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As parcerias entre as Polcias, as Universidades e as Ongs: sinais promissores de mudana na sociedade brasileira 6g5g1v

Lus Flvio Sapori 5p3212

Pesquisador da Fundao Joo Pinheiro/Professor da PUC MINAS

H um processo em curso na sociedade brasileira na rea de segurana pblica ainda no devidamente captado e analisado. um processo rico e promissor que aponta para a efetivao de mudanas qualitativas nas organizaes policiais em nossa sociedade, mudanas essas que dizem respeito consolidao de nossas instituies democrticas. Estou me referindo proliferao de parcerias entre as organizaes policiais e as universidades, institutos de pesquisa e organizaes no-governamentais. Nos ltimos anos programas de treinamento e de formao de policiais tm sido empreendidos no mais sob o monoplio das respectivas academias de polcia, mas envolvendo a participao decisiva de entidades que compem o ambiente social destas organizaes. No constitui mais novidade o fato de que a definio de contedos programticos, de procedimentos pedaggicos e a prpria realizao de aulas resulte da insero de atores externos ao trabalho policial. Convnios tm sido estabelecidos para viabilizar uma diviso de atribuies entre as academias de polcia e as organizaes parceiras, sendo que estas ltimas tm assumido uma importncia cada vez maior no processo decisrio dos programas de formao e treinamento.

Em pelo menos 15 estados brasileiros este fenmeno j pode ser detectado, estando presente desde o Amap at o Rio Grande do Sul, ando por diversos estados do Nordeste, como so os casos do Rio Grande do Norte, Paraba, Pernambuco, Bahia e Sergipe. Na regio sudeste os destaques so Minas Gerais, Rio de Janeiro e Esprito Santo. Merece meno o fato de que o fenmeno ainda no est presente no estado de So Paulo. As relaes entre a universidade e as organizaes policiais neste estado ainda so pautadas por um alto grau de animosidade recproca.

Iniciou-se, inclusive, um intercmbio a nvel nacional entre as entidades que esto participando destas parcerias com as polcias brasileiras. Dois encontros nacionais j foram realizados, sendo o primeiro em Belo Horizonte (MG) no ano de 2000 e o segundo em Recife (PE), no ms de agosto de 2001. Os encontros permitiram uma troca de experincias entre as diversas entidades e consolidaram a formao do Frum Nacional de Educao, Democracia e Segurana. Deve-se ressaltar que este network organizacional em gestao tem contado com o apoio decisivo da Fundao Ford.

Um diagnstico preliminar destas experincias permite visualizar um quadro diversificado, a despeito de algumas homogeneidades. Um aspecto relativamente comum diz respeito ao fato de que as polcias militares so os parceiros preferenciais. Em poucos estados brasileiros ocorre a presena tambm da polcia civil, como so os casos do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. um aspecto relevante, sob meu ponto de vista, que permite identificarmos dinmicas distintas entre as polcias militares e as polcias civis no que tange maior transparncia e interatividade com o ambiente externo no atual contexto brasileiro. As polcias civis tm demonstrado resistncia abertura da discusso mais ampla e pblica de seus mecanismos de formao e treinamento, preferindo a adoo de posturas mais corporativas e, porque no dizer, mais conservadoras.

Se h prevalncia das polcias militares em um dos lados da parceria, do outro lado identificam-se tipos diversos de organizaes. Esto inseridas aqui:

a) organizaes no-governamentais, tais como GAJOP em Pernambuco, PROJETO AX na Bahia, CAPEC no Amap e a Cruz Vermelha Internacional;

b) universidades federais e particulares, tais como a UFRS, a UFMG, a UFF, UFSE, UFRN, UFPB, UFPR, UFES, UFPE, Universidade Vale do Itaja (SC);

c) institutos pblicos de pesquisa, tais como Fundao Joo Pinheiro (MG) e Fundao Joaquim Nabuco (PE).

O quadro acima aponta para realidades que envolvem organizaes da sociedade civil bem como organizaes que compem a estrutura de executivos estaduais e federal. Em outros termos, existem parcerias internas ao Estado e parcerias externas ao Estado.

