As parcerias entre as
Polcias, as Universidades e as Ongs: sinais promissores
de mudana na sociedade brasileira
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Lus
Flvio Sapori
5p3212
Pesquisador
da Fundao Joo Pinheiro/Professor da PUC MINAS
H um processo em curso na sociedade brasileira na rea de
segurana pblica ainda no devidamente captado e analisado. um
processo rico e promissor que aponta para a efetivao de mudanas
qualitativas nas organizaes policiais em nossa sociedade, mudanas
essas que dizem respeito consolidao de nossas instituies
democrticas. Estou me referindo proliferao de parcerias entre
as organizaes policiais e as universidades, institutos de pesquisa e
organizaes no-governamentais. Nos ltimos
anos programas de treinamento e de formao de policiais tm
sido empreendidos no mais sob o monoplio
das respectivas academias de polcia, mas envolvendo a participao
decisiva de entidades que compem o ambiente social destas organizaes.
No constitui mais novidade o fato de que a definio de contedos
programticos, de procedimentos pedaggicos e a prpria realizao
de aulas resulte da insero de atores externos ao trabalho policial.
Convnios tm sido estabelecidos para viabilizar uma diviso de
atribuies entre as academias de polcia e as organizaes
parceiras, sendo que estas ltimas tm assumido uma importncia cada
vez maior no processo decisrio dos programas de formao e
treinamento.
Em pelo menos 15 estados brasileiros este fenmeno j pode ser
detectado, estando presente desde o Amap at o Rio Grande do Sul,
ando por diversos estados do Nordeste, como so os casos do Rio
Grande do Norte, Paraba, Pernambuco, Bahia e Sergipe. Na regio
sudeste os destaques so Minas Gerais, Rio de Janeiro e Esprito
Santo. Merece meno o fato de que o fenmeno ainda no est
presente no estado de So Paulo. As
relaes entre a universidade e as organizaes policiais neste
estado ainda so pautadas por um alto grau de animosidade recproca.
Iniciou-se,
inclusive, um intercmbio a nvel nacional entre as entidades que esto
participando destas parcerias com as polcias brasileiras. Dois
encontros nacionais j foram realizados, sendo o primeiro em Belo
Horizonte (MG) no ano de 2000 e o segundo em Recife (PE), no ms de
agosto de 2001. Os encontros permitiram
uma troca de experincias entre as diversas entidades e
consolidaram a formao do Frum
Nacional de Educao, Democracia e Segurana. Deve-se ressaltar
que este network organizacional em gestao tem contado com o apoio
decisivo da Fundao Ford.
Um diagnstico preliminar destas experincias permite
visualizar um quadro diversificado, a despeito de algumas
homogeneidades. Um aspecto relativamente comum diz respeito ao fato de
que as polcias militares so os parceiros preferenciais. Em poucos
estados brasileiros ocorre a presena tambm da polcia civil, como so
os casos do Rio Grande do Sul e de
Minas Gerais. um aspecto relevante, sob meu ponto de
vista, que permite identificarmos dinmicas distintas entre as
polcias militares e as polcias civis no que tange maior transparncia
e interatividade com o ambiente externo no atual contexto brasileiro. As
polcias civis tm demonstrado resistncia
abertura da discusso mais ampla e pblica de seus mecanismos de
formao e treinamento, preferindo a adoo de posturas mais
corporativas e, porque no dizer, mais conservadoras.
Se h prevalncia das polcias militares em um dos lados da
parceria, do outro lado identificam-se tipos diversos de organizaes.
Esto inseridas aqui:
a)
organizaes no-governamentais, tais como GAJOP em
Pernambuco, PROJETO AX na Bahia, CAPEC no Amap e a Cruz Vermelha
Internacional;
b)
universidades federais e particulares, tais como a UFRS, a UFMG,
a UFF, UFSE, UFRN, UFPB, UFPR, UFES, UFPE, Universidade Vale do Itaja
(SC);
c)
institutos pblicos de pesquisa, tais como Fundao Joo
Pinheiro (MG) e Fundao Joaquim Nabuco (PE).
