear, por qualquer meio, cidades, aldeias, povoados ou prdios que no estejam defendidos e que no sejam objetivos militares; vi. causar a morte ou leses a um inimigo que tenha deposto as armas ou no tenha meios de defesa; vii. utilizar de modo indevido a bandeira branca, a bandeira ou as insgnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Naes Unidas, bem como os emblemas previstos nas Convenes de Genebra, e causar assim a morte ou leses graves; viii. transferncia pela Potncia ocupante de parte de sua populao para o territrio que ela ocupa, ou a deportao ou transferncia de toda ou parte da populao do territrio ocupado; ix. fazer ataque a prdios destinados ao culto religioso, s artes, s artes, s cincias ou beneficncia, monumentos histricos, hospitais e lugares onde se agrupam doentes e feridos, sempre que no sejam objetivos militares; x. submeter indivduos da parte adversria a mutilaes fsicas ou experincias mdicas ou cientficas de qualquer tipo, que no estejam associadas a tratamento mdico, dental ou hospitalar, nem levadas a cabo em seu interesse e que causem mortes ou ponham em risco a sade de tais indivduos; xi. matar ou ferir de modo traioeiro os inimigos; xii. declarar que no dar quartel; xiii. destruir ou confiscar bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra o tornem imperativo; xiv. declarar como abolidos, suspensos ou inissveis em um tribunal os direitos e aes dos nacionais da parte inimiga; xv. obrigar nacionais da parte inimiga a participar de operaes blicas dirigidas contra o seu prprio pas; xvi. saquear uma cidade ou uma localidade, inclusive quando tomada de assalto; xvii. utilizar veneno ou armas envenenadas; xviii. utilizar gazes asfixiantes, txicos ou similares ou qualquer lquido, material ou dispositivo anlogo; xix. utilizar balas que se abram ou amassem facilmente no corpo humano, como balas de camisa dura que no cubra totalmente a parte interior ou que tenha incises; xx. empregar armas, projteis, materiais e mtodos de guerra (proibidos por emenda arts. 121 e 123 do Estatuto) que, por sua prpria natureza, causem danos suprfluos ou sofrimentos desnecessrios ou produzam efeitos indiscriminados em violao ao direito internacional dos conflitos armados; xxi. cometer ultrajes contra a dignidade de indivduos, em particular tratamentos humilhantes e degradantes; xxii. cometer estupro, escravido sexual, prostituio forada, gravidez forada, esterilizao forada ou qualquer outra forma de violncia sexual que constitua uma violao grave das Convenes de Genebra; xxiii. utilizar a presena de civis e outras pessoas protegidas para que fiquem imunes s operaes militares determinados pontos, zonas ou foras militares; xxiv. dirigir intencionalmente ataques contra prdios, materiais, unidades e veculos mdicos e contra pessoal que esteja utilizando emblemas previstos nas Convenes de Genebra, de acordo com o direito internacional; xxv. provocar intencionalmente a inanio da populao civil como mtodo de fazer a guerra, privando-a dos bens indispensveis para a sua sobrevivncia, inclusive por meio da obstruo intencional da chegada de suprimentos de socorro, de acordo com as Convenes de Genebra; xxvi. recrutar ou alistar crianas menores de 15 anos nas foras armadas nacionais ou utiliz-las para participar ativamente das hostilidades.

O terceiro grupo de crimes, ao lado da incluso dos crimes sexuais, constituiu em grande vitria da sociedade civil internacional em matria de crimes de guerra, pois inclui as violaes em conflitos armados no internacionais, que atualmente englobam a maioria dos conflitos. O perfil de vrios conflitos contemporneos, como o da Ex-Iugoslvia e de Ruanda, so internos e revelam toda sorte de srias violaes ao direito humanitrio, alm de apresentar uma istrao de justia totalmente ineficaz e indisponvel. Lembre que, de um lado, no se deve confundir este tipo de conflito com situaes de distrbios ou tenses internas, tais como motins, atos isolados e espordicos de violncia ou outros atos de carter similar (art. 8, 2, d e f) e, de outro lado, menciona o pargrafo 3 do art. 8 que a previso deste tipo de crime no afetar a responsabilidade que incumbe a todo governo de manter e restabelecer a lei e a ordem pblica no Estado e de defender a unidade e integridade do Estado por qualquer meio legtimo.

Feitas estas observaes, diga-se que esta categoria engloba o disposto no art. 3 comum s quatro Convenes de Genebra e outras violaes graves consagradas por normas ou costumes internacionais. Com base no art. 3 das Convenes, que um verdadeiro elo de ligao entre o direito humanitrio e os direitos humanos[21], temos: i. atos de violncia contra a vida e a integridade corporal, em particular o homicdio em todas as suas formas, as mutilaes, os tratamentos cruis e a tortura; ii. os ultrajes contra a dignidade pessoal, em particular os tratamentos humilhantes e degradantes; iii. a tomada de refns; iv. as sentenas condenatrias pronunciadas e as execues efetuadas sem julgamento prvio por tribunal constitudo regularmente, que oferea todas as garantias judiciais geralmente reconhecidas como indispensveis.

As demais violaes graves reconhecidas pelo Estatuto para conflitos no internacionais so: i. dirigir intencionalmente ataques contra a populao civil enquanto tal ou contra civis que no participem diretamente das hostilidades; ii. dirigir intencionalmente ataques contra prdios, material, unidades e veculos sanitrios, e contra pessoal habilitado para utilizar emblemas previsto nas Convenes de Genebra, de acordo com o direito internacional; iii. dirigir intencionalmente ataques contra pessoal, instalaes, material, unidades ou veculos participantes em uma misso de manuteno da paz ou da assistncia humanitria em conformidade com a Carta das Naes Unidas, sempre que tenham o direito proteo outorgada a civis ou bens civis, de acordo com o direito internacional dos conflitos armados; iv. dirigir intencionalmente ataques contra prdios dedicados ao culto religioso, s artes, s cincias ou beneficncia, monumentos histricos, hospitais e lugares onde se agrupam doentes e feridos, sempre que no sejam objetivos militares; v. saquear uma cidade ou praa, inclusive quando tomada por assalto; vi. cometer atos de estupro, escravido sexual, prostituio forada, gravidez forada, esterilizao forada e qualquer outra forma de violncia sexual que constitua uma violao grave dos Convnios de Genebra; vii. recrutar ou alistar menores de 15 anos nas foras armadas ou utiliz-los para participar ativamente das hostilidades; viii. ordenar a transferncia da populao civil por razes relacionadas com o conflito, a menos de que assim o exija a segurana dos civis de que se trate ou por razes militares imperativas; ix. matar ou ferir a traio um combatente inimigo; x. declarar que no se dar quartel; xi. submeter pessoas que estejam em poder de outra parte no conflito a mutilaes fsicas ou a experincias mdicas ou cientficas de qualquer tipo que no sejam justificadas em razo de um tratamento mdico, dental ou hospitalar da pessoa de que se trate, nem sejam levadas a cabo em seu interesse, e que causem a morte ou ponham gravemente em perigo a sua sade; xii. destruir ou confiscar bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra o tornem imperativo.

