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O
que o
TRIBUNAL
PENAL INTERNACIONAL 1n1ss
Comisso
de Direitos Humanos
Cmara dos Deputados
fevereiro de 2000 295a5u
APRESENTAO
Uma das principais lutas travadas
pela Comisso de Direitos Humanos da
Cmara dos Deputados no mbito internacional
tem sido a campanha pela criao do
Tribunal Penal Internacional (TPI).
Em 1999 essa meta foi perseguida com
a realizao de diferentes eventos e
articulaes. Representantes da Comisso
defenderam a aplicao mais efetiva
do princpio da justia universal por
meio da criao de um tribunal penal
permanente, capaz de se sobrepor s
jurisdies internas de cada pas. Esta
nova jurisdio, preciso ressaltar,
no estrangeira, mas internacional,
da qual todo Estado-Parte titular.
Ao itir essa jurisdio, no estaremos,
portanto, sacrificando nada de nossa
soberania nacional, mas complementando
nossos esforos para a efetivao dos
direitos humanos to valorizados em
nossa Constituio.
Os tribunais temporrios ad hoc criados aps conflitos
j instaurados, como o de Nuremberg,
que julgou os criminosos da II Guerra
Mundial, e mais recentemente, o de Ruanda
e o da Ex-Iuguslvia, para apreciar
os crimes ocorridos na Bsnia e Kosovo
diferem-se do TPI. Este ser permanente
e com jurisdio para todos os pases
membros da ONU. Processar e julgar
pessoas fsicas que tenham cometido
crimes graves como o de genocdio, crimes
de guerra, contra a humanidade e de
agresso.
A globalizao ora em curso
no campo econmico demanda a correspondente
globalizao no campo dos Direitos Humanos.
E a efetivao universal dos direitos
humanos requer instncias jurdicas
capazes de julgar os violadores dos
direitos da pessoa humana. A importncia
deste Tribunal manifesta principalmente
num momento em que o mundo assiste ao
ressurgimento de conflitos armados em
decorrncia de questes tnicas e religiosas.
Se j existisse esta Corte
Penal Internacional, o ex-general Augusto
Pinochet, responsvel por uma das ditaduras
mais sanguinrias da Amrica Latina,
seria certamente um dos rus submetidos
jurisdio internacional. Em setembro
de 1973, o ex-general deu incio
a um golpe militar contra o Chile do
governo socialista Salvador Allende,
que culminou na morte de 3.197 militantes
de esquerda. A barbrie durou 15 anos,
sem que a justia chilena condenasse
os culpados responsveis pelo golpe
e violaes que se sucederam. Foi preciso
que outros pases tomassem a iniciativa
em punir, visto que, pela jurisdio
interna, os crimes cometidos ficariam
anistiados e prescritos, dadas as contingncias
polticas do Chile.
Ao que pese a idade avanada
e a sade debilitada do ex-ditador,
a priso de Pinochet em Londres e sua
extradio significou um o importante
para demonstrar a relevncia de uma
justia internacional, imparcial
e forte, que consiga fazer os direitos
humanos soprepujarem o direito interno
de cada pas. Se a justia nacional
no pune seus criminosos, h de haver
uma justia no plano internacional capaz
de priorizar os valores da vida, liberdade
e democracia. Desta forma, o Tribunal
representar um expressivo avano, um
freio a inibir o surgimento de carrascos
e ditadores e um meio de punir os que
surgirem.
Obviamente, a jurisdio ser
incidente em casos raros, quando o pas
demonstrar omisso em processar os acusados
e desrespeitar a legislao penal e
processual interna.
Em julho de 1998, na Conferncia
Diplomtica de Plenipotencirios das
Naes Unidas, em Roma, foi aprovado
o Estatuto do Tribunal, o qual estabelece
as condies de funcionamento desta
jurisdio criminal internacional. O
Estatuto define as regras e princpios
em que o futuro Tribunal ir funcionar.
O Brasil,
atravs de seu corpo diplomtico, mesmo
antes desta conferncia j participava
de uma Comisso Preparatria para o
Estabelecimento de um Tribunal Penal
Internacional e teve atuao destacada
no processo de criao deste Tribunal.
Podemos dizer que nossos representantes
internacionais tudo fizeram para colocar
em pratica o art. 7 do Ato das Disposies
Constitucionais Transitrias, da Constituio
Federal, que preceitua: "O Brasil
propugnar pela formao de um tribunal
internacional dos direitos humanos".
No final de 1999, a Comisso
de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados
se fez representar, por este presidente,
na terceira reunio da Comisso Preparatria
para o Estabelecimento de um Tribunal
Penal Internacional na sede da ONU,
em Nova Iorque. Convidado por uma organizao-no
governamental internacional, a "Parliamentarians
For Global Action", participamos
desse importante
evento em que debatemos como as legislaes
nacionais devem se adaptar nova jurisdio
internacional. Voltamos convictos de
que os bices que tm sido apresentados
nesse sentido podem facilmente ser removidos,
caso haja vontade poltica para fazer
prevalecer os valores e princpios maiores,
derivados da Declarao Universal dos
Direitos Humanos e claramente contemplados
pela nossa Constituio.
Este, alis, foi o entendimento
geral observado na Audincia Pblica
realizada pela Comisso de Direitos
Humanos em 2 de fevereiro de 2000. Representantes
dos organismos de Estado ligados aos
direitos humanos, bem como os parlamentares
e ativistas presentes, no opam
barreiras para a harmoniosa adaptao
de nosso ordenamento jurdico jurisdio
da nova corte internacional.
Em 7 de fevereiro de 2000 o Brasil
assinou o tratado referente ao estatuto
de Roma. Em breve, o Congresso Nacional
dever apreciar a futura ratificao.
Estaremos dando um o histrico decisivo
na evoluo dos Direitos Humanos.
Deputado
Nilmrio Miranda
Presidente da Comisso de Direitos Humanos
Volta
ao sumrio
PARA
UMA MELHOR COMPREENSO
DO PAPEL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
O leitor ter, a seguir, trs
artigos extremamente instrutivos, cada
qual com uma abordagem especfica, teis
para uma melhor compreenso do papel
a ser exercido pelo Tribunal Penal Internacional.
O histrico dos debates que culminaram
na estruturao da proposta do Estatuto
do TPI, suas bases jurdicas e suas
funes, bem como a notvel participao
brasileira nas reunies preparatrias
esto a relatados com confiabilidade
por algumas das principais autoridades
no assunto.
A Dra. Sylvia H. F. Steiner
desembargadora federal, especialista
em Direito Penal pela UnB e mestre em
Direito Internacional pela USP, alm
de membro do Instituto Brasileiro de
Cincias Criminais e da Associao Juzes
para a Democracia.
O professor Tarciso Dal Maso
Jardim especialista em Direito Internacional.
Ele participou, como observador representante
do Movimento Nacional de Direitos Humanos,
da Conferncia Diplomtica das Naes
Unidas, em Roma, em 1998, quando foi
aprovado o Estatuto do Tribunal.
O professor Antnio Paulo Cahapuz
de Medeiros, por sua vez, consultor
jurdico do Ministrio das Relaes
Exteriores e doutor em Direito Internacional
pela USP. Ele chefiou as delegaes
brasileiras s Reunies da Comisso
Preparatria do Tribunal Penal Internacional.
A Comisso de Direitos Humanos
solicitou aos trs professores artigos
que resumem palestras por eles pronunciadas
em audincia pblica acerca do tema,
os quais transcrevemos a seguir.
Volta
ao sumrio
O
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E A CONSTITUIO
BRASILEIRA
Antnio
Paulo Cachapuz de Medeiros
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional uma conveno multilateral,
celebrada com o propsito de constituir um tribunal internacional,
dotado de personalidade jurdica prpria,
com sede na Haia.
O Estatuto
compe-se de prembulo e treze partes
(I-estabelecimento do Tribunal; II-competncia,
issibilidade e direito aplicvel;
III-princpios gerais de Direito Penal;
IV-composio e istrao do Tribunal;
V-inqurito e ao penal; VI-processo;
VII-penas; VIII-recurso e reviso; IX-cooperao
internacional e auxlio judicirio;
X-execuo da pena; XI-Assemblia dos
Estados Partes; XII-financiamento; XIII-clusulas
finais), com um total de 128 artigos.
O prembulo proclama a determinao
dos Estados em criar um Tribunal Penal
Internacional, com carter permanente e independente, complementar
das jurisdies penais nacionais,
que exera competncia sobre
indivduos, no que respeita aos crimes mais graves que afetem o conjunto da comunidade internacional.
Esses crimes, que no prescrevem,
so os seguintes: crime de genocdio,
crimes contra a humanidade, crimes de
guerra e crime de agresso. O Tribunal
s ter competncia relativamente aos
referidos crimes cometidos aps a entrada
em vigor do Estatuto. Se um Estado se tornar
Parte no Estatuto
depois da sua entrada em vigor, o Tribunal
s poder exercer a sua competncia
em relao aos crimes cometidos depois
da entrada em vigor do Estatuto nesse Estado.
Segundo o Estatuto, o Tribunal ser pessoa de Direito Internacional e ter a
capacidade jurdica necessria ao desempenho
de suas funes e realizao de seus
objetivos. Seu vnculo s Naes Unidas
se dar mediante um acordo, a ser aprovado
pela Assemblia dos Estados Partes no
Estatuto e assinado pelo
Presidente do Tribunal em nome deste.
Inicialmente, o Tribunal Penal
Internacional ser integrado por 18
juzes, nmero que poder ser aumentado
ou diminudo por proposta do Presidente,
mediante aprovao da Assemblia dos
Estados Partes. esta tambm que eleger
os juzes, de nacionalidades diferentes,
para um mandato de nove anos, vedada
a reeleio. No primeiro escrutnio,
um tero dos juzes ser eleito para
mandato de trs anos, um tero para
mandato de seis e um tero para mandato
de nove anos. Um juiz eleito para mandato
de trs anos ou para prover vaga em
perodo igual ou inferior a trs anos,
poder ser reeleito para mandato completo
de nove anos. Os juzes sero independentes
no desempenho de suas funes.
O Tribunal ser composto pelos
seguintes rgos: a) A Presidncia;
b) Uma Seo de Recursos, uma Seo
de Primeira Instncia e uma Seo de
Questes Preliminares; c) o Gabinete
do Promotor; d) a Secretaria.
Destaca-se na composio do Tribunal
a figura do Promotor, que ser eleito
em escrutnio secreto por maioria absoluta
de votos pela Assemblia dos Estados
Partes, para mandato de nove anos, vedada
a reeleio. Caber ao Promotor recolher
comunicaes e qualquer outro tipo de
informao, devidamente corroborada,
sobre crimes da competncia do Tribunal,
a fim de os examinar, investigar e de
exercer a ao penal junto ao Tribunal.
Cumprir suas funes com toda a imparcialidade
e liberdade de conscincia, assim como
os juizes.
Os Estados Partes no Estatuto
devero cooperar plenamente como Tribunal
na investigao e no julgamento de crimes
de sua competncia, bem como assegurar-se
de que seu Direito Interno preveja procedimentos
aplicveis a todas as formas de cooperao
especificadas no Estatuto.
O Tribunal decidir sobre a no
issibilidade de um caso, se este
for objeto de inqurito ou de processo
no Estado que tiver jurisdio sobre
o mesmo, salvo se este no estiver disposto
a levar a cabo a investigao ou o processo
ou no tiver capacidade para o fazer;
ou se o caso tiver sido objeto de inqurito
pelo Estado que tiver jurisdio sobre
o mesmo e este decidiu no continuar
a ao penal contra a pessoa em causa,
a menos que esta deciso resulte do
fato de que esse Estado no est disposto
a levar a cabo o processo ou da sua
incapacidade para o fazer; ou a pessoa
em causa tiver sido j julgada pelo
comportamento a que se refere a denncia;
ou o caso no for suficientemente grave
que justifique a adoo de outras medidas
pelo Tribunal.
Para determinar se um Estado
demonstra ou no vontade de agir em
um determinado caso, o Tribunal verifica
se o processo foi instaurado ou est
pendente, ou se a deciso nacional foi
adotada com o propsito de subtrair
a pessoa em causa sua responsabilidade
penal por crimes da competncia do Tribunal;
se houve demora injustificada no processo
que, dadas as circunstncias, seja incompatvel
com a inteno de fazer comparecer a
pessoa em causa ao Tribunal; ou, se
o processo no foi ou no est sendo
conduzido de maneira independente ou
imparcial, mas de uma maneira que, dadas
as circunstncias, seja incompatvel
com a inteno de fazer comparecer a
pessoa em causa ao Tribunal.
Acima de tudo, a fim de determinar
a issibilidade de um caso, o Tribunal
verifica se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva
istrao nacional da Justia ou
indisponibilidade desta, no est
em condies de fazer comparecer em
juzo o acusado, de reunir os meios
de prova e depoimentos necessrios,
ou no est, por outros motivos, em
condies de concluir o processo.