Dimenso especfica que diferencia as experincias estaduais refere-se aos tipos de parcerias estabelecidas, variando num continuum que incorpora desde cursos bsicos de qualificao para policiais da ativa at cursos de especializao para oficiais superiores. Os objetos das parcerias so, geralmente, os seguintes:

a) cursos de qualificao e/ou especializao em segurana pblica para oficiais superiores das polcias militares ou mesmo para delegados das polcias civis, como ocorrem na Fundao Joo Pinheiro, Fundao Joaquim Nabuco, UFMG, UFF e UFES. O que tem prevalecido a transformao dos antigos Curso de Aperfeioamento de Oficiais (CAO) e Curso Superior de Polcia (CSP), tradicionalmente organizados pelas Academias das Polcias Militares, em cursos de especializao ministrados pelas instituies parceiras;

b) curso de formao de oficiais da Polcia Militar, como ocorre nos estados de Santa Catarina, envolvendo a Universidade do Vale do Itaja, e do Paran, envolvendo a UFPR;

c) cursos de aperfeioamento ou mesmo de introduo de novas habilidades policiais, geralmente de curta durao e especialmente nas reas de direitos humanos e de polcia comunitria. O pblico-alvo, nestes casos, tem sido tanto os policiais da base quanto policiais de instncias de comando. Tem prevalecido a atuao das organizaes no-governamentais, como pode ser verificado no Amap, Pernambuco e Bahia.

Merece meno neste ponto o fato de que as parcerias atingem de forma muito incipiente os postos hierrquicos inferiores das organizaes policiais, prevalecendo o intercmbio com as elites organizacionais. Alm disso, os cursos de formao bsica ministrados quando do ingresso dos policiais em suas respectivas organizaes no tm sido objeto das parcerias at o momento.

No que concerne ao tempo de vigncia, os intercmbios com as organizaes policiais brasileiras foram estabelecidas, em sua maioria, nos ltimos 5 anos, sendo, portanto, relativamente recentes. Excees regra so os casos de Minas Gerais e Pernambuco, que apresentam parcerias com as polcias militares h 16 anos e h 10 anos, respectivamente. Em Minas Gerais, por exemplo, desde 1985 a Polcia Militar, atravs de sua Academia de Polcia, divide com a Fundao Joo Pinheiro, que uma organizao vinculada ao sistema de planejamento do executivo estadual, a coordenao dos cursos oferecidos aos capites, majores e tenentes-coronis da ativa. Atualmente estes cursos tm o grau de especializao latu sensu e so denominados de Curso de Especializao em Segurana Pblica (CESP) e Curso de Especializao em Gesto Estratgica de Segurana Pblica (CEGESP). Em Pernambuco, por sua vez, pode-se situar os cursos oferecidos pela Fundao Joaquim Nabuco PMPE, quais sejam, Curso Superior de Polcia e Curso de Aperfeioamento de Oficiais. Desenvolvidos sob a coordenao da FJN, atravs da Escola de Governo e Polticas Pblicas que concebeu o projeto pedaggico dos cursos, tendo como eixo integrador curricular a gesto de polticas pblicas de defesa social.

Outro aspecto das parcerias refere-se ao contedo programtico ministrado nos cursos. O espectro variado considerando a nfase distinta em campos de conhecimento das cincias sociais. Pode-se constatar, por um lado, a prevalncia de contedos relacionados rea jurdica, como so os casos de Santa Catarina e Paran. J nas experincias em curso nos estados de Minas Gerais, Pernambuco, Esprito Santo e Rio de Janeiro, os cursos de ps-graduao oferecidos aos oficiais superiores das Polcias Militares contemplam disciplinas na rea de istrao de empresas alm da formao intensiva em disciplinas da rea de sociologia, cincia poltica e direcionadas para a temtica da segurana pblica. Merece destaque o projeto da UFF com a PMERJ que tem um mdulo de disciplinas com as caractersticas acima referidas s cargo da Universidade. Nos cursos em parcerias com as organizaes no-governamentais tem prevalecido, por seu turno, contedos relacionados rea de direitos humanos. Exemplos mais destacados so os dos estados do Amap e da Bahia, alm do convnio da Cruz Vermelha Internacional com o Ministrio da Justia que acaba contemplando polcias militares de diversos estados brasileiros.

Transparncia e legitimidade das organizaes policiais 6t481x

A partir deste diagnstico preliminar, uma questo coloca-se para reflexo:

- em que medida tais parcerias proporcionam mudanas efetivas no modo de atuar e de pensar das organizaes policiais brasileiras no sentido do aprimoramento de sua insero democrtica ?