Este rol de crimes so em si mesmos suficientes para justificar este Tribunal, principalmente porque de conhecimento de todos que essa tipificao provm de inmeras situaes reais[22].

4.4 - Crime de agresso 502mk

O crime de agresso sempre causou polmica na doutrina e prtica internacionais. Primeiro, a discusso girava em torno da licitude da guerra como meio de soluo de controvrsias internacionais. A concepo de "guerra justa" de Santo Agostinho, em que seria melhor os justos subjugarem os malfeitores do que o contrrio, influenciou muito o pensamento ocidental, ao ponto de os humanistas "cvicos" (como Patrizi e Maquiavel) defenderem a guerra como uma opo poltica a ser protagonizada pelos cidados, enquanto dever cvico. Essa ragione di stato seria, entretanto, contestada pelos humanistas do norte, como Erasmo, para quem toda a guerra fraticida.

Segundo, no plano internacional, em tom de inspirao kantiana, a guerra fora considerada universalmente como um meio ilcito de soluo de controvrsia pelo Art. 2, 4, da Carta das Naes Unidas, embora temos que recordar o precedente do "Pacto de Briand-Kellog" (1928), de menor alcance.

A discusso da abrangncia da absteno de recorrer ameaa e ao uso da fora, estabelecida pelo referido artigo, rendeu vrias correntes doutrinrias, como a do direito de ingerncia por razes humanitrias. A confuso se d porque essa absteno deve ser, segundo o Art. 2, 4, contra a integridade territorial ou a independncia poltica de um Estado ou outro modo incompatvel com os objetivos das Naes Unidas. Discute-se, ento, excees regra, embora entendemos que o Art. 2, 3, resolve a questo ao determinar que as controvrsias devem ser resolvidas por meios pacficos, no ameaando a paz, a segurana e a justia. Dessa forma, no haveria possibilidade de uso unilateral da fora por um Estado, resguardando a legtima defesa e o direito de autodeterminao dos povos, assim como as faculdades do Conselho de Segurana sob a gide do cap. VII da Carta.

Dentro desse contexto, houve duas propostas de definio de agresso enquanto crime sob jurisdio do futuro TPI. Uma das alternativas define agresso como os atos cometidos por um indivduo que, como lder ou organizador, envolvido no uso de fora armada por um Estado contra a integridade territorial ou independncia poltica de outro Estado ou em outro modo incompatvel com a Carta das Naes Unidas. A segunda alternativa define o crime de agresso como o cometido por uma pessoa que est em posio de controle ou capaz de dirigir aes polticas ou militares em seu Estado, contra outro Estado, em infrao Carta das Naes Unidas, recorrendo fora armada e ameaando ou violando a soberania estatal, integridade territorial ou independncia poltica. Sobre essa ltima definio, houve a proposta de acrscimo de infrao ao direito internacional costumeiro. Ademais, discute-se o rol de atos que, a princpio, caracterizaria a agresso. Entre outros, esto as invases, ataques, ocupaes, bloqueios, permitir o para agresso a um terceiro Estado ou enviar bandos, grupos, mercenrios.

A diferena bsica entre os dois conceitos de agresso concentra-se na vinculao estrita aos termos do Art. 2, 4, da Carta (primeira alternativa) ou o acrscimo da violao soberania estatal a esses termos, que se funda na definio de agresso dada pela Resoluo n 3314 (XXIX) de 14 de dezembro de 1974. Se, de um lado, cremos ser insuficiente esse conceito quando as relaes internacionais so pautadas por coeres econmicas; de outro lado, vrias delegaes governamentais sugestionaram no incluir o crime de agresso, por vrios motivos. Destacamos o argumento de impreciso da responsabilidade individual criminal nessa seara. E, tambm, o argumento de possveis confuses entre as funes do futuro TPI e as do Conselho de Segurana.

Por esses fatores foi grande a polmica sobre a definio do crime de agresso. Assim, o art. 5, 1, alnea d, do Estatuto, prev o crime de agresso, mas o 2 do mesmo artigo remete a definio desse crime para futura emenda (segundo o art. 121 do Estatuto) ou reviso (prevista pelo art. 123 do Estatuto), pois durante a Conferncia de Roma no houve consenso sobre a tipificao desse crime, apenas consolidando de que o tipo no deve ser contrrio com o disposto na Carta das Naes Unidas.

A controvrsia sobre este tipo de crime permanece na Comisso Preparatria para o TPI (PrepCom), que est discutindo os elementos dos crimes e as regras de procedimento e prova. Nas duas primeiras, realizadas nos dias 16 a 26 de fevereiro e 26 de julho a 13 de agosto de 1999, tem-se trs propostas sobre o crime de agresso: a dos pases rabes, a da Alemanha e a da Rssia. A proposta mais abrangente foi a elaborada pelos pases rabes (Bahrain, Iraque, Lbano, Lbia, Om, Sudo, Sria e Yemen), para os quais a agresso envolve da privao da autodeterminao, liberdade e independncia ameaa e uso de fora armada para violar a soberania, integridade territorial, independncia poltica ou direitos inalienveis de outro povo. Este grupo de pases elegem, ainda, uma srie de situaes especficas de agresso, como bloqueios e uso de mercenrios e grupos irregulares[23]. No outro extremo est a proposta da Federao Russa que, de um lado, condiciona esse crime prvia determinao de um ato de agresso pelo Conselho de Segurana e, de outro lado, limita o objeto concepo, preparao, incio e execuo de uma guerra de agresso[24]. Por fim, a Alemanha prope um meio termo, ao condicionar o crime de agresso a ataques armados contra integridade territorial ou independncia poltica de outro Estado, segundo a Carta das Naes Unidas, ao mesmo tempo que ite ingerncia do Conselho de Segurana na determinao destes atos[25]. Como vemos, h muito o que discutir sobre este tema.

5. As posies brasileiras sobre o TPI 5sg32

Antes de tratar desse assunto, importa reconhecer que o Ministrio das Relaes Exteriores estabeleceu constante dilogo com a sociedade civil desde momentos preparatrios Conferncia. Refiro-me em especial s respostas deferidas s demandas da III Conferncia Nacional de Direitos Humanos, que teve nesse particular o Movimento Nacional de Direitos Humanos e o Centro de Proteo Internacional de Direitos Humanos como representantes. Nesses contatos preliminares boa parte das reivindicaes da sociedade civil eram contempladas pelo MRE, embora alguns temas polmicos ainda estavam indefinidos, como o papel do Conselho de Segurana das Naes Unidas. Essa boa relao persistiu na Conferncia, tendo a delegao brasileira comparecido na Sudan Room[26] logo no incio da Conferncia, a fim de dialogar com as ONGs.