O Estatuto confere ao Conselho de Segurana das Naes Unidas a faculdade
de solicitar ao Tribunal, mediante resoluo
aprovada nos termos do disposto no Captulo
VII da Carta da ONU, que no inicie
ou que suspenda, por um prazo no superior
a doze meses, o inqurito ou o processo
que tiver sido iniciado. O pedido pode
ser renovado por perodos iguais e o
Tribunal fica obrigado a no iniciar
o inqurito ou a suspender o processo.
Existir uma Assemblia dos Estados
Partes, que se reunir na sede do Tribunal
ou na sede da ONU uma vez por ano, ou,
extraordinariamente, sempre que as circunstncias
o exigirem. Cada Estado Parte ter um
voto na Assemblia. Suas funes concentram-se
no estabelecimento de linhas de orientao
geral no que toca istrao do
Tribunal e no exame e aprovao do oramento
do mesmo.
As despesas do Tribunal sero
financiadas pelas quotas dos Estados
Partes e pelos fundos provenientes da
ONU.
O Estatuto veda expressamente a possibilidade de sua ratificao com
reservas.
Est aberto de todos
os Estados na sede da ONU, em Nova York,
at 31 de dezembro de 2000.
Entrar em vigor no primeiro
dia do ms seguinte ao termo de um prazo
de 60 dias aps a data do depsito do
sexagsimo instrumento de ratificao,
de aceitao, de aprovao ou de adeso
junto ao Secretrio-Geral das Naes
Unidas.
Sete anos aps a entrada em vigor
do Estatuto, o Secretrio-Geral das
Naes Unidas convocar uma Conferncia
de Reviso, para examinar eventuais
alteraes ao texto.
Esto ainda pendentes de aprovao
os elementos dos crimes, que ajudaro
o Tribunal a interpretar e aplicar as
regras do Estatuto
que tipificam os crimes; as regras
de processo e prova; e a definio
do crime de agresso. Os elementos
dos crimes e as regras de processo
e prova sero objeto de aprovao por
maioria de dois teros da Assemblia
dos Estados Partes. Por isso, continua
em atividade a PrepCom,
visando preparar esses componentes essenciais
ao funcionamento do Tribunal.
A criao de um tribunal internacional
permanente para processar e julgar indivduos
acusados de cometer graves crimes que
constituam infraes ao prprio Direito
Internacional genocdio, crimes contra
a humanidade, crimes de guerra e crime
de agresso constitui antiga aspirao
da sociedade internacional.
Os atentados hediondos praticados
contra a dignidade do ser humano durante
a Segunda Guerra Mundial exigiram que
fossem institudos os tribunais de Nurembergue
e de Tquio. Recentemente, o Conselho
de Segurana das Naes Unidas, com
a participao e o voto favorvel do
Brasil, impulsionou a criao de mais
dois tribunais criminais temporrios:
um para julgar as atrocidades praticadas
no territrio da antiga Iugoslvia e
outro para julgar crimes de idntica
gravidade cometidos em Ruanda.
No obstante a conscincia coletiva
de que atos monstruosos contra a humanidade
merecem a devida punio, os tribunais
acima mencionados no ficaram imunes
crticas contundentes em virtude de
seu carter temporrio. Referindo-se
ao Direito Internacional Penal, Celso
de Albuquerque Mello assevera no seu
Curso de Direito Internacional Pblico:
de se salientar que este Direito extremamente
fraco devido ausncia de uma justia
internacional penal.
O
Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional
pretende suprir essa lacuna apontada
pelos maiores expoentes da doutrina
do Direito Internacional.
Uma das principais qualidades
do Estatuto reside na afirmao
do princpio
da responsabilidade penal de indivduos
pela prtica de delitos contra o Direito
Internacional. Situar o indivduo
como sujeito de direitos e deveres
no plano internacional constitui idia
corrente desde os tempos em que Hugo
Grotius lanou as bases do moderno Direito
das Gentes. O grande jurista holands
divergiu da noo corrente no sculo
ado com vertentes ainda vivas
na atualidade de que o Direito Internacional
deve restringir-se a disciplinar as
relaes entre os Estados. A evoluo
acelerada da proteo internacional
dos Direitos Humanos aps a Segunda
Guerra Mundial conduziu a profundas
alteraes sobre o papel do indivduo
no cenrio internacional, enfatizando
, primeiramente, os direitos, e, a seguir,
os deveres individuais. Destarte, a
idia de que os indivduos devem ser
responsabilizados no plano internacional
em virtude de crimes contra o prprio
Direito das Gentes no nova. O Estatuto de Roma agrega, porm,
um contexto surpreendente.
Pela primeira vez s definies
dos crimes, um tratado internacional
acrescenta princpios gerais de Direito
Penal e claras regras de Processo Criminal.
Esse acrscimo supre lacuna das
Convenes de Genebra de 1949, sempre
criticadas por terem dado muito pouca
ateno s normas substantivas e adjetivas
da Cincia Jurdica Penal.
Na Conferncia de Roma, realizada
entre 15 de junho e 17 de julho de 1998,
que resultou na adoo do Estatuto do Tribunal Penal Internacional,
a delegao brasileira foi chefiada
pelo Embaixador Gilberto Sabia, com
ampla experincia em negociaes multilaterais.
Segundo Roy S. Lee, pesquisador
imparcial, que recentemente publicou
a extensa obra The International Criminal Court The Making of the Rome Statute
(The Hague: Kluwer, 1999), o Brasil
permanentemente expressou seu firme
apoio ao estabelecimento da nova jurisdio.
Durante a Conferncia, coordenou dois
grupos informais de negociaes sobre
tpicos relevantes para o futuro funcionamento
do tribunal. Um desses grupos dedicou-se
aos poderes do Promotor, particularmente
aos poderes ex-officio. O outro grupo
examinou a questo capital das armas
arroladas na definio de crimes de
guerra.
Ao final da Conferncia, o Brasil
somou-se aos 120 Estados que votaram
a favor da adoo do Estatuto
de
Roma ( houve 7 votos contrrios e
21 abstenes).
Nas palavras do Subsecretrio-Geral
de Assuntos Polticos do Itamaraty,
Embaixador Ivan Cannabrava, em depoimento
Comisso de Relaes Exteriores e
Defesa Nacional da Cmara dos Deputados,
no dia 20 de maio do corrente ano, no
entendimento do Governo brasileiro,
o texto aprovado contm os elementos
necessrios ao estabelecimento de uma
Corte penal eficiente, imparcial e independente.
Pelo ngulo do ordenamento constitucional
brasileiro, os pontos contidos no Estatuto de Roma que merecem considerao, com vistas a afastar qualquer
hiptese de incompatibilidade com o
texto da Lei Suprema de 1988, so os
seguintes: entrega de nacionais ao Tribunal
Penal Internacional; pena de priso
perptua; imunidades em geral e relativas
ao foro por prerrogativa de funo.
Segundo o art. 58 do Estatuto
de Roma, aps iniciada uma investigao
e se o Promotor requerer, poder ser
expedido um mandado de priso pela Cmara
de Questes Preliminares, sempre que
esta estiver convencida de que existe
base razovel para acreditar que o acusado
tenha efetivamente cometido um crime
sob a jurisdio do Tribunal e a priso
for necessria para que o acusado comparea
em juzo. Com base no mandado de priso
da Cmara de Questes Preliminares,
o Tribunal poder requerer ao Estado
Parte no Estatuto ou a priso provisria do acusado ou a priso e entrega do acusado.
essencial para que se garanta
a efetiva istrao da Justia Penal
Internacional que esta tenha a faculdade
de determinar que os acusados da prtica
dos crimes reprimidos pelo Estatuto sejam colocados disposio
do Tribunal. Seria intil o esforo
de criar o Tribunal Penal Internacional
caso no se conferisse ao mesmo o poder
de determinar que os acusados sejam
compelidos a comparecer em juzo.
O Estatuto de Roma fixou um regime de cooperao entre os Estados Partes
e o Tribunal Penal Internacional, fundamental
para a viabilidade e o xito da instituio.
Os Estados Partes esto obrigados a
cooperar plenamente com o Tribunal na investigao e no julgamento
dos crimes previstos no Estatuto.
Integra este dever de cooperao a obrigao
de prender e entregar os acusados
ao Tribunal. Para assegurar que o Direito
Interno facilite a capacidade do Estado
para atender s solicitaes do Tribunal,
o Estatuto requer que os Estados
Partes garantam que no Direito Interno
existam procedimentos aplicveis a todas
as formas de cooperao especificadas
no Estatuto (art. 88, IX). Os Estados
devem ser capazes de proporcionar ao
Tribunal uma cooperao expedita, sujeita
a menos formalidades do que usualmente
se aplica cooperao judiciria entre
Estados.
Importante sublinhar que o
Tribunal Penal Internacional no ser
uma jurisdio estrangeira, mas uma
jurisdio internacional, de cuja construo
o Brasil participa, e ter, portanto,
um vnculo muito mais estreito com a
Justia nacional.
Segundo o art. 89, 1, do Estatuto,
os Estados Partes cumpriro os pedidos
de priso e entrega segundo os procedimentos
do Estatuto e do Direito Interno. Por conseguinte, os procedimentos nacionais
para priso de indivduos continuaro
sendo aplicados, mas eventuais princpios
e normas sobre privilgios referentes
a cargos oficiais e de no-extradio
de nacionais no sero causas que desculpem
a falta de cooperao dos Estados Partes.
Por isso, o Estatuto distingue claramente entre extradio de um Estado para outro e entrega de um Estado para o Tribunal.
A diferena fundamental consiste
em ser o Tribunal uma instituio criada
para processar e julgar os crimes mais
atrozes contra a dignidade humana de
uma forma justa, independente e imparcial.
Na condio de rgo internacional,
que visa realizar o bem-estar da sociedade
mundial, porque reprime crimes contra
o prprio Direito Internacional, a entrega
ao Tribunal no pode ser comparada
extradio.
Ademais, uma das principais causas
da no-extradio de nacionais a idia
de que no haver imparcialidade na
Justia estrangeira no se aplica
ao Tribunal Penal Internacional, porque
neste os crimes esto nitidamente cominados
no Estatuto, suas normas processuais so as mais avanadas do Mundo e
qualquer tendncia a politizar o processo
ser controlada por garantias rigorosas.
Logo, a previso de entrega de
nacionais ao Tribunal Penal Internacional,
estabelecida no Estatuto de Roma, no fere, salvo melhor juzo, o artigo 5, LII,
da Constituio da Repblica, que prescreve
que nenhum brasileiro ser extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime
comum, praticado antes da naturalizao,
ou de comprovado envolvimento em trfico
ilcito de entorpecentes e drogas afins,
na forma da lei.
J o artigo 77 do Estatuto
de Roma prev a pena
de priso perptua quando justificada
pela extrema gravidade do crime e as
circunstncias pessoais do condenado,
enquanto o artigo 5, XLVII, b, da
Constituio da Repblica, estabelece
que no haver penas de carter perptuo.
A Constituio ptria prev at
mesmo a pena de morte em caso de guerra
declarada (art. 5, XLVII, a), mas
probe a pena de carter perptuo.
Contudo, na vigncia da Constituio
de 1988, o Supremo Tribunal Federal
tem deferido extradies, sem ressalva,
para Estados onde est prevista a pena
de priso perptua para os crimes
imputados aos extraditandos. Entende
o pretrio excelso que a esfera da nossa
lei penal interna. Se somos benevolentes
com nossos delinqentes, isso s diz
bem com os sentimentos dos brasileiros.
No podemos impor o mesmo tipo de benevolncia
aos Pases estrangeiros.
A proibio constitucional da
pena de carter perptuo restringe apenas
o legislador interno brasileiro. No
constrange nem legisladores estrangeiros,
nem aqueles que labutam na edificao
do sistema jurdico internacional.
No momento histrico em que foi
promulgada a Constituio brasileira
vigente (1988) no existia o Estatuto
de Roma do Tribunal Penal Internacional
(1998). No poderia, pois, o constituinte
ter se debruado sobre a questo da
pena de priso perptua aplicada por
tribunal internacional. Mas a Constituio
foi sbia, porque sustentou o princpio
da dignidade da pessoa humana como fundamento
da Repblica brasileira ( art. 1, III)
e propugnou pela formao de um tribunal
internacional de direitos humanos (
ADCT, art. 7).
Parece-me, pois, convincente
a tese que sustenta que a coliso entre
o Estatuto de Roma e a Constituio
da Repblica, no que diz respeito
pena de priso perptua, aparente,
no s porque aquele visa a reforar
o princpio da dignidade da pessoa humana,
mas porque a proibio prescrita pela
Lei Maior dirigida ao legislador interno
para os crimes reprimidos pela ordem
jurdica ptria, e no aos crimes contra
o Direito das Gentes, reprimidos por
jurisdio internacional.