Minha perspectiva aqui abordar esta questo sob o prisma sociolgico, evitando incorrer em discursos retricos fceis acerca do tema. importante nesse sentido priorizar os juzos de fato em relao aos juzos de valor. desejvel sob diversos parmetros normativos a viabilizao e a ampliao das referidas parcerias. Pode-se defend-las, por exemplo, com o argumento de que elas so prticas democrticas por excelncia, viabilizando mecanismos de transparncia das organizaes policiais. Este, inclusive, meu ponto de vista.

Minha preocupao, no entanto, identificar os sinais mais concretos do impacto institucional deste processo. Se ele desejvel, por um lado, no significa que seja efetivo, por outro. Motivaes nobres as mais diversas tm orientado a atuao das instituies de ensino, pesquisa e organizaes no-governamentais na busca da aproximao com as polcias. Prevalece, entretanto, a perspectiva de induzir mudanas nas referidas organizaes policiais. Acredita-se, de modo geral, que a introduo de novos contedos programticos, de novas metodologias de ensino, de novas abordagens da realidade social sejam capazes de suscitar a emergncia de formas alternativas de pensar e de agir entre os policiais. Acredita-se, de modo geral, que a mera reforma dos processos formais de ensino seja capaz de propiciar transformaes substantivas nas organizaes policiais. preciso refletir mais detidamente sobre a efetiva concretizao deste objetivo, considerando seus dilemas, paradoxos e limites, entre outros aspectos.

At o momento no realizamos no Brasil uma avaliao destas parcerias. No dispomos ainda nem mesmo de uma metodologia relativamente consensual que seja capaz de avaliar seus impactos institucionais. E tal empreendimento no to simples como pode parecer a princpio. Envolve a definio de critrios para qualificar efetividade, elaborao de indicadores que possam medir impactos institucionais variados, operacionalizao de mtodos de coleta de dados, etc. Considerando estas limitaes, prefiro tecer consideraes mais gerais sobre minhas percepes do fenmeno que tero o carter muito mais de hipteses do que propriamente de constataes empiricamente fundamentadas.

E minha hiptese bsica pode ser formulada nos seguintes termos:

- as parcerias em curso entre as polcias e as universidades e organizaes no-governamentais, dadas suas caractersticas j delineadas, tendem a induzir e a fortalecer o grau de democratizao das polcias no que concerne ampliao da transparncia e reduo do insulamento organizacional. Por outro lado, tais parcerias tendem a ser pouco capazes de ampliar o grau de eficincia e eficcia destas organizaes no combate criminalidade.

Esta questo nos remete a um debate sociolgico muito relevante que diz respeito aos mecanismos sociais geradores de mudanas nas organizaes policiais, em especial o sistema de ensino. No h consenso entre estudiosos das organizaes policiais no que tange ao efetivo impacto da reformulao de processos de ensino sobre mudanas substantivas na cultura e nas prticas organizacionais. Certas abordagens sociolgicas da polcia nas democracias consolidadas, inclusive, indicam que reside mais no ambiente da organizao e menos na reforma das estruturas formais internas a base de induo de transformaes nas maneiras de pensar e agir por parte dos policiais.

A cultura organizacional est amparada em processos sociais muito mais complexos do que a estrutura formal, como caso de sua histria institucional. Alm disso, deve-se considerar que o processo de transmisso de valores, crenas e informaes nas organizaes no se resume s suas instncias formais de socializao. Ela ocorre tambm mediante o acionamento de mecanismos informais que geralmente se estabelecem nas relaes face-to-face entre seus membros. imprescindvel ter em mente que toda e qualquer organizao composta de uma estrutura formal e de uma estrutura informal. Ambas so parte de sua existncia institucional. Nesse sentido, mudanas no ensino formal no implicam, necessariamente, mudanas nas formas de atuar e pensar das respectivas organizaes. Isto no significa afirmar que atravs dos programas de formao e treinamento no se possa induzir processos consistentes de reformas nas polcias. A despeito de suas limitaes, possvel reconhecer a viabilidade do fenmeno mais precisamente quando se considera a importncia das elites na conformao de traos relevantes do ethos organizacional.