O Brasil, no incio da Conferncia, defendia a possibilidade de o promotor iniciar o processo proprio motu, tendo independncia em relao aos demais triggering parties (Estados e Conselho de Segurana), o que era extremamente satisfatrio. Tinha posio flexvel em relao ao papel do Conselho de Segurana - CS, no sentido de itir que pudesse esse rgo iniciar um processo, mas era contrrio possibilidade de o CS criar novos tribunais ad hoc e, tampouco, considerar o TPI como um rgo subsidirio daquele ou serem as investigaes ou processos suspensos pelo CS, exceto em circunstncias excepcionais, quando o CS agiria formalmente sob a gide do captulo VII da Carta das Naes Unidas, por um perodo limitado de tempo, o que era razovel na avaliao das ONGs. Entretanto, o Brasil era favorvel jurisdio inerente do TPI somente para o crime do genocdio, sendo favorvel ao chamado mecanismo opt-in para os demais crimes, a fim de favorecer a ratificao universal do Estatuto. Isso significava que, ao ratificar o Estatuto, o Estado s aceitaria a competncia do Tribunal para crimes de genocdio, podendo, para os demais crimes (crimes de guerra, crimes de lesa humanidade e crimes de agresso), no reconhecer essa competncia ou submeter caso a caso.

Essa posio brasileira foi revertida publicamente em plenrio no incio de julho de 1998, no sentido de aceitar a competncia automtica do Tribunal para todos os crimes, o que muito agradou s ONGs. Posteriormente, outras duas questes permaneceram pendentes em relao ao Brasil: a extradio e a priso perptua.

Uma das questes centrais discutidas em Roma, ligadas efetividade da execuo penal, foi a criao de um instituto jurdico para apresentar a pessoa acusada diante o TPI, chamado de surrender. Esse instrumento similar extradio, porm distinto, embora existiam propostas de denominar esse instituto justamente de extradio.

No art. 28 do Draft para o estabelecimento de um tribunal penal internacional para o Apartheid e outros crimes internacionais, criado no j mencionado estudo de especialistas sobre a Conveno do Apartheid de 1973 e instrumentos conexos,[27] o conceito de surrender era realmente equivalente ao de extradio. No 2 desse artigo 28, entretanto, taxativamente determina-se que no seriam obstculos para a entrega (a) alegaes de que se trata da exceo de crime poltico[28] , (b) que o indivduo nacional do Estado requerido e (c) por outras condies ou restries impostas pelos Estados requeridos na prtica de extradio em relao a outros Estados. Assim, teramos uma situao curiosa, pois o aspecto que nos leva a considerar que a extradio e a entrega seriam equivalentes justamente o elemento que neutraliza os efeitos nocivos dessa equivalncia e marca um princpio de diferena entre os institutos. Ou, em outros termos, quando a entrega prev os aspectos prticos da extradio, evitando empecilhos para o julgamento no ento hipottico TPI (como o crime poltico, a proibio de extradio de nacionais e os direitos internos), iguala os institutos mas tambm estabelece um patamar de diferenciao para a jurisdio internacional, no permitindo escusas internas fundadas em poltica de extradio.

Assim, necessitou-se firmar a posio de no itir a confuso entre a extradio e surrender, o que foi claramente diferenciado no Estatuto final. A delegao brasileira, entretanto, tendo em vista a Constituio Federal de 1988, que veta a extradio de brasileiros natos e de brasileiros naturalizados antes do fato criminoso (nesse ltimo caso com a exceo dos crimes de trfico de entorpecentes), defendeu que no havia possibilidade de o Brasil extraditar os nacionais dessas categorias para o futuro Tribunal, caso fosse necessrio. E, apesar de votar a favor do Estatuto no plenrio final da Conferncia, fez declarao de voto no sentido das dificuldades constitucionais nessa matria.

Essa posio foi contestada pelo presente autor, em artigo distribudo na Conferncia, intitulado The International Criminal Court: Brazil and the Question of Extradition, pelos seguintes motivos:

a. no se trata do antigo instituto da extradio, que se reporta a entrega de uma pessoa, submetida sentena penal (provisria ou definitiva), de uma jurisdio soberana a outra. Trata-se de entrega sui generis, em que um Estado transfere determinada pessoa a uma jurisdio penal internacional que ajudou a construir. A Constituio brasileira certamente no se refere a esse caso especial, por impossibilidade de lgica e de vaticnio;

b. o pargrafo 2, do art. 5, da CF/88, afirma de forma categrica que os direitos e garantias previstos na Constituio brasileira no excluem outros decorrentes do sistema ou do regime por ela adotados ou, ainda, provindo dos tratados em que o Brasil seja parte. O Tribunal Penal Internacional est sendo formado mediante um tratado, o que significa dar-lhe recepo constitucional. Sabemos, verdade, que o Supremo Tribunal Federal nega arbitrariamente esse dispositivo constitucional, determinando que os tratados de direitos humanos ou humanitrio no se diferenciam dos demais tratados e, portanto, possuem o mesmo status de lei federal, o que significa dizer que uma lei posterior dessa natureza pode derrogar tratados ratificados anteriormente pelo Brasil. Entretanto, optamos pelo concebido na Constituio, e no no imposto por interpretao;

c. as disposies transitrias da CF/88 propugnam a criao de um Tribunal Internacional dos Direitos Humanos, enquanto princpios constitucionais direcionam as relaes internacionais brasileiras mediante a prevalncia dos direitos humanos. Embora o Tribunal Penal no seja exclusivamente um tribunal de direitos humanos[29], possui aspectos intrnsecos aos mesmos e, o que importante, vai de encontro com o projeto constitucional brasileiro.

Denunciamos, ento, a contraditria e cmoda posio brasileira, evitando que criminosos brasileiros fossem apresentados ao Tribunal e ao mesmo tempo impedindo que o Brasil se transformasse em um reduto de criminosos estrangeiros.

Assim, o art. 102 do Estatuto diferencia os termos surrender de extradition, sendo o primeiro a conduo de uma pessoa de um Estado ao Tribunal, de acordo com o Estatuto, e o segundo a conduo de uma pessoa de um Estado a outro, de acordo com tratados, convenes ou legislao nacional. Ressalta-se que a execuo penal, mediante acordo entre os Estados e o TPI, poder ser no Estado que entrega. Ora, inconcebvel este tipo de situao na extradio.