A questo, ainda assim, polmica,
merecendo maiores e mais profundas reflexes.
Embora o Estatuto de Roma no ita
a possibilidade de ser ratificado com
reservas, poder-se-ia estudar a elaborao
de uma declarao interpretativa a ser
efetuada por ocasio da ratificao.
Finalmente, as imunidades em
geral e as prerrogativas de foro por
exerccio de funo so os pontos que
talvez menos polmica despertem. Crimes
de guerra, contra a humanidade, genocdio,
agresso - constituem delitos quase
sempre praticados sombra de autoridades
que segundo o ordenamento interno de
seus Pases desfrutam de prerrogativa
de foro ou de imunidades.
Poderia um genocida alegar
prerrogativa de foro porque exercia
uma funo pblica ? Certamente no,
na tica do Direito Internacional.
Volta
ao sumrio
O
Tribunal Penal Internacional e sua Importncia
para os Direitos Humanos
Tarciso Dal
Maso Jardim
A criao do Tribunal Penal Internacional TPI: marco diplomtico
6y1ug
O TPI foi criado na Conferncia Diplomtica de
Plenipotencirios das Naes Unidas sobre o Estabelecimento de um
Tribunal Penal Internacional, realizada na cidade de Roma, entre os
dias 15 de junho a 17 de julho de 1998. Precisamente, essa criao
ocorreu no ltimo dia da Conferncia, mediante a aprovao do
Estatuto do Tribunal (Rome Statute of the International Criminal
Court, doravante Estatuto), que possui a natureza jurdica de
tratado e entrar em vigor aps sessenta Estados manifestarem o
consentimento em vincularem-se ao TPI (art. 126 do Estatuto), de
acordo com suas normas de competncia interna para a celebrao de
tratados.
Haveria alguma previso para o Tribunal comear suas
atividades? Evidentemente, no podemos prever, mas apenas lembrar que
a Conveno de Montego Bay, sobre o direito do mar, tambm
previa o quorum de sessenta Estados e levou doze anos para entrar em
vigor (de 1982 a 1994). Cremos que o Estatuto do Tribunal pode entrar
em vigor em um perodo bem inferior a doze anos, principalmente pela
atuao das Organizaes No-Governamentais e pelo clamor
internacional diante incessantes atentados conscincia da
humanidade. Atualmente, seis Estados ratificaram o Estatuto e noventa
e quatro j am-no (o que significa que acordaram com o texto
final do mesmo e iro submet-lo a procedimentos internos que
objetivam o comprometimento do Estado em relao a esse tratado). O
Brasil, no ltimo dia 7 de fevereiro, justamente foi o nonagsimo
quarto Estado a .
Com futura sede em Haia Holanda (art. 3 do Estatuto), o
Tribunal ter personalidade jurdica internacional, podendo exercer
sua capacidade jurdica para o exerccio de suas funes e para a
manuteno de suas finalidades (art. 4 do Estatuto), o que inclui
a possibilidade de celebrar tratados com outras organizaes
internacionais ou com Estados.
2. A importncia do TPI
56233
Desde o fim da Primeira Guerra Mundial pretende-se consagrar a
responsabilidade penal internacional, quando o Tratado de Versalhes
clamou, sem sucesso, pelo julgamento do Kaiser Wilhelm II, por ofensa
moralidade e inviolabilidade dos tratados, e o Tratado de
Svres, jamais ratificado, previa a responsabilidade do Governo
Otomano pelo massacre dos armnios. As razes para essa pretenso
no eram imparciais ou universais, mas unilaterais, fundadas em um
critrio principal: s o vencido pode ser julgado. Esse critrio
tambm seria o institudo, de maneira preliminar, pelo Acordo de
Londres (London Agreement)
e pelo Control Council Law N. 10
ao estabelecerem o chamado Tribunal de Nuremberg. Com isso,
evidentemente, no se pretende defender que no houvesse o
julgamento de nazistas como Hermann Gring, Rudolf Hess, Joachim von
Ribbentrop, Erich Raeder, entre os 24 primeiros a serem julgados (a
partir de 20 de novembro de 1945, sob a gide do London Agreement),
ou o julgamento de mdicos que produziam experincias em campos de
concentrao, entre os outros 185 indivduos julgados, nos
prximos 12 julgamentos que seguiram (sob a gide do Control
Council Law N. 10). Tambm no se pretende abonar japoneses
julgados pelo segundo Tribunal Militar Internacional institudo aps a
Segunda Guerra Mundial. Defende-se, ao
contrrio, a inexistncia de seletividade na conduo de
julgamentos e atitudes internacionais, bem como lembrar que o
princpio da reciprocidade no deve ser aplicado na esfera da
proteo internacional da pessoa humana. Assim, os responsveis
pelo lanamento de armas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki ou pela
manuteno dos Gulags deveriam, tambm, serem julgados, alm
de outros criminosos de ambos os lados.
Um ano antes da ltima sesso do Tribunal do Japo, a
Assemblia Geral das Naes Unidas solicitou CDI, mediante a
resoluo n 177 (II), de 21 de novembro de 1947, que formulasse os
princpios de direito internacional reconhecidos pelos instrumentos e
julgamentos do Tribunal de Nuremberg, bem como preparar um draft
de Cdigo de ofensas contra a paz e segurana da humanidade. Em 1950
a CDI adotou a formulao desses princpios, submetendo
Assemblia Geral, e em 1954 submeteu o projeto de Cdigo, sendo esse
ltimo inviabilizado por no haver acordo sobre a definio de
agresso resoluo n 897 (IX) de 4 de dezembro de 1954. O
consenso sobre a definio de agresso s aconteceria vinte anos
depois, com a resoluo da Assemblia n 3314 (XXIX), de 14 de
dezembro de 1974, mas a viabilidade poltica da instalao da
responsabilidade penal s seria realidade no final do sculo XX,
aps muitos relatrios e resolues. Entretanto, importantes
instrumentos internacionais sobre essa temtica foram elaborados
nessa segunda metade de sculo, como, por exemplo, a Conveno
para a Preveno e a Sano do Delito de Genocdio (1948), as
quatro Convenes de Genebra sobre o direito humanitrio (1949) e
seus dois protocolos adicionais (1977), a Conveno sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa
Humanidade (1968) e os Princpios de Cooperao Internacional
para Identificao, Deteno, Extradio e Castigo dos
Culpveis de Crimes de Guerra ou de Crimes de Lesa Humanidade
(1973).
Mas, afinal, qual a importncia desse longo processo de
formulao de um Tribunal Penal Internacional permanente? Em
resposta essa indagao, a ONG nova-iorquina Lawyers Comittee
for Human Rights apontou seis pontos. Primeiro, acabar com a
impunidade dos grandes violadores dos direitos da pessoa humana, em
termos repressivos e preventivos. Segundo, proporcionar a
reconciliao social e a tranqilidade e confiana s vtimas,
suas famlias, e comunidade afetada, mediante a investigao e o
julgamento dos responsveis pelos crimes internacionais. Terceiro,
sanar possveis insucessos de Cortes Nacionais, que deixam impunes os
criminosos, principalmente quando esses so autoridades polticas ou
militares, o que se verifica com freqncia em casos de crimes de
guerra ou de desestruturao do sistema legal interno. Quarto,
remediar limitaes polticas e jurdicas inerentes aos tribunais
internacionais criminais ad hoc,
como a instalao em alguns casos e no em outros, o vis
poltico das escolhas do Conselho de Segurana para instaura-los
(alm do questionamento de sua autoridade para tanto) e o perigo do
excesso de tribunais instaurados (tribunal fatigue), sem
consistncia na interpretao e aplicao do direito
internacional, j que so criados para um situao especfica e
com um corpo de juizes distinto. Quinto, criar um mecanismo com poder
para condenar pessoas que ofendem gravemente os direitos humanos e o
direito humanitrio. E, por fim, o sexto ponto seria tornar o
Tribunal Penal Internacional um modelo de justia penal e de
julgamento justo, constituindo um patamar institucional (standard-setting
institution) para a implementao interna ou internacional das
normas de proteo da pessoa humana.
Os pontos argumentativos levantados pelo Lawyers Comittee
so de extrema pertinncia, mas a eficcia das argumentaes
depender de uma srie de fatores, como a dificuldade de atingir a
ratificao universal do Estatuto. Creio, independente disto, que a
criao do TPI, mediante a participao equnime dos Estados em
uma conferncia internacional e no por ato unilateral do Conselho
de Segurana ou de vencedores de conflitos, um marco na histria
do direito internacional e
da diplomacia. Trata-se, realmente, de uma oportunidade de acabar com
a seletividade na determinao de quem so os criminosos; de
eliminar de forma definitiva o argumento de competncia nacional
exclusiva em matria de proteo internacional da pessoa humana; de
evitar ou sancionar o terrorismo estatal em matria de direitos
humanos e de direito humanitrio, geralmente aliciados por atos de
poder internos, como represso militar ou leis de anistia; de
constituir no plano internacional, na matria em tela, um e aos
mtodos de superviso e investigao e um aprimoramento dos
sistemas de petio ou comunicao; de representar o complemento
dos sistemas regionais de direitos humanos (como o interamericano); de
frear atitudes desumanas durante conflitos armados; de ser base para o
princpio da legalidade ou simbolicamente representar o rechao s
grandes violaes dignidade humana.
3. A diferena entre a jurisdio universal e a do TPI
3j3u2x
A jurisdio universal consiste, a princpio, na
possibilidade de a jurisdio interna poder julgar crimes de guerra
ou contra a humanidade cometidos em territrios alheios. Trata-se,
portanto, de extraterritorialidade, que pode ser itida em razo de
o criminoso (ver art. 7, II, b, do Cdigo Penal brasileiro) ou as vtimas serem nacionais ou
residentes (ver art. 7, 3, do ), ou o local do crime possuir
regime internacional (pirataria em alto mar, por exemplo, ver art.
7, II, c, do ), ou o
crime atingir interesses nucleares do Estado (ver art. 7, I, a, b e c, do ) ou, por fim, se os fatos envolverem violaes graves ao
direito internacional, atingindo a conscincia universal (ver art.
7, I, d, e II, a, do ). A jurisdio universal seria a isso desta ltima
hiptese, independente se no crime esto envolvidos nacionais ou
interesses internos. No Brasil, o art. 7, II, a, do seria expresso da
jurisdio universal, ao itir que esto sujeitos lei
brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes que, por
tratado ou conveno, o Brasil se obrigou a reprimir.
A jurisdio universal tem sido itida desde o fim da
Segunda Guerra Mundial, quando as cortes dos Aliados aram a julgar
os crimes de guerra e contra a humanidade cometidos durante o grande
conflito (Austrlia, Canad, Israel, Reino Unido, por exemplo,
julgaram muitas pessoas), sendo atualmente itida para muitos outras
situaes. O caso recente mais clebre , sem dvida, o do
general Pinochet, quando se itiu que a tortura um crime
internacional e que a Conveno contra a Tortura
conferiu jurisdio universal a seus Estados partes.
Segundo a Anistia Internacional, a prtica da jurisdio
universal pelos Estados seria de extrema importncia para preencher
vcuos deixados pelo Estatuto do TPI.
Lembre-se que o art. 12 do Estatuto consagrou, como condio prvia
ao exerccio da competncia do TPI, a necessidade de ser parte do
Estatuto (art. 12, 2, a) o
Estado em cujo territrio, incluindo navios ou aeronaves por ele
matriculados, teve lugar a conduta ou (art. 12, 2, b) o Estado a que pertena o
acusado do crime. Tais restries s se aplicariam para as
hipteses de o Estado comunicar
ao Promotor uma situao que envolveria crimes, de competncia do
TPI (art. 13, a do
Estatuto), ou o prprio Promotor instaure um inqurito (art. 13, c do Estatuto). Se for o
Conselho de Segurana que comunicar ao Promotor uma situao,
entretanto, tal ato estar sob a gide do captulo VII da Carta das
Naes Unidas, o que significa abrangncia universal (no esquea
que tal poder possibilitou a criao dos tribunais ad hoc para Ruanda e
Ex-Iugoslvia). Alm disso, um Estado no Parte pode, mediante
declarao, aceitar a jurisdio do TPI para casos especficos
(art. 12, 3, do Estatuto).
De qualquer forma, h um vcuo, pois o Conselho de Segurana
age sob seletividade poltica. A proposta da Repblica da Coria,
no aprovada in toto na Conferncia de Roma, envolveria tambm as alternativas,
como condio ao exerccio de jurisdio, de a vtima ser
nacional de um Estado Parte ou, ainda, se o suspeito estiver sob
custdia em um Estado Parte. Entretanto, como tais alternativas no
foram aprovadas, defende a Anistia Internacional a jurisdio
universal.
