Relatrio 8485
COMISSO
DE DIREITOS HUMANOS - RELATRIO
- ALCNTARA-MA
Este relatrio
presta contas da viagem cidade maranhense de Alcntara, onde
foram feitas visitas s comunidades e uma audincia pblica na
igreja de So Matias, com a finalidade de analisar o impacto da
instalao da base de lanamentos na vida e cultura dos
descendentes dos quilombos, tradicionais habitantes da regio.
Originalmente a
comisso seria composta do relator e mais trs deputados
maranhenses: Neiva Moreira (PDT), Sebastio Madeira (PSDB) e Nice
Lobo (PFL). Por razes diferentes, os deputados do Maranho no
puderam participar, ficando o trabalho ao relator e a
procuradora Dbora Duprat, sendo apoiados pelo ex-deputado
Domingos Dutra, dirigentes do Sindicato de Trabalhadores Rurais e
religiosos.
A referncia de
nosso trabalho o documento anexo, uma denncia enviada
Comisso Interamericana de Direitos Humanos, sediada em
Washington. Descreve a desestruturao sociocultural e a violao
ao direito de propriedade e ao direito terra, tradicionalmente
ocupada pelas comunidades de Samucangaua, Iririzal e Ladeira.
Acusado: Centro de Lanamentos de Alcntara, base de onde devem
ser lanados os satlites brasileiros e objeto de um acordo de
cesso aos Estados Unidos, tema relatado pelo deputado Waldir
Pires. O texto do deputado Waldir Pires, explicitando suas
ressalvas crticas ao acordo, est anexado a este relatrio.
Alcntara fica a
22 quilmetros de So Lus . Elas se ligam pelo servio de
barcos que cruzam a Baia de So Marcos. As estradas terrestres
para Alcntara esto cheias de crateras, como se tivessem sido
levemente bombardeadas. Mesmo as estradas prximas ao Centro de
Lanamentos esto em estado precrio, indicando que um dos
objetivos do acordo com os Estados Unidos o de buscar fontes
adicionais para financiar o projeto.
Chegamos a Alcntara
ao anoitecer e fomos visitar a comunidade de Ladeira, a uns 20
quilmetros do centro. A comunidade, de descendentes dos
quilombolas, no tem luz. Com a ajuda de lamparinas, realizamos
uma reunio informal, para convid-los a participar da audincia
pblica. Como as visitas faziam parte de nossa misso, registro
que a comunidade de Ladeira tem dificuldades para produzir e quase
nenhuma ajuda para desenvolver um projeto de sustentao.
Registro essa agem para acentuar que a situao da Ladeira
tem ligaes com o conjunto de denncias apresentadas. Ela
reflete tambm as dificuldades que uma populao de 18.950
habitantes, descendentes de quilombolas e indgenas, compondo o
que o antroplogo Alfredo Wagner Berno definiu como um Territrio
tnico, enfrenta com a instalao do Centro de Lanamentos. O
remanejamento das comunidades que dividiam o uso da terra e da
pesca de uma forma complexa e ecologicamente sustentvel
dificultou a prpria capacidade de produzir sua sobrevivncia,
tudo isso associado ao impacto cultural de deixar seu espao,
separar-se dos mortos (o cemitrio ficou dentro da Base) usar
crach para se deslocar num territrio que sempre foi livre (ver
artigo do relator , anexo, Folha de So Paulo).
No entanto,
encerrada a primeira fase da misso, era necessrio realizar a
audincia pblica e analisar o material recebido, conferindo com
as denncias contidas no documento enviado Comisso
Interamericana de Direitos Humanos. A terceira etapa da misso
seria a de ouvir as autoridades responsveis no Ministrio da
Aeronutica e na Agncia Espacial e Ministrio de Cincias e
Tecnologia, concluda em Braslia na semana posterior.
A AUDINCIA PBLICA
Realizada na manh
do dia 6 de novembro de 2001, no interior da Igreja de So Matias
a audincia pblica foi presidida pelo relator e contou tambm
com a presena da deputada estadual maranhense Helena Helluy,
chegando em seguida o prefeito Malaluel Morais e o presidente da Cmara
de Vereadores, Sr. Jos Ribamar, ambos do PFL.