O Tribunal Penal Internacional um produto do esforo conjunto e democrtico dos Estados, das Organizaes Internacionais e das ONGs. Portanto, nico, no possui paralelo histrico, significando a primeira jurisdio internacional permanente de carter penal, que de forma no seletiva e desvinculada de uma guerra especfica procura por fim a era de atrocidades que presenciamos. Como o prprio prembulo do Estatuto menciona: atrocidades que desafiam a imaginao e comovem profundamente a conscincia da humanidade.

A nossa Constituio Federal perfeitamente adequada ao Estatuto do TPI, em especial pela abertura do 2, do Art. 5, mas sobretudo pela principiologia que a rege e orienta toda a sua estrutura segundo a dignidade humana, paz, direitos humanos e direitos fundamentais. O TPI uma necessidade, e no sobreposio. a respirao de uma Constituio como a nossa, pois o TPI s atuar se ela for ultrajada. Alis, pode significar a respirao das pessoas que aqui vivem e sobrevivem, e no das autoridades e poderosos que aqui so facnoras.

A proposta de emenda constitucional que ora apresentamos a expresso desse esprito, afirmando a construo garantista e humana do nosso sistema jurdico, ao resguard-lo com as possibilidades do
TPI. A PEC em questo tem o seguinte teor:

Art. 5 [...] 3 - A Repblica Federativa do Brasil poder reconhecer a jurisdio do Tribunal Penal Internacional, nas condies previstas no Estatuto aprovado em Roma no dia 17 de julho de 1998.

Sobre o outro problema constitucional (priso perptua), diga-se que segundo o art. 77 do Estatuto, uma pessoa condenada, por algum crime de competncia do Tribunal, poder ser reclusa por um perodo no superior a 30 anos (o mesmo limite ser imposto em caso de cometimento de mais de um crime). Todavia, em casos de extrema gravidade do crime e relevando as caractersticas pessoais do condenado, a recluso poder ser de perpetuidade. A priso perptua a exceo da exceo, pois a competncia do TPI sempre diz respeito a crimes graves ( uma condio de issibilidade) e a extrema gravidade deve ser entendida como situao limite.

Um exemplo recente dessa situao limite foi a deciso histrica do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, proferida no dia 4 de setembro de 1998. Pela primeira vez um tribunal penal internacional aplicou a Conveno sobre o Genocdio de 1948, ao condenar Jean Kambanda priso perptua. Ru confesso, Kambanda foi ministro do governo provisrio de Ruanda em 1994, quando cerca de um milho de pessoas foram assassinadas. O Tribunal Ad Hoc de Ruanda determinou a pena mxima em razo da natureza dos crimes e do cargo ocupado por Kambanda.

Alm de prevista para situaes limites, a priso perptua disposta no Estatuto no perptua em todos os seus termos, j que o 3, do art. 110, prev a reviso da pena aps 25 anos de cumprimento, a fim de saber se essa pode ser reduzida. Neste caso, o recluso poder ter sua pena reduzida se uma ou mais condies estiverem presentes (4, do art. 110): a) O recluso manifestou, desde o princpio e de forma continuada, vontade de cooperar com o Tribunal em suas investigaes e processo; b) O recluso facilitou, de forma voluntria, a execuo das decises e ordens do Tribunal em outros casos, em particular auxiliando na localizao de bens sobre os quais incidam multas, seqestro ou reparao que possam ser utilizados em benefcio das vtimas; ou c) Outros fatores previstos nas Regras de Procedimento e Prova que permitam determinar uma mudana nas circunstncias suficientemente clara e importante para justificar a reduo da pena. E se durante tal reviso o TPI no alterar a pena, h possibilidade de voltar a examinar a questo posteriormente (5 do mesmo art. 110).

Apesar de a priso perptua ser prevista nestas condies e, para muitos crimes previstos na competncia do Tribunal, o Brasil prever pena de morte por fuzilamento (ver Cdigo Penal Militar, Livro II, Dos Crimes Militares em Tempo de Guerra, arts. 355-408), devemos lutar, aps nossa ratificao, para que se emende ou revise o Estatuto (arts. 121 e 123, respectivamente), no sentido de abolir este tipo de pena, que reputo desumana em si mesma.

Importa considerar que a diplomacia brasileira e boa parte da intelectualidade deste pas demonstrou claro nimo, consentimento e desejo, em relao ratificao do TPI pelo Brasil, no seminrio oficial do Ministrio das Relaes Exteriores sobre o assunto, organizado em conjunto com o Conselho da Justia Federal[30]. E por este fato a sociedade civil brasileira agradece, principalmente porque esse processo de discusso, que incluiu outros seminrios e tambm audincias pblicas na Cmara dos Deputados, culminou na inicialmente mencionada do Estatuto pelo Brasil. Esperamos, agora, que as convices do Executivo, aps acalorado e profundo debate, inspirem a pronta aprovao deste Estatuto pelo Congresso Nacional.

Por fim, acredito que a construo do TPI um dos mais belos projetos construdos pela humanidade, no sentido que o poeta pode nos dar:

Belo porque uma porta

abrindo-se em mais sadas.

Belo como a ltima onda

que o fim do mar sempre adia

Joo Cabral de Melo Neto[31]


[1] Assinado pelos Estados Unidos, Gr-Bretanha, Frana e Unio Sovitica, em 8 de agosto de 1945. Estabelecia o Tribunal Militar Internacional, a fim de julgar crimes contra a paz (v.g., envolvendo planejamento, instigao e provocao de agresso), crimes de guerra (v.g., contra direitos e costumes humanitrios - Convenes de Haia, geralmente reconhecidos pelas foras militares de naes civilizadas) e crimes contra a humanidade (v.g., extermnio racial, tnico e religioso; atrocidades em larga escala contra a civis).

[2] Instrumento da cpula dos Aliados (Allied Control Council), promulgado em 20 de dezembro de 1945.

[3] O International Military Tribunal for the Far East teve por base uma carta promulgada pelo General Douglas MacArthur, comandante das Foras Aliadas, em 19 de Janeiro de 1946, inspirada no London Agreement.

[4] Sobre os tribunais de Nuremberg e do Japo, bem como o direito internacional humanitrio, ver MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direitos Humanos e Conflitos Armados. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1997.

[5] LAWYERS COMITTEE FOR HUMAN RIGHTS. Establishing an International Criminal Court: Major Unresolved Issues in the Draft Statute. New York: LCHR, International Criminal Court Briefing Series, volume I, number I, august, 1996.

[6] O Brasil ratificou este tratado em 28 de setembro de 1989.

[7] Ver Universal Jurisdiction: 14 principles on the effective exercise of universal jurisdiction. London: Amnesty International, may 1999, AI Index: IOR 53/01/99.

[8] O TPI ter jurisdio somente sobre crimes cometidos aps sua entrada em vigor e, para os Estados que ratificarem aps este fato, s exercer suas faculdades aps este consentimento (ver art. 11).