Ademais, o TPI complementar s jurisdies penais
nacionais (prembulo e art. 1 do Estatuto). A jurisdio no
retroativa do TPI est submetida, em
nome da complementaridade, a requisitos de issibilidade. Esse
mecanismo concede, como de praxe no direito internacional, a
oportunidade de as cortes internas solucionarem o caso de forma
satisfatria. As autoridades e cortes nacionais tero a
responsabilidade primria de investigar e solucionar o caso.
Entretanto, se o Estado no for capaz ou no esteja disposto a levar
a cabo a investigao ou o processo, ou teve o propsito de no
responsabilizar penalmente o acusado, o TPI poder exercer sua
jurisdio, desde que o caso seja grave (ver art. 17 c/c 20 do
Estatuto). Na verdade, como veremos, a competncia material do TPI
gira somente sobre crimes considerados graves.
Incapacidade ou impossibilidade para investigar ou processar
determinado caso significa, segundo o pargrafo 3 do art. 17, que o
Estado no pode, devido ao colapso total ou substancial de seu
sistema judicirio nacional ou por indisponibilidade deste, fazer
comparecer o acusado, reunir os meios de prova e os depoimentos
necessrios ou no est, por outras razes, em condies de
levar a cabo o processo. J a verificao da vontade de agir ou
no, em determinado caso, depende de o processo ter o propsito de
no responsabilizar penalmente a pessoa em questo por crimes de
competncia do TPI (impunidade); ou de demora injustificada no
processo ou de ausncia de independncia e imparcialidade, em ambos
relevando as circunstncias fticas (pargrafo 2 do art. 17).
A competncia material do TPI: da poltica da intencionalidade a
conquistas parciais das Organizaes No-Governamentais
1z216j
4.1. Crime de genocdio
5b435b
O
sculo XX transborda violncias contra massas. Como pontuou
Hobsbawn,
[...] o mundo acostumou-se expulso e matana compulsrias em
escala astronmica, fenmenos to conhecidos que foi preciso
inventar novas palavras para eles: sem Estado (aptrida)
ou genocdio. A Primeira Guerra Mundial levou matana de um
incontvel nmero de armnios pela Turquia o nmero mais
habitual de 1,5 milho , que pode figurar como a primeira
tentativa moderna de eliminar toda uma populao. Foi seguida depois
pela mais conhecida matana nazista de cerca de 5 milhes de judeus
[..]
Independente dos nmeros, que ainda permanecem em discusso,
a destruio tnica apavorou a humanidade. No por acaso que o
genocdio foi uma das principais preocupaes aps a Segunda
Guerra Mundial, sendo tal animus
convertido em instrumento internacional em 9 de dezembro de 1948:
a Conveno para a Preveno e a Sano do Delito de
Genocdio. Essa Conveno, em seu
Art. 2, identifica o genocdio em qualquer ato, em tempo de paz ou
de guerra, com a inteno de
destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, tnico, racial ou
religioso, tal como o assassinato ou dano grave integridade fsica
ou mental de membros do grupo; subjugao intencional do grupo a
condies de existncia que lhe ocasione a destruio fsica
total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio
do grupo e a transferncia forada de crianas do grupo para outro
grupo.
No estudo de especialistas sobre a implementao de
instrumentos como a Conveno Internacional sobre a Eliminao e a
Punio do Crime do Apartheid, incluindo a idia de estabelecer um
tribunal internacional, divide-se os
instrumentos conexos com essa Conveno de 1973 em duas categorias.
A primeira composta por instrumentos que declaram direitos humanos
especficos sob a gide do direito internacional dos direitos
humanos, como a Declarao Universal dos Direito do Homem, o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Polticos e a Conveno
Internacional sobre a Eliminao de Todas as Formas de
Discriminao Racial. A segunda categoria englobaria convenes
que implicariam criminalizar
violaes de direitos humanos nos direitos internos, investigar os
violadores ou alternativamente prever a extradio; inclusive
algumas considerando condutas como crime sob o direito internacional.
Nessa ltima categoria seriam exemplos as Convenes de Genebra
sobre o direito humanitrio e a Conveno de 1948 sobre o
genocdio. Entretanto, as semelhanas entre a Conveno sobre o
Apartheid de 73 e a do Genocdio de 48 no se concentram somente no
fato de pertencerem a mesma categoria, segundo os experts, mas
tambm por vaticinarem a criao de um tribunal penal internacional
nos artigos V e VI respectivamente.
Antes da Conferncia de Roma, apesar de um grande nmero de
delegaes apoiarem o conceito da Conveno de 1948, houve a
crtica de que essa tipificao era limitada. Primeiro, por no
incluir a proteo de grupos sociais e polticos, ou de grupos
destacados de um grupo, em que no h homogeneidade (por exemplo, as
elites culturais), embora houvesse o reconhecimento da conexo dessa
extenso conceitual com Crimes de Lesa Humanidade. Outra sugesto
seria esclarecer, como elemento de caracterizao, a inteno
especfica de quem planeja ou decide da inteno genrica ou
conhecimento de quem comete atos de genocdio, pois a dificuldade da
prova sobre esses elementos de intencionalidade concederia argumento a
dirigentes ou a quem obedece ordens. Ento foi sugerido, de um lado,
que a inteno de destruir um grupo, total ou parcialmente,
fosse considerada como sendo a inteno concreta de destruir alm
de um grupo reduzido de pessoas, analisando-se a escala da ofensa ou o
nmero de vtimas. Ou, de outro lado, que a questo da
intencionalidade fosse trabalhada genericamente para todos os crimes.
Ademais, houve a observao a respeito de estender a idia da
alnea e, sobre a transferncia de crianas de um grupo a
outro, tambm para transferncias de pessoas em geral, no
esquecendo de incluir a idia de membros de um grupo particular.
De qualquer forma, por ser itida como norma costumeira
(idia consolidada na Corte Internacional de Justia)
e includa em muitas legislaes internas, durante as reunies
preparatrias a Conferncia de Roma o crime de genocdio foi
discutido por representaes governamentais com base na referida
Conveno. E as principais consideraes das delegaes acabaram
sendo ligadas a clarificaes de termos, como o significado de
destruio em parte de um grupo, de leses mentais e de medidas destinadas a
impedir nascimentos (sugeriu-se os termos preventing births
within the group).
Entretanto, apesar dessas discusses, consagrou-se os termos
da Conveno de 1948 no artigo 6 do Estatuto, como uma espcie de
presente pelo cinqentenrio da mesma.
4.2. Crimes de Lesa
Humanidade
4p1qm
A origem do termo crimes against humanity, aqui traduzido
por Crimes de Lesa Humanidade, est ligado, curiosamente, ao caso de
genocdio dos armnios, provocado pelos turcos na Primeira Guerra
Mundial, que Hobsbawn colocou como sendo a primeira tentativa moderna
de eliminar toda uma populao. Refiro-me Declarao para o
Imprio Otomano, feita pelos governos russo, francs e britnico em
maio de 1915 (Petrogrado), qualificando o massacre como crimes da
Turquia contra a humanidade e a civilizao.
Posteriormente, esse conceito de forma gradativa assume o carter de
norma costumeira, de carter imperativo (jus cogens), reportando-se a
graves violaes da dignidade humana. O Tribunal de Nuremberg
reconheceu esse tipo de violaes, confirmado sobre a forma de
princpio pela resoluo da Assemblia Geral na resoluo 95 (I)
de 11 de dezembro de 1946.
Em relao ao TPI, o 1, do art. 7 do Estatuto, dispe
que por Crimes de Lesa Humanidade teramos os seguintes atos: a.
assassinato; b. extermnio; c. escravido; d. deportao ou
traslado forado de populaes; e. encarceramento ou outra
privao grave da liberdade fsica em violao de normas
fundamentais de direito internacional; f. tortura; g. violao,
escravido sexual, prostituio forada, gravidez forada,
esterilizao forada ou outros abusos sexuais de gravidade
comparada; h. perseguio de um grupo ou coletividade com identidade
prpria fundada em motivos polticos, raciais, nacionais, tnicos,
culturais, religiosos, de gnero ou outros motivos universalmente
reconhecidos como inaceitveis pelo direito internacional, em
conexo com qualquer ato mencionado no presente pargrafo ou com
qualquer crime de competncia do Tribunal; i. desaparecimento
forado de pessoas; j. apartheid; k.
outros atos desumanos de carter similar que causem intencionalmente
grandes sofrimentos ou atentem gravemente contra a integridade fsica
ou sade mental ou fsica. Esses atos, para serem considerados
como um Crime de Lesa
Humanidade, devem ser cometidos como parte de um ataque generalizado
ou sistemtico contra uma populao civil e com o conhecimento de
tal ataque, conforme prescreve o 1, do art. 7 do Estatuto. J o
2, do mesmo artigo, aclara que por ataque contra uma
populao civil entende-se uma linha de conduta que implique a
comisso mltipla de atos, mencionados no 1, contra uma
populao civil, sendo tais atos cometidos ou promovidos por
polticas de um Estado ou de uma organizao.
Esse
conceito de Crime de Lesa Humanidade, cujos termos j estavam
presentes no pacote de acordos do dia 6 de julho de 1998, ou
tambm por muitas controvrsias. O Projeto Final de Estatuto
sintetizava tais controvrsias em duas opes, repletas de
colchetes. A primeira opo afirmando que crime de lesa
humanidade qualquer dos atos (enumerados nas alneas) que se cometam:
[como parte da comisso generalizada [e] [ou] sistemtica de tais
atos contra qualquer populao]. E a segunda opo: [como parte de
um ataque generalizado [e] [ou] sistemtico contra uma populao
[civil] [em escala macia] [em um conflito armado] [por motivos
polticos, filosficos, nacionais, tnicos ou religiosos ou por
qualquer outro motivo arbitrariamente definido]. Os pontos
especficos, que estavam sendo discutidos sobre o conceito de crime
de lesa humanidade, poderiam ser traduzidos nas seguintes
indagaes: Conceituar ou no o que se entende por generalizado
e sistemtico? Essa categoria de crimes seria aplicada para
situaes de paz e de guerra? Incluir ou no motivaes para
conceituar essa categoria de crimes?
O conceito final, consagrado no Art. 7 do Estatuto, , em
parte, produto dessas controvrsias. O conceito de ataque contra
uma populao civil, exposto na alnea a, do 2 do Art.
7, a sntese dos conceitos de generalizado (widespread) e
sistemtico (sistematic) trabalhados nas reunies
preparatrias (ver, por exemplo, o Relatrio do Comit
Preparatrio, volume II, compilao de propostas).
Por generalizado entendia-se o ataque macio em natureza e
dirigido contra um grande nmero de pessoas. Por sistemtico
entendia-se o ataque constitudo, ao menos em parte, por atos
cometidos ou promovidos por uma poltica ou um plano, ou por uma
prtica repetida por um perodo de tempo. Ora, o conceito de
generalizado est assegurado na chamada comisso mltipla de
atos e, por sua vez, o conceito de sistemtico est consagrado no
que se chamou de linha de conduta ou de atos cometidos ou
promovidos por polticas de um Estado ou de uma organizao.
Ento, embora o conceito do 1, do Art. 7 do Estatuto, enquadra o
crime de lesa humanidade a partir de atos cometidos como parte de um
ataque generalizado ou sistemtico, na realidade deve ser
entendido como parte de um ataque generalizado e sistemtico,
pois o que se infere da alnea a, do 2 do Art. 7 do
Estatuto.
Outra questo seria se tal crime ocorre em poca de paz ou
tambm em de guerra. Creio que a possibilidade de se cometer esse
tipo de crime reporta-se a qualquer situao, desde que as vtimas
sejam civis, e no militares. Para estes ltimos, tem-se a
proteo em relao aos crimes
de guerra (Art. 8 do Estatuto). Embora o direito internacional no
proteja somente militares fora de combate, seu plano de proteo
possui lgica e nveis diferentes da proteo dos direitos
humanos, no Estatuto representada especialmente pelo Crimes de Lesa
Humanidade. Vejam que o Tribunal Penal Internacional significa um
ponto de unio entre os direitos humanos e o direito humanitrio,
fato que tambm se comprova pela incluso, na competncia desse
Tribunal, dos crimes de guerra ocorridos em conflitos internos, e no
somente em conflitos internacionais.
A ltima questo, diz respeito a motivaes especficas
(polticas, filosficas, de nacionalidade, tnicas ou religiosas ou
por qualquer outra arbitrariamente definida) que, felizmente, no
foram includas no Estatuto. Entretanto, tem-se no Art. 7 do Estatuto
os indesejveis termos com o conhecimento do ataque, no caso,
generalizado ou sistemtico contra uma populao civil. Seria o
conhecimento do plano ou da poltica estatal ou de uma organizao?
Seria o conhecimento de todos os crimes envolvidos na noo de generalizado?
Do nosso ponto de vista, esse contedo do crime de lesa humanidade
deve ser deslocado para a anlise dos elementos subjetivos do crime.