No caso das organizaes policiais, os procedimentos formais de socializao compem parte importante da estrutura organizacional. Temos cursos de formao bsica para os policiais iniciantes bem como uma srie de cursos de qualificao e treinamento oferecidos queles j inseridos nas atividades operacionais. As parcerias, conforme j explicitei, concentram-se no treinamento e dirigem-se preferencialmente para segmentos da elite organizacional, como so os cursos de ps-graduao para oficiais superiores das polcias militares. Reside neste ponto a potencialidade de mudana das parcerias. Dado o contedo programtico ministrado disciplinas da rea de cincias sociais especialmente - abre-se a possibilidade de socializao e conseqente formao de uma nova elite organizacional em termos de valores e vises de mundo adequadas aos parmetros normativos da democracia. No apenas para aqueles novatos que esto ingressando na organizao mas principalmente para os que j esto na ativa. possvel sob este ponto de vista referir-se a geraes de oficiais militares que consolidam concepes e prticas alternativas de comando da organizao tendo como ponto de inflexo a participao nos cursos especficos oferecidos pelas parcerias com entidades externas polcia. O posicionamento estratgico desta elite nos principais cargos de comando, por sua vez, fator decisivo no engendramento de uma postura mais transparente e mais dialgica com segmentos diversos da sociedade civil.

A experincia da Polcia Militar de Minas Gerais ilustrativa a esse respeito. A organizao que at incio da dcada de 80 tinha desempenhado papel destacado na ditadura militar, alcana em fins da dcada de 90 nveis invejveis de legitimidade perante a sociedade mineira. certamente uma das organizaes pblicas do estado que mais usufrui de aprovao e respeito por parte da populao. O mesmo grau de legitimidade ela desfruta perante entidades diversas de defesa dos direitos humanos. sintomtico o fato de que nunca alcanou aprovao na opinio pblica e nas elites polticas e intelectuais do estado a idia da extino das polcias militares, conforme tem sido orientado o debate nacional a partir do eixo Rio-So Paulo, nos ltimos anos.

A parceria com a Fundao Joo Pinheiro tem parcela decisiva na explicao do fenmeno, indubitavelmente. A organizao foi capaz ao longo deste perodo de redefinir seus padres de interao com a sociedade civil. Instituiu-se e consolidou-se um processo de renovao doutrinria que alcanou relativa hegemonia perante os oficiais superiores da organizao. A abertura para o dilogo e a transparncia tornaram-se caractersticas reconhecidas e iradas na PMMG. O insulamento corporativo que caracterizava a organizao no incio da dcada de 80 foi claramente superado durante a experincia da parceria.

pice deste processo deu-se, a partir de 1997, com a realizao de uma pesquisa conjunta entre a organizao, a Fundao Joo Pinheiro e a UFMG cujo objetivo era realizar um diagnstico da criminalidade em Minas Gerais. A efetivao deste estudo exigiu a composio de uma equipe de pesquisadores que contou com a participao decisiva de oficiais da corporao policial. O intercmbio entre acadmicos e policiais foi enriquecedor para ambas as partes. Desta experincia resultou a formao de uma parceria mais estreita entre a Universidade Federal de Minas Gerais e o Comando de Policiamento da Capital no sentido do desenvolvimento de um projeto de anlise georeferenciada da criminalidade na cidade de Belo Horizonte, projeto esse que se tornou referncia nacional.

Destaca-se ainda neste processo a maior transparncia e a publicizao das estatsticas criminais no estado de Minas Gerais. O zelo corporativo pela proteo dos dados produzidos foi sendo paulatinamente superado medida em que as organizaes parceiras aram a dispor deles com maior facilidade e a divulg-los publicamente com relativa freqncia. Deve-se considerar que no casual, nesse sentido, o fato de que Minas Gerais foi o primeiro estado brasileiro a disponiblizar, atravs de CD-Rom, uma srie histrica de dados criminais para todos os municpios, compreendendo o perodo de 1986 a 1997.