[9] HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve sculo XX: 1914-1991. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 57.

[10] Aprovada pela Assemblia Geral das Naes Unidas, res. 260 A (III).

[11] O preceito que coloca o genocdio como um crime vel de ser cometido em tempos de guerra e de paz o art. 1 da mesma Conveno.

[12] Doc. E/CN.4/1426, 1981: Study on Ways and Means of Ensuring the Implementation of Internacional Instruments Such as the International Convention on the Suppression and Punishment of the Crime of Apartheid, Including the Establishment of the International Jurisdiction Envisaged by the Convention.

[13] Ver doc G. A., 50th Sess., Supp. No. 22, A/51/22, 1996. Report of the Ad Hoc Comittee on the Establishment of an International Criminal Court, Volume II.

[14] Refiro-me Opinio Consultiva da CIJ, emitida em 28 de maio de 1951, sobre Reservas Conveno para a Preveno e a Sano do Delito de Genocdio. Nessa oportunidade a CIJ afirmou que: As origens da Conveno indicam que as Naes Unidas tinham a inteno de condenar e sancionar o genocdio como um crime do direito internacional que consiste em uma negao do direito de existncia a grupos humanos inteiros, negao que comove a conscincia humana, causa uma grande perda humanidade e contrria lei moral e ao esprito e objetivos das Naes Unidas (resoluo 96 (I) da Assemblia Geral, 11 de dezembro de 1946). A primeira conseqncia que deriva desse conceito que os princpios implcitos nessa Conveno so princpios reconhecidos pelas naes civilizadas como vinculantes para os Estados, ainda quando no exista uma obrigao convencional.

[15] Ver doc G. A., 50th Sess., Supp. No. 22, A/51/22, 1996., Volume II.

[16] BASSIOUNI, Cherif. Crimes Against Humanity in International Law. 1992, p. 168.

[17] Sobre detalhes da definio desse crime no Estatuto do Tribunal e em outros instrumentos internacionais, ver JARDIM, Tarciso Dal Maso. O Crime do Desaparecimento Forado de Pessoas: aproximaes e dissonncias entre o sistema interamericano de direitos humanos e a prtica brasileira. Braslia: Braslia Jurdica, 1999.

[18] Doc. G. A., 51st Sess., Supp. No. 22, A/51/22, 1996.

[19] McCORMACK, Timothy L. H. From Sun Tzu to the Sixth Comittee, p. 31-63. In The Law of War Crimes: National and International Approaches. Neetherland: Kluwer Law International, 1997.

[20] Inspirado principalmente no Art. 50 da Conveno para a Melhoria da Sorte dos Feridos e Enfermos dos Exrcitos em Campanha, no Art. 51 da Conveno para a Melhoria da Sorte dos Feridos, Enfermos e Nufragos das Foras Armadas no Mar, no Art. 130 da Conveno Sobre o Tratamento aos Prisioneiros de Guerra e no Art. 147 da Conveno Sobre a Proteo das Pessoas Civis em Tempos de Guerra.

[21] CANADO TRINDADE et alli. As Trs Vertentes da Proteo Internacional dos Direitos da Pessoa Humana. San Jos, Costa Rica / Braslia: IIDH, CICV, ACNUR, 1996, p. 69.

[22] Sobre a violncia contra a mulher em conflitos armados ver SAJOR, Indai Lourdes (ed.). Common Grounds: violence against women in war and armed conflict situations. Asian Center for Womens Human Rights, 1998.

[23] Ver doc. Pcnicc/1999/dp. 11, 26 february 1999.

[24] Ver doc. Pcnicc/1999/dp. 12, 29 july 1999.

[25] Ver doc. Pcnicc/1999/dp. 13, 30 july 1999

[26] A Sudan Room uma sala da sede da FAO (local da Conferncia), onde a CICC (Coalizao de ONGs para o estabelecimento do TPI) estabeleceu-se e, por via de consequncia, transformou-se numa espcie de quartel-general das ONGs credenciadas para a Conferncia.

[27] Doc. E/CN.4/1426, 1981.

[28] Lembre que o art. VII da Conveno de Genocdio de 1948 determina que, para efeito de extradio, o genocdio no seria considerado delito poltico, como de resto os demais crimes previstos nesse draft eram protegidos por clusulas similares em algum tratado j existente na poca.

[29] Pois tambm envolve o direito internacional humanitrio.

[30] Seminrio Internacional realizado no Superior Tribunal de Justia, entre os dias 8 a 10 de Setembro de 1999, e intitulado O Tribunal Penal Internacional e a Constituio Brasileira.

[31] NETO, Joo Cabral de Melo. Morte e Vida Severina e outros poemas em voz alta. 31 ed. Rio de Janeiro: Ed. Jos Olympio, 1992, p. 111.


O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL,
A PENA DE PRISO PERPTUA E A CONSTITUIO BRASILEIRA
Sylvia Helena Helena F. Steiner

Em tema to controvertido, como o que se refere previso, pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional, da pena de priso perptua, vejo como necessrio, primeiramente, tecer algumas consideraes sobre as discusses havidas durante a elaborao de suas regras. E, antes de qualquer considero, acho necessrio deixar claro que num artigo, dada a prpria exiguidade de espao de que dispomos para expor nossas idias, no pode haver a pretenso de se esgotar a matria, e nem sequer, diga-se, de aprofundar de tal modo as reflexes que estas traduzam toda nossa anlise sobre o tema. Assim, estas notas devem ser interpretadas como, realmente, notas que so.

A primeira observao que desejo fazer sobre o fato de que, desde o incio das discusses acerca da criao de um Tribunal Penal Internacional permanente, a Comisso de Direito Internacional da ONU, e depois o Comit Preparatrio criado pela Assemblia Geral, preocuparam-se em no privilegiar nenhum dos principais sistemas judiciais existentes, aqueles com razes no common law e aqueles com razes na civil law. Em outras palavras, nos principais sistemas jurdicos vigentes, os primeiros congregando parte dos pases de tradio anglo-saxnica, e, o segundo, os pases com razes no direito romano, como o nosso. No se buscava, em verdade, criar um sistema hbrido, mas sim um sistema de regras original, novo, especfico para regular a estrutura de uma Corte internacional com perfil desvinculado de quaisquer Estados.

A proposta, no entanto, no meu entender, no vingou de todo, pois verifica-se na verdade que houve uma tentativa de conciliao entre institutos prprios do sistema do common law e outros prprios do sistema da civil law. Esse casamento forado, em diversos dispositivos do Estatuto, demonstrou no ter dado certo, como alis no daria qualquer casamento forado.