O Art. 30 do Estatuto, que versa sobre tais elementos de
intencionalidade, determina que os elementos materiais do crime devem
ser cometidos com inteno e conhecimento, sendo esse ltimo
definido como a conscincia de que as circunstncias existem ou que
a conseqncia ocorrer no curso ordinrio dos fatos.
4.3. Crimes de Guerra
2f2p1j
Os
crimes de guerra so, sem dvida, preocupaes milenares que
confluem, hoje, no estabelecimento de um TPI. Timothy McCormack, por
exemplo, demonstra que desde o sculo VI a.C., com o guerreiro
chins Sun Tzu, h preocupaes com o comportamento dos
beligerantes no conflito. O Cdigo de Manu (direito hindu feito cerca
de 200 a. C.), por exemplo, emblemtico ao fixar armas proibidas
(como flechas envenenadas) ou pessoas que no deveriam ser mortas
(como espectadores).
O Estatuto, em seu artigo 8, consagra esta longa evoluo do
direito internacional humanitrio que, desde o sculo ado, vem
sendo impulsionado pelo Comit Internacional da Cruz Vermelha. Os crimes aqui mencionados
so, primeiro, as chamadas infraes graves consagradas nas
quatro Convenes de Genebra de 12 de agosto de 1949; segundo,
outras violaes graves a leis e costumes pertinentes a conflitos
armados internacionais e, terceiro, violaes graves em conflitos de
carter no internacional.
Para o primeiro grupo, as infraes graves
seriam: i. homicdio
doloso; ii. tortura ou
tratamento desumano, inclusive as experincias biolgicas; iii. provocar grandes sofrimentos ou atentar gravemente contra a
integridade fsica ou a sade; iv.
a destruio e a apropriao de bens, no justificadas por
necessidades militares e executadas de maneira ilcita e arbitrria;
v. compelir um prisioneiro de guerra ou outro indivduo protegido a
servir em foras inimigas; vi.
privar um prisioneiro de guerra ou outro indivduo dos direitos de um imparcial e
regular julgamento; vii. submeter deportao, transferncia ou confinamento
ilegais e; viii. tomar
refns.
Para o segundo, as violaes seriam: i. dirigir ataques contra a
populao civil enquanto tal ou civis que no participem
diretamente das hostilidades; ii.
dirigir ataques contra bens civis; iii. dirigir ataques contra
pessoal, instalaes, material, unidades ou veculos participantes
de uma misso de manuteno da paz ou de assistncia humanitria,
em conformidade com a Carta das Naes Unidas; iv. lanar ataque sabendo que causar perdas de vidas, leses em
civis ou danos a bens de carter civil ou danos extensos, duradouros
e graves ao meio ambiente que sejam excessivos em relao
vantagem militar geral, concreta e direta prevista; v. atacar ou bombardear, por
qualquer meio, cidades, aldeias, povoados ou prdios que no estejam
defendidos e que no sejam objetivos militares; vi. causar a morte ou leses a um inimigo que tenha deposto as
armas ou no tenha meios de defesa; vii. utilizar de modo indevido
a bandeira branca, a bandeira ou as insgnias militares ou o uniforme
do inimigo ou das Naes Unidas, bem como os emblemas previstos nas
Convenes de Genebra, e causar assim a morte ou leses graves; viii. transferncia pela
Potncia ocupante de parte de sua populao para o territrio que
ela ocupa, ou a deportao ou transferncia de toda ou parte da
populao do territrio ocupado; ix. fazer ataque a prdios
destinados ao culto religioso, s artes, s artes, s cincias ou
beneficncia, monumentos histricos, hospitais e lugares onde se
agrupam doentes e feridos, sempre que no sejam objetivos militares; x. submeter indivduos da
parte adversria a mutilaes fsicas ou experincias mdicas ou
cientficas de qualquer tipo, que no estejam associadas a
tratamento mdico, dental ou hospitalar, nem levadas a cabo em seu
interesse e que causem mortes ou ponham em risco a sade de tais
indivduos; xi. matar ou
ferir de modo traioeiro os inimigos; xii. declarar que no dar quartel; xiii. destruir ou confiscar bens do inimigo, a menos que as
necessidades da guerra o tornem imperativo; xiv. declarar como abolidos,
suspensos ou inissveis em um tribunal os direitos e aes dos
nacionais da parte inimiga; xv.
obrigar nacionais da parte inimiga a participar de operaes
blicas dirigidas contra o seu prprio pas; xvi. saquear uma cidade ou uma
localidade, inclusive quando tomada de assalto; xvii. utilizar veneno ou armas
envenenadas; xviii. utilizar
gazes asfixiantes, txicos ou similares ou qualquer lquido,
material ou dispositivo anlogo; xix. utilizar balas que se
abram ou amassem facilmente no corpo humano, como balas de camisa dura
que no cubra totalmente a parte interior ou que tenha incises; xx. empregar armas, projteis, materiais e mtodos de guerra
(proibidos por emenda arts. 121 e 123 do Estatuto) que, por sua
prpria natureza, causem danos suprfluos ou sofrimentos
desnecessrios ou produzam efeitos indiscriminados em violao ao
direito internacional dos conflitos armados; xxi. cometer ultrajes contra a
dignidade de indivduos, em particular tratamentos humilhantes e
degradantes; xxii. cometer
estupro, escravido sexual, prostituio forada, gravidez
forada, esterilizao forada ou qualquer outra forma de
violncia sexual que constitua uma violao grave das Convenes
de Genebra; xxiii. utilizar
a presena de civis e outras pessoas protegidas para que fiquem
imunes s operaes militares determinados pontos, zonas ou foras militares; xxiv. dirigir intencionalmente
ataques contra prdios, materiais, unidades e veculos mdicos e
contra pessoal que esteja utilizando emblemas previstos nas
Convenes de Genebra, de acordo com o direito internacional; xxv. provocar intencionalmente a inanio da populao civil
como mtodo de fazer a guerra, privando-a dos bens indispensveis
para a sua sobrevivncia, inclusive por meio da obstruo
intencional da chegada de suprimentos de socorro, de acordo com as
Convenes de Genebra; xxvi. recrutar ou alistar
crianas menores de 15 anos nas foras armadas nacionais ou
utiliz-las para participar ativamente das hostilidades.
O
terceiro grupo de crimes, ao lado da incluso dos crimes sexuais,
constituiu em grande vitria da sociedade civil internacional em
matria de crimes de guerra, pois inclui as violaes em conflitos
armados no internacionais, que atualmente englobam a maioria dos
conflitos. O perfil de vrios conflitos contemporneos, como o da
Ex-Iugoslvia e de Ruanda, so internos e revelam toda sorte de
srias violaes ao direito humanitrio, alm de apresentar uma
istrao de justia totalmente ineficaz e indisponvel.
Lembre que, de um lado, no se deve confundir este tipo de conflito
com situaes de distrbios ou tenses internas, tais como motins,
atos isolados e espordicos de violncia ou outros atos de carter
similar (art. 8, 2, d e f) e, de outro lado,
menciona o pargrafo 3 do art. 8 que a previso deste tipo de
crime no afetar a responsabilidade que incumbe a todo governo
de manter e restabelecer a lei e a ordem pblica no Estado e de
defender a unidade e integridade do Estado por qualquer meio legtimo.
Feitas estas observaes, diga-se que esta categoria engloba
o disposto no art. 3 comum s quatro Convenes de Genebra e
outras violaes graves consagradas por normas ou costumes
internacionais. Com base no art. 3 das Convenes, que um
verdadeiro elo de ligao entre o direito humanitrio e os direitos
humanos, temos: i. atos de
violncia contra a vida e a integridade corporal, em particular o
homicdio em todas as suas formas, as mutilaes, os tratamentos
cruis e a tortura; ii. os ultrajes contra a dignidade pessoal, em
particular os tratamentos humilhantes e degradantes; iii. a tomada de
refns; iv. as sentenas condenatrias pronunciadas e as
execues efetuadas sem julgamento prvio por tribunal constitudo
regularmente, que oferea todas as garantias judiciais geralmente
reconhecidas como indispensveis.
As demais violaes graves reconhecidas pelo Estatuto para
conflitos no internacionais so: i. dirigir intencionalmente
ataques contra a populao civil enquanto tal ou contra civis que
no participem diretamente das hostilidades; ii. dirigir intencionalmente ataques contra prdios, material,
unidades e veculos sanitrios, e contra pessoal habilitado para
utilizar emblemas previsto nas Convenes de Genebra, de acordo com
o direito internacional; iii.
dirigir intencionalmente ataques contra pessoal, instalaes,
material, unidades ou veculos participantes em uma misso de
manuteno da paz ou da assistncia humanitria em conformidade
com a Carta das Naes Unidas, sempre que tenham o direito
proteo outorgada a civis ou bens civis, de acordo com o direito
internacional dos conflitos armados; iv. dirigir intencionalmente
ataques contra prdios dedicados ao culto religioso, s artes, s
cincias ou beneficncia, monumentos histricos, hospitais e
lugares onde se agrupam doentes e feridos, sempre que no sejam
objetivos militares; v.
saquear uma cidade ou praa, inclusive quando tomada por assalto; vi. cometer atos de estupro,
escravido sexual, prostituio forada, gravidez forada, esterilizao forada e
qualquer outra forma de violncia sexual que constitua uma violao
grave dos Convnios de Genebra; vii.
recrutar ou alistar menores de 15 anos nas foras armadas ou
utiliz-los para participar ativamente das hostilidades; viii. ordenar a transferncia
da populao civil por razes relacionadas com o conflito, a menos
de que assim o exija a segurana dos civis de que se trate ou por
razes militares imperativas; ix.
matar ou ferir a traio um combatente inimigo; x. declarar que no se dar quartel; xi. submeter pessoas que estejam em poder de outra parte no conflito
a mutilaes fsicas ou a experincias mdicas ou cientficas de
qualquer tipo que no sejam justificadas em razo de um tratamento
mdico, dental ou hospitalar da pessoa de que se trate, nem sejam
levadas a cabo em seu interesse, e que causem a morte ou ponham
gravemente em perigo a sua sade; xii. destruir ou confiscar bens
do inimigo, a menos que as necessidades da guerra o tornem imperativo.
Este rol
de crimes so em si mesmos suficientes para justificar este Tribunal,
principalmente porque de conhecimento de todos que essa
tipificao provm de inmeras situaes reais.
4.4 - Crime de agresso
502mk
O crime de agresso sempre causou polmica na doutrina e
prtica internacionais. Primeiro,
a discusso girava em torno da licitude da guerra como meio de
soluo de controvrsias internacionais. A concepo de "guerra
justa" de Santo Agostinho, em que seria melhor os justos
subjugarem os malfeitores do que o contrrio, influenciou muito o
pensamento ocidental, ao ponto de os humanistas "cvicos"
(como Patrizi e Maquiavel) defenderem a guerra como uma opo
poltica a ser protagonizada pelos cidados, enquanto dever cvico. Essa ragione di stato seria,
entretanto, contestada pelos humanistas do norte, como Erasmo, para
quem toda a guerra fraticida.
Segundo, no plano internacional, em tom de inspirao
kantiana, a guerra fora considerada universalmente como um meio
ilcito de soluo de controvrsia pelo Art. 2, 4, da Carta
das Naes Unidas, embora temos que recordar o precedente do
"Pacto de Briand-Kellog" (1928), de menor alcance.
A discusso da abrangncia da absteno de recorrer
ameaa e ao uso da fora, estabelecida pelo referido artigo, rendeu
vrias correntes doutrinrias, como a do direito de ingerncia por
razes humanitrias. A confuso se d porque essa absteno deve ser, segundo
o Art. 2, 4, contra a integridade territorial ou a
independncia poltica de um Estado ou outro modo incompatvel com
os objetivos das Naes Unidas. Discute-se, ento, excees
regra, embora entendemos que o Art. 2, 3, resolve a questo ao
determinar que as controvrsias devem ser resolvidas por meios
pacficos, no ameaando a paz, a segurana e a justia. Dessa forma, no haveria
possibilidade de uso unilateral da fora por um Estado, resguardando
a legtima defesa e o direito de autodeterminao dos povos, assim
como as faculdades do Conselho de Segurana sob a gide do cap. VII da Carta.
Dentro desse contexto, houve duas propostas de definio de
agresso enquanto crime sob jurisdio do futuro TPI. Uma das alternativas define
agresso como os atos cometidos por um indivduo que, como lder ou
organizador, envolvido no uso de fora armada por um Estado contra
a integridade territorial ou independncia poltica de outro Estado
ou em outro modo incompatvel com a Carta das Naes Unidas. A segunda alternativa define o crime de agresso como o
cometido por uma pessoa que est em posio de controle ou capaz
de dirigir aes polticas ou militares em seu Estado, contra outro
Estado, em infrao Carta das Naes Unidas, recorrendo
fora armada e ameaando ou violando a soberania estatal,
integridade territorial ou independncia poltica. Sobre essa ltima
definio, houve a proposta de acrscimo de infrao ao direito
internacional costumeiro. Ademais,
discute-se o rol de atos que, a princpio, caracterizaria a
agresso. Entre outros,
esto as invases, ataques, ocupaes, bloqueios, permitir o
para agresso a um terceiro Estado ou enviar bandos, grupos,
mercenrios.