O primeiro
depoimento tomado foi o de Inaldo Faustino da Silva Diniz que
pertence a uma das 312 famlias transferidas para as agrovilas,
conjunto de casas com 50m2, destinadas a substituir as residncias
desapropriadas. Inaldo Faustino da Silva vem da Agrovila Espera.
Conta que o Centro de Lanamentos, ao ser instalado no princpio
da dcada de 80, com uma proposta de mudar a vida dos habitantes
tradicionais de Alcntara. Cada comunidade designou uma comisso
de trs pessoas para a discusso do processo e Inaldo Faustino
da Silva foi um dos primeiros a ser deslocado.
Como so
descendentes dos quilombolas e ocupam a terra de uma forma
complexa onde se integram as chamadas terras de negro, as terras
da igreja, abandonadas por ordens religiosas, que deram origem as
terras de santo e terras do santssimo relacionando-se tambm na
descrio do antroplogo Alfredo Wagner Berno as terras de
caboclo, terras de parente, terras de herana, terras da pobreza
e terra de donos.
A maneira como se
enfrentou essa complexidade foi transferir para esse Territrio
tnico uma viso da formao social brasileira, ignorando no
somente as tradies culturais mas tambm a maneira hbil como
repartiam o uso da terra e das reas de pesca.
Apesar da Constituio
de 88 ter reconhecido o direito dos territrios remanescentes de
quilombos (fazendas ou mocambos formados por escravos fugitivos ou
libertos, com culturas e dialetos prprios) a disporem de seus
territrios, o processo de instalao do Centro de Lanamentos
de Alcntara, na verdade, est desintegrando essa riqueza
cultural brasileira.
Inaldo Faustino da
Silva afirmou que a terra, a partir da transferncia para as
agrovilas no poderia ser explorada livremente. Foi criado um mdulo
de 15 hectares - uma reduo em relao ao mdulo
nacionalmente aceito de 35 hectares - e cada morador da agrovila
teria de tirar o sustento dessa faixa de terra.
A uma pergunta da
procuradora Debora Duprat sobre o cemitrio da comunidade, Inaldo
Faustino informou que o cemitrio ficou no interior da rea
reservada ao Centro da Lanamentos. Perguntado pela deputada
Helena Helluy se os tmulos estavam ainda intactos, ele revelou
que, deixado ao abandono, o cemitrio foi de novo envolvido pela
mata.
O depoimento de
Inaldo Faustino Silva Diniz aponta as limitaes do sistema de
agrovilas, limitaes confirmadas em todos os outros depoimentos
de pessoas deslocadas:
- Falta de liberdade para definir
a explorao de suas terras. Os descendentes de quilombos
estavam acostumados a uma liberdade de escolha na terra,
combinando o uso entre as vrias comunidades.
- Falta de liberdade para pescar
como antes. Agora necessrio usar crach e, s vezes,
interromper o trabalho por mais de uma semana, durante os
preparativos finais para um lanamento. Como os lanamentos
no so feitos com hora marcada mas dependem de circunstncias
climticas, h limitaes nesse tempo de espera, por
medidas de segurana. S que, as vezes, esse perodo pode
durar mais de duas semanas.
- Falta de liberdade para ampliar
as casas, com o crescimento das famlias ou separao do
casal. Os casais que se separam tm de dividir o mesmo teto.
- Falta de financiamento para
impulsionar a autosustentao das agrovilas, onde no h
nenhum tipo de emprego.
Em seguida ao
depoimento de Inaldo Faustino Diniz, foi ouvido um outro
representante de agrovilas, o sr. Melquiades Silva, da agrovila
Prepitau. Ele afirmou que h 18 anos atrs, quando o Centro se
instalou a promessa era a de que iriam trabalhar menos e produzir
mais. Aconteceu o inverso. Ele acentua tambm que, apesar das
promessas iniciais, a cidade no foi ajudada. Hoje, quando os
filhos chegam ao segundo grau no h mais onde envi-los,
exceto para a capital.