No que diz especificamente com a previso das penas a serem impostas, a discusso surgida aps a apresentao do projeto elaborado pela Comisso de Direito Internacional foi justamente sobre a ausncia de previso da pena capital.

Em verdade, como bem resumido por Norberto Bobbio[1], duas so as grandes correntes que antepem suas concepes sobre a justificativa da pena de morte: uma, a que se assenta numa concepo chamada tica, para a qual a pena de morte decorrncia da regra de justia. Tem carter retributivo. A pena justa. Outra, a concepo chamada utilitarista, para a qual a pena de morte s se justifica se provar-se que til, quer para fins de preveno geral, quer para fins de preveno especial, quer para a defesa social.

Tenho que, dentro dessa perspectiva jusfilosfica, os pases com tradio assentada no common law so os que mais frequentemente compartilham a idia de que a pena de morte justa. No importa se til, ou se necessria. apenas justa. a medida da justa retribuio.

No vejo outro motivo para a discusso que se abriu, no seio da Comisso Ad Hoc e depois do Comit Preparatrio, vista do projeto elaborado pela Comisso de Direito Internacional da ONU, o qual no previa a pena de morte. Muitas das delegaes sustentavam, e isso prosseguiu inclusive nas discusses havidas durante a Conferncia de Roma, que sem a possibilidade de se aplicar a pena de morte os objetivos e a credibilidade da Corte seriam abalados. Seu ponto de apoio era a sustentao do fato de que a gravidade dos crimes a serem julgados pela Corte seria reforada com a previso da pena de morte. Insistiam essas delegaes em que no havia nenhuma proibio, sequer recomendao contra a pena de morte, derivada dos costumes de direito internacional. A pena de morte seria, na perspectiva dessas delegaes, a pena justa.

A nosso ver, no entanto, a oposio derivava muito mais do fato de entenderem, essas delegaes, que a no previso da pena de morte poderia ser interpretada como um progressivo desenvolvimento do costume internacional no sentido da proscrio dessa pena.

De outro lado, os delegados de pases com sistemas mais assentados na civil law, e que portanto tm uma viso diferente das finalidades da pena - muito mais num sentido utilitrio do que retributivo - invocaram o fato de que, quer pases signatrios do Protocolo Adicional ao Pacto de Direitos Civis e Polticos, quer os pases americanos signatrios da Conveno Americana sobre Direitos Humanos, e os europeus signatrios da Conveno Europia, tinham um compromisso internacional no sentido da abolio da pena de morte, ou ao menos de sua no extenso a outros delitos. A prevalecer a previso de tal pena no Estatuto, no poderiam eles ser signatrios da Conveno de Roma, nem tampouco colaborar com a obrigao da entrega de pessoas Corte se esta pudesse conden-los pena de morte.

Como tambm se discutia a incluso da pena de priso perptua, esta sim prevista no projeto da Comisso de Direito Internacional, algumas delegaes entenderam que a manuteno deste tipo de pena seria necessria, no sentido de mostrar, s delegaes que insistiam na incluso da pena morte, alguma flexibilidade, para alcanar-se um acordo. Ressalte-se que discusses sobre a pena de priso perptua tm sido tema frequente, mesmo porque h considervel doutrina que considera tal punio contrria ao princpio de humanidade das penas, defendido nas instncias internacionais.

Portugal, e os pases ibero-americanos, foram os grandes opositores da incluso no s da pena capital, mas tambm da pena de priso perptua no Estatuto do Tribunal.

No entanto, venceu a corrente conciliadora. Assim, as negociaes levaram aceitao da manuteno, no Artigo 77 de seu texto, da pena de priso perptua, em troca da no incluso da pena capital.

Por seu lado, os detratores da pena de priso perptua fizeram constar tal pena como exceo, a ser aplicada apenas em casos de excepcional gravidade dos crimes ou de circunstncias individuais do criminoso, alm de clusula mandatria de reviso da pena , aps 25 anos de seu cumprimento - Artigo 110 do Estatuto. Caso indeferida a reviso, a Corte se obriga a proceder a novas e sucessivas revises peridicas, na forma ainda a ser regulamentada pelas Regras de Procedimento e Prova que esto sendo discutidas junto Comisso Preparatria - PrepCom.

Entendi necessrio esse pequeno histrico, tirado da excelente obra organizada por Roy S. Lee[2], a fim de que possamos compreender que a manuteno da previso da pena de priso perptua no Estatuto deu-se muito mais por necessidade, para evitar-se um maior confronto com as delegaes que insistiam na incluso da pena de morte, o que vem bem a demonstrar que grande parte das naes ainda v nas penas mais severas a nica forma de justa retribuio aos crimes mais graves.

Cumpre ainda lembrar que, por deciso da maioria das delegaes, mais uma vez aquelas mais afinadas com o sistema da common law, a aplicao das penas previstas no Estatuto fica a critrio dos Juzes, que tm poder discricionrio para escolher, dentre as espcies previstas, a pena a ser aplicada. Nenhum dos delitos previstos no Estatuto traz pena especfica cominada, semelhana dos previstos nos estatutos dos Tribunais ad hoc de Ruanda e da extinta Yugoslavia. Tal forma de cominao de penas, totalmente estranha s nossas tradies, tem igualmente sido interpretada sem razo - como ofensiva ao princpio de individualizao das penas.

Aps esse breve eio pela histria de um debate que resultou, a nosso ver, na infeliz e injustificvel incluso da pena de priso perptua no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, resta expor nosso entendimento acerca da compatibilidade ou no de tal previso com nosso texto constitucional. Essa, afinal, a tarefa para a qual fomos desafiados.

Acredito que no haja uma resposta simples, fcil, detectvel de pronto. Qualquer que seja a matria em discusso, a prpria essncia da cincia do direito reside na interpretao. Direito interpretao. A norma no a decomposio de uma verdade posta. A norma o que nela interpretamos.

Em verdade, o que me proponho a fazer aqui dar incio a algumas reflexes, necessrias para que possamos compreender o modelo de sistema penal proposto pelo Estatuto do TPI, em confronto com um modelo por ns mais conhecido e tido por ideal e justo.

No pretendo, mesmo porque no me habilito para faz-lo, entrar no discurso filosfico. Como operadores do direito , acabamos criando o hbito de buscar respostas nas normas, muito mais do que nos valores que lhes do sustentao.

A primeira e importante observao necessria a de que a ratificao do Brasil ao TPI no implica, jamais poder implicar, em defesa da pena de priso perptua.

A Constituio Brasileira prev um extenso e cuidado rol de direitos e garantias fundamentais no seu artigo 5. Por fora do artigo 60, pr.4, inc.4, sequer proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias individuais pode ser objeto de deliberao. Assim, primeira vista, o inciso XLVII, b, do art. 5 da CF, que proscreve a pena de priso perptua, geraria a incompatibilidade do texto do Artigo 77 do Estatuto, a impedir a ratificao do Brasil.