A diferena bsica entre os dois conceitos de agresso
concentra-se na vinculao estrita aos termos do Art. 2, 4, da
Carta (primeira alternativa) ou o acrscimo da violao soberania
estatal a esses termos, que se funda na definio de agresso
dada pela Resoluo n 3314 (XXIX) de 14 de dezembro de 1974. Se, de um lado, cremos ser
insuficiente esse conceito quando as relaes internacionais so
pautadas por coeres econmicas; de outro lado, vrias
delegaes governamentais sugestionaram no incluir o crime de
agresso, por vrios motivos.
Destacamos o argumento de impreciso da responsabilidade
individual criminal nessa seara. E, tambm, o argumento de possveis
confuses entre as funes do futuro TPI e as do Conselho de
Segurana.
Por esses fatores foi grande a polmica sobre a definio do
crime de agresso. Assim, o art. 5, 1, alnea d, do
Estatuto, prev o crime de agresso, mas o 2 do mesmo artigo
remete a definio desse crime para futura emenda (segundo o art.
121 do Estatuto) ou reviso (prevista pelo art. 123 do Estatuto),
pois durante a Conferncia de Roma no houve consenso sobre a
tipificao desse crime, apenas consolidando de que o tipo no deve
ser contrrio com o disposto na Carta das Naes Unidas.
A controvrsia sobre este tipo de crime permanece na Comisso
Preparatria para o TPI (PrepCom), que est discutindo os elementos
dos crimes e as regras de procedimento e prova. Nas duas primeiras,
realizadas nos dias 16 a 26 de fevereiro e 26 de julho a 13 de agosto
de 1999, tem-se trs propostas sobre o crime de agresso: a dos
pases rabes, a da Alemanha e a da Rssia. A proposta mais
abrangente foi a elaborada pelos pases rabes (Bahrain, Iraque,
Lbano, Lbia, Om, Sudo, Sria e Yemen), para os quais a
agresso envolve da privao da autodeterminao, liberdade e
independncia ameaa e uso de fora armada para violar a
soberania, integridade territorial, independncia poltica ou
direitos inalienveis de outro povo. Este grupo de pases elegem,
ainda, uma srie de situaes especficas de agresso, como
bloqueios e uso de mercenrios e grupos irregulares.
No outro extremo est a proposta da Federao Russa que, de um
lado, condiciona esse crime prvia determinao de um ato de
agresso pelo Conselho de Segurana e, de outro lado, limita o
objeto concepo, preparao, incio e execuo de uma
guerra de agresso. Por fim, a Alemanha
prope um meio termo, ao condicionar o crime de agresso a ataques
armados contra integridade territorial ou independncia poltica de
outro Estado, segundo a Carta das Naes Unidas, ao mesmo tempo que
ite ingerncia do Conselho de Segurana na determinao destes
atos. Como vemos, h muito o
que discutir sobre este tema.
5. As posies brasileiras sobre o TPI
5sg32
Antes de tratar desse assunto, importa reconhecer que o
Ministrio das Relaes Exteriores estabeleceu constante dilogo
com a sociedade civil desde momentos preparatrios Conferncia.
Refiro-me em especial s respostas deferidas s demandas da III
Conferncia Nacional de Direitos Humanos, que teve nesse particular o
Movimento Nacional de Direitos Humanos e o Centro de Proteo
Internacional de Direitos Humanos como representantes. Nesses contatos
preliminares boa parte das reivindicaes da sociedade civil eram
contempladas pelo MRE, embora alguns temas polmicos ainda estavam
indefinidos, como o papel do Conselho de Segurana das Naes
Unidas. Essa boa relao persistiu na Conferncia, tendo a
delegao brasileira comparecido na Sudan Room
logo no incio da Conferncia, a fim de dialogar com as ONGs.
O Brasil, no incio da Conferncia, defendia a possibilidade
de o promotor iniciar o processo proprio
motu, tendo independncia em relao aos demais triggering
parties (Estados e Conselho de Segurana), o que era extremamente
satisfatrio. Tinha posio flexvel em relao ao papel do
Conselho de Segurana - CS, no sentido de itir que pudesse esse
rgo iniciar um processo, mas era contrrio possibilidade de o
CS criar novos tribunais ad hoc
e, tampouco, considerar o TPI como um rgo subsidirio daquele ou
serem as investigaes ou processos suspensos pelo CS, exceto em
circunstncias excepcionais, quando o CS agiria formalmente sob a
gide do captulo VII da Carta das Naes Unidas, por um perodo
limitado de tempo, o que era razovel na avaliao das ONGs.
Entretanto, o Brasil era favorvel jurisdio inerente do TPI
somente para o crime do genocdio, sendo favorvel ao chamado
mecanismo opt-in para os demais crimes, a fim de favorecer a
ratificao universal do Estatuto. Isso significava que, ao
ratificar o Estatuto, o Estado s aceitaria a competncia do
Tribunal para crimes de genocdio, podendo, para os demais crimes
(crimes de guerra, crimes de lesa humanidade e crimes de agresso),
no reconhecer essa competncia ou submeter caso a caso.
Essa posio brasileira foi revertida publicamente em
plenrio no incio de julho de 1998, no sentido de aceitar a
competncia automtica do Tribunal para todos os crimes, o que muito
agradou s ONGs. Posteriormente, outras duas questes permaneceram
pendentes em relao ao Brasil: a extradio e a priso
perptua.
Uma das
questes centrais discutidas em Roma, ligadas efetividade da
execuo penal, foi a criao de um instituto jurdico para
apresentar a pessoa acusada diante o TPI, chamado de surrender.
Esse instrumento similar extradio, porm distinto, embora
existiam propostas de denominar esse instituto justamente de
extradio.
No art. 28 do Draft para o estabelecimento de um tribunal penal
internacional para o Apartheid e outros crimes internacionais, criado
no j mencionado estudo de especialistas sobre a Conveno do
Apartheid de 1973 e instrumentos conexos,
o conceito de surrender era
realmente equivalente ao de extradio. No 2 desse artigo 28,
entretanto, taxativamente determina-se que no seriam obstculos
para a entrega (a) alegaes de que se trata da exceo de crime
poltico , (b) que o indivduo
nacional do Estado requerido e (c) por outras condies ou
restries impostas pelos Estados requeridos na prtica de
extradio em relao a outros Estados. Assim, teramos uma
situao curiosa, pois o aspecto que nos leva a considerar que a
extradio e a entrega seriam equivalentes justamente o elemento
que neutraliza os efeitos nocivos dessa equivalncia e marca um
princpio de diferena entre os institutos. Ou, em outros termos,
quando a entrega prev os aspectos prticos da extradio,
evitando empecilhos para o julgamento no ento hipottico TPI (como
o crime poltico, a proibio de extradio de nacionais e os
direitos internos), iguala os institutos mas tambm estabelece um
patamar de diferenciao para a jurisdio internacional, no
permitindo escusas internas fundadas em poltica de extradio.
Assim, necessitou-se firmar a posio de no itir a
confuso entre a extradio e surrender, o que foi claramente
diferenciado no Estatuto final. A delegao brasileira, entretanto,
tendo em vista a Constituio Federal de 1988, que veta a
extradio de brasileiros natos e de brasileiros naturalizados antes
do fato criminoso (nesse ltimo caso com a exceo dos crimes de
trfico de entorpecentes), defendeu que no havia possibilidade de o
Brasil extraditar os nacionais dessas categorias para o futuro
Tribunal, caso fosse necessrio. E, apesar de votar a favor do
Estatuto no plenrio final da Conferncia, fez declarao de voto
no sentido das dificuldades constitucionais nessa matria.
Essa posio foi contestada pelo presente autor, em artigo
distribudo na Conferncia, intitulado The International Criminal
Court: Brazil and the Question of Extradition, pelos seguintes
motivos:
a.
no se trata do antigo instituto da extradio, que se
reporta a entrega de uma pessoa, submetida sentena penal
(provisria ou definitiva), de uma jurisdio soberana a outra.
Trata-se de entrega sui generis,
em que um Estado transfere determinada pessoa a uma jurisdio penal
internacional que ajudou a construir. A Constituio brasileira
certamente no se refere a esse caso especial, por impossibilidade de
lgica e de vaticnio;
b.
o pargrafo 2, do art. 5, da CF/88, afirma de forma
categrica que os direitos e garantias previstos na Constituio
brasileira no excluem outros decorrentes do sistema ou do regime por
ela adotados ou, ainda, provindo dos tratados em que o Brasil seja
parte. O Tribunal Penal Internacional est sendo formado mediante um
tratado, o que significa dar-lhe recepo constitucional. Sabemos,
verdade, que o Supremo Tribunal Federal nega arbitrariamente esse
dispositivo constitucional, determinando que os tratados de direitos
humanos ou humanitrio no se diferenciam dos demais tratados e,
portanto, possuem o mesmo status
de lei federal, o que significa dizer que uma lei posterior dessa
natureza pode derrogar tratados ratificados anteriormente pelo Brasil.
Entretanto, optamos pelo concebido na Constituio, e no no
imposto por interpretao;
c.
as disposies transitrias da CF/88 propugnam a criao
de um Tribunal Internacional dos Direitos Humanos, enquanto
princpios constitucionais direcionam as relaes internacionais
brasileiras mediante a prevalncia dos direitos humanos. Embora o
Tribunal Penal no seja exclusivamente um tribunal de direitos
humanos, possui aspectos
intrnsecos aos mesmos e, o que importante, vai de encontro com o
projeto constitucional brasileiro.
Denunciamos, ento, a contraditria e cmoda posio
brasileira, evitando que criminosos brasileiros fossem apresentados ao
Tribunal e ao mesmo tempo impedindo que o Brasil se transformasse em
um reduto de criminosos estrangeiros.
Assim, o art. 102 do Estatuto diferencia os termos surrender
de extradition, sendo o primeiro a conduo de uma pessoa de
um Estado ao Tribunal, de acordo com o Estatuto, e o segundo a
conduo de uma pessoa de um Estado a outro, de acordo com tratados,
convenes ou legislao nacional. Ressalta-se que a execuo
penal, mediante acordo entre os Estados e o TPI, poder ser no Estado
que entrega. Ora, inconcebvel este tipo de situao na
extradio.
O Tribunal Penal Internacional um produto do esforo
conjunto e democrtico dos Estados, das Organizaes Internacionais
e das ONGs. Portanto, nico, no possui paralelo histrico,
significando a primeira jurisdio internacional permanente de
carter penal, que de forma no seletiva e desvinculada de uma
guerra especfica procura por fim a era de atrocidades que
presenciamos. Como o prprio prembulo do Estatuto menciona: atrocidades
que desafiam a imaginao e comovem profundamente a conscincia da
humanidade.
A nossa Constituio Federal perfeitamente adequada ao
Estatuto do TPI, em especial pela abertura do 2, do Art. 5, mas
sobretudo pela principiologia que a rege e orienta toda a sua
estrutura segundo a dignidade humana, paz, direitos humanos e direitos
fundamentais. O TPI uma necessidade, e no sobreposio. a
respirao de uma Constituio como a nossa, pois o TPI s
atuar se ela for ultrajada. Alis, pode significar a respirao
das pessoas que aqui vivem e sobrevivem, e no das autoridades e
poderosos que aqui so facnoras.
A proposta de emenda constitucional que ora apresentamos a
expresso desse esprito, afirmando a construo garantista e
humana do nosso sistema jurdico, ao resguard-lo com as
possibilidades do
TPI. A PEC em questo tem o seguinte teor:
Art. 5 [...] 3 - A Repblica Federativa do Brasil
poder reconhecer a jurisdio do Tribunal Penal Internacional, nas
condies previstas no Estatuto aprovado em Roma no dia 17 de julho
de 1998.
Sobre o outro problema constitucional (priso perptua),
diga-se que segundo o art. 77 do Estatuto, uma pessoa condenada, por
algum crime de competncia do Tribunal, poder ser reclusa por um
perodo no superior a 30 anos (o mesmo limite ser imposto em caso
de cometimento de mais de um crime). Todavia, em casos de extrema
gravidade do crime e relevando as caractersticas pessoais do
condenado, a recluso poder ser de perpetuidade. A priso
perptua a exceo da exceo, pois a competncia do TPI
sempre diz respeito a crimes graves ( uma condio de
issibilidade) e a extrema gravidade deve ser entendida como
situao limite.
Um exemplo recente dessa situao limite foi a deciso
histrica do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, proferida no
dia 4 de setembro de 1998. Pela primeira vez um tribunal penal
internacional aplicou a Conveno sobre o Genocdio de 1948, ao
condenar Jean Kambanda priso perptua. Ru confesso, Kambanda
foi ministro do governo provisrio de Ruanda em 1994, quando cerca de
um milho de pessoas foram assassinadas. O Tribunal Ad Hoc de Ruanda determinou a pena mxima em razo da natureza
dos crimes e do cargo ocupado por Kambanda.
Alm de prevista para situaes limites, a priso perptua
disposta no Estatuto no perptua em todos os seus termos, j
que o 3, do art. 110, prev a reviso da pena aps 25 anos de
cumprimento, a fim de saber se essa pode ser reduzida. Neste caso, o recluso poder
ter sua pena reduzida se uma ou mais condies estiverem presentes
(4, do art. 110): a) O recluso manifestou, desde o princpio e de
forma continuada, vontade de cooperar com o Tribunal em suas
investigaes e processo; b) O recluso facilitou, de forma
voluntria, a execuo das decises e ordens do Tribunal em outros
casos, em particular auxiliando na localizao de bens sobre os
quais incidam multas, seqestro ou reparao que possam ser
utilizados em benefcio das vtimas; ou c) Outros fatores previstos
nas Regras de Procedimento e Prova que permitam determinar uma
mudana nas circunstncias suficientemente clara e importante para
justificar a reduo da pena. E se durante tal reviso o TPI no alterar a pena, h
possibilidade de voltar a examinar a questo posteriormente (5 do
mesmo art. 110).
Apesar de a priso perptua ser prevista nestas condies
e, para muitos crimes previstos na competncia do Tribunal, o Brasil
prever pena de morte por fuzilamento (ver Cdigo Penal Militar, Livro
II, Dos Crimes Militares em Tempo de Guerra, arts. 355-408), devemos
lutar, aps nossa ratificao, para que se emende ou revise o
Estatuto (arts. 121 e 123, respectivamente), no sentido de abolir este
tipo de pena, que reputo desumana em si mesma.
Importa considerar que a diplomacia brasileira e boa parte da
intelectualidade deste pas demonstrou claro nimo, consentimento e
desejo, em relao ratificao do TPI pelo Brasil, no
seminrio oficial do Ministrio das Relaes Exteriores sobre o
assunto, organizado em conjunto com o Conselho da Justia Federal.
E por este fato a sociedade civil brasileira agradece, principalmente
porque esse processo de discusso, que incluiu outros seminrios e
tambm audincias pblicas na Cmara dos Deputados, culminou na
inicialmente mencionada do Estatuto pelo Brasil. Esperamos,
agora, que as convices do Executivo, aps acalorado e profundo
debate, inspirem a pronta aprovao deste Estatuto pelo Congresso
Nacional.
Por fim, acredito que a construo do TPI um dos mais
belos projetos construdos pela humanidade, no sentido que o poeta
pode nos dar:
Belo porque uma porta
abrindo-se em mais sadas.
Belo como a ltima onda
que o fim do mar sempre adia
Joo Cabral de Melo Neto
-
-
O TRIBUNAL PENAL
INTERNACIONAL,
A PENA DE PRISO PERPTUA E A
CONSTITUIO BRASILEIRA
Sylvia Helena Helena F. Steiner
Em tema to
controvertido, como o que se refere previso, pelo Estatuto do
Tribunal Penal Internacional, da pena de priso perptua, vejo como
necessrio, primeiramente, tecer
algumas consideraes sobre as discusses havidas durante a
elaborao de suas regras. E, antes de qualquer considero, acho
necessrio deixar claro
que num artigo, dada a prpria exiguidade de espao de que dispomos
para expor nossas idias, no pode haver a pretenso de se esgotar
a matria, e nem sequer, diga-se, de aprofundar de tal modo as
reflexes que estas traduzam toda nossa anlise sobre o tema. Assim,
estas notas devem ser interpretadas como, realmente, notas que so.
A primeira observao que desejo fazer sobre o fato de
que, desde o incio das discusses acerca da criao de um
Tribunal Penal Internacional permanente,
a Comisso de Direito Internacional da ONU, e depois o Comit
Preparatrio criado pela Assemblia Geral, preocuparam-se em no
privilegiar nenhum dos principais sistemas judiciais existentes,
aqueles com razes no common
law e aqueles com razes na
civil law. Em outras palavras, nos principais sistemas jurdicos
vigentes, os primeiros congregando parte dos pases de tradio
anglo-saxnica, e, o segundo, os pases com razes no direito
romano, como o nosso. No se buscava, em verdade, criar um sistema
hbrido, mas sim um sistema de regras original, novo, especfico
para regular a estrutura de uma Corte internacional com perfil
desvinculado de quaisquer Estados.
A proposta, no entanto, no meu entender, no vingou de todo,
pois verifica-se na verdade que houve uma tentativa de conciliao
entre institutos prprios do sistema do common law e outros prprios do sistema da civil law. Esse casamento
forado, em diversos dispositivos do Estatuto, demonstrou no ter
dado certo, como alis no daria qualquer casamento forado.
No que diz especificamente com a previso das penas a serem
impostas, a discusso surgida aps a apresentao do projeto
elaborado pela Comisso de Direito Internacional foi justamente sobre
a ausncia de previso da pena capital.
Em verdade, como bem resumido por Norberto Bobbio,
duas so as grandes correntes que antepem suas concepes sobre a
justificativa da pena de morte: uma, a que se assenta numa concepo
chamada tica, para a qual a pena de morte decorrncia da regra
de justia. Tem carter retributivo. A pena justa. Outra, a
concepo chamada utilitarista, para a qual a pena de morte s se
justifica se provar-se que til, quer para fins de preveno
geral, quer para fins de preveno especial, quer para a defesa
social.
Tenho que, dentro dessa perspectiva jusfilosfica, os pases
com tradio assentada no common
law so os que mais frequentemente compartilham a idia de que a
pena de morte justa. No importa se til, ou se
necessria. apenas justa. a medida da justa retribuio.
No vejo outro motivo para a discusso que se abriu, no seio
da Comisso Ad Hoc e depois do Comit
Preparatrio, vista do projeto elaborado pela Comisso de Direito
Internacional da ONU, o qual no previa a pena de morte. Muitas das
delegaes sustentavam, e isso prosseguiu inclusive nas discusses
havidas durante a Conferncia de Roma, que sem a possibilidade de se
aplicar a pena de morte os objetivos e a credibilidade da Corte seriam
abalados. Seu ponto de apoio era a sustentao do fato de que a
gravidade dos crimes a serem julgados pela Corte seria reforada com
a previso da pena de morte. Insistiam essas delegaes em que no
havia nenhuma proibio, sequer recomendao contra a pena de
morte, derivada dos costumes de direito internacional. A pena de morte
seria, na perspectiva dessas delegaes, a pena justa.
A nosso ver, no
entanto, a oposio derivava
muito mais do fato de entenderem, essas delegaes, que a no
previso da pena de morte poderia ser interpretada como um
progressivo desenvolvimento do costume internacional no sentido da
proscrio dessa pena.
De outro lado, os delegados de pases com sistemas mais
assentados na civil law, e que portanto tm uma viso diferente das finalidades da
pena - muito mais num sentido utilitrio do que retributivo -
invocaram o fato de que, quer pases
signatrios do Protocolo Adicional ao Pacto de Direitos Civis
e Polticos, quer os pases americanos signatrios da Conveno
Americana sobre Direitos Humanos, e os europeus signatrios da
Conveno Europia, tinham
um compromisso internacional no sentido da abolio da pena de
morte, ou ao menos de sua no extenso a outros delitos. A prevalecer a previso de
tal pena no Estatuto, no poderiam eles ser signatrios da
Conveno de Roma, nem tampouco colaborar com a obrigao da
entrega de pessoas Corte se esta pudesse conden-los pena de
morte.
Como tambm se discutia a incluso da pena de priso
perptua, esta sim prevista no projeto da Comisso de Direito
Internacional, algumas
delegaes entenderam que a manuteno deste tipo de pena seria
necessria, no sentido de mostrar, s delegaes que insistiam na
incluso da pena morte, alguma flexibilidade, para alcanar-se um
acordo. Ressalte-se que discusses sobre a pena de priso perptua
tm sido tema frequente, mesmo porque h considervel doutrina que
considera tal punio contrria ao princpio de humanidade das
penas, defendido nas instncias internacionais.
Portugal, e os pases ibero-americanos, foram os grandes
opositores da incluso no s da pena capital, mas tambm da pena
de priso perptua no Estatuto do Tribunal.
No entanto, venceu a corrente conciliadora. Assim, as
negociaes levaram
aceitao da manuteno, no Artigo 77 de seu texto, da pena de
priso perptua, em troca da no incluso da pena capital.
Por seu lado, os detratores da pena de priso perptua
fizeram constar tal pena como exceo, a ser aplicada apenas em
casos de excepcional gravidade dos crimes ou de circunstncias
individuais do criminoso, alm de clusula mandatria de reviso da pena , aps 25 anos de
seu cumprimento - Artigo 110 do Estatuto. Caso indeferida a reviso,
a Corte se obriga a proceder a novas e sucessivas revises
peridicas, na forma ainda a ser regulamentada pelas Regras de
Procedimento e Prova que esto sendo discutidas junto Comisso
Preparatria - PrepCom.
Entendi necessrio esse pequeno histrico, tirado da
excelente obra organizada por Roy S. Lee, a fim de que possamos
compreender que a manuteno da previso da pena de priso
perptua no Estatuto deu-se
muito mais por necessidade, para evitar-se um maior confronto com as
delegaes que insistiam na incluso da pena de morte, o que vem
bem a demonstrar que grande parte das naes ainda v nas penas mais severas a nica
forma de justa retribuio aos crimes mais graves.
Cumpre ainda lembrar que, por deciso da maioria das
delegaes, mais uma vez aquelas mais afinadas com o sistema da common law, a aplicao das penas previstas no Estatuto
fica a critrio dos Juzes, que tm poder discricionrio para
escolher, dentre as espcies previstas, a pena a ser aplicada. Nenhum
dos delitos previstos no Estatuto traz pena especfica cominada,
semelhana dos previstos nos estatutos dos Tribunais ad hoc de Ruanda
e da extinta Yugoslavia. Tal forma de cominao de penas, totalmente estranha s
nossas tradies, tem igualmente sido interpretada sem razo - como ofensiva ao princpio de
individualizao das penas.
Aps esse breve eio pela histria de um debate que
resultou, a nosso ver, na infeliz e injustificvel incluso da pena
de priso perptua no Estatuto do Tribunal Penal Internacional,
resta expor nosso entendimento acerca da compatibilidade ou no de
tal previso com nosso texto constitucional. Essa, afinal, a tarefa
para a qual fomos desafiados.
Acredito que no haja uma resposta simples, fcil,
detectvel de pronto. Qualquer que seja a matria em discusso, a
prpria essncia da cincia do direito reside na interpretao.
Direito interpretao. A norma no a decomposio de uma
verdade posta. A norma o que nela interpretamos.
Em verdade, o que me proponho a fazer aqui dar incio a
algumas reflexes, necessrias para que possamos compreender o
modelo de sistema penal proposto pelo Estatuto do TPI, em confronto
com um modelo por ns mais conhecido e tido por ideal e justo.
No pretendo, mesmo porque no me habilito para faz-lo,
entrar no discurso filosfico. Como operadores do direito , acabamos
criando o hbito de buscar respostas nas normas, muito mais do que
nos valores que lhes do sustentao.
A primeira e importante observao necessria a de que a
ratificao do Brasil ao TPI no implica, jamais poder implicar,
em defesa da pena de priso perptua.
A Constituio Brasileira prev um extenso e cuidado rol de
direitos e garantias fundamentais no seu artigo 5. Por fora do
artigo 60, pr.4, inc.4, sequer proposta de emenda constitucional
tendente a abolir direitos e garantias individuais pode ser objeto de
deliberao. Assim,
primeira vista, o inciso XLVII, b, do art. 5 da CF, que
proscreve a pena de priso perptua, geraria a incompatibilidade do
texto do Artigo 77 do Estatuto, a impedir a ratificao do Brasil.
No vejo como to simples a equao.
Primeiramente, e dentro da mais tradicional doutrina
constitucionalista, de se lembrar que os princpios,
sempre, prevalecem sobre as regras. E princpio da
Repblica Federativa do Brasil reger-se, nas suas relaes
internacionais, pela prevalncia dos direitos humanos
( art. 4, II ). No h que se esquecer que o pas tem por
um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana ( Art. 1, III ).
Nem como esquecer-se, ainda, que ao rol de direitos e garantias
fundamentais agregam-se os direitos e garantias previstos nos tratados
internacionais dos quais o pas seja parte ( Art. 5, pr.2)
Nas relaes internacionais, pois, princpio
constitucional reger-se o pas pela prevalncia dos direitos
humanos. No vem desvinculada de respaldo
principiolgico a norma inserta no art. 7 do Ato das Disposies
Constitucionais Transitrias que aduz que o Brasil propugnar pela criao de um Tribunal
Internacional de Direitos Humanos. No esta uma norma
programtica despida de qualquer contedo principiolgico. Ao
contrrio, aponta para uma das formas
pela qual se realizar o contedo do princpio.
Ora, j numa primeira viso panormica sobre princpios
constitucionais expressos - formalmente e materialmente
constitucionais, pois - se depreende que o pas compromete-se, na
ordem internacional, com a adoo de medidas de preservao de
direitos fundamentais, e propugna pela criao de um tribunal
internacional que apure violes ad direitos humanos.
O Prembulo do Estatuto, embora no tenha o carter
obrigacional de suas disposies, aponta para o TPI como meio de
preservao e restabelecimento da comunidade internacional frente a
ameaas decorrentes dos mais graves crimes contra os direitos
fundamentais, de transcendncia internacional. O fim da impunidade, e
a preveno de novos crimes, so objetivos reafirmados pelos
signatrios do Estatuto. Portanto, tem o TPI inegavelmente o perfil
desse Tribunal
Internacional de Direitos Humanos previsto no Artigo 7 do ADCT, e
seus objetivos traduzem a prevalncia, na ordem internacional, da
proteo de tais direitos.
Em si mesmo, pois, o Tribunal Penal Internacional no s
atende a um princpio constitucional, como o Brasil se coloca
como incentivador de sua implementao.
Essa a linha da primeira reflexo que proponho aos estudiosos
da matria. A criao de um Tribunal Penal Internacional de
direitos humanos princpio expresso em nossa
Constituio. Assim, regras especficas contidas no texto
constitucional devem ser interpretadas de molde a se conformar com o
princpio de que decorrem. No o inverso: no se pode privilegiar a
regra, em detrimento do princpio
Vejo assim que, ao propugnar pela criao de um Tribunal
Penal Internacional de direitos humanos, no poderia o constituinte ,
evidncia, condicionar-lhe a estrutura, organizao e
funcionamento ao modelo e semelhana dos tribunais internos.
Regendo-se nas suas relaes internacionais pela prevalncia dos
direitos humanos, a existncia de normas de direito interno diversas
daquelas previstas numa Corte internacional no poderia levar a um
juzo de incompatibilidade, quer formal, muito menos substancial, por
uma questo de lgica.
Numa segunda ordem de reflexes, vejo que o constituinte, ao
formular o elenco de direitos e garantias previsto no art. 5, mais
especificamente o regime penal contido nas regras dos incisos XLV,
XLVI, XLVII, XLVIII e XLIX, no poderia ter em conta seno as relaes entre o Estado,
atravs de seus rgos repressivos, e o indivduo que, nos
termos do princpio da territorialidade, houver cometido delito no
territrio nacional ou nas suas extenses, como previsto em lei.
As normas de direito penal da Constituio regulam o sistema
punitivo interno. Do a exata medida do que o
constituinte v como justa retribuio. No se projeta, assim, para outros
sistemas penais aos quais o pas se vincule por fora de
compromissos internacionais.
Alis, esse j fra o entendimento do eminente Ministro
Francisco Resek, no julgamento da Extradio n 426 - tida como leading case - em que o Supremo
Tribunal Federal deferiu extradio de estrangeiro a Estado
requerente no qual se aplicaria a pena de priso perptua, sem
condies ( RTJ 115/969). Em seu judicioso Voto, o eminente
internacionalista j afirmava que (...) no que concerne ao
pargrafo 11 do rol constitucional de garantias ( e aqui o
Magistrado se referia ao rol de direito e garantias fundamentais do
art. 153 da Constituio anterior, e que dizia respeito
proibio de penas de priso perptua) ele estabelece um padro
processual no que se refere a este pas, no mbito especial da
jurisdio desta Repblica. A lei extradicional brasileira, em
absoluto, no faz outra restrio salvo aquela que tange pena de
morte. (...) O que a Procuradoria Geral da Repblica prope uma
extenso transnacional do princpio inscrito no pargrafo 11 do rol
de garantias.
No mesmo julgamento, o no menos iminente Ministro
Sidney Sanches afirma: (...)
O pargrafo 11 do art. 153 da Constituio Federal, a meu ver,
visou impedir apenas a imposio das penas ali previstas ( inclusive
a perptua) para os que aqui tenham que ser julgados. No h de ter
pretendido eficcia fora do pas.
Na Extradio n. 669.0, o eminente Ministro Celso de Mello,
trazendo precedente da lavra do respeitado Ministro Seplveda
Pertence, dele transcreve: (...)
A questo da imposio das penas privativas de liberdade, tais como
abstratamente definidas na legislao de New Jersey, traduz opo
judicial peculiar ao ordenamento jurdico daquele estado-membro da
Unio norte americana. Nesse contexto, no se pode impor, no plano
das relaes extradicionais entre estados soberanos, a compulsria
submisso da parte Requerente ao modelo jurdico de aplicao de
penas vigente no mbito do sistema normativo do estado a quem a
extradio solicitada. Em seu Voto, o relator conclui: (...) A forada importao de
critrios ou de institutos penais no se legitima em face do direito
das gentes nem se justifica luz de nosso prprio sistema
jurdico. ( RTJ 133/1097).
Tais precedentes so ora trazidos apenas para demonstrar a
sensibilidade de nossa Corte Superior no sentido de afirmar a
aplicao territorial de nossa lei penal. No diversa a situao,
como ora se apresenta, de ter-se vista ordenamento que provm
seuqer de outro Estado soberano, mas de rgo supranacional, cujas regras jamais poderiam
ser tidas por incompatveis com nossas regras internas pelo simples
fato de que se aplicam por rgos jurisdicionais distintos.
J por essa reflexo, tambm, no vejo como possam
quaisquer institutos de direito penal interno, ainda que com status constitucional, serem
opostos como barreiras intransponveis submisso do pas a um
sistema penal internacional.
Mas no s.
A ordem jurdica, interna ou internacional, dinmica. E
no se pode cogitar de um princpio, ou de uma norma, dissociado do
valor que lhe subjacente, ou de que decorrente. Em outras
palavras, uma norma jurdica no subsiste s por sua existncia
formal, mas tambm pelo seu contedo substancial. Nessa medida, a
prpria Constituio , mesmo sem reviso ou emendas que lhe
alterem a forma, pode assumir novos contedos decorrentes de um
cmbio no contedo material dos direitos envolvidos. Assim, alguns
autores resumem esse fenmeno como sendo aquele em que h um
processo informal de mudana na Constituio, por meio do qual
seriam atribudos novos contedos, novos sentidos no expressos na
letra das normas. Tais mudanas adviriam, pois, a partir de mudanas
na realidade, e seriam reconhecidas atravs, a exemplo, de nova
interpretao do texto constitucional.
Essas mutaes podem alterar o contedo material de normas
constitucionais, e so constitucionais na medida em que no
afrontem princpios, nem arranhem as chamadas reservas materiais ou
reservas de justia, nem causem trauma ao sistema. E decorrem da
interpretao, de uma nova construo jurisprudencial, da mudana
dos usos e costumes, de prticas governamentais e, aqui convergimos,
da implementao da normativa internacional.
Em mais simples anotaes, tenho que a construo,
normativa ou decorrente dos usos e costumes, de um arcabouo
jurdico internacional, pode trazer alteraes materiais
Constituio. E, no caso, na criao de um Tribunal Penal
Internacional, inexistente poca da promulgao do texto da lei
maior, mas prevista em suas disposies finais transitrias,
reflete-se esse poder difuso
para provocar alterao no contedo da Constituio.
No haveria assim, nas disposies estatutrias, qualquer
incompatibilidade com o texto da lei maior, na medida em que a
proibio da pena de priso perptua restringiria o legislador
interno, e to somente ele. De outro lado, a afirmao do
princpio da prevalncia dos direitos humanos no plano
internacional, e da disposio constitucional de se propugnar pela criao de um
tribunal internacional de direitos humanos, levam ao entendimento de
que as normas do Estatuto desse tribunal podem operar mutaes
substanciais no texto constitucional, que a assim a abrig-las
sem a necessidade de qualquer alterao formal em seu texto, e
sempre desde que se conformem com suas reservas materiais.
Por fim, e como ltimo argumento para reflexo, lembro que o
prprio texto constitucional, no mesmo rol de direitos e garantias do
art. 5, prev a exceo da pena de morte, para os crimes
militares cometidos em tempo de guerra ( Art. 5, XLVII, a).
A leitura do texto do Cdigo Penal Militar ( Decreto Lei 1001,
de 21.10.69), nos traz a triste viso de um extenso rol de delitos
punidos com pena capital. A traio ( art. 355), a fuga ( art. 365),
o dano em bens de interesse militar ( art. 384), o abandono de posto (
art. 390) so alguns exemplos. Prev, ainda, alguns delitos cujas
condutas tpicas so semelhantes s que vm elencadas no rol do
Artigo 8 do Estatuto, ou no Artigo 3 Comum das Convenes de
Genebra, que descreve os crimes de guerra. Tambm, a exemplo, pune
nosso Cdigo Penal Militar, com a pena de morte, os crimes de
genocdio ( art. 401 ), e de violncia sexual ( art. 407), este quando
houver o resultado morte. Veja-se que no distante de diversas
definies tpicas trazidas pelo Estatuto, as quais, apenas em
situaes excepcionais, poderiam ser punidas com a
pena de priso perptua. Portanto, nossa legislao interna, ao
abrigo de dispositivo constitucional, prev pena muito mais severa
que aquela trazida pelo Estatuto para algumas figuras tpicas
anlogas.
Ainda recentemente, o Brasil ratificou o segundo Protocolo
Adicional da Conveno Americana sobre Direitos Humanos, o qual, em
seu Artigo 2, reafirma que os Estados signatrios se comprometem com
a abolio da pena de morte, ressalvando-se, no entanto, sua
previso aos casos de crimes de guerra.
No h, pois, uma restrio moral ou substancial do
constituinte contra a pena de morte em casos de crimes cometidos em
situao de guerra, embora, nesse caso, tenha o Brasil assumido
inclusive obrigaes internacionais no sentido de no ampliar as
hipteses previstas. Diante dessa constatao, refora-se a idia
de que a previso restritiva pena de priso perptua, dirigida
ao legislador ordinrio interno, no oferece resistncia
apenao de crimes internacionais, em tudo assemelhados aos crimes
cometidos em tempo de guerra - aqui compreendidas as situaes de
conflito previstas no Estatuto do TPI - que poderiam inclusive, na
legislao interna, serem punidos com a pena capital.
Sem a pretenso de ter trazido solues s controvrsias,
espero que estas reflexes possam contribuir, ao menos, para que
prossiga um debate srio e desapaixonado sobre a importncia do
Tribunal Penal Internacional, e a necessidade de o Brasil ratificar
seus Estatutos aceitando-lhe a competncia. A aceitao das
competncias de uma corte internacional de direitos humanos
princpio constitucional, e o princpio, como sabido, deve ser
levado em conta como principal critrio de interpretao e
integrao do texto constitucional.
Sempre oportuno lembrar que o controle internacional sobre a
ao dos Estados garantia da promoo dos direitos e garantias
fundamentais, como afirmou Fabio Comparato,
j que a proteo das pessoas contra os mais graves crimes de
transcendncia para toda a comunidade internacional no pode ser
interpretado como assunto de exclusivo interesse domstico.
A leitura dos diversos dispositivos do Estatuto do Tribunal
Penal Internacional demonstra que ele adota o iderio garantista.
No deixa de preocupar-se com os princpios garantistas da
legalidade dos delitos e das penas, da irretroatividade, da
culpabilidade. Em seu Artigo 67 elenca extenso rol de garantias
processuais, sob determinados aspectos mais detalhistas inclusive do
que vrias das normas processuais de nossa legislao interna.
No se pode, diante de todo esse contedo, afirmar que a
previso da pena de priso perptua - expurgada, com razo, de
nosso ordenamento interno - traduz a consagrao de um tribunal
alheio aos princpios garantistas do direito penal moderno.
De qualquer forma, aliando-se
o reconhecimento da existncia de mutao constitucional decorrente
da criao de um tribunal internacional de direitos humanos pelo
qual o constituinte propugnava, ao
fato de abrir o prprio texto constitucional possibilidade de
apenao inclusive mais grave a crimes previstos igualmente no
Estatuto do Tribunal Penal Internacional, vejo como possvel a
ratificao imediata do Estatuto de Roma, sem que com isto se esteja
infringindo quaisquer de suas disposies de proteo a direitos
fundamentais.
Volta
ao sumrio
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