O
quadro acima aponta para
realidades que envolvem organizaes da sociedade civil bem como
organizaes que compem a estrutura de executivos estaduais e
federal. Em outros termos, existem parcerias internas ao Estado e
parcerias externas ao Estado.
Dimenso especfica que diferencia as experincias estaduais
refere-se aos tipos de parcerias estabelecidas, variando num continuum
que incorpora desde cursos bsicos de qualificao para policiais da
ativa at cursos de especializao para oficiais superiores. Os
objetos das parcerias so, geralmente, os seguintes:
a)
cursos de qualificao e/ou especializao em segurana pblica
para oficiais superiores das polcias militares ou mesmo para delegados
das polcias civis, como ocorrem na Fundao Joo Pinheiro, Fundao
Joaquim Nabuco, UFMG, UFF e UFES. O que tem prevalecido a transformao
dos antigos Curso de Aperfeioamento de Oficiais (CAO) e Curso Superior
de Polcia (CSP), tradicionalmente organizados pelas Academias das Polcias
Militares, em cursos de especializao ministrados pelas instituies
parceiras;
b)
curso de formao de oficiais da Polcia Militar, como ocorre
nos estados de Santa Catarina, envolvendo a Universidade do Vale do
Itaja, e do Paran, envolvendo a UFPR;
c)
cursos de aperfeioamento ou mesmo de introduo de novas
habilidades policiais, geralmente de curta durao e especialmente nas
reas de direitos humanos e de polcia comunitria. O pblico-alvo,
nestes casos, tem sido tanto
os policiais da base quanto policiais de instncias de comando. Tem
prevalecido a atuao das organizaes no-governamentais, como
pode ser verificado no Amap, Pernambuco e Bahia.
Merece
meno neste ponto o fato de que as parcerias atingem de forma muito
incipiente os postos hierrquicos inferiores das organizaes
policiais, prevalecendo o intercmbio com as elites organizacionais. Alm
disso, os cursos de formao bsica ministrados quando do ingresso
dos policiais em suas respectivas organizaes no tm sido objeto
das parcerias at o momento.
No que concerne ao tempo de vigncia, os intercmbios com as
organizaes policiais brasileiras foram estabelecidas, em sua
maioria, nos ltimos 5 anos, sendo, portanto, relativamente recentes.
Excees regra so os casos de Minas Gerais e Pernambuco, que
apresentam parcerias com as polcias militares h 16 anos e h 10
anos, respectivamente. Em Minas Gerais, por exemplo, desde 1985 a Polcia
Militar, atravs de sua Academia de Polcia, divide com a Fundao
Joo Pinheiro, que uma organizao vinculada ao sistema de
planejamento do executivo estadual, a coordenao dos cursos
oferecidos aos capites, majores e tenentes-coronis da ativa.
Atualmente estes cursos tm o grau de especializao latu
sensu e so denominados de Curso de Especializao em Segurana
Pblica (CESP) e Curso de Especializao em Gesto Estratgica de
Segurana Pblica (CEGESP). Em Pernambuco, por sua vez, pode-se situar
os cursos oferecidos pela Fundao Joaquim Nabuco PMPE, quais
sejam, Curso Superior de Polcia e Curso de Aperfeioamento de
Oficiais. Desenvolvidos sob a coordenao da FJN, atravs da Escola
de Governo e Polticas Pblicas que
concebeu o projeto pedaggico dos cursos, tendo como eixo
integrador curricular a gesto de polticas pblicas de defesa
social.
Outro aspecto das parcerias refere-se ao contedo programtico
ministrado nos cursos. O espectro variado considerando a nfase
distinta em campos de conhecimento das cincias sociais. Pode-se
constatar, por um lado, a prevalncia de contedos relacionados rea
jurdica, como so os casos de Santa Catarina e Paran. J nas
experincias em curso nos estados de Minas Gerais, Pernambuco, Esprito
Santo e Rio de Janeiro, os cursos de ps-graduao oferecidos aos
oficiais superiores das Polcias Militares contemplam disciplinas na rea
de istrao de empresas alm da formao intensiva em
disciplinas da rea de sociologia, cincia poltica e direcionadas
para a temtica da segurana pblica. Merece destaque o projeto da
UFF com a PMERJ que tem um mdulo de disciplinas com as caractersticas
acima referidas s cargo da Universidade. Nos cursos em parcerias com
as organizaes no-governamentais tem prevalecido, por seu turno,
contedos relacionados rea de direitos humanos. Exemplos mais
destacados so os dos estados do Amap e da Bahia, alm do convnio
da Cruz Vermelha Internacional com o Ministrio da Justia que acaba
contemplando polcias militares de diversos estados brasileiros.
Transparncia
e legitimidade das organizaes policiais
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A partir deste diagnstico preliminar, uma questo coloca-se
para reflexo:
-
em que medida tais parcerias proporcionam mudanas efetivas no
modo de atuar e de pensar das organizaes policiais brasileiras no
sentido do aprimoramento de sua insero democrtica ?
Minha
perspectiva aqui abordar esta questo sob o prisma sociolgico,
evitando incorrer em discursos retricos fceis acerca do tema.
importante nesse sentido priorizar os juzos
de fato em relao aos juzos
de valor. desejvel
sob diversos parmetros normativos a viabilizao e a ampliao das
referidas parcerias. Pode-se defend-las, por exemplo, com o
argumento de que elas so prticas democrticas por excelncia,
viabilizando mecanismos de transparncia das organizaes policiais.
Este, inclusive, meu ponto de vista.
Minha
preocupao, no entanto, identificar
os sinais mais concretos do impacto institucional deste processo.
Se ele desejvel, por um lado, no significa que seja efetivo, por outro.
Motivaes nobres as mais diversas tm orientado a atuao
das instituies de ensino, pesquisa e organizaes no-governamentais
na busca da aproximao com as polcias.
Prevalece, entretanto, a perspectiva de induzir mudanas nas
referidas organizaes policiais. Acredita-se, de modo geral, que a
introduo de novos contedos programticos, de novas metodologias
de ensino, de novas abordagens da realidade social sejam capazes de
suscitar a emergncia de
formas alternativas de pensar e de agir entre os policiais. Acredita-se,
de modo geral, que a mera reforma dos processos formais de ensino seja
capaz de propiciar transformaes substantivas nas organizaes
policiais. preciso refletir mais detidamente sobre a efetiva
concretizao deste objetivo, considerando seus dilemas, paradoxos e
limites, entre outros aspectos.
At
o momento no realizamos no Brasil uma avaliao destas parcerias. No
dispomos ainda nem mesmo de uma metodologia relativamente consensual que
seja capaz de avaliar seus impactos institucionais. E tal empreendimento
no to simples como pode parecer a princpio. Envolve a definio
de critrios para qualificar efetividade, elaborao de indicadores
que possam medir impactos institucionais variados, operacionalizao
de mtodos de coleta de dados, etc. Considerando estas limitaes,
prefiro tecer consideraes mais gerais sobre minhas percepes do
fenmeno que tero o carter muito mais de hipteses do que
propriamente de constataes empiricamente fundamentadas.
E
minha hiptese bsica pode ser formulada nos seguintes termos:
-
as parcerias em curso entre as polcias e as universidades e organizaes
no-governamentais, dadas suas caractersticas j delineadas, tendem
a induzir e a fortalecer o grau de democratizao das polcias no que
concerne ampliao da transparncia e reduo do insulamento
organizacional. Por outro lado, tais parcerias tendem a ser pouco
capazes de ampliar o grau de eficincia e eficcia destas organizaes
no combate criminalidade.
Esta questo nos remete a um debate sociolgico muito
relevante que diz respeito aos mecanismos sociais geradores de mudanas
nas organizaes policiais, em especial o sistema de ensino. No h
consenso entre estudiosos das organizaes policiais no que tange ao
efetivo impacto da reformulao
de processos de ensino sobre mudanas substantivas na cultura e nas prticas
organizacionais. Certas abordagens sociolgicas da polcia nas
democracias consolidadas, inclusive, indicam que reside mais
no ambiente da organizao e menos na reforma das estruturas
formais internas a base de induo de transformaes nas maneiras de
pensar e agir por parte dos policiais.
A cultura organizacional
est amparada em processos sociais muito mais complexos do que a
estrutura formal, como caso de sua histria institucional. Alm
disso, deve-se considerar que o processo de transmisso de valores,
crenas e informaes nas organizaes no se resume s suas instncias
formais de socializao. Ela ocorre tambm mediante o acionamento de
mecanismos informais que geralmente se estabelecem nas relaes face-to-face
entre seus membros. imprescindvel ter em mente que toda e qualquer
organizao composta de uma estrutura formal e de uma estrutura
informal. Ambas so parte de sua existncia institucional. Nesse
sentido, mudanas no ensino
formal no implicam, necessariamente, mudanas nas formas de atuar e
pensar das respectivas organizaes. Isto no significa afirmar que
atravs dos programas de formao e treinamento no se possa induzir
processos consistentes de reformas nas polcias. A despeito de suas
limitaes, possvel reconhecer a viabilidade do fenmeno mais
precisamente quando se considera a
importncia das elites na conformao de traos relevantes do
ethos organizacional.
No
caso das organizaes policiais, os procedimentos formais
de socializao compem parte importante da estrutura
organizacional. Temos cursos de formao bsica para os policiais
iniciantes bem como uma srie de cursos de qualificao e treinamento
oferecidos queles j inseridos nas atividades operacionais. As
parcerias, conforme j explicitei, concentram-se no treinamento e
dirigem-se preferencialmente para segmentos da elite organizacional,
como so os cursos de ps-graduao para oficiais superiores das polcias
militares. Reside neste ponto a
potencialidade de mudana das parcerias. Dado o contedo programtico
ministrado disciplinas da rea de cincias sociais especialmente -
abre-se a possibilidade de socializao e conseqente formao
de uma nova elite organizacional em termos de valores e vises de mundo
adequadas aos parmetros normativos da democracia. No apenas para
aqueles novatos que esto ingressando na organizao
mas principalmente para os que j esto na ativa. possvel
sob este ponto de vista referir-se a geraes de oficiais militares
que consolidam concepes e prticas alternativas de comando da
organizao tendo como ponto de inflexo a participao nos cursos
especficos oferecidos pelas parcerias com entidades externas polcia.
O posicionamento estratgico desta elite nos principais cargos de
comando, por sua vez, fator decisivo no engendramento de uma postura
mais transparente e mais dialgica com segmentos diversos da sociedade
civil.
A
experincia da Polcia Militar de Minas Gerais ilustrativa a esse
respeito. A organizao que at incio da dcada de 80 tinha
desempenhado papel destacado na ditadura militar, alcana em fins da dcada
de 90 nveis invejveis de legitimidade perante a sociedade mineira.
certamente uma das organizaes pblicas do estado que mais
usufrui de aprovao e respeito por parte da populao. O mesmo grau
de legitimidade ela desfruta perante entidades diversas de defesa dos
direitos humanos. sintomtico o fato de que nunca alcanou aprovao
na opinio pblica e nas elites polticas e intelectuais do estado a
idia da extino das polcias militares, conforme tem sido
orientado o debate nacional a partir do eixo Rio-So Paulo, nos ltimos
anos.
A
parceria com a Fundao Joo Pinheiro tem parcela decisiva na explicao
do fenmeno, indubitavelmente. A
organizao foi capaz ao longo deste perodo de redefinir seus padres
de interao com a sociedade civil. Instituiu-se e consolidou-se um
processo de renovao doutrinria
que alcanou relativa hegemonia perante os oficiais superiores
da organizao. A abertura para o dilogo e a transparncia
tornaram-se caractersticas reconhecidas e iradas na PMMG. O
insulamento corporativo que caracterizava a organizao no incio da
dcada de 80 foi claramente superado durante a experincia da
parceria.
pice
deste processo deu-se, a partir de 1997, com a realizao de uma
pesquisa conjunta entre a organizao, a Fundao Joo Pinheiro e a
UFMG cujo objetivo era realizar um diagnstico da criminalidade em
Minas Gerais. A efetivao deste estudo exigiu a composio de uma
equipe de pesquisadores que contou com a participao decisiva de
oficiais da corporao policial. O intercmbio entre acadmicos e
policiais foi enriquecedor para ambas as partes. Desta experincia
resultou a formao de uma parceria mais estreita entre a Universidade
Federal de Minas Gerais e o Comando de Policiamento da Capital no
sentido do desenvolvimento de um projeto de anlise georeferenciada da
criminalidade na cidade de Belo Horizonte, projeto esse que se tornou
referncia nacional.
Destaca-se
ainda neste processo a maior transparncia e a publicizao das estatsticas
criminais no estado de Minas Gerais. O zelo corporativo pela proteo
dos dados produzidos foi sendo paulatinamente superado medida em que
as organizaes parceiras aram a dispor deles com maior facilidade
e a divulg-los publicamente com relativa freqncia. Deve-se
considerar que no casual, nesse sentido, o fato de que Minas Gerais
foi o primeiro estado brasileiro a disponiblizar, atravs de CD-Rom,
uma srie histrica de dados criminais para todos os municpios,
compreendendo o perodo de 1986 a 1997.
relevante considerar, por outro lado, que a potencialidade do impacto
das parcerias no se situa apenas no carter do contedo ministrado
nos cursos. To importante quanto, ou at mais importante, so as
interaes cotidianas em sala de aula propiciadas pela participao
de entidades externas polcia. Abre-se uma possibilidade concreta de
troca de idias, valores, crenas e experincias entre indivduos
oriundos de ethos
organizacionais bastante distintos. A presena de professores civis,
provenientes do mundo universitrio, so recorrentes nas Academias de
Polcia no Brasil desde a dcada de 80. Contudo, o que h de novo
o fato de que no so apenas professores individuais que esto
envolvidos no processo, mas sim professores vinculados a organizaes
outras que comandam o processo. Neste aspecto pode-se identificar um
salto qualitativo em termos de resultados. Estou me referindo a um
contato mais intensivo entre o mundo acadmico e o mundo policial ou
mesmo interao mais prxima entre
militantes de grupos defensores de direitos humanos e os
policiais. As parcerias tm propiciado o intercmbio entre vises de
mundo que at incio da dcada de 90
eram absolutamente antagnicas. Prevaleciam, e ainda prevalecem
em boa medida, preconceitos e esteretipos recprocos. Na universidade
brasileira, por exemplo, at h pouco tempo atrs a polcia era
muito mais temida do que propriamente estudada e conhecida. Da
perspectiva policial, por seu turno, sempre foi recorrente referir-se
aos intelectuais como bons em teoria e imaturos na prtica.
Os
esteretipos so, por definio, generalizaes de experincias
imediatas e singulares dos indivduos. E em sendo assim, acabam por
suscitar focos de confronto e divergncia. Os esteretipos tendem a
ser superados quando intensifica-se a interao entre os indivduos,
permitindo-lhes perceber quo simplistas eram suas percepes recprocas.
exatamente essa a principal contribuio oferecida pelas parcerias.
Ao permitir o contato mais prximo entre mundos anteriormente antagnicos,
criam-se condies sociais para a superao de esteretipos. Em
suma, o processo de mudana suscitado uma via de mo dupla.
Parcerias
institucionais e eficincia na atividade policial
1e712
Se
as parcerias podem possibilitar, por um lado, a ampliao do grau de
transparncia e de legitimidade das organizaes policiais
envolvidas, por outro lado elas podem no ter
o mesmo efeito em termos da eficincia da atuao operacional
destas organizaes. O fato delas estarem se tornando mais legtimas
no implica que estejam se tornando mais eficientes no combate
criminalidade. Alm disso, as parcerias at aqui desenvolvidas na
sociedade brasileira tendem a afetar pouco a estrutura informal, mais
precisamente a cultura policial que caracteriza a atuao cotidiana
das polcias. So duas dimenses importantes do processo que apontam
para suas limitaes.
O
fenmeno da cultura policial tem sido estudado a nvel internacional,
revelando sua relativa generalidade como realidade social
institucionalizada. Independente
das caractersticas organizacionais das polcias, possvel
identificar algo em comum na experincia da atividade policial que
acaba por favorecer a emergncia
de uma forma peculiar de conceber seu trabalho, sua relao com a
sociedade e com a populao criminosa. Nesse sentido, a cultura
policial ultraa fronteiras nacionais, constituindo uma identidade
profissional do ser policial. recheada de um saber prtico,
resultado de experincias cotidianas e confirmando sua dimenso de
informalidade. A cultura policial socializada nos encontros
rotineiros entre veteranos e novatos, competindo em boa medida com o
treinamento formal oferecido nas academias de polcia. Um dos
componentes da cultura policial a valorizao da virilidade e da
fora fsica como requisitos bsicos para se lidar com o mundo da
criminalidade. A questo remete-nos para a insero da violncia no
cotidiano da atividade policial e, consequentemente, para a
potencialidade das referidas parcerias alterarem em alguma medida
esta realidade.
A
violncia extra-legal deve ser compreendida tendo em vista as
complexidades relacionadas ao trabalho policial de produo da ordem
sob a lei.
A
articulao entre o combate eficaz ao crime e o respeito aos direitos
civis constitui aspecto central da atividade policial nas sociedades
democrticas. Esto em questo aqui os paradoxos envolvidos no uso da
violncia legtima por parte das organizaes policiais.
O modelo democrtico de garantia da ordem pblica pauta-se pela
mxima ordem sob a lei. Ordem
significa conformidade a padres morais de comportamento, enquanto lei
significa restries racionais produo da ordem. Em suma, h
uma oposio potencial entre os ideais de ordem e respeito
legalidade nas sociedades modernas que se reflete no trabalho policial.
Os policiais tendem a compartilhar, sob esta tica, uma postura
crtica em relao ao sistema legal, interpretando-o como srio
entrave ao combate eficiente criminalidade. A lei problematizada
de modo que os policiais colocam a seguinte questo: mas que lei
essa que, interpretada literalmente, obriga o policial a agir fora dos
formalismos para produzir a ordem que ela mesmo almeja?
Sob esta tica, a violncia abusiva deve ser compreendida tendo
em vista as complexidades
relacionadas ao trabalho policial de produo de ordem sob a lei. Sua
persistncia como procedimento cotidiano nas relaes entre policiais
e criminosos e cidados de maneira geral na sociedade brasileira est
vinculada ao duplo significado que assume na atividade cotidiana: violncia
como recurso instrumental e como recurso moral. concebida assim como
instrumento eficiente de preveno e de apurao da criminalidade alm
de sua legitimao enquanto recurso na luta contra o mal, representado
pelo crime.
As parcerias em curso tm pequena possibilidade de atuar
sobre esta realidade por dois motivos: (a) raramente atingem os
policiais de linha-de-frente das organizaes policiais e (b) os contedos
ministrados privilegiam a disseminao de valores e vises de mundo,
deixando um gap em termos de mtodos
operacionais de trabalho. A mudana de valores, crenas e atitudes da
elite organizacional e decisiva na alterao de padres da cultura
organizacional mas tem impacto em termos do saber informal da
organizao. Boa parte deste saber mantido pelas posies hierrquicas
inferiores e que esto fora, at o momento, dos programas de
treinamento inovadores que tm sido desenvolvidos. Excees
a serem mencionadas so os casos do Amap que desenvolve
programa de formao dos policiais militares em direitos humanos,
premiado internacionalmente, e do Rio de Grande do Sul que tem a UFRS
envolvida em projeto de formao integrada de policiais civis e
policiais militares.
Alm
disso, no basta atingir as bases das organizaes policiais para que
se possa afetar diretamente o saber prtico da cultura policial. No
sero cursos convencionais de direitos humanos capazes de alterar
valores e crenas de policiais veteranos que esto h mais de 10 anos
atuando nas ruas. O problema no se resume a disseminar valores
alternativos. A persistncia do ethos
guerreiro como elemento da cultura policial na sociedade brasileira no
pode ser explicada pelo desconhecimento do iderio dos direitos humanos
por parte dos policiais. Retomando o argumento acima discutido, a violncia
policial tem um carter instrumental, funcionando como mtodo de
trabalho. Ela percebida como recurso funcional para o bom desempenho
da atividade profissional.
Em
sendo assim, a superao desta realidade supe a oferta de mtodos
alternativos de trabalho que possam se contrapor aos mtodos informais
e convencionais. O que procuro afirmar aqui
a idia de que muitas das caractersticas da cultura policial
na sociedade brasileira no podem ser alteradas simplesmente por mudanas
curriculares bem intencionadas. Tende a persistir o gap
entre a socializao formal e a socializao informal. O poder
mobilizador do saber prtico policial reado pelos veteranos reside
na sua capacidade de instrumentalizar minimamente os novatos. Este
aprende a ser policial na prtica, como correntemente afirmado em
nossas unidades policiais civis e militares. Valoriza-se a prtica
porque ela no anmica,
como muitos poderiam imaginar. Valoriza-se a prtica por que ela
recheada de mtodos e dicas para
se lidar com os desafios cotidianos da profisso.
Entendo
que o desafio das parcerias ainda maior se considerarmos o contexto
de democratizao da sociedade brasileira que, por sua vez, tem
acentuado num ritmo intenso, e desejvel, as restries ao trabalho
policial. Atualmente, na sociedade brasileira, no mais possvel
fazer polcia como
se fazia at fins da dcada de 80. Os prprios policiais reconhecem
isso e o afirmam corriqueiramente nas salas de aula. H uma certa
perplexidade nas bases das polcias brasileiras que esto se sentindo
cada vez mais restringidas em sua capacidade de lidar de modo eficiente
com a criminalidade, utilizando o saber prtico e convencional.
H uma sensao generalizada de imobilismo e conseqente
perda de eficincia entre os policiais.
Pode-se
afirmar que de certo modo a perda da eficincia tanto na atividade
ostensiva quanto na atividade investigativa esteja realmente
acontecendo. As organizaes policiais brasileiras tm diante de si
um ambiente social cada vez mais fiscalizador
que se expressa no fortalecimento das entidades de defesa dos direitos
humanos bem como na elaborao de uma legislao mais restritiva que
impe custos adicionais atuao policial que se descola dos parmetros
normativos de respeito aos direitos civis. No se pode mais
combater o crime utilizando-se o poder de polcia com alto grau
de arbtrio, como sempre foi recorrente na histria brasileira. O
saber prtico que tradicionalmente tem conformado a orientao do
policial em seu trabalho cotidiano no encontra mais o espao
institucional de outrora. Desse modo, policiais militares e civis
experimentam a sensao de estarem
absolutamente manietados e coagidos. Eles no tm mais a
liberdade de utilizarem os mtodos concebidos como adequados para
lidar com o mundo da marginalidade. Como no conhecem e no acreditam
em mtodos alternativos do fazer polcia, tendem a resignar-se
na manuteno de um ritmo de produtividade no trabalho que evite a
exposio a riscos profissionais considerados indesejveis. Se a
sociedade brasileira cada vez mais
limita a discricionariedade do policial, ento, ela que arque com o nus
disso, o que envolveria na percepo dos policiais, a ampliao das
facilidades para o mundo da bandidagem.
Em outras palavras, os policiais tendem a manifestar e a
legitimar uma postura profissional pautada por alto grau de imobilismo e
de apatia e consequentemente de ineficincia.
Certamente
a alterao desta realidade no to simples como pode parecer a
princpio. Estamos diante da tarefa de aumentar a eficincia do
combate ao crime num contexto crescentemente restritivo como acontece no
processo de fortalecimento das instituies democrticas.
O dilema pode ser superado com o engendramento de novas formas de
atuao policial, seja ostensiva ou investigativa, que permitam a
maximizao do poder dissuasrio do Estado num contexto de restries
democrticas. A tarefa construir novos mtodos prticos e
operacionais que permitam ao policial da base perceber que possvel
alcanar resultados concretos na reduo da incidncia da
criminalidade a despeito da inevitabilidade das imposies legais. A
postura de imobilismo e de apatia que
prevalece no momento s pode ser superada com a apresentao, ao
policial, de um saber operacional alternativo e que tenha a capacidade
de competir com o saber prtico convencional, superando-o num momento
seguinte. Em outras palavras, estamos diante do desafio de ampliar o
grau de profissionalizao das organizaes policiais na sociedade
brasileira.
Sob
meu ponto de vista, as universidades e as organizaes no-governamentais
podem contribuir decisivamente neste processo . O desafio da
construo de polcias mais eficientes tambm conjunto. No diz
respeito apenas s polcias. No simplesmente uma questo de tcnica
policial que deva ficar restrita aos profissionais da rea. As
parcerias at ento estabelecidas tm amplas condies de avanarem
nesse sentido. A universidade no detentora deste novo saber
policial. No cabe ela a pretenso ou a expectativa de oferec-lo
pronto e acabado como um pacote. Entendo que a tarefa envolve um esforo
conjunto, compartilhado que implique a possibilidade de viabilizar a
combinao do conhecimento prtico dos policiais e o conhecimento terico-cientfico
da academia. Duas experincias em andamento no Brasil sinalizam para a
viabilidade prtica do que est sendo defendido aqui: (a) a parceria
entre a UFMG e a PMMG no sentido de construir novos mtodos de
policiamento ostensivo com base em modelos de georeferenciamento, mais
particularmente atravs da maximizao do uso das informaes
criminais no planejamento das atividades policiais e na distribuio
dos recursos humanos e materiais da organizao;
(b) o curso de formao em direitos humanos oferecido pela Cruz
Vermelha Internacional que dissemina o iderio dos direitos humanos
combinado a metodologias prticas de interveno e abordagem
policiais. Em outras palavras, o curso alia a formao normativa
dimenso tcnica do fazer policial.
Para finalizar, devo dizer que estamos diante de uma tarefa
instigante na sociedade brasileira e que parte integrante da
consolidao das instituies democrticas. Referenciando em
Norbert Elias, proeminente socilogo alemo, permito-me dizer que a
sociedade brasileira ainda est por efetivar seu processo civilizador,
principalmente no que diz respeito ao uso devido da violncia
monopolizada pelo Estado. J conseguimos alguns avanos. importante
reconhec-los e torn-los pblicos. Mas h muito ainda o que fazer.
No se deduza da anlise acima empreendida o desconhecimento das
dificuldades envolvidas na consolidao destas parcerias. Conflitos
intermitentes e descontinuidades so caractersticas que em
maior ou menor grau afetam as mais diversas experincias aqui
delineadas. A despeito disso, minha expectativa a de que este
processo de mudana continue se fortalecendo, demarcando um avano
institucional irreversvel na sociedade brasileira.
BIBLIOGRAFIA
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Princeton, New Jersey
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