No vejo como to simples a equao.

Primeiramente, e dentro da mais tradicional doutrina constitucionalista, de se lembrar que os princpios, sempre, prevalecem sobre as regras. E princpio da Repblica Federativa do Brasil reger-se, nas suas relaes internacionais, pela prevalncia dos direitos humanos ( art. 4, II ). No h que se esquecer que o pas tem por um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana ( Art. 1, III ). Nem como esquecer-se, ainda, que ao rol de direitos e garantias fundamentais agregam-se os direitos e garantias previstos nos tratados internacionais dos quais o pas seja parte ( Art. 5, pr.2)

Nas relaes internacionais, pois, princpio constitucional reger-se o pas pela prevalncia dos direitos humanos. No vem desvinculada de respaldo principiolgico a norma inserta no art. 7 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias que aduz que o Brasil propugnar pela criao de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos. No esta uma norma programtica despida de qualquer contedo principiolgico. Ao contrrio, aponta para uma das formas pela qual se realizar o contedo do princpio.

Ora, j numa primeira viso panormica sobre princpios constitucionais expressos - formalmente e materialmente constitucionais, pois - se depreende que o pas compromete-se, na ordem internacional, com a adoo de medidas de preservao de direitos fundamentais, e propugna pela criao de um tribunal internacional que apure violes ad direitos humanos.

O Prembulo do Estatuto, embora no tenha o carter obrigacional de suas disposies, aponta para o TPI como meio de preservao e restabelecimento da comunidade internacional frente a ameaas decorrentes dos mais graves crimes contra os direitos fundamentais, de transcendncia internacional. O fim da impunidade, e a preveno de novos crimes, so objetivos reafirmados pelos signatrios do Estatuto. Portanto, tem o TPI inegavelmente o perfil desse Tribunal Internacional de Direitos Humanos previsto no Artigo 7 do ADCT, e seus objetivos traduzem a prevalncia, na ordem internacional, da proteo de tais direitos.

Em si mesmo, pois, o Tribunal Penal Internacional no s atende a um princpio constitucional, como o Brasil se coloca como incentivador de sua implementao.

Essa a linha da primeira reflexo que proponho aos estudiosos da matria. A criao de um Tribunal Penal Internacional de direitos humanos princpio expresso em nossa Constituio. Assim, regras especficas contidas no texto constitucional devem ser interpretadas de molde a se conformar com o princpio de que decorrem. No o inverso: no se pode privilegiar a regra, em detrimento do princpio

Vejo assim que, ao propugnar pela criao de um Tribunal Penal Internacional de direitos humanos, no poderia o constituinte , evidncia, condicionar-lhe a estrutura, organizao e funcionamento ao modelo e semelhana dos tribunais internos. Regendo-se nas suas relaes internacionais pela prevalncia dos direitos humanos, a existncia de normas de direito interno diversas daquelas previstas numa Corte internacional no poderia levar a um juzo de incompatibilidade, quer formal, muito menos substancial, por uma questo de lgica.

Numa segunda ordem de reflexes, vejo que o constituinte, ao formular o elenco de direitos e garantias previsto no art. 5, mais especificamente o regime penal contido nas regras dos incisos XLV, XLVI, XLVII, XLVIII e XLIX, no poderia ter em conta seno as relaes entre o Estado, atravs de seus rgos repressivos, e o indivduo que, nos termos do princpio da territorialidade, houver cometido delito no territrio nacional ou nas suas extenses, como previsto em lei.

As normas de direito penal da Constituio regulam o sistema punitivo interno. Do a exata medida do que o constituinte v como justa retribuio. No se projeta, assim, para outros sistemas penais aos quais o pas se vincule por fora de compromissos internacionais.

Alis, esse j fra o entendimento do eminente Ministro Francisco Resek, no julgamento da Extradio n 426 - tida como leading case - em que o Supremo Tribunal Federal deferiu extradio de estrangeiro a Estado requerente no qual se aplicaria a pena de priso perptua, sem condies ( RTJ 115/969). Em seu judicioso Voto, o eminente internacionalista j afirmava que (...) no que concerne ao pargrafo 11 do rol constitucional de garantias ( e aqui o Magistrado se referia ao rol de direito e garantias fundamentais do art. 153 da Constituio anterior, e que dizia respeito proibio de penas de priso perptua) ele estabelece um padro processual no que se refere a este pas, no mbito especial da jurisdio desta Repblica. A lei extradicional brasileira, em absoluto, no faz outra restrio salvo aquela que tange pena de morte. (...) O que a Procuradoria Geral da Repblica prope uma extenso transnacional do princpio inscrito no pargrafo 11 do rol de garantias.

No mesmo julgamento, o no menos iminente Ministro Sidney Sanches afirma: (...) O pargrafo 11 do art. 153 da Constituio Federal, a meu ver, visou impedir apenas a imposio das penas ali previstas ( inclusive a perptua) para os que aqui tenham que ser julgados. No h de ter pretendido eficcia fora do pas.

Na Extradio n. 669.0, o eminente Ministro Celso de Mello, trazendo precedente da lavra do respeitado Ministro Seplveda Pertence, dele transcreve: (...) A questo da imposio das penas privativas de liberdade, tais como abstratamente definidas na legislao de New Jersey, traduz opo judicial peculiar ao ordenamento jurdico daquele estado-membro da Unio norte americana. Nesse contexto, no se pode impor, no plano das relaes extradicionais entre estados soberanos, a compulsria submisso da parte Requerente ao modelo jurdico de aplicao de penas vigente no mbito do sistema normativo do estado a quem a extradio solicitada. Em seu Voto, o relator conclui: (...) A forada importao de critrios ou de institutos penais no se legitima em face do direito das gentes nem se justifica luz de nosso prprio sistema jurdico. ( RTJ 133/1097).

Tais precedentes so ora trazidos apenas para demonstrar a sensibilidade de nossa Corte Superior no sentido de afirmar a aplicao territorial de nossa lei penal. No diversa a situao, como ora se apresenta, de ter-se vista ordenamento que provm seuqer de outro Estado soberano, mas de rgo supranacional, cujas regras jamais poderiam ser tidas por incompatveis com nossas regras internas pelo simples fato de que se aplicam por rgos jurisdicionais distintos.

J por essa reflexo, tambm, no vejo como possam quaisquer institutos de direito penal interno, ainda que com status constitucional, serem opostos como barreiras intransponveis submisso do pas a um sistema penal internacional.

Mas no s.