O depoente afirmou
tambm que no tem nenhuma hostilidade contra a presena do
Centro de Lanamentos de Alcntara, algo que foi tambm
lembrado por vrias outras testemunhas que no colocam como
objetivo o fechamento do Centro mas, uma forma justa de se
relacionar com a populao.
Antes de ar a
ouvir dois outros tipos de comunidades, as ameaadas de
deslocamento e as ameaadas de desestruturao, foi dada a
palavra ao prefeito Malaluel Morais que reclamou, inicialmente, no
ter sido convocado para a audincia pblica mas se colocou
disposio para um trabalho conjunto para melhorar a situao
de Alcntara, dizendo-se, em princpio, de acordo com as medidas
sugeridas pelas comunidades.
A prxima depoente
Ceclia Rosa Borges vem da comunidade da Prainha, que tem 50 famlias
e est ameaada de desestruturao.
Ela confessou que,
cada vez que fala do assunto, fica emocionada pois acompanha h
quase 20 anos o sofrimento do povo de Alcntara, sofrimento
classificado pela professora Maristela de Paula Andrade, da
Associao Brasileira de Antropologia, como um lento genocdio.
Segundo ela, era
possvel pescar sem pedir crachs e o que havia na natureza era
suficiente para manter uma produo equilibrada de camares,
sururu e ostras. As mudanas que tiraram o sustento de alguns e
condensaram comunidades que eram separadas acabaram tensionando a
pesca e houve uma queda de produtividade que pode at ameaar a
sobrevivncia de sua comunidade. Prainha foi classificada como
uma das comunidades ameaadas desestruturao.
A moradora da
Prainha mencionou tambm o acordo de 1983, no qual o governo
federal se responsabilizava, em documento reconhecido em cartrio
e que est anexado a este relatrio, todas as reivindicaes
importantes da comunidade, da titulao de suas propriedades
assistncia tcnica e financeira para projetos autosustentveis.
Logo em seguida,
foi ouvida Dorinete de Moraes, conhecida como Neta e que
representa a comunidade de Canelatiua, tambm com 50 famlias.
Ela considera sua comunidade diferente das outras pois possui
documentos atestando que eram "terras da pobreza" doadas
aos seus ocupantes, ao contrrio do que afirma a Aeronutica de
que seriam terras da Unio.
Canelatiua
considerada pelas famlias que ali residem, segundo o depoimento,
como uma terra abenoada e que vive o permanente perigo de ser
desocupada pelo Centro, que pretende ocupar uma rea equivalente
metade do territrio de Alcntara, que tem, no total, 114 mil
hectares.
A origem do povoado
apontada como uma unio de descendentes dos ndios e dos
quilombolas. A comunidade se sustenta com dignidade mas teme o
avano das desapropriaes pois sua rea foi includa. Todos
os investimentos em novas plantaes foram suspensos pois os prprios
representantes da Aeronutica disseram para que no construssem
nada, nem iniciassem novas plantaes.
Apesar de no
terem ainda perdido suas terras, as famlias de Canelatiua, que
hoje deixam suas portas abertas e vivem num clima de fraternidade,
temem serem concentradas em agrovilas e no querem que sejam
colocados no mesmo espao que outras comunidades.
Mais quatro
depoimentos foram tomados, todos reafirmando as denncias contra
a maneira como suas comunidades tnicas esto sendo
desestruturadas e confirmando tambm as denncias enviadas
OEA.
Para uma rpida
compreenso do problema interessante examinar o documento de
83, muitas vezes mencionado pelos depoentes. Ele nasceu de um
abaixo assinado da populao e grande parte de suas propostas
foi aceita pela Aeronutica que assumiu um compromisso pblico,
ado em cartrio, de atend-las.
O que pediam em 83,
no difere muito do que ainda pedem agora.
O texto dizia:
"Para nossa
sobrevivncia queremos:
- Como lavradores que somos, terra
boa e suficiente para trabalhar e fora da rea do decreto de
desapropriao;
- Praia, pois a grande maioria de
ns tira da pesca parte do sustento da famlia;
- Ficar junto, por causa dos laos
de parentesco e amizade que nos unem em nossos povoados;
- gua que nunca falte onde agora
estamos;
- lugar para pasto dos animais;
6) Ttulo
definitivo da propriedade desta terra, uma vez aprovado por ns
o local.
O documento
continha mais reivindicaes gerais, tais como as que decorrem
da necessidade de assistncia mdica, de ensino, de assistncia
religiosa , luz eltrica, etc.
As visitas feitas
na vspera e o conjunto dos depoimentos apresentados na audincia
pblica, indicam que as reivindicaes de 83 permanecem atuais
mesmo hoje, sobretudo porque grande parte delas, apesar das
promessas oficiais adas em cartrio, no foi cumprida.
Ao voltar para Braslia
com o material da audincia e o documento enviado OEA,
apresentei uma primeira denncia na Comisso de Relaes
Exteriores que discute o acordo com os Estados Unidos.
No dia seguinte, o
Comandante da Aeronutica organizou uma reunio com alguns
oficiais, representantes da Agncia Espacial e assistentes jurdicos
do Ministrio de Cincia e Tecnologia.
O Comandante da
Aeronutica demonstrou uma certa surpresa com o nvel de denncias
e a Agncia Espacial itiu que algumas delas eram fundadas e
que j estava em marcha um plano para mitigar o desgaste causado
pela instalao do Centro de Lanamentos em Alcntara.
O plano foi enviado
por este relator para Alcntara onde deve ser examinado pela
populao. Ele est disponvel no anexo do relatrio. No
nosso entender, no cabe Comisso de Direitos Humanos
criticar o plano num primeiro momento mas sim montar um novo
encontro em forma de audincia pblica para que os
representantes comunitrios e os membros do Governo Federal
possam se colocar de acordo.
Seria necessrio
contar com a presena tambm do antroplogo Alfredo Wagner
Berno, estudioso do problema e formulador do conceito de Territrio
tnico. Apesar dos debates na Comisso de Relaes Exteriores
terem se concentrado nas questes ligadas soberania nacional,
o problema do Centro de Lanamentos de Alcntara cai dentro da
esfera da Comisso de Direitos Humanos.
Esta compreenso no
decorre apenas da denncia feita Comisso Interamericana.
Decorre de uma viso moderna de direitos humanos que considera o
direito de reconhecimento de culturas, como as dos remanescentes
de quilombos, como um elemento fundamental de nossos objetivos
estratgicos de construir uma sociedade multicultural.
Alm disso, a
combinao de trs elementos: culturas tradicionais, uma base
de lanamentos de satlites e runas do perodo colonial,
essas tambm responsveis para que Alcntara reclame o ttulo
de patrimnio da humanidade, enfim variveis que representam um
grande desafio para uma nao moderna.
O trabalho da
Comisso de Direitos Humanos no pode, portanto, se contentar em
buscar um acordo superficial entre as partes. Sua tarefa dever
ser a de monitorar um projeto para combater a decadncia dessas
riquezas nacionais em trs nveis:
- Apoiar o conceito de Territrio
tnico e buscar de todas as formas valorizar a cultura
tradicional da regio;
- Apoiar o Centro de Lanamentos
uma vez que seu sucesso representa uma presena maior do
Brasil no espao, ampliando nossa possibilidade de produzir
dados e imagens, mercadorias importantes no sculo XXI;
- Estimular a recuperao das runas
atravs de intervenes no agressivas, utilizando a mo
de obra local para combinar runas, flores e plantas nativas;
- Estimular o turismo criando um
grande centro de informaes que reuna num mesmo espao
dados sobre nossa tecnologia espacial, objetos e imagens das
culturas tradicionais da regio e reconstituies virtuais
do esplendor colonial de Alcntara.
Seria inadequado
entrar em grandes detalhes sobre esse caminho que proponho
Comisso de Direitos Humanos. Outras e mais importantes propostas
podem surgir no caminho. O que proponho que a Comisso de
Direitos Humanos considere a questo como prioritria e dedique,
junto com a bancada negra do Congresso, um projeto de
acompanhamento permanente, que transcenda inclusive os limites da
atual direo da Comisso.
Braslia, de
novembro de 2001.
Deputado Fernando
Gabeira
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