relevante considerar, por outro lado, que a potencialidade do impacto das parcerias no se situa apenas no carter do contedo ministrado nos cursos. To importante quanto, ou at mais importante, so as interaes cotidianas em sala de aula propiciadas pela participao de entidades externas polcia. Abre-se uma possibilidade concreta de troca de idias, valores, crenas e experincias entre indivduos oriundos de ethos organizacionais bastante distintos. A presena de professores civis, provenientes do mundo universitrio, so recorrentes nas Academias de Polcia no Brasil desde a dcada de 80. Contudo, o que h de novo o fato de que no so apenas professores individuais que esto envolvidos no processo, mas sim professores vinculados a organizaes outras que comandam o processo. Neste aspecto pode-se identificar um salto qualitativo em termos de resultados. Estou me referindo a um contato mais intensivo entre o mundo acadmico e o mundo policial ou mesmo interao mais prxima entre militantes de grupos defensores de direitos humanos e os policiais. As parcerias tm propiciado o intercmbio entre vises de mundo que at incio da dcada de 90 eram absolutamente antagnicas. Prevaleciam, e ainda prevalecem em boa medida, preconceitos e esteretipos recprocos. Na universidade brasileira, por exemplo, at h pouco tempo atrs a polcia era muito mais temida do que propriamente estudada e conhecida. Da perspectiva policial, por seu turno, sempre foi recorrente referir-se aos intelectuais como bons em teoria e imaturos na prtica.

Os esteretipos so, por definio, generalizaes de experincias imediatas e singulares dos indivduos. E em sendo assim, acabam por suscitar focos de confronto e divergncia. Os esteretipos tendem a ser superados quando intensifica-se a interao entre os indivduos, permitindo-lhes perceber quo simplistas eram suas percepes recprocas. exatamente essa a principal contribuio oferecida pelas parcerias. Ao permitir o contato mais prximo entre mundos anteriormente antagnicos, criam-se condies sociais para a superao de esteretipos. Em suma, o processo de mudana suscitado uma via de mo dupla.

Parcerias institucionais e eficincia na atividade policial 1e712

Se as parcerias podem possibilitar, por um lado, a ampliao do grau de transparncia e de legitimidade das organizaes policiais envolvidas, por outro lado elas podem no ter o mesmo efeito em termos da eficincia da atuao operacional destas organizaes. O fato delas estarem se tornando mais legtimas no implica que estejam se tornando mais eficientes no combate criminalidade. Alm disso, as parcerias at aqui desenvolvidas na sociedade brasileira tendem a afetar pouco a estrutura informal, mais precisamente a cultura policial que caracteriza a atuao cotidiana das polcias. So duas dimenses importantes do processo que apontam para suas limitaes.

O fenmeno da cultura policial tem sido estudado a nvel internacional, revelando sua relativa generalidade como realidade social institucionalizada. Independente das caractersticas organizacionais das polcias, possvel identificar algo em comum na experincia da atividade policial que acaba por favorecer a emergncia de uma forma peculiar de conceber seu trabalho, sua relao com a sociedade e com a populao criminosa. Nesse sentido, a cultura policial ultraa fronteiras nacionais, constituindo uma identidade profissional do ser policial. recheada de um saber prtico, resultado de experincias cotidianas e confirmando sua dimenso de informalidade. A cultura policial socializada nos encontros rotineiros entre veteranos e novatos, competindo em boa medida com o treinamento formal oferecido nas academias de polcia. Um dos componentes da cultura policial a valorizao da virilidade e da fora fsica como requisitos bsicos para se lidar com o mundo da criminalidade. A questo remete-nos para a insero da violncia no cotidiano da atividade policial e, consequentemente, para a potencialidade das referidas parcerias alterarem em alguma medida esta realidade.

A violncia extra-legal deve ser compreendida tendo em vista as complexidades relacionadas ao trabalho policial de produo da ordem sob a lei.

A articulao entre o combate eficaz ao crime e o respeito aos direitos civis constitui aspecto central da atividade policial nas sociedades democrticas. Esto em questo aqui os paradoxos envolvidos no uso da violncia legtima por parte das organizaes policiais. O modelo democrtico de garantia da ordem pblica pauta-se pela mxima ordem sob a lei. Ordem significa conformidade a padres morais de comportamento, enquanto lei significa restries racionais produo da ordem. Em suma, h uma oposio potencial entre os ideais de ordem e respeito legalidade nas sociedades modernas que se reflete no trabalho policial.

Os policiais tendem a compartilhar, sob esta tica, uma postura crtica em relao ao sistema legal, interpretando-o como srio entrave ao combate eficiente criminalidade. A lei problematizada de modo que os policiais colocam a seguinte questo: mas que lei essa que, interpretada literalmente, obriga o policial a agir fora dos formalismos para produzir a ordem que ela mesmo almeja? Sob esta tica, a violncia abusiva deve ser compreendida tendo em vista as complexidades relacionadas ao trabalho policial de produo de ordem sob a lei. Sua persistncia como procedimento cotidiano nas relaes entre policiais e criminosos e cidados de maneira geral na sociedade brasileira est vinculada ao duplo significado que assume na atividade cotidiana: violncia como recurso instrumental e como recurso moral. concebida assim como instrumento eficiente de preveno e de apurao da criminalidade alm de sua legitimao enquanto recurso na luta contra o mal, representado pelo crime.

As parcerias em curso tm pequena possibilidade de atuar sobre esta realidade por dois motivos: (a) raramente atingem os policiais de linha-de-frente das organizaes policiais e (b) os contedos ministrados privilegiam a disseminao de valores e vises de mundo, deixando um gap em termos de mtodos operacionais de trabalho. A mudana de valores, crenas e atitudes da elite organizacional e decisiva na alterao de padres da cultura organizacional mas tem impacto em termos do saber informal da organizao. Boa parte deste saber mantido pelas posies hierrquicas inferiores e que esto fora, at o momento, dos programas de treinamento inovadores que tm sido desenvolvidos. Excees a serem mencionadas so os casos do Amap que desenvolve programa de formao dos policiais militares em direitos humanos, premiado internacionalmente, e do Rio de Grande do Sul que tem a UFRS envolvida em projeto de formao integrada de policiais civis e policiais militares.

Alm disso, no basta atingir as bases das organizaes policiais para que se possa afetar diretamente o saber prtico da cultura policial. No sero cursos convencionais de direitos humanos capazes de alterar valores e crenas de policiais veteranos que esto h mais de 10 anos atuando nas ruas. O problema no se resume a disseminar valores alternativos. A persistncia do ethos guerreiro como elemento da cultura policial na sociedade brasileira no pode ser explicada pelo desconhecimento do iderio dos direitos humanos por parte dos policiais. Retomando o argumento acima discutido, a violncia policial tem um carter instrumental, funcionando como mtodo de trabalho. Ela percebida como recurso funcional para o bom desempenho da atividade profissional.

Em sendo assim, a superao desta realidade supe a oferta de mtodos alternativos de trabalho que possam se contrapor aos mtodos informais e convencionais. O que procuro afirmar aqui a idia de que muitas das caractersticas da cultura policial na sociedade brasileira no podem ser alteradas simplesmente por mudanas curriculares bem intencionadas. Tende a persistir o gap entre a socializao formal e a socializao informal. O poder mobilizador do saber prtico policial reado pelos veteranos reside na sua capacidade de instrumentalizar minimamente os novatos. Este aprende a ser policial na prtica, como correntemente afirmado em nossas unidades policiais civis e militares. Valoriza-se a prtica porque ela no anmica, como muitos poderiam imaginar. Valoriza-se a prtica por que ela recheada de mtodos e dicas para se lidar com os desafios cotidianos da profisso.

Entendo que o desafio das parcerias ainda maior se considerarmos o contexto de democratizao da sociedade brasileira que, por sua vez, tem acentuado num ritmo intenso, e desejvel, as restries ao trabalho policial. Atualmente, na sociedade brasileira, no mais possvel fazer polcia como se fazia at fins da dcada de 80. Os prprios policiais reconhecem isso e o afirmam corriqueiramente nas salas de aula. H uma certa perplexidade nas bases das polcias brasileiras que esto se sentindo cada vez mais restringidas em sua capacidade de lidar de modo eficiente com a criminalidade, utilizando o saber prtico e convencional. H uma sensao generalizada de imobilismo e conseqente perda de eficincia entre os policiais.

Pode-se afirmar que de certo modo a perda da eficincia tanto na atividade ostensiva quanto na atividade investigativa esteja realmente acontecendo. As organizaes policiais brasileiras tm diante de si um ambiente social cada vez mais fiscalizador que se expressa no fortalecimento das entidades de defesa dos direitos humanos bem como na elaborao de uma legislao mais restritiva que impe custos adicionais atuao policial que se descola dos parmetros normativos de respeito aos direitos civis. No se pode mais combater o crime utilizando-se o poder de polcia com alto grau de arbtrio, como sempre foi recorrente na histria brasileira. O saber prtico que tradicionalmente tem conformado a orientao do policial em seu trabalho cotidiano no encontra mais o espao institucional de outrora. Desse modo, policiais militares e civis experimentam a sensao de estarem absolutamente manietados e coagidos. Eles no tm mais a liberdade de utilizarem os mtodos concebidos como adequados para lidar com o mundo da marginalidade. Como no conhecem e no acreditam em mtodos alternativos do fazer polcia, tendem a resignar-se na manuteno de um ritmo de produtividade no trabalho que evite a exposio a riscos profissionais considerados indesejveis. Se a sociedade brasileira cada vez mais limita a discricionariedade do policial, ento, ela que arque com o nus disso, o que envolveria na percepo dos policiais, a ampliao das facilidades para o mundo da bandidagem. Em outras palavras, os policiais tendem a manifestar e a legitimar uma postura profissional pautada por alto grau de imobilismo e de apatia e consequentemente de ineficincia.

Certamente a alterao desta realidade no to simples como pode parecer a princpio. Estamos diante da tarefa de aumentar a eficincia do combate ao crime num contexto crescentemente restritivo como acontece no processo de fortalecimento das instituies democrticas. O dilema pode ser superado com o engendramento de novas formas de atuao policial, seja ostensiva ou investigativa, que permitam a maximizao do poder dissuasrio do Estado num contexto de restries democrticas. A tarefa construir novos mtodos prticos e operacionais que permitam ao policial da base perceber que possvel alcanar resultados concretos na reduo da incidncia da criminalidade a despeito da inevitabilidade das imposies legais. A postura de imobilismo e de apatia que prevalece no momento s pode ser superada com a apresentao, ao policial, de um saber operacional alternativo e que tenha a capacidade de competir com o saber prtico convencional, superando-o num momento seguinte. Em outras palavras, estamos diante do desafio de ampliar o grau de profissionalizao das organizaes policiais na sociedade brasileira.

Sob meu ponto de vista, as universidades e as organizaes no-governamentais podem contribuir decisivamente neste processo . O desafio da construo de polcias mais eficientes tambm conjunto. No diz respeito apenas s polcias. No simplesmente uma questo de tcnica policial que deva ficar restrita aos profissionais da rea. As parcerias at ento estabelecidas tm amplas condies de avanarem nesse sentido. A universidade no detentora deste novo saber policial. No cabe ela a pretenso ou a expectativa de oferec-lo pronto e acabado como um pacote. Entendo que a tarefa envolve um esforo conjunto, compartilhado que implique a possibilidade de viabilizar a combinao do conhecimento prtico dos policiais e o conhecimento terico-cientfico da academia. Duas experincias em andamento no Brasil sinalizam para a viabilidade prtica do que est sendo defendido aqui: (a) a parceria entre a UFMG e a PMMG no sentido de construir novos mtodos de policiamento ostensivo com base em modelos de georeferenciamento, mais particularmente atravs da maximizao do uso das informaes criminais no planejamento das atividades policiais e na distribuio dos recursos humanos e materiais da organizao; (b) o curso de formao em direitos humanos oferecido pela Cruz Vermelha Internacional que dissemina o iderio dos direitos humanos combinado a metodologias prticas de interveno e abordagem policiais. Em outras palavras, o curso alia a formao normativa dimenso tcnica do fazer policial.

Para finalizar, devo dizer que estamos diante de uma tarefa instigante na sociedade brasileira e que parte integrante da consolidao das instituies democrticas. Referenciando em Norbert Elias, proeminente socilogo alemo, permito-me dizer que a sociedade brasileira ainda est por efetivar seu processo civilizador, principalmente no que diz respeito ao uso devido da violncia monopolizada pelo Estado. J conseguimos alguns avanos. importante reconhec-los e torn-los pblicos. Mas h muito ainda o que fazer. No se deduza da anlise acima empreendida o desconhecimento das dificuldades envolvidas na consolidao destas parcerias. Conflitos intermitentes e descontinuidades so caractersticas que em maior ou menor grau afetam as mais diversas experincias aqui delineadas. A despeito disso, minha expectativa a de que este processo de mudana continue se fortalecendo, demarcando um avano institucional irreversvel na sociedade brasileira.

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