A ordem jurdica, interna ou internacional, dinmica. E no se pode cogitar de um princpio, ou de uma norma, dissociado do valor que lhe subjacente, ou de que decorrente. Em outras palavras, uma norma jurdica no subsiste s por sua existncia formal, mas tambm pelo seu contedo substancial. Nessa medida, a prpria Constituio , mesmo sem reviso ou emendas que lhe alterem a forma, pode assumir novos contedos decorrentes de um cmbio no contedo material dos direitos envolvidos. Assim, alguns autores resumem esse fenmeno como sendo aquele em que h um processo informal de mudana na Constituio, por meio do qual seriam atribudos novos contedos, novos sentidos no expressos na letra das normas. Tais mudanas adviriam, pois, a partir de mudanas na realidade, e seriam reconhecidas atravs, a exemplo, de nova interpretao do texto constitucional.

Essas mutaes podem alterar o contedo material de normas constitucionais, e so constitucionais na medida em que no afrontem princpios, nem arranhem as chamadas reservas materiais ou reservas de justia, nem causem trauma ao sistema. E decorrem da interpretao, de uma nova construo jurisprudencial, da mudana dos usos e costumes, de prticas governamentais e, aqui convergimos, da implementao da normativa internacional.

Em mais simples anotaes, tenho que a construo, normativa ou decorrente dos usos e costumes, de um arcabouo jurdico internacional, pode trazer alteraes materiais Constituio. E, no caso, na criao de um Tribunal Penal Internacional, inexistente poca da promulgao do texto da lei maior, mas prevista em suas disposies finais transitrias, reflete-se esse poder difuso para provocar alterao no contedo da Constituio.

No haveria assim, nas disposies estatutrias, qualquer incompatibilidade com o texto da lei maior, na medida em que a proibio da pena de priso perptua restringiria o legislador interno, e to somente ele. De outro lado, a afirmao do princpio da prevalncia dos direitos humanos no plano internacional, e da disposio constitucional de se propugnar pela criao de um tribunal internacional de direitos humanos, levam ao entendimento de que as normas do Estatuto desse tribunal podem operar mutaes substanciais no texto constitucional, que a assim a abrig-las sem a necessidade de qualquer alterao formal em seu texto, e sempre desde que se conformem com suas reservas materiais.

Por fim, e como ltimo argumento para reflexo, lembro que o prprio texto constitucional, no mesmo rol de direitos e garantias do art. 5, prev a exceo da pena de morte, para os crimes militares cometidos em tempo de guerra ( Art. 5, XLVII, a).

A leitura do texto do Cdigo Penal Militar ( Decreto Lei 1001, de 21.10.69), nos traz a triste viso de um extenso rol de delitos punidos com pena capital. A traio ( art. 355), a fuga ( art. 365), o dano em bens de interesse militar ( art. 384), o abandono de posto ( art. 390) so alguns exemplos. Prev, ainda, alguns delitos cujas condutas tpicas so semelhantes s que vm elencadas no rol do Artigo 8 do Estatuto, ou no Artigo 3 Comum das Convenes de Genebra, que descreve os crimes de guerra. Tambm, a exemplo, pune nosso Cdigo Penal Militar, com a pena de morte, os crimes de genocdio ( art. 401 ), e de violncia sexual ( art. 407), este quando houver o resultado morte. Veja-se que no distante de diversas definies tpicas trazidas pelo Estatuto, as quais, apenas em situaes excepcionais, poderiam ser punidas com a pena de priso perptua. Portanto, nossa legislao interna, ao abrigo de dispositivo constitucional, prev pena muito mais severa que aquela trazida pelo Estatuto para algumas figuras tpicas anlogas.

Ainda recentemente, o Brasil ratificou o segundo Protocolo Adicional da Conveno Americana sobre Direitos Humanos, o qual, em seu Artigo 2, reafirma que os Estados signatrios se comprometem com a abolio da pena de morte, ressalvando-se, no entanto, sua previso aos casos de crimes de guerra.

No h, pois, uma restrio moral ou substancial do constituinte contra a pena de morte em casos de crimes cometidos em situao de guerra, embora, nesse caso, tenha o Brasil assumido inclusive obrigaes internacionais no sentido de no ampliar as hipteses previstas. Diante dessa constatao, refora-se a idia de que a previso restritiva pena de priso perptua, dirigida ao legislador ordinrio interno, no oferece resistncia apenao de crimes internacionais, em tudo assemelhados aos crimes cometidos em tempo de guerra - aqui compreendidas as situaes de conflito previstas no Estatuto do TPI - que poderiam inclusive, na legislao interna, serem punidos com a pena capital.

Sem a pretenso de ter trazido solues s controvrsias, espero que estas reflexes possam contribuir, ao menos, para que prossiga um debate srio e desapaixonado sobre a importncia do Tribunal Penal Internacional, e a necessidade de o Brasil ratificar seus Estatutos aceitando-lhe a competncia. A aceitao das competncias de uma corte internacional de direitos humanos princpio constitucional, e o princpio, como sabido, deve ser levado em conta como principal critrio de interpretao e integrao do texto constitucional[3].

Sempre oportuno lembrar que o controle internacional sobre a ao dos Estados garantia da promoo dos direitos e garantias fundamentais, como afirmou Fabio Comparato[4], j que a proteo das pessoas contra os mais graves crimes de transcendncia para toda a comunidade internacional no pode ser interpretado como assunto de exclusivo interesse domstico.

A leitura dos diversos dispositivos do Estatuto do Tribunal Penal Internacional demonstra que ele adota o iderio garantista. No deixa de preocupar-se com os princpios garantistas da legalidade dos delitos e das penas, da irretroatividade, da culpabilidade. Em seu Artigo 67 elenca extenso rol de garantias processuais, sob determinados aspectos mais detalhistas inclusive do que vrias das normas processuais de nossa legislao interna.

No se pode, diante de todo esse contedo, afirmar que a previso da pena de priso perptua - expurgada, com razo, de nosso ordenamento interno - traduz a consagrao de um tribunal alheio aos princpios garantistas do direito penal moderno.

De qualquer forma, aliando-se o reconhecimento da existncia de mutao constitucional decorrente da criao de um tribunal internacional de direitos humanos pelo qual o constituinte propugnava, ao fato de abrir o prprio texto constitucional possibilidade de apenao inclusive mais grave a crimes previstos igualmente no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, vejo como possvel a ratificao imediata do Estatuto de Roma, sem que com isto se esteja infringindo quaisquer de suas disposies de proteo a direitos fundamentais.


[1] BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus Editora, 1992.

[2] EINAR FIFE, Rolf, Penalties , in The International Criminal Court - The Making of the Rome Statute. Kluwer Law International, 1999.

[3] BARROSO, Lus Roberto, Interpretao e Aplicao da Constituio. So Paulo: Saraiva, 1998.

[4] referido por WEIS, Carlos, Direitos Humanos Contemporneos. So Paulo: Malheiros, 1